Baixar este arquivo PDF

Propaganda
“Vivitur ingenio, caetera mortis erunt”: Andreas Vesalius e a representação da melancolia e da vanitas no século XVI europeu
Maria Berbara
O tema central deste artigo é a análise de uma das pranchas que acompanham o livro
De Humanis Corporis Fabrica, de Andreas Vesalius (1514-1564), publicado pela primeira vez em 1543 com os tipos de Joannes Oporinos, da Basiléia.1 Concomitantemente,
Vesalius publicou a Epitome, espécie de resumo da Fabrica concebido para o uso de
estudantes. A Fabrica é composta por sete livros dedicados a diferentes sistemas de
funcionamento do corpo humano: o primeiro e o segundo livro tratam de ossos e músculos; o terceiro de veias e artérias; o quarto de nervos; o quinto de órgãos ligados à
nutrição e reprodução; o sexto do coração e pulmões, e o sétimo do cérebro e órgãos
ligados aos sentidos. A Epitome, com maior espaço para as ilustrações em relação ao
texto, foi pensada, por Vesalius, para o público leigo ou semi-leigo; seu sucesso foi
enorme e imediato, tendo sido traduzida para o alemão quase imediatamente após
sua primeira publicação. A Fabrica, por sua vez, seria traduzida para línguas modernas
somente no século XX. Não há consenso quanto à autoria das extraordinárias estampas
que acompanham o texto vesaliano; o mais provável é que tenham sido realizadas por
vários artistas do âmbito veneziano, entre os quais Jan van Kalkar, discípulo de Ticiano,
e Campagnola. É provável, ainda, que o próprio Vesalius tenha executado algumas das
estampas.
Figura 1: Willem Swanenburgh, Teatro anatômico de Leiden, 1610,
Leiden, Prentenverzameling.
1 Cf. a edição moderna de W. F. Richardson e J. B. Carman (San Francisco, Norman, 1998), e J. B. De C. M. Sauders
e C. D. O’Malley, The Illustrations from the Works of Andreas Vesalius, Cleveland/Nova York, The World Publishing,
1934.
VIVITUR INGENIO, CAE TERA MORTIS ERUNT
21
Como nota André Chastel, as extraordinárias pranchas que acompanham a Fabrica
de Vesalius convidam simultaneamente ao estudo e à meditação sobre o organismo
humano, perfeito na transitoriedade de seu triunfo.2 O frontispício da primeira edição – que haveria de ser ligeiramente modificado, na segunda – representa um teatro
anatômico. Os assim chamados teatros anatômicos eram, normalmente, circulares,
com cadeiras ou bancos posicionados ascendentemente ao redor de uma mesa sobre a
qual o professor de medicina dissecava cadáveres de seres humanos ou outros animais.
O primeiro teatro anatômico foi erguido na universidade de Pádua em 1594; dois anos
depois foi construído o da Universidade de Leiden, gravado por Willem Swanenburgh
no início do século XVII em uma estampa exaustivamente reproduzida (fig.1).3 Já em
meados do século XVI, quando Vesalius publica a Fabrica, a anatomia havia se convertido em um espetáculo público, atraindo não somente estudantes de medicina, mas
também leigos. A gravura de Swanenburgh representa a dissecção de um cadáver no
teatro anatômico de Leiden; entre os assistentes, contam-se não somente vivos, mas
também esqueletos de animais e humanos, alguns dos quais portam estandartes com
inscrições latinas vinculadas ao memento mori, como, por exemplo, nascentes morimur (nascendo, morremos, ou ao nascer, morremos) ou puluis et umbra sumus (somos pó e sombra). Ao alto, entre dois brasões, uma criança apoia-se sobre um crâneo
enquanto, com a mão esquerda, segura uma ampulheta – clássico motivo vinculado ao
moto nascendo morimur, o qual aparece, por exemplo, em uma pintura do flamengo
Maarten van Heemskerk (fig.2), contemporânea à primeira edição da Fabrica, ou na
obra do também flamengo Adriaen van Cronenburg (fig.3), realizada já nos anos 1560,
representando uma mulher tendo a sua esquerda uma criança – certamente sua filha –
e à direita uma caveira, enquanto, ao fundo, lê-se a inscrição nascendo morimur.
Figura 2: Maarten van Heemskerk, Nascendo morimur, 1540,
Koblenz, Mittelheim Museum.
2 André Chastel, La Crise de la Renaissance, 1520-1600, Genebra, Skira, 1969, p. 146.
3 Para a história do teatro anatômico de Leiden e a prática da anatomia naquele contexto cf. T. Huisman, The
finger of God: anatomical practice in 17th-century Leiden, Leiden, Primavera, 2009.
22
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I I • A N O I I • 2 0 1 4 • R i d E M
Figura 3: Adriaen van Cronenburg, Mulher com menina segurando uma flor
(nascendo morimur), 1567, Madri, Museu do Prado.
O frontispício da Fabrica representa Vesalius dissecando o corpo de uma jovem mulher diante de um magnífico edifício de linhas palladianas (fig.4). A atmosfera geral é
de agitação, com vários personagens apontando o corpo, conversando, gesticulando.
Como era costumeiro no século XVI – isso é, antes do estabelecimento de teatros anatômicos – fora montada uma estrutura de madeira temporária para que pudesse ser
realizada a dissecção. Vesalius é rodeado por estudantes e colegas, mas também por
homens de estado e prelados. Ao centro da composição vê-se um esqueleto articulado,
o qual parece funcionar, aqui, menos como um memento mori do que como a própria
quintessência do ato de dissecar e da convicção de Vesalius de que o conhecimento do
corpo humano deve, necessariamente, começar pelos ossos. Curiosamente, na segunda edição da Fabrica, publicada em 1555 (fig.5), o esqueleto passa a segurar uma foice,
instrumento inequivocamente associável à morte; o sentido do memento mori, portanto, intensifica-se.
VIVITUR INGENIO, CAE TERA MORTIS ERUNT
23
Figura 4: Frontispício da Fabrica de Vesalius (Basiléia: Johannes Oporinus, 1543).
Figura 5: Frontispício da Fabrica de Vesalius (Basiléia: Johannes Oporinus, 1555).
24
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I I • A N O I I • 2 0 1 4 • R i d E M
No primeiro livro da Fabrica, dedicado à osteologia, ossos humanos parecem assumir uma
dupla função – médica e moral. As primeiras pranchas representam diferentes conjuntos de
ossos, mas as três últimas exibem esqueletos intactos vistos frontal (fig.6), lateral (fig.7) e posteriormente (fig.8). O primeiro esqueleto apoia seu braço direito sobre uma pá, ao lado da qual
se abre uma cova; o segundo sustenta melancolicamente o próprio crâneo em uma das mãos
enquanto, ao modo de um Hamlet, parece monologar pousando a outra mão em um crâneo
sobre uma tumba onde se lê a inscrição latina: “vivitur ingenio, caetera mortis erunt” (“vive-se
pelo engenho, todo o resto é mortal”, citação das Elegias a Mecenas, compostas, com toda a
probabilidade, no século I d.C.), enquanto o terceiro esqueleto, de costas, adota uma atitude
de oração. Nessas imagens, o aparato visual e retórico clássico parece servir para universalizar
considerações de distintos matizes sobre a transitoriedade da vida e a inelutabilidade da morte. Essas três imagens devem, parece-me, ser analisadas conjuntamente, tendo seu fulcro na
representação lateral do esqueleto.
Figura 6: Fólio da Fabrica de Vesalius (Basiléia: Johannes Oporinus, 1543).
VIVITUR INGENIO, CAE TERA MORTIS ERUNT
25
Figura 7: Fólio da Fabrica de Vesalius
(Basiléia: Johannes Oporinus, 1543).
Figura 8: Fólio da Fabrica de Vesalius
(Basiléia: Johannes Oporinus, 1543).
26
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I I • A N O I I • 2 0 1 4 • R i d E M
Assim como as demais pranchas, as três representações do esqueleto completo reúnem
referências à estatuária clássica à análise detalhada do corpo humano, mas elas revelam, também, a intuição permanente da morte e da fragilidade da vida. Sobretudo a
imagem frontal do esqueleto, ao lado de sua própria cova, não esconde seu débito para
com representações tradicionais da morte e da Dança Macabra. A série de esqueletos,
portanto, poderia, à primeira vista, ser compreendida como uma genial fusão entre o
discurso científico moderno e o tradicional memento mori. Se ao memento mori, porém, associa-se necessariamente o conceito de contemptus mundi, isso é, o desprezo
pelas coisas mundanas, na estampa de Vesalius o engenho e o conhecimento parecem
surgir como única via de superação da morte. Contrariamente a formulações niilistas, na representação lateral do esqueleto a inscrição vivitur ingenio parece remontar à
tradição horaciana do “non omnis moriar”, isso é, “não morro inteiramente”. Horácio,
poeta do carpe diem e das notas melancólicas sobre a fragilidade da condição humana,
proclama, na ode final do seu terceiro e último livro de odes, “Exegi monumentum aere
perennius”, isso é, “Erigi um monumento mais perene que o bronze”:
Exegi monumentum aere perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod non imber edax, non Aquilo inpotens
possit diruere aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum.
Non omnis moriar multaque pars mei
uitabit Libitinam; usque ego postera
crescam laude recens, dum Capitolium
scandet cum tacita uirgine pontifex.4
Não estranha que essa seja a última ode do último livro; não era incomum, na Antiguidade, que poetas concluíssem suas obras com comentários sobre si próprios e o trabalho que acabam de realizar. Depois de tantos poemas sobre a fragilidade da condição
humana, Horácio proclama a permanência de sua obra, mais duradoura que o bronze;
ao longo da ode, paraleliza a transitoriedade ao poder do tempo, e a permanência ao
poder das letras, graças às quais, espera, não morrerá de todo; uma parte dele, uma
grande parte, escapará a Libitina, a deusa romana que presidia os funerais. A ode horaciana teve uma vasta fortuna crítica, tanto na antiguidade quanto na primeira época
moderna; Shakespeare, por exemplo, faz referência a ela em vários dos seus sonetos, e
a frase non omnis moriar haveria de converter-se em provérbio.5
Curiosamente, na Epitome, publicada poucas semanas depois da versão inicial, Vesalius reproduz a mesma estampa com uma inscrição diferente na tumba (fig.9): “solvitur omne decus leto niveosque per artus it Stygius color et formae populatur honores”,
isso é, “A morte roubou-lhe toda a beleza; um tom estígio espalhou-se sobre sua nívea
pele e destruiu sua formosura”, citação do poeta romano do século I d.C. Silius Italicus.
A mensagem dessa frase latina, portanto, difere em concepção e princípio da primeira:
se aquela afirmava, em um sentido clássico, a vitória do engenho sobre a própria mor4 "Erigi um monumento mais perene que o bronze / e mais alto do que as pirâmides reais, / que nem a chuva
corrosiva nem o impetuoso vento norte / poderão destruir, nem a inumerável / série dos anos e o passar veloz
do tempo. / Não morrerei completamente, e grande parte de mim / escapará a Libitina / crescerei, sempre renovado, no louvor da posteridade / enquanto o pontífice subir ao Capitólio com a silenciosa vestal."
5 Cf. J. Bate, Shakespeare and Ovid, Oxford, Clarendon Press, 1993, para a relação entre Shakespeare e Ovídio
durante o Renascimento.
VIVITUR INGENIO, CAE TERA MORTIS ERUNT
27
te, esta sucumbe à melancolia perante o fim inevitável de toda a beleza; as cores do rio
Estiges, que corre pelo Hades, cedo ou tarde espalham-se por todos os semblantes.
Figura 9: Fólio da Epitome, de Vesalius (Basiléia: Johannes Oporinus, 1543):
“Solvitur omne decus leto niveos que per artus it Stygius color et formae populatur honores”
O ato de segurar ou tocar um crâneo com uma das mãos e a própria cabeça, na outra, é extremamente frequente na iconografia da primeira época moderna, sobretudo nos séculos XVI e XVII.
Nessas obras, o crâneo funciona como instrumento de mediação no processo de meditação.
Na iconografia religiosa, é comum encontrar essa pose em representações de Maria Madalena
ou dos santos eremitas, como por exemplo em uma tela seiscentista de Domenico Fetti ou no
São Jerônimo de Dürer (figs. 10 e 11), mesmo artista que criou a célebre estampa alegorizando
a melancolia. Esse último reúne magistralmente todos os elementos do memento mori, mas
indica também a espiritualidade como forma de salvação: o santo, extraordinariamente idoso,
aponta o crâneo enquanto nos olha de frente, recordando-nos nosso destino final; sua cabeça
apoia-se sobre a mão esquerda, na típica atitude dos melancólicos. Em segundo plano, porém,
uma representação de Cristo na cruz emerge configurando um sentido e um propósito: a dedicação à vida espiritual permite a derradeira vitória sobre a morte e o tempo.
28
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I I • A N O I I • 2 0 1 4 • R i d E M
Figura 10: Domenico Fetti, Maria Madalena, ca. 1617-20,
Roma, Galeria Doria Pamphilj.
Figura 11: Albrecht Dürer, São Jerônimo, 1521,
Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga.
VIVITUR INGENIO, CAE TERA MORTIS ERUNT
29
Retornando às duas imagens de Vesalius, o contraste entre as sentenças confere um sentido
inteiramente diverso à mesma estampa: na edição original, a frase “vive-se pelo engenho, todo
o resto é mortal” afirma com otimismo a possibilidade de continuidade da vida mesmo após a
morte através do conhecimento e do cultivo do engenho; na Epitome, a constatação de que a
morte necessariamente destrói toda a beleza transforma a imagem em uma espécie de emblema da melancolia. Na estampa original, o esqueleto parece meditar sobre a própria estrutura
do organismo humano; o conhecimento não apenas do mundo externo, mas, quiçá sobretudo,
de si próprio, aparece como alternativa à destruição absoluta da morte.
Recordemos, a esse ponto, que a frase nosce te ipsum – conhece-te a ti mesmo – aparece igualmente na estampa holandesa representando o teatro anatômico mencionada acima. Esse mote
não é infrequente e surge em diversas fontes literárias e iconográficas contemporâneas, de Petrarca a, por exemplo, Francisco de Holanda.6 O que teria levado Vesalius a substituir a frase
que acompanha o esqueleto, transformando-lhe, assim, todo o sentido, não é claro; pode ter
havido uma mudança de orientação por parte dos editores suíços da obra, ou é possível, enfim, que as duas leituras – isso é, aquela que enfatiza o especial poder do engenho e a que, por
outro lado, sublinha a inevitabilidade da morte – convivessem nos meios humanistas em que
circulava Vesalius, de modo que tenham podido servir para, acompanhando a mesma estampa,
emprestar-lhe um sentido tão diverso.
Gostaria de propor um breve excurso e analisar uma instalação realizada contemporaneamente pelo artista brasileiro Walmor Corrêa. A instalação, que o artista chamou “memento mori”
(fig.12), foi montada pela primeira vez em Porto Alegre, em 2007, e posteriormente remontada
em diferentes cidades e espaços expositivos.7 Em uma sala de decoração vitoriana, pássaros são
expostos no interior de redomas de vidro que recordam caixas de música, enquanto as paredes
são cobertas por desenhos de criaturas fantásticas anatomizadas (fig.13). Em uma delas, um
relógio cuco diretamente iluminado marca o tempo de modo acelerado, de maneira que um
minuto passe em trinta segundos (fig.14).
Figura 12: Walmor Corrêa, Memento Mori, 2007.
6 A esse propósito cfr. meu artigo “Nascentes morimur: Francisco da Holanda as Artist, Reader and Writer”. In:
H. Damm; M. Thimann; C. Zittel (orgs.), The Artist as Reader. On Education and Non-Education of Early Modern
Artists, Leiden, Brill, 2012.
7 Para as imagens da instalação cfr. o site do artista: http://www.walmorcorrea.com.br/obra/memento-mori/
(acessado em 17 de fevereiro de 2014).
30
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I I • A N O I I • 2 0 1 4 • R i d E M
Figura 13: Walmor Corrêa, Memento Mori, 2007.
Figura 14: Walmor Corrêa, Memento Mori, 2007.
A instalação de Corrêa não poderia fazer referência mais explícita aos assim chamados gabinetes de curiosidades, isso é, recintos que, sobretudo na segunda metade do século XVI e XVII,
reuniam coleções de objetos como animais dissecados, conchas, plumas, minerais, artefatos
exóticos ou antiguidades. Entre os mais célebres gabinetes de curiosidades do século XVII conta-se, por exemplo, o do dinamarquês Olle Worm (Fig.15). O que determinava a colocação de
determinado objeto em um gabinete de curiosidades era, justamente, o fato de ele não ter sido,
ainda, classificado pelo conhecimento humano; o gabinete albergava um mundo inexplorado.
Corrêa insere em seu gabinete, similarmente, criaturas híbridas, estranhas, provenientes da
mitologia de distintas nações: o curupira, ipupiara, a cachorra da palmeira ou a ondina (figs.16
e 17).
VIVITUR INGENIO, CAE TERA MORTIS ERUNT
31
Figura 15: Gabinete de curiosidades de Ole Worm em Copenhagem.
Frontispício do Museum Wormianum (1655).
Figura 17: Walmor Corrêa, Memento Mori, 2007.
32
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I I • A N O I I • 2 0 1 4 • R i d E M
Figura 16: Walmor Corrêa, Memento Mori,
2007.
O título memento mori associado à anatomia é um autêntico topos na Primeira Época Moderna, como vimos em alguns exemplos de representação do teatro anatômico. Essa associação é
colocada de modo absolutamente direto em 1652, quando em Amsterdã é publicada, como o
título Anatomia – Memento Mori, uma série de 22 ilustrações com alegorias da morte e esqueletos de animais.8 O livro, com os tipos de Jan Visscher, foi ilustrado por diversos artistas, entre
os quais Hendrik Hondius, cujo monograma aparece em dez das vinte e duas imagens. A primeira página representa uma vanitas clássica: uma caveira repousa sobre um livro aberto flanqueada por uma vela e um vaso com uma flor, tradicionais símbolos da efemeridade da existência (fig.18). Sobre o crâneo, uma ampulheta alada sustenta uma balança, sobre a qual se lê o
monograma do editor Claes Jan Visscher. Dividida pela balança, aparece a palavra “anatomia”;
abaixo, “memento mori”. A composição é típica das representações holandesas da vanitas durante o século XVII; pense-se, para que fiquemos somente em um par de exemplos, nos óleos
de Pieter Claesz ou Adrien van Nieulandt. As pranchas seguintes combinam representações
anatômicas de animais com sentenças latinas sobre eles e/ou sobre a transitoriedade da vida.
Figura 18: Primeira página de Anatomia – Memento Mori, Amsterdã,
Jan Visscher, 1652.
8 As estampas foram publicadas por L. Möller no artigo “Anatomia – Memento Mori” (Nederlandsch kunsthistorisch jaarboek, 10, 1959, p.171 seg.)
VIVITUR INGENIO, CAE TERA MORTIS ERUNT
33
Corrêa se apoia, portanto, em uma vasta tradição que combina a representação de seres fantásticos a anatomias, caminhando sobre um terreno no qual se fundem não apenas a vida e a
morte, mas também o real e o irreal; a morte, assim como o Novo Mundo, constitui-se como
uma terra incógnita de maravilhas e assombros que se abre ao conhecimento durante os poucos minutos de vida de que dispomos; o relógio, sempre em destaque, recorda-nos que é mais
tarde do que pensamos.
34
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I I • A N O I I • 2 0 1 4 • R i d E M
Resumo
Abstract
Em 1545 é publicada a primeira edição do livro De humani corporis fabrica, de Andreas
Vesalius. Uma das suas mais célebres gravuras representa um esqueleto que, melancolicamente, sustenta o próprio crânio em uma
das mãos enquanto se apoia sobre uma tumba onde se lê a inscrição latina: vivitur ingenio, caetera mortis erunt (“vive-se pelo engenho, todo o resto é mortal”). Curiosamente,
na De humani corporis fabrica librorum epitome, publicada poucas semanas depois da
Fabrica, Vesalius reproduz a mesma estampa
com uma inscrição diferente na tumba: solvitur omne decus leto niveosque per artus it
Stygius color et formae populatur honores
(“A morte roubou-lhe toda a beleza; um tom
estígio espalhou-se sobre sua nívea pele e
destruiu sua formosura”). Este artigo centrase na análise destas duas estampas no âmbito
da tradição de representações da melancolia
e da vanitas durante o século XVI; como excurso, proporá uma breve análise comparativa da instalação memento mori, do artista
contemporâneo brasileiro Walmor Corrêa.
The first edition of De humani corporis fabrica, by Andreas Vesalius, was published in
1545. One of its most famous engravings represents a skeleton melancholically supporting its skull as it leans on a tomb on which one reads the following Latin inscription:
Vivitur ingenio, caetera mortis erunt (“One
lives by means of his genius. The rest will belong to death.”) Interestingly , in De humani
corporis librorum epitome, published a few
weeks after, Vesalius reproduces the same
engraving with a different inscription on the
tomb: solvitur omne decus leto niveosque
per artus it Stygius color et formae populatur
honores (“Death robbed him of all his beauty:
a Stygian hue spread over his snow-white skin
and destroyed his comeliness.”). This paper
focuses on the analysis of these two images
against the background of the representation
of melancholy and vanitas during the sixteenth century. As an excursus, it will propose a
brief comparative analysis of the installation
memento mori by Brazilian contemporary
artist Walmor Corrêa .
Palavras-chave: Andreas Vesalius; Vanitas;
Memento Mori.
Keywords: Andreas Vesalius; Vanitas; Memento Mori.
Sobre a autora
Maria Berbara possui mestrado em história da arte pela Unicamp e doutorado em história
da arte pela Universidade de Hamburgo (Alemanha). Atualmente leciona história da arte no
departamento de teoria e história da arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Especializou-se na área do renascimento italiano e do trânsito de linguagens artísticas entre
Itália, Península Ibérica e América Latina durante a primeira época moderna.
VIVITUR INGENIO, CAE TERA MORTIS ERUNT
35
36
A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I I • A N O I I • 2 0 1 4 • R i d E M
Download