Memorial de Formação: narrativas, memórias, formação Guilherme do Val Toledo Prado FE/UNICAMP "Contar uma história sempre foi a arte de conta-la de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história". (O Narrador. Walter Benjamin, 1987) (FIG. O Encontro. ESCHER, 1944) Narrativas Falo um pouco dos relatos e das narrativas de forma generalizada. Pois é muito provável que a forma mais natural e mais imediata de organizar nossas experiências e nossos conhecimentos seja a forma narrativa. (Bruner, 1998:165). A palavra narrar vem do verbo latino narrare, que significa expor, contar, relatar, e se aproxima do que os gregos antigos clamavam de épikos: poema longo que conta uma história e serve para ser recitado. Narrar é contar uma história, comumente dizem os manuais de redações. E se “as coisas estão prenhes da palavra” como afirma Bakhtin, ao narrar falamos de coisas extraordinárias e ordinárias. Entretanto, repletas de mistérios. Mistérios que vão sendo revelados ou remodelados na contação das histórias. Para Walter Benjamim, A memória é uma tessitura feita a partir do presente, é o presente que nos empurra em relação ao passado, uma “viagem” imperdível, uma “viagem” necessária, uma “viagem” fundamental, para que a gente possa trazer à tona os encadeamentos da nossa história, da nossa vida, ou da vida do outro. (GALZERANI, 1999:8) O ato de contar uma história, segundo Benjamim, faz com que esta seja preservada do esquecimento. Desta forma cria posssibilidades para ser contada novamente e de outras maneiras. O sentido dessa história só será possível no olhar do outro, na relação com outras histórias. Para o autor, todos somos historiadores, produzimos histórias, pois todos produzimos memória. Visitamos o passado, na tentativa de buscar o presente, no qual essa história se desenrola, trazendo à tona fios, feixes que ficaram “esquecidos” no tempo. A narrativa segue o curso da vida, ela não se explica à parte da vida, simplesmente flui. Na medida em que a história é narrada, os fatos surgem acompanhando a memória do narrador, “que não se preocupa com o encadeamento exato de fatos determinados, mas com a maneira de sua inserção no fluxo insondável das coisas” (BENJAMIM, 1987:209). O que buscamos nesse momento não é somente trazer informações sobre esta história, mas sim estimular o “despertar” em todos que se sentem parte integrante dessa história para produzirmos outros sentidos, relações, nexos... “... o memorialismo pressupõe sempre dois tempos: o presente em que se narra e o passado em que ocorrem os eventos narrados... A busca do passado, porém, nunca o reencontra de modo inteiriço, porque todo ato de recordar transfigura as coisas vividas. Na épica, como na memória, o passado se reconstrói de maneira alinear com idas e voltas repentinas, com superposição de planos temporais, com digressões e análise. Naturalmente o que retorna não é o passado propriamente dito, mas suas imagens gravadas na memória e ativadas por ela num determinado presente” Aguiar. A narrativa supõe uma seqüência de acontecimentos, é discurso e é a regra principal desse discurso. E se justifica e se autoriza quando as seqüências dos acontecimentos violam a canonicidade: informam algo inesperado ou de algo que o ouvinte tem razões para duvidar. O interesse da narrativa é o de resolver o inesperado, esclarecer a dúvida do ouvinte e de uma certa maneira explicitar o “desequilibro” que deu origem ao relato da história no primeiro momento. A narrativa tem dois aspectos: uma seqüência de acontecimentos e uma valorização implícita dos acontecimentos relatados. E o que é particularmente interessante em um relato são as muitas direções que comunicam as suas partes com o todo. Os acontecimentos relatados em uma história tomam seus significados do todo do relato. Porém o todo do relato é algo que se constrói com suas partes. Esse trocadilho leva o nome de “circulo hermenêutico”: fazendo com que os relatos estejam submetidos à interpretação e não explicação. Não se pode explicar um relato: tudo que se pode fazer é dar-lhe interpretações variadas. A construção das realidades narrativa pressupõe: Uma estrutura do tempo Particularidades Genéricas As ações têm Razões Composição Hermenêutica Canonicidade Implícita Ambigüidade da Referência A centralidade da problemática Negociabilidade Inerente A Elasticidade histórica da narrativa. Aquela antiga coordenação de alma, olhos e mãos, que aflora nas palavras de Valéry, é artesanal, e encontramo-la onde quer que esteja a arte de narrar. Sim, podemos mesmo ir mais longe e perguntar se a ligação que o narrador tem com sua matéria – a vida humana – não é, ela própria, uma relação artesanal. Se a sua tarefa não consiste, precisamente, em trabalhar a matéria-prima das experiências – as dos outros e as suas próprias – de uma maneira sólida, útil e única. Trata-se de uma transformação. (BENJAMIN, 1992:56). A narrativa pode ser uma maneira de obter a riqueza e indeterminação de nossas experiências como professores e a complexidade de nosso entendimento do ensino e de como os outros podem ser preparados para se engajar nessa profissão. Além do mais, com a vigorosa ênfase no conhecimento sobre ensino, a história pode representar uma maneira de conhecer e pensar o que é particularmente adequado para explicar a compreensão prática dos professores, isto é, o conhecimento que emerge da ação. (CHAVES, Iduina Mont’Alverne. A pesquisa Narrativa: uma forma de evocar imagens da vida de professores. In Revista Educação em Debate, nº 39. Fortaleza: 2000, p. 86-93). Como diz Bakhtin: eu me torno um outro da minha própria história “É experiência aquilo que nos passa, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao passar-nos nos forma e nos transforma... esse é o saber da experiência: o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao largo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece...por isso ninguém pode aprender da experiência de outro a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria.” (Nota Sobre a Experiência e o Saber da Experiência, 2001). CONSULTANDO O AURÉLIO, MEMORIAL (DO LATIM MEMORIALE), NO DICIONÁRIO, APRESENTA-SE COMO MEMENTO OU ESCRITO QUE RELATA FATOS MEMORÁVEIS. MEMENTO - DO LATIM MEMENTO, QUER DIZER "LEMBRA-TE". NAS MISSAS USAMOS VÁRIOS MEMENTOS, COISAS QUE PRECISAMOS LEMBRAR POR OBRA E GRAÇA ETC. MEMENTO TAMBÉM QUER DIZER MARCA QUE SERVE PARA LEMBRAR QUALQUER COISA. MEMENTO PODE SER PAPEL OU CADERNETA ONDE SE ANOTAM COISAS QUE DEVEM SER LEMBRADAS ANOTAÇÕES, APONTAMENTOS. MEMENTO TAMBÉM PODE SER UM LIVRINHO ONDE SE ACHAM RESUMIDAS AS PARTES ESSENCIAS DE UMA QUESTÃO. MEMORIAL MEMENTO MEMORANDO ESCRITO ANOTAÇÕES APONTAMENTO NOTA MEMÓRIAS. MEMÓRIA (LATIM MEMORIA) 1. FACULDADE DE RETER AS IDÉIAS, IMPRESSÕES E CONHECIMENTO ADQUIRIDOS ANTERIORMENTE - "GUARDEI NA MEMÓRIA, TEM BOA MEMÓRIA"; 2. LEMBRANÇA, REMINISCÊNCIA, RECORDAÇÃO - "A MEMÓRIA DAQUELES DIAS"; 3. CELEBRIDADE, FAMA, NOME - "DIGNO DE MEMÓRIA"; 4. MONUMENTO COMEMORATIVO; 5. RELAÇÃO, RELATO, NARRAÇÃO - "ESCREVEU A MEMÓRIA DAQUELES DIAS"; 6. MEMENTO; 7. VESTÍGIO, SINAL - "DA TRAGÉDIA NÃO RESTOU MEMÓRIA NENHUMA"; 9. NOTA DIPLOMÁTICA - "EMBAIXADOR ENVIOU MEMÓRIAS À SEUS SUBORDINADOS"; 10. DISSERTAÇÃO ACERCA DE ASSUNTOS DIVERSOS; 11. DISPOSITIVO DO COMPUTADOR 12. PODER CRIADOR, IMAGINAÇÃO, TALENTO. A MEMÓRIA, SEGUNDO O DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MOTA, PODE SER CONSTITUÍDA PELA CAPACIDADE DE RETER CONHECIMENTOS - A MEMÓRIA RETENTIVA, E PELA POSSIBILIDADE DE EVOCAR, QUANDO NECESSÁRIO, CONHECIMENTOS DO PASSADO OU ATUAL - MEMÓRIA RECORDATIVA. MEMÓRIA RETENTIVA - "VENTRE DA ALMA", RECEPTÁCULO DE CONHECIMENTO. MEMÓRIA CONSERVAÇÃO - GUARDA DAS VIRTUALIDADES, DAS PERCEPÇÕES DA IDÉIAS. MEMÓRIA RECORDAÇÃO - A SENSAÇÃO DE JÁ TER SENTIDO, OU RECONHECER AS IDÉIAS REPRODUZIDAS E AS COISAS POR ELA REPRESENTADAS, MOVIMENTO DE EVOCAR RECORDAÇÕES. MEMÓRIA COMO INTELIGÊNCIA E MEMÓRIA COMO MECANISMO ASSOCIATIVO. A MEMÓRIA COMO INTELIGÊNCIA, MEMÓRIA COMO PENSAMENTO EXTERIORIZADO. A MEMÓRIA COMO MECANISMO ASSOCIATIVO. CERTA CONCATENAÇÃO DE IDÉIAS QUE ESTÃO FORA DO CORPO HUMANO E QUE ESTÃO SUJEITAS À VONTADE DO HOMEM. VYGOTSKY – DISTINÇÃO DE DOIS TIPOS DE MEMÓRIA – MEMÓRIA MECÂNICA, IMEDIATA, VINCULADA ÀS FUNÇÕES MENTAIS ELEMENTARES. MEMÓRIA LÓGICA, MEDIADA, VINCULADA ÀS FUNÇÕES MENTAIS SUPERIORES. “A MEMÓRIA MEDIADA CONFERE À MEMÓRIA VERBAL UM PAPEL ESSENCIAL PARA O HOMEM DA CULTURA CONTEMPORÂNEA, O USO DE SIGNOS VERBAIS AUXILIA A MEMÓRIA E O HOMEM É CAPAZ DE CONTROLAR AS CONDIÇÕES DE SUA FUTURA LEMBRANÇA: ELE LEMBRA ATIVAMENTE COM AJUDA DE SIGNOS” (VYGOTSKY, 1987) A LEMBRANÇA É A ARTE DE POR EM MOVIMENTO A MEMÓRIA = ARTE DE NARRAR. NÓS NOS LEMBRAMOS PELA CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS QUE TRAZEM À LUZ EVENTOS PASSADOS. MEMÓRIAS: NARRAÇÕES HISTÓRICAS ESCRITAS POR TESTEMUNHAS PRESENCIAIS / ESCRITO DE QUE ALGUÉM CONTA SUA VIDA. FORMAÇÃO PROCESSO DE EDUCAÇÃO OU DE CIVILIZAÇÃO, QUE SE EXPRESSA NAS DUAS SIGNIFICAÇÕES DE CULTURA, ENTENDIDA COMO EDUCAÇÃO E COMO SISTEMA DE VALORES SIMBÓLICOS. EDUCAÇÃO TRANSMISSÃO, APRENDIZADO. COMUMENTE, NAS SOCIEDADES MAIS ANTIGAS, A EDUCAÇÃO VISA GARANTIR A IMUTABILIDADE DAS TÉCNICAS CULTURAIS PARA GARANTIR A SOBREVIVÊNCIA. MARCA DISSO É A EDUCAÇÃO MORAL E RELIGIOSA, POR EXEMPLO. "DO PONTO DE VISTA DO INDIVÍDUO, SUA FORMAÇÃO CONSISTE NA CONQUISTA DO QUE ELE ENCONTRA DIANTE DE SI, CONSISTE EM CONSUMAR SUA NATUREZA INORGÂNICA E APROPRIAR-SE DELA" HEGEL. NA SOCIEDADE ATUAL A EDUCAÇÃO VISA, NÃO SÓ, GARANTIR A TRANSMISSÃO DA TECNICAS CULTURAIS COMO TAMBÉM SEU APERFEIÇOAMENTO, APRIMORAMENTO. PODEMOS ATÉ DIZER QUE A EDUCAÇÃO, NESTE TERMOS, REFERE-SE À CULTURA OU EDUCAÇÃO É CULTURA, POIS A EDUCAÇÃO ESTÁ SENDO ENTENDIDO COMO "FORMAÇÃO DO HOMEM", AMADURECIMENTO DO INDIVÍDUO, CONSECUÇÃO DE SUA FORMA COMPLETA OU PERFEITA ETC: PORTANTO COMO PASSAGEM GRADUAL DE POTÊNCIA AO ATO DESSA FORMA REALIZADA. E SE CULTURA É FORMAÇÃO DO HOMEM, SUA MELHORIA, SEU REFINAMENTO, OU O PRODUTO DESSA FORMAÇÃO, CONJUNTO DOS MODOS DE VIVER E DE PENSAR CIVILIZADOS... COMO PODEMOS PENSAR O "MEMORIAL DE FORMAÇÃO" EM UM CURSO DE PEDAGOGIA EM UMA FACULDADE DE EDUCAÇÃO EM UMA UNIVERSIDADE, NA SOCIEDADE ATUAL? “Combinar em meu mundo interior as percepções que recolho do mundo exterior dando forma as minhas idéias e pensamentos, então pensar pode ser isso: uma auto-reflexão sobre o todo do mundo tal qual se apresenta para mim. Pensar nos porquês das minhas atitudes diante das situações que vivo e as capacidades que desenvolvo de adquirir certas funções e não outras, estou sempre atribuindo um juízo de valor: vendo em cada acontecimento (fato que acontece ao meu redor, do qual eu participo como ator ou mero expectador) se significa um valor em mim ou se simplesmente não o agrupo a minha percepção. Só que esse juízo de valor nem sempre é condicionado a minha escolha consciente, estou atribuindo um juízo valorativo a toda interação com o mundo exterior, a qual acontece a todo instante: na inúmeras situações que me deparo, no decorrer do dia ou em minha tentativa de organizar as idéias enquanto penso de mim para mim, não estou pensando somente de mim para mim, o outro se apresenta a todo instante, precisamente no modo que tenciono modelar as minhas atitudes, escolher as minhas funções ou especificar as minhas capacidades estou fazendo para o outro, em função de um outro que a minha consciência avalia e recorta. Não posso, em nenhum momento ser um Eu para Mim, na percepção do mundo, no qual eu me situo; estou Eu para um Outro, ou seja, só me componho Eu na interação com o Outro, portanto não sou Eu, Sou muitas, na relação com outros. E nessa relação estou agora buscando “aprender que o mundo é para mim, e também de que modo é que o mundo é para mim”. (Husserl 1992, p. 23)” (INES H. DOS SANTOS, 2003) O despertar para essas reflexões foi para mim uma grande "viagem" pelas histórias, memórias, sempre acompanhada pelos "sonhos" de outros despertares, outras histórias que, por ventura, ainda estão por vir na/pelas vozes silenciadas ao longo da história.