P A N Ó P T I C A

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PANÓPTICA
SOBRE A ORIGEM MEDIEVAL DE NOÇÕES MODERNAS
COMO A DE DIREITOS HUMANOS
Willis Santiago Guerra Filho*
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS E METODOLÓGICAS
Do que aqui se trata é de investigar a origem mais próxima daquela que se pode considerar a
própria matriz geradora do pensamento da concepção internacionalista do direito e dos direitos,
de cunho jusnaturalista, mas não aquele universalista e racionalista da modernidade, mas sim um
outro, tardo-medieval, produzido no âmbito da chamada Escola de Salamanca, pertencente à
época e espírito da contra-reforma, com sua segunda Escolástica, espanhola, em que se destacam
teólogos filósofos como o andaluz, granadino Pe. Francisco Suárez (1548 – 1617) e o teólogo
jurista de Burgos, em Castilla, Francisco de Vitoria (1486/1492 – 1546).
Como é sabido, só modernamente passa-se a enfatizar o aspecto permissivo da
normatividade, a esfera de liberdade que transcende os limites objetivos impostos pelas
proibições morais e religiosas, a licentia laica. Já Hobbes, por exemplo, apontará o caráter
insustentável de uma situação em que todos dispunham livremente de uma faculdade de tudo
fazer, de um jus omnium in omnia, uma “guerra de todos contra todos”, donde decorreria para ele a
necessidade de se impor limites, com o respaldo em um poder com supremacia e reconhecimento
social – o Estado civil -, a fim de garantir e efetivar direitos individuais, os poderes dos
indivíduos, que são seus direitos subjetivos. Antes do “positivismo contratual” hobbesiano,
contudo, foi o nominalismo medieval que tornou possível o aparecimento da noção
propriamente dita de um direito como atributo de um sujeito, que o torna direito seu,
propriedade exclusiva do indivíduo, a qual lhe é inerente. Tal noção já se encontra entre
nominalistas “parisienses” como Jean Gerson, no século XV, bem como em juristas-teólogos
espanhóis da “segunda escolástica”, a exemplo dos “regicidas” domenicanos, como o já referido
Francisco de Vitória, seu discípulo Domingo de Soto (1507 – 1519), juntamente com seu amigo,
jurista, Fernando Vázquez de Menchaca (1512 – 1569) e de jesuítas como Luis de Molina (1535 –
*
Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO); Professor e Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos do Programa de
Estudos Pós-Graduados da PUC-SP; Pesquisador da Universidade Paulista (UNIP).
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1600). Sua origem mais remota, contudo, está no pensamento de Guilherme de Ockham,
desenvolvido na esteira daquele de Duns Scot, como pretende-se aqui demonstrar.
Scotus, ao contrário de Tomás, não terá muita aceitação na teologia oficial da Igreja, mas seu
pensamento, elaborado de maneira difícil e intricada, no curto espaço de tempo em que viveu,
terá uma repercussão por assim dizer subterrânea, juntamente com aquela de seu maior sucessor,
Guilherme de Ockham, que se fará notar tanto na novidade da Segunda Escolástica, da Escola de
Salamanca, onde pioneiramente se proporá, em termos jurídicos, a idéia de um direito
internacional, assim como na própria ruptura com o catolicismo, feita por Lutero, e também, por
mais paradoxal que pareça, na ordem jesuíta, criada por Santo Inácio de Loyola para ser uma
espécie de baluarte contra-reformista. A rejeição da Igreja para com as idéias desta corrente, de
Scotus e Ockham, deve-se também ao modo como eles se engajaram em disputas envolvendo o
papado e os poderes seculares, pelo modo como repercutiam na ordem franciscana, com seu
voto de pobreza e, ao mesmo tempo, grandes posses. Adiante veremos, pela importância que tem
para a formação do direito, e da modernidade em geral, a chamada Querela da Pobreza
Franciscana, que teve Ockham como principal protagonista, e que o torna até hoje alguém
encarada com severas restrições, nos círculos mais conservadores da Igreja católica. Já Scotus,
ainda que só em 1993, foi beatificado pelo Papa João Paulo II, provavelmente em
reconhecimento à sua contribuição filosófica, inclusive para aquela corrente à qual o Papa,
quando era o Prof. Woytila, discípulo de Roman Ingaarden, se filiava: a fenomenologia, da qual
também trataremos, quando estivermos estudando já a época contemporânea. A disputa ou
“querela” de grande importância, em que se envolveu com muito destaque Scotus, tinha (e tem
ainda, pois hoje continua sendo debatida) caráter muito mais abstrato, teórico, embora, como
sempre, a resposta que se dê a tais questões fundamentais venha a ter grande impacto na vida
prática. Trata-se da chamada “Querela dos Universais”, ainda presente nas discussões sobre o
universalismo de categorias como a dos direitos humanos.
Toda exposição parte de pressupostos, pressupostos estes que, dependendo do campo do
saber, serão axiomas, postulados, hipóteses ou mesmo dogmas, como ocorre mais
freqüentemente em teologia e em Direito, mas também em filosofia, considerando como dogmata
o conjunto de teses em que se sustenta uma doutrina ou sistema filosófico.1 Em se tratando de
1
Nesse sentido, Victor Goldschmidt, “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas
filosóficos”, in: id., A Religião de Platão, trad.: Ieda e Oswaldo Porchat Pereira, São Paulo: DIFEL, 1963, p. 139.
Também, com apoio em E. Husserl, pode-se considerar a postura dogmática como a única alternativa que se
apresenta a quem acredita na possibilidade de um acesso à verdade pelo conhecimento, repelindo o ceticismo -
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uma exposição filosófica, tais pressupostos assumem características peculiares, decorrentes da
própria natureza deste tipo de saber, a filosofia. A filosofia – e eis aí enunciado já um de nossos
pressupostos – é um saber incerto de si mesmo, se comparado com os demais, desde aquele do
senso comum até o das ciências, passando por aqueles de natureza mágica ou mítica, religiosa e
artística. Mas nesta fragilidade reside, ao mesmo tempo, a grandeza da filosofia, visto que advém
de seu compromisso radical com a criticidade, com a problematização total, que leva a que ponha
e reponha até a si mesma como problema a ser enfrentado, dependendo dos resultados deste
enfrentamento o modo como se procederá em seu âmbito uma investigação.
Desnecessário lembrar que os pressupostos aqui apresentados o são para serem discutidos e,
se for o caso, retificados ou, mesmo, abandonados, sendo esta disposição para revisar seus
pressupostos uma das características de um saber que se pretenda consentâneo à Civilização
tecnocientífica em que vivemos. É para favorecer a crítica, portanto, que se busca explicitar – e
assumir – pressupostos por nós assumidos
O pressuposto fundamental da investigação, propriamente dita, que aqui se propõe, é o de que
a reaproximação, tão promissora para ambas as partes, entre as ciências e a filosofia, atualmente
em curso, pode ser beneficiada pelo esclarecimento do modo como se deu a constituição de uma
área específica do saber, de natureza científica, partindo de discussões de cunho
predominantemente teológico, como eram aquelas mais comuns na época que antecedeu
imediatamente à modernidade. O esperado é que, ao aprender mais sobre esta origem medieval
da filosofia moderna compreenda-se melhor, igualmente, a filosofia, a modernidade e a
concepção do mundo, da vida, e do Homem, que em ambas se acha implicada, contribuindo não
só para o avanço de ciências humanas, como o direito, mas também da filosofia da história e,
mesmo, da filosofia em geral.
cf. Philippe van den Bosch, “A Filosofia e a Felicidade”, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 14, texto e nota, e
p. 256. Por fim, com apoio em Tercio Sampaio Ferraz Jr. – cf., v.g., "A filosofia como discurso aporético", in: A
Filosofia e a Visão Comum do Mundo, em colaboração com Bento Prado Jr. e Oswaldo Porchat Pereira, São
Paulo: Brasiliense, 1981 -, pode-se indicar o caráter dogmático da filosofia como equivalente à natureza
aporética, paradoxal, das questões que ela tipicamente coloca, enquanto questões reflexivas, circulares, que
remetem a si mesmas, tal ocorre com a questão sobre o que é a filosofia, a qual já pressupõe a própria filosofia,
enquanto discurso sobre o que é o ser dos entes: a filosofia só pode ser praticada com base numa concepção do
que seja fazer isso, filosofar, o que por sua vez é um fator determinante do conteúdo e resultado desse filosofar.
Atribuir uma tal natureza à filosofia, dogmática, note-se bem, não é o mesmo que condená-la ao dogmatismo, o
que só acontece quando há a recusa em discutir os dogmas, tornando-os imunes à crítica. Um passo importante
para prevenirmo-nos do dogmatismo em filosofia seria justamente essa assunção do caráter dogmático da
filosofia, ao invés de tentar mascará-lo, insinuando possuir uma resposta verdadeira e definitiva quando apenas
se erigiu um dogma, uma tese.
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É de uma perspectiva filosófica mais geral, situada no âmbito do que em estudos anteriores
propusemos se considerasse uma “filosofia da filosofia”,2 que, em seguida, passamos a expender
algumas considerações preliminares sobre a própria natureza dos pressupostos de um
conhecimento filosófico, em contraste com aquele das ciências, sejam elas explicativas, empíricas
ou formais, sejam compreensivas, como costumam ser aquelas mais voltadas para o fenômeno
humano. Propomos que os pressupostos filosóficos não são axiomáticos, hipotéticos nem muito
menos dogmáticos, donde se poder ainda diferenciar um campo específico de investigação para a
filosofia. Também não seria característico do pensamento filosófico uma natureza conjetural, que
o tornaria uma espécie de pensamento pré-científico, composto por assertivas plausíveis, a espera
de comprovação. Nossa proposta é de que os pressupostos filosóficos, assim como uma
investigação que a partir deles se pretende desenvolver, configuram-se dentro de uma tradição
que remonta aos chamados “filósofos pré-socráticos” e se mantém perceptível até o presente,
caracterizada por seu caráter originário, quer dizer, forçando um pouco nossa língua para ser mais
fiel ao modo originário de expressão dessa idéia, “principial”, do latim princeps, enquanto tradução
do grego arché, donde se poder denominar essa característica peculiar da investigação filosófica,
tal como certa feita propôs Martin Heidegger, de “arcôntica” (archontisch).3 Em filosofia, portanto,
em qualquer tema investigado, seja levando em conta o passado, seja situando-se em uma
perspectiva sincrônica, há de se buscar as determinações fundamentais das questões que se
coloca, as quais permaneceram presentes nas respostas a serem dadas. Além disso, essas respostas
devem ocorrer nos moldes de um quadro explicativo que lhes dá um sentido mais abrangente,
enquanto parte de uma explicação que se pretende integral, do modo como se articula o
conjunto dessas partes em um todo significativo. É assim que, para Manfredo Araújo de Oliveira,
“a filosofia se distingue das ciências particulares à medida que ela considera as coisas (os
particulares) em seu relacionamento com o todo, à medida que pretende mostrar a presença do
todo em todos os particulares. Sua tarefa é reconhecer o todo no particular (para usar uma expressão de
Schelling)” (grifos do A.). 4
2
Cf., v.g., Willis Santiago Guerra Filho, Para uma Filosofia da Filosofia. Conceitos de Filosofia, 2a. ed.,
refundida, Fortaleza: Programa Editorial Alagadiço Novo da Casa de José de Alencar (Imprensa Universitária da
Universidade Federal do Ceará), 1999.
3
Cf. M. Heidegger, Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in die phänomenologische
Forschung, Gesamtausgabe, vol. 61, Walter Bröcker e Käte Bröcker-Oltmanns (eds.), 2a. ed., Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 26.
4
A Filosofia na Crise da Modernidade, São Paulo: Loyola, 1989, p. 157. Xavier Zubiri atribui a Aristóteles a
primazia na identificação disto que se pode denominar a “catolicidade” da filosofia, ao se propor a estudar seu
objeto em sua universalidade, e universal não apenas em seus conceitos, mas também no sentido de abarcar a
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Do que se trata, afinal, como preconizam autores da tradição francesa - recepcionada
diretamente no Brasil por seus discípulos em São Paulo -, a exemplo Martial Guéroult, Victor
Goldschmidt e Gilles-Gaston Granger, é de buscar nos autores, escolas e suas doutrinas
filosóficas sua contribuição para que se delineie “um quadro de interpretação significativa para a
totalidade da experiência”.5
Nossa referência metodológica principal, contudo, não será a
proposta por aquela tradição, mas sim uma outra, que lhe é próxima – embora não faça remissão
a ela -, tanto do ponto de vista cultural, como até sob um aspecto terminológico, pela
nomenclatura empregada, pois nossa opção será pela análise estrutural assim como a propõe o
professor suíço, da Universidade de Lausanne, André de Muralt.6 Em seguida, explicitaremos os
motivos de nossa opção, ao apresentá-la em linhas gerais, sendo o principal deles ter sido dali que
se colheu a própria hipótese a ser averiguada ao longo do presente estudo.
2. AS ESTRUTURAS FUNDAMENTAIS
A abordagem muraltiana, por ele mesmo denominada analítica e estrutural, é também - e, ao
nosso ver, primeiramente - genética, ou, como propomos acima, “arcôntica”, tal como a própria
filosofia. Isso porque as estruturas analisadas nas diversas doutrinas filosóficas se fariam
presentes, de maneira mais clara, desde a primeira grande síntese – e, logo, literalmente, a
primeira grande depuração - do pensamento filosófico, aquela aristotélica, podendo se encontrar
formas embrionárias dessas doutrinas nos pensadores que o antecederam, bem como nos seus
contemporâneos e pósteros. Após a sua explicitação, em Aristóteles, as diversas doutrinas
filosóficas que se sucederam, assim como outras formas de pensamento que entraram em contato
totalidade das coisas, entendendo cada uma de acordo com seu lugar na totalidade dela. Cf., deste A., Cinco
lecciones de filosofia, Madri: Alianza, 7a. reimpr., 1999, p. 30; id. Sobre el Problema de la Filosofía y otros
Escritos (1932 – 1944), Madri: Alianza/Fundación Xavier Zubiri, 2002, pp. 38/39; v. tb., sobre os diversos
sentidos da “catolicidade” em Aristóteles, Oswaldo Porchat Pereira, Ciência e Dialética em Aristóteles”, São
Paulo: Ed. UNESP, 2001, pp. 152 ss.
5
Cf. Paulo Eduardo Arantes, Um Departamento Francês de Ultramar, São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1994, p. 127. Note-se, com relação, pelo menos, a Guérolt e Granger, que se está a referir a posições que
sustentavam no período em que Goldschmidt igualmente defendia sua postura metodológica de análise estrutural
em filosofia.
6
As fontes principais para se conhecer o método desenvolvido por este autor, bem como os resultados a que
chegou, aplicando-o à filosofia teorética, com ênfase no período medieval, são as seguintes: L´enjeu de la
philosophie médiévale. Études thomistes, scotistes occaniennes et grégoriennes, 2a. ed., Leiden et al.: 1993;
Néoplatonisme et aristotélisme dans la métaphysique médievale, Paris: Vrin, 1995; A metafísica do fenômeno: as
origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico, trad.: Paula Martins, São Paulo: 34, 1998. Já
para a filosofia prática e política, a referência é a obra publicada originalmente em 2002, La estructura de la
filosofia política moderna. Sus Orígenes medievales em Escoto, Ockham y Suárez, trad.: Valentín Fernández
Polanco, Madri: Istmo, 2002.
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e se mesclaram com a filosofia, de natureza religiosa ou científica, vão se constituir por sobre
essas estruturas, que são fundamentalmente duas, apoiando-se ora de maneira quase exclusiva
sobre uma delas, ora sobre ambas, em maior ou menor medida. Como elementos básicos dessas
estruturas tem-se a distinção aristotélica, proposta para a compreensão racional ou intelecção da
realidade substancial em si mesma indiferenciada, entre o que nela é forma e o que é matéria. Os
entes singulares, todos e quaisquer, seriam transcendentalmente compostos de matéria e forma,
considerando-se como transcendental, pelo sentido etimológico mesmo, a relação que as
atravessa (de transcendere) e vincula, embricando-as.7 Para Muralt, a diversidade de posições
adotadas pelas mais variadas doutrinas do pensamento, filosófico ou não, de corte ocidental, está
fundamentalmente determinado pelo modo diferenciado como cada uma delas solucionará o
problema da articulação de forma e matéria, enquanto elementos básicos da realidade, ou do
modo de compreendê-la que é próprio da metafísica, seja como ontologia, estudando as
manifestações do ser em ação, em seu devir, seja como teologia, estudando o ser como origem
imutável de toda ação e transformação. As duas estruturas fundamentais são as seguintes: a) A
estrutura transcendente, que denominamos assim por ser aquela que se constitui a partir da unidade
transcendental de forma e matéria no ente, considerando-se essa unidade nos entes singulares
como anterior à própria articulação desses dois elementos que os compõem, os quais só se
distinguem por meio da análise teórica, racional e abstrata, feita sobre os entes concretos. Essa
estrutura é a que se vincula tradicionalmente a Aristóteles, especialmente após os
desenvolvimentos tomistas de seu pensamento; b) A estrutura transcendental, que assim
denominamos por sua origem na metafísica escotista, desenvolvida como comentário à de
Aristóteles, mas tendo como objeto o que o Doctor Subtilis denomina de “transcendentais”,
enquanto tudo aquilo que transcende o ser finito, no sentido de ir além dele, participando do ser
infinito, sendo comum a ambos, ou exclusivo deste último.8 A origem mais remota desta
7
Cf. A. de Muralt, Néoplatonisme et aristotélisme, cit., p. 55.
Cf. Duns Scot, Quaestiones Subtilissimae in Metaphysican Aristotelis, prólogo, n. 5, in: id. Escritos
Filosóficos, trad. e notas Carlos Arthur Nascimento e Raimundo Vier, São Paulo: Abril, 1979, p. 339 e, ali, nota
1. Os transcendentais, tematizados já por Aristóteles, deve sua elaboração medieval mais bem acabada, segundo
A. de Muralt, inicialmente, a Santo Tomás, no De veritate, q. 1, a. 1. As “metafísicas dos transcendentais”, no
sentido em que a elas se refere Muralt, na ob. ult. cit., p. 18 ss. – v. esp. p. 22 -, têm em Scot uma elaboração
paradigmática, e se caracterizam por atribuírem a algum dos transcendentais o papel de definir o ser, o que não
aparece na estrutura aristotélico-tomista. É assim que, na continuação desta obra, o precitado A. postulará só
haverem dois tipos de metafísicas fundamentais (ou estruturas), aquelas do ser, transcendentes, como a
aristotélico-tomista, que então seriam sobretudo ontológicas, e as diversas “metafísicas do Um”, dos
transcendentais, mais teológicas – no sentido aristotélico, bem entendido. Curiosamente, Muralt vinculará sua
proposta de análise das estruturas de pensamento, à estrutura (mais propriamente) aristotélica, aquela que
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estrutura se encontra em Platão ou, antes, no pitagorismo, estando também presente no
neoplatonismo de Plotino ou de Santo Agostinho. É em Scot, contudo, que se revelará em sua
plenitude esta estrutura, culminando um desenvolvimento que tem sua origem mais próxima no
perspectivismo oxfordiano de Roger Bacon, recepcionando os trabalhos de ótica de árabes como
Alhazen (965 – 1039) e dali extraindo conseqüências gnosiológicas que amadurecerão em Scot,
resultando em seu conceito original de intentio.9 No que tange o problema da forma e matéria,
pela distinção formal a parte rei ou ex natura rei (pela natureza das coisas), em Scot ambas são
separadas entitativamente, por considerá-las como dois entes que são em si e por si mesmos,
independentemente um do outro, e antes mesmo de se articularem para daí resultar algum outro
ente, em relação ao qual são como partes de um todo.
Examinemos agora, brevemente, o modo diverso como nas duas estruturas, a partir de suas
determinações fundamentais, se resolvem problemas tipicamente gnosiológicos e ontológicos,
isto é, filosóficos.
2.1. DOUTRINAS MEDIEVAIS DAS DISTINÇÕES
Iniciemos com as disputas medievais sobre as distinções, que se dão “historialmente”10 na
Europa desde o século XII até pelo menos meados do século XVIII, enquanto ainda houve
quem se dedicasse explicitamente à construção de sistemas metafísicos, pois não há como
imaginá-los sem uma teoria ou, pelo menos, uma tomada de posição sobre as distinções. Vejamos
como a questão aparece em cada uma das estruturas fundamentais acima apresentadas.11
2.1.1. O ser considerado como tertium quid
Na estrutura transcendente o ser é considerado o tertium quid comum, ao qual se pode remeter
qualquer assertiva, donde poder ser dito de diversas maneira (pollakos), através das categorias
denominamos transcendente, visto ser ela “um instrumento de caráter autenticamente filosófico” – cf. id. ib., p.
54 -, uma vez que “permite a compreensão das obras do pensamento humano na sua unidade e sua ordem
própria” – id. ib., p. 53, grifos do A. -, ou seja, naquela perspectiva de “catolicidade” antes mencionada. .
9
Cf. Matthias Kaufmann, Begriffe, Sätze, Dinge. Referenz und Wahrheit bei Wilhelm von Ockham, Leiden et al.:
Brill, 1994, pp. 200 ss.; Katherine Tachau, Vision and Certitude in the Age of Ockham, Leiden: Brill, 1988, pp.
58 ss.
10
Empregamos o neologismo para distinguir o que é da ordem meramente histórica, do acontecido, registrado e
catalogado em épocas pela ciência da história, daquilo que se dá em um “tempo lógico”, para referir a expressão
goldschmidtiana, no estudo citado anteriormente.
11
Cf. A. de Muralt, L´enjeu de la philosophie médiévale, cit., pp. 47 ss., bem como o resumo feito por Francisco
León Florido e Valentin Fernández Polanco no Estudio introductorio, in: A. de Muralt, La estructura de la
filosofia política moderna, cit., pp. 16 ss.
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(kategorein), enquanto os diferentes modos de um ser que só se mostra (dêixis), deste si mesmo
(apo), e por si mesmo (kat´auton), neste dizer-se racionalmente ou “raciocinante” (analogismos),
unificador e “decodificador” (analego). Na concepção mais propriamente aristotélica, o ser é
simultaneamente uno e múltiplo, fundando sua unidade na identificação com a existência, que
não nem uma realidade em si nem uma idéia a parte das substâncias concretas existentes, mas sim
o surgir de cada ser que é, o nascer de cada ente, a physis ou “nascividade”,12 como um todo sem
partes, um composto indivisível de matéria e forma. A unidade do ser consiste, assim, na
continuidade dos processos da existência aos quais se denominava “natureza” (physis), já entre os
pré-socráticos ou, como Aristóteles mesmo a eles se referia, os “físicos”. A distinção entre forma
e matéria e qualquer outra, em relação aos seres naturais, será uma “distinção da razão”, para
efeito de análise lógica, lingüística, do que na realidade é uno e indissociável em sua atividade e
existência. Do mesmo modo, o conhecimento e a vontade, as duas potências da atividade do ser
humano, se encontram submetidas a estas exigências de unidade, estabelecidas naturalmente no
âmbito de sua atuação, em relação aos objetos aos quais se dirigem, os quais, no campo do
conhecimento, teorético, com o predomínio das faculdades noéticas, tornam-se conceitos, e naquele
prático ou político, com o predomínio da vontade, tendem para o bem.
2.1.2. A distinção formal ex natura rei
A estrutura transcendental, com a proposta de distinção formal ex natura rei, em contraposição
às distinções reais e de razão – ou “superando dialeticamente” esta contraposição, enquanto
verdadeiro tertium quid -13, a consideração da forma passa a se impor sobre aquela da matéria,
assim como o intelecto sobre a natureza e a vontade sobre seu objeto. Isso porque aí o intelecto
não se dirige mais naturalmente ao conhecimento das coisas a serem conhecidas, passando a criar
seu próprio objeto de conhecimento, sem relação necessária com a realidade em si daquilo a que
representa, tal como é no mundo, na natureza, visto que agora importa mais a consideração do
efeito modificador que sofre o intelecto com sua própria atividade. A melhor expressão de novo
modo de conhecer seria a doutrina do ser objetivo (esse objectivum), contido no intelecto, o qual
representa mais sua atividade subjetiva do que o ser dos entes. Assim, cada elemento do todo que
a análise lógica detecta nas coisas termina adquirindo seu próprio ser, o qual, no entanto, já não
12
É este o termo que Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski sugerem que se empregue para traduzir a
noção fundamental, originariamente pré-socrática, de physis. Cf. Os Pensadores Originários: Anaximandro,
Parmênides, Heráclito, trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski, Petrópolis: Vozes, 1991.
13
Cf. A. de Muralt, L´enjeu de la philosophie médiévale, loc. ult. cit.
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pode ser substancial, existindo como unidade de forma e matéria, mas tão-somente formal, ser
objetivo, recebendo seu ser da atividade intelectiva pela forma, analítica e dedutivamente, more
geometrico.14
Ao mesmo tempo, no campo da “razão prática”, do esse objectivum prático, do bem a ser feito
(bonum faciendum) o objeto desejado, esse volitum,15 se concebe como já contido na vontade que o
busca, de modo que esta vontade se revela como querendo a si mesma, como “vontade de
vontade”. É assim que, uma vez operada a distinção formal, não se concebe mais o intelecto
como tendendo naturalmente à verdade, enquanto sua matéria própria, passando a transformar o
objeto em verdadeiro já pelo simples fato de inteligí-lo, da mesma forma que a vontade não
deseja o bem porque seu ser nela repousa, mas antes é ela que converte em bem o que por ela é
desejado e imposto como lei.
2.2. ATO E POTÊNCIA
A existência, na física e na metafísica aristotélicas, além da unidade de matéria e forma,
pressupõe também o movimento e a transformação do que existe, sem que isso resulte, como
entre os eleatas, na aporias que apontariam a impossibilidade do movimento e da mudança, por
significarem uma passagem do ser ao não-ser. É nesse contexto que um novo par de conceitos
metafísicos é introduzido, a saber, aquele de ato e potência, acarretando novas possibilidades e
divergências doutrinárias.
14
De Muralt destaca ainda que, na esteira de sua inadvertida alteração da doutrina propriamente aristotélica das
distinções, com a introdução da distinção ex natura rei, Duns Scot dá ensejo, igualmente, a uma concepção nova
da definição, que se fará mais abstrata do que aquela feita por gênero próximo e diferença específica, própria do
procedimento indutivo e empirista empregado normalmente na metafísica aristotélica. Como na concepção
escotista o objeto de conhecimento é in esse rei tal como está constituído in esse objecti (ou in esse cogniti), não
importando – o que ficará de todo evidente em Guilherme de Ockham -, para conhecê-lo, que haja vínculo com
objetos reais, entende-se que esteja aí o ponto de partida para a metafísica especulativa dedutivista que será
elaborada, exemplarmente, por Francisco Suárez, no século XVI, que tanto veio a influenciar o racionalismo
cartesiano como também, via Leibniz e Wolff, a Kant ou até a concepção dialética hegeliana e os seus adeptos,
materialistas ou não, sendo, portanto, a verdadeira matriz de todo o pensamento moderno, já não mais metafísico
em sua intenção, mas construído segundo os mesmo princípios arquitetônicos concebidos por Scot,
desenvolvidos, entre outros, por Ockham e praticados, exemplarmente, por Suárez. Cf. A. de Muralt, ob. ult. cit.,
pp. 85 ss. Essa mesma “dialética das formas e da matéria” será aplicada ao campo do direito, já em Scot, depois
de maneira mais extensa em Ockham, culminando com o aporte de Suárez, como demonstra a obra fundamental
de Michel Bastit, Naissance de la loi moderne, Paris: PUF, 1990.
15
Cf. Id. Ib., p. 43.
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2.2.1. Posição unitarista
O ser concebido em atividade, no âmbito da estrutura transcendente, pressupõe a unidade no ser
dos entes singulares, substancialmente indissolúvel, entre ato e potência, assim como entre forma
e matéria, conceitos que são irredutíveis entre si e discerníveis apenas para efeito de análise lógica.
Cada ente, além de ser um composto substancial de forma e matéria, ao movimentar-se,
demonstra também a unidade de ato e potência, podendo ser conhecido, individualmente, em seu
ser ou substância uma, e universalmente, sob o aspecto da unidade de tudo o que é, enquanto
natureza, isto é, o que é comum: a existência. O instrumento privilegiado deste modo de
conhecer, na concepção mais propriamente aristotélica, não é a lógica, cujas formas se imporiam
à natureza, sendo antes, ao contrário, as exigências desta, dos campos naturais de objetos
suscetíveis de serem conhecidos, que forjam, por analogia, as formas conceituais adequadas ao
conhecimento do que é comum, da natureza de tudo o que é.
2.2.2. Posição essencialista
Na estrutura transcendental, a essência do que é se define como um atributo, uma qualidade que o
diferencia do não-ser, de modo que os entes, ao serem, possuem ipso facto a existência, a unidade,
a verdade e o bem, qualidade de tudo o que é pelo fato de ser. Nessa consideração essencialista,
torna-se viável a distinção dos atributos do ser, concebidos como existindo independentemente
enquanto idéias ou formas puras, o que patrocina a análise formal e o método dedutivo. Estamos
diante de uma herança platônica, que será recuperada pela filosofia escolástica, quando Deus
passa a ocupar o lugar do ser supremo, enquanto as idéias contidas em seu intelecto seriam os
atributos transcendentais convertidos ao ser mesmo. Já o poder criador da divindade é que abriria
a possibilidade de uma participação dos entes nessas qualidades, divinas, especialmente através
daquele ente que foi criado à sua imagem e semelhança. Então, assim como as idéias do intelecto
divino tendem a substancializar-se, “entificando-se”, no intelecto humano o ser objetivo das
idéias tornam-se independentes de seu ser formal, donde resulta que da consideração essencial do
ser se chega ao estabelecimento de um princípio que define de antemão, a priori, o que é como o
que deve ser, em obediência a um tal princípio – inicialmente, divino ou “sobrenatural”, e na
modernidade, o sujeito do cogito cartesiano ou o sujeito transcendental legislador kantiano ou
husserliano, que na contemporaneidade será ainda o sistema da linguagem como lógica, no
“primeiro Wittgenstein”, ou como forma de vida, no “segundo Wittgenstein”, o inconsciente do
texto em Derrida e assim por diante.
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2.3. CAUSA E EFEITO
Para fazer uma última consideração dos elementos anteriormente referidos, os quais foram
definidos em oposições e posições diversas em cada uma das duas estruturas fundamentais do
pensamento, não se pode deixar de verificar o modo como esses elementos – o sujeito e a
realidade por ele conhecida, o objeto e a coisa por ele representado, a vontade e o fim por ele
almejado, o poder e a lei por ele estabelecido etc. – operam naquelas estruturas, o que significa
verificar suas conexões de causa e efeito, como são concebidas em cada uma daquelas duas
estruturas.
2.3.1. A causalidade por ordem recíproca de diversas causas
Na estrutura transcendente, da ortodoxia aristotélica, concebe-se uma causalidade por ordem recíproca
de diversas causas, sem que haja hierarquia entre elas, sendo a divisão entre as que se privilegiará
feita em função do tipo de investigação a ser levada a cabo. Daí que as causas eficiente, final,
material e formal intercambiarão seus papéis, a depender do ângulo que se examine a fixação das
mesmas, em relação ao seu substrato comum, o hypokheimenon, que sempre se fará presente e
atuará como unidade homogênea inalterável pelos movimentos recíprocos das causas que sobre
ela incidem. Assim, a alma, para os antigos, ou Deus, para os medievais, podem ser consideradas
como causas eficientes, quando iniciam, respectivamente, o movimento da abstração ou da
criação, um então como causas finais, já que as formas anímicas aperfeiçoam o ser das coisas,
assim como Deus é tido como o objeto a que aspira o intelecto e deseja a vontade. Alma e Deus
podem operar ainda, indistintamente, como causa formal e material, e isso não porque possuam
forma e matéria, mas sim por haver neles as formas que serão adquiridas na mudança do ente
considerado como potência (causa formal), em sua passagem ao ato, movido materialmente por
uma alma ou por Deus (causa material).
2.3.2. A causalidade concorrente não recíproca das causas parciais
Na estrutura transcendental, introduzida de maneira sub-reptícia por Duns Scot, julgando-se um
aristotélico da mais estrita observância, ocorre o que Muralt considera “uma revolução filosófica
que se ignora, quando se trata, certamente, da única revolução doutrinária digna deste nome que
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se produziu na história do pensamento ocidental”.16 Esta revolução, responsável maior, no plano
das idéias, pelas transformações radicais que resultaram no mundo tal como hoje o temos, com o
que nele há de melhor e pior também – e, assim, tanto em um caso como no outro, o que nele há
de grandioso -, mostra-se em toda evidência na doutrina da causalidade concorrente não recíproca das
causas parciais, a qual minará os fundamentos da construção do saber antigo e medieval, de cunho
propriamente aristotélico, criando as condições subjetivas para o aparecimento da ciência e de
tudo o que é mais característico da modernidade, também em termos políticos, éticos ou
jurídicos.17
3. A
TRANSPOSIÇÃO OCKHAMIANA DA ESTRUTURA ESCOTISTA PARA PENSAR A
POLÍTICA, A ÉTICA E O DIREITO
A inovação na estrutura de pensamento “escotista”, como a este segundo tipo de estrutura
fundamental costuma aludir de Muralt, em termos de concepção de causalidade,18 decorre da
consideração do ser como diverso de um tertium quid na composição de todo ente, assim como no
transcurso de todo movimento, e Deus já não possui nenhuma função material, tornando-se uma
hipótese metodológica, não-necessitarista, por inescrutável e contingente, para nós, a sua vontade
soberana. As causas, então, passam a ser ordenadas formalmente, quer em uma hierarquia que se
considera estabelecida de potentia absoluta Dei, quer de acordo com uma ordem estabelecida
arbitrariamente pela vontade de conhecer – ou de poder. Se sujeito e mundo já não estão
vinculados naturalmente, só restam para serem conhecidos os objetos, a forma de ambos. Se a
vontade e o fim por ela almejado não estão mais unidos pelo amor, só resta um desejo arbitrário
que pode se dirigir a objetos quaisquer, seja para conhecê-los, seja para dominá-los, o que na
modernidade, por exemplo, em um Francis Bacon, logo será considerado como praticamente o
mesmo. Se o poder já não tem constrangimentos impostos pelo bem como fim que justifica o seu
exercício, só resta a lei que obriga sem limitações ou necessidade de maiores justificativas, já que
sua força arbitrária provém do simples fato de estar na lei mesma a sua origem. Isso porque
objeto do conhecimento, vontade arbitrária de agir e lei imposta do agir são, afinal, considerados
efeitos do concurso simultâneo de causas indiferentes ao que causam, nas quais já não é possível
discernir o que é forma e matéria, eficiência e finalidade, estando todas reduzidas a uma só causa,
16
L´enjeu de la philosophie médiévale, cit., p. 118.
Cf. id. ib., pp. 39 s.
18
Cf. id. ib., pp. 32 ss.; 321ss.; 331 ss.; pasim.
17
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que é formal, mas não como aquela que corresponde a uma matéria determinada, e é eficiente,
mas não como aquela que corresponde a uma certa finalidade, pois é a causalidade mecanicista,
dos impulsos, choques e trajetórias que quando conhecidos enquanto causas explicam que (oti) e
como se deu algo (ti), mas não por que (dioti) se deu.
É assim que o objeto do conhecimento passa a ser concebido diversamente. Nesse contexto, é
preciso que se destaque o papel de Guilherme de Ockham, cujo pensamento, como é
sobejamente conhecido, descende diretamente daquele de Scot, mas introduzindo variações que,
no entender de Muralt, darão suporte a posições também da tradição (aristotélico-)tomista, indo
reverberar, por influência de seus professores parisienses, naqueles que integrarão a escolástica
espanhola do século XVI, com destaque para o Pe. Suárez (1548 – 1617), com sua “tentativa
sincrética de restauração aristotélica” (-tomista, WSGF), apesar de vinculada à “tradição
scotiana”.19 Para Ockham, o conhecimento resulta da ação, simultânea ou não, do ente
extramental ou da vontade divina, absolutos que co-existem sem qualquer relação necessária,
donde permitir sua epistemologia “a co-existência sistemática de uma lógica do nome conotativo,
efetivamente `nominalista´, de uma crítica `psicologista´ do conceito e de uma filosofia
`voluntarista´ da liberdade”.20
Os “universais” são os conceitos que na época medieval se qualificava como
“transcendentais”, por irem além, se acrescentarem, às categorias aristotélicas (gêneros supremos
ou primeiros do ser, que se pode afirmar de tudo o que é, a saber, a substância ou essência, a
quantidade, a qualidade, a relação, o tempo, o lugar, a situação, a ação e seu correlato, a paixão, e
a possessão), enquanto aspectos do Ser, como a verdade, o bem (em que se inclui a justiça) e o
belo. “Humanidade”, por exemplo, seria um universal que nos permitiria reconhecer todos os
que são homens, e tal como eles, também existe, pois se não existisse, não poderíamos identificar
cada um de nós como espécies do mesmo gênero, humano. Isso é o que afirmariam os que
defendem que o todo é maior do que a soma de cada uma das partes, defendendo, portanto, a
existência dos universais. Outros, que passaram a ser chamados nominalistas, defendem, a grosso
modo, que os universais não passam de meros nomes, só tendo realidade e existência verdadeira
cada um dos entes que são abrangidos por esses nomes: a palavra “fogo” não queima, a rosa não
é o nome da rosa, que não tem cor nem odor, e caso desapareçam todos os seres humanos da
face da terra, desaparecerá também a “humanidade”. Nota-se que a opção nominalista é, na
19
20
Id. ib., p. 41.
Id. ib., p. 42. V. tb., ib., pp. 153 ss. e, esp., 167 ss.
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verdade, uma antecipação do que na modernidade se denominará “empirismo”, palavra deriva do
grego empiréia, “experiência”, por atribuir às sensações e experiências sensoriais o fundamento de
afirmações que possam ser tidas como verdadeiras. Ocorre que Duns Scotus irá oferecer uma
solução intermediária e totalmente original, para o problema dos universais, produzindo assim a
matriz para o desenvolvimento do racionalismo moderno, nas mais diversas áreas, desde a
matemática ao direito, passando pela economia e a ética, por exemplo: o formalismo.
Na tradição aristotélica, na qual se inseria Santo Tomás, defendia-se o chamado
hilemorfismo ou hilomorfismo, doutrina segundo a qual todos os corpos constituem o resultado
de dois princípios, distintos mas absolutamente complementares, a saber, a matéria (em grego:
hylé) e a forma (em grego: morphé), a matéria sendo aquilo de que algo é feito (por exemplo,
madeira, que é o que significa concretamente hylé, em grego antigo) e a forma o que faz com que
seja isso (por exemplo, uma escultura) e não aquilo (por exemplo, uma cadeira). Nessa tradição, a
matéria era o chamado princípio de individuação: dois seres humanos, Pedro e Paulo, eram
distintos um do outro não em função de sua forma, humana em ambos os casos, mas em função
da diversidade de sua matéria. Scotus, adotando a mesma terminologia aristotélica, irá atribuir-lhe
novos sentidos – acreditando, aliás, serem esses os sentidos corretos, contra a interpretação
tomista. Com relação ao princípio de individuação (principium individuationis), rejeitou que, no
exemplo dado, fosse a matéria que produzisse uma diferença entre Pedro e Paulo, mas sim um
traço identificador singular possuído exclusivamente por cada um, a “pedridade”, no caso de
Pedro, e a “paulidade”, no caso de Paulo, sendo que a esses traços singulares todos, ele
denominou haecceitas, “ecceidade”, “eisidade”, palavra derivada do latim ecce, “eis”, e que também
podemos dar como sinônimo de ipseidade, derivado de ipso, “si mesmo”. Por essa via, Scotus
pretendia sustentar a existência de termos universais, que não seriam meras criações do intelecto
humano: a humanidade comum a Pedro e Paulo existe de fato, mas não podia ocorrer na
realidade sem que estivesse junto com o princípio individuador, que não era mais visto como
sendo a matéria de que somos feitos os humanos, mas sim a forma que nos distingue como tais,
de outros seres, não humanos – Pedro de pedras e macacos, ou Paulo de paus e outros animais e também entre si, Paulo de Pedro. A essa distinção, em que se nota influência de autores não
ocidentais, como o persa Avicena e o judeu Avicebrón, Scotus denominou “distinção formal”,
postulando que, mesmo obtida através de uma operação mental, aquilo que por meio dela se
distinguia tinha uma existência independente, mesmo se na realidade só existem juntos e são
inseparáveis: no caso de nosso exemplo a humanidade de Pedro e de Paulo e o que os torna
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distintos um do outro, o princípio individuador, a ecceidade de cada qual, pois diante de Pedro e
de Paulo estamos diante de humanos e não podemos desvincular a humanidade de Pedro e de
Paulo sem que eles deixem de ser o que são, mas como são também diferentes, isso ocorre por
que há uma “pedridade” e uma “paulidade”, que também existem, mas só enquanto existem,
respectivamente, Pedro e Paulo...
Para bem entender como Scotus chega a uma tal ontologia, isto é, concepção do que
sejam os entes (do grego ontoi, palavra que associada com logos resulta na disciplina filosófica
proposta já na modernidade, enquanto parte da metafísica, sendo a outra a teologia, o discurso
racional – logos – sobre Deus – teon), se nos afigura importante uma outra contribuição sua, dada
sob a influência direta de Avicena, reinterpretando a distinção aristotélica entre “ato” ou o ser em
ato (a escultura realizada na madeira, por exemplo) e potência, ou o ser potencial (a madeira com
a qual ainda não se realizou a escultura, donde também pode resultar uma cadeira ou uma
infindade de outros entes). Para Scotus, um ente possível ou o ente enquanto meramente possível
é tão real quando aquele já existente – a escultura já é uma realidade, um ente que existe, mesmo
que não a tenhamos ainda diante de nós, antes de ser realizada pelo escultor, por assim dizer, no
plano material. Note-se como uma tal concepção, aplicada a nós humanos, mostra-se adequada à
noção de eternidade da alma, esta considerada como a nossa “distinção formal”, que já existia
antes dela se materializar, na matéria humana comum, e não deixará de existir quando esta
matéria se acabar, ainda que esta seja uma existência obscura para nós, porém perfeitamente
definida, quando se apresenta no mundo em que vivemos – um dentre vários possíveis, como se
deduz das colocações de Scotus, antes de Giordano Bruno (1548 – 1600) e Leibniz (1646 –
1716), que tornarão mais conhecida essa concepção (aliás, foi um dos motivos da condenação do
primeiro à morte, como veremos adiante), defendida também por Guilherme de Ockham, e hoje
muito utilizada, na lógica contemporânea, como critério de validade absoluta - o que for verdade
para todos os mundos possíveis –, bem como na física contemporânea, seja naquela cosmológica,
ao levantar a hipótese de que vivemos no nosso Universo tridimensional na franja ou membrana
de um multiverso multidimensional, no tempo infinito, seja na microfísica quântica, em que se
discute a possibilidade de existirem simultaneamente, em pontos distintos do espaço infinito, as
alternativas excludentes do estado quântico da matéria, imprevisíveis, pelo princípio da
indeterminação, devido a Werner Heisenberg (1901 - 1976), ou seja, em cada um desses estados
paralelos podemos não existir ainda, ter deixado de existir, ou existir em momentos de nossa
existência diversos no mundo que conosco e para nós se realiza – eis como uma idéia metafísica
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pode ter desdobramentos na física, que, por sua vez, pode retro alimentar e reanimar a metafísica,
se para isso estivermos minimamente abertos e preparados.
Por fim, vale examinar uma terceira inovação fundamental devida a Scotus, em conexão
com essas outras, já apresentadas. E aqui é preciso referir o aspecto teológico de seu pensamento,
que na época medieval é sempre aquele mais importante. No horizonte de toda essa elaboração
estaria a ausência de uma distinção clara entre metafísica e teologia, até por estarem ambas
voltadas para o estudo da realidade como uma totalidade (de sentido), tanto na ontologia,
enquanto “ciência primeira” (a protê epistéme de Aristóteles), como também na teologia, discurso
racional sobre Deus, que é enquanto ser, e não enquanto ente (ontos), ainda que supremo, e
maximamente superior, como pensava Tomás de Aquino, donde podermos dizer que Ele, ao
contrário de nós, não existe apenas, pois como afirmará Duns Scot, novamente na esteira de
Avicena, n’Ele coincidem a essência e a existência, enquanto nós apenas existimos e, enquanto
humanos, existe em nós a essência humana, mas não toda ela, donde não sermos cada um os
únicos humanos – enquanto Deus, tanto para o islamismo, como antes, para o judaísmo e o
cristianismo (apesar da doutrina trinitária, que desdobra a divindade em pai, filho e espírito
santo), é único.
Eis que nos defrontamos aqui com uma questão que, tradicionalmente, pertence ao campo
que se designou, com base em uma classificação de certas obras de Aristóteles, metafísica. Como
é corrente, o termo “metafísica” é oriundo de uma classificação de obras de Aristóteles versando
sobre sua temática, posicionadas depois dos livros da física, donde a denominação metá, isto é,
“após”, ta physika, ou seja, “da física”. Já Kant, porém, questionou se seria uma mera coincidência
que uma tal denominação se adequasse tão bem ao sentido mesmo da investigação metafísica,
voltada para questões que se situam para além daquelas tratadas no plano da realidade palpável,
física. E, de fato, há trabalhos que demonstram estar presente no pensamento aristotélico, se não
o termo, pelo menos a idéia a que ele corresponde. A metafísica, em suma, pode ser entendida, tal
como o faz um expositor recente da temática, Aniceto Molinaro, como atinente “à identidade, que
não exclui a distinção entre o ser e a verdade e o discurso sobre a verdade do ser: este discurso
chama-se pensamento, filosofia”. E adiante resume o seu pensamento ao dizer que “existe
inseparabilidade entre a filosofia e o ser: a filosofia é o ser na expressão da sua verdade. A palavra
´metafísica´ exprime esta inseparabilidade ou esta identidade”. No entender de um outro autor
contemporâneo, E. J. Lowe, tem-se que, para ele, ao contrário das ciências, que se ocupam de
estabelecer o que é, não o que tem de ser ou o que pode ser (mas não é), a metafísica lida com
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possibilidades. Daí que, é preciso, de alguma maneira, delimitar o escopo do possível, para podemos,
ao menos, esperar que consigamos determinar empiricamente o que é efetivamente real, da maneira
tentativa e aproximada que é própria da ciência, tal como entendida contemporaneamente. A tese
do autor apenas referido é a de que a metafísica será possível na medida em que se atenha a lidar
com possibilidades – com o que penso concordaria sem problemas nosso Duns Scotus, assim
como autores contemporâneos que o tiveram na mais alta conta, como Martin Heidegger e Gilles
Deleuze..
A metafísica trata de questões das quais não se ocupam as ciências, enquanto formas de
conhecimento que ora se voltam para a construção de um saber com base em experiências feitas
no contato com a realidade, com o que existe, e que por isso são ditas “empíricas”; ora elaboram
o conhecimento advindo da consistência de suas proposições entre si mesmas, sem referência a
quaisquer objetos reais, mas apenas àqueles abstratos, como na(s) lógica(s) e matemática(s),
donde justamente serem qualificadas de “formais”. Na realidade, estes “tipos puros” de
conhecimentos científicos se mesclam em maior ou menor medida, restando ainda a possibilidade
e, mesmo, necessidade (termos, a rigor, intercambiáveis, pois o possível é necessariamente
possível, assim como o necessário sempre é possivelmente necessário, já que esta é a condição do
que existe sem ser em si mesmo, o que só é o ser que não depende de nenhuma causa para
existir, o qual se pode denominar de Absoluto, Deus etc.) de outros conhecimentos, metacientíficos, que seriam a epistemologia, para discutir as condições de possibilidade de um
conhecimento científico ou de uma outra natureza, e a metafísica, para discutir as categorias,
determinações ou, simplesmente, os conceitos dos conceitos empregados pelas demais formas de
conhecimento, como são os conceitos de realidade, possibilidade, necessidade, causalidade,
tempo, espaço, existência, número, contradição, identidade, sujeito, objeto, mundo, experiência,
indivíduo, infinito, nada, Deus, valores como o bem e a justiça, mas também o mal, etc. Para
efeitos mais didático do que por razões substanciais pode-se dividir em diversas (sub)áreas do
conhecimento a metafísica, conforme privilegie alguns desses temas, de forma que do estudo de
Deus se ocuparia a teologia (racional, e não aquelas dogmáticas, vinculadas a alguma religião
positiva), assim como dos valores a axiologia, dos deveres ou obrigações – aí incluído temas
como o das promessas, dádivas
ou realidades deônticas (palavra derivada do grego deon,
obrigação, dever) mais habitualmente estudadas, como aquela jurídica -, das questões pertinentes
ao(s) mundo(s) a cosmologia e daquelas sobre o(s) ser(es) a ontologia, enquanto temas
relacionados ao conhecimento em si seriam objetos da gnosiologia. A estreita conexão entre
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todas essas matérias, em que cada uma remete às demais, torna de todo relativas tais divisões, ao
mesmo tempo em que suscita o interesse em promover a interdisciplinariedade “holística” dos
estudos por meio da metafísica tal como aqui entendida. Quanto as denominações atribuídas às
suas sub-divisões, são oriundas mais da etimologia, em correspondência com seu objeto, do que
de qualquer outro significado que possam ter, a depender do contexto em que apareçam
empregados os respectivos termos. Uma tal investigação a de ser feita racionalmente, ainda que
seja com novas formas de racionalidade, como aquela transversal, de Wolfgang Welsh, e
empregando até, o quanto possível, um instrumental oriundo de ciências (formais) lógicas e
computacionais. Isto porque, em lógica e matemática, assim como na física e ciências em geral, na
atual concepção epistemológica, “encontra-se o real como um caso particular do possível”, como
certa feita expressou o epistemólogo francês contemporâneo, Gaston Bachelard (1884 - 1962). É
certo que foi o avanço mesmo da pesquisa em microfísica ou física quântica que instaurou a
possibilidade (ou a “indeterminação”) no próprio cerne dos fenômenos estudados nesse nível,
pois uma molécula ativada por um quantum de luz tanto pode integrá-lo em seu material, como
pode re-emitir o seu ganho de energia sob a forma de radiação, ou ainda entrar em reação
química com outras moléculas, bem como romper o quantum, transformando-o em energia.
Novamente, vemos como a fronteira entre física e metafísica, ainda hoje, é incerta.
Aos autores medievais, com Scotus, interessava estabelecer a possibilidade do conhecimento
de Deus, dando destaque todo especial à prova de sua existência, e do modo dessa existência.
Para tanto, Scotus recusou a concepção tradicional da linha agostiniana, adotada em seu tempo
por Henrique de Gant, de que se faria necessária uma especial iluminação pela graça divina para
ter acesso a tais conhecimentos, mas também não aceitava a concepção tomista, de que a razão
natural seria suficiente para tudo compreender em matéria de teologia, pois os principais
atributos divinos, como a onisciência e a onipotência, só podem ser conhecidos por revelação.
Mas uma vez feita tal revelação, cabe tirar dela todas as conseqüências, resolvendo problemas
tormentosos, como o decorrente da negação da contingência do futuro, que ameaça a liberdade
humana, na medida em que pela onisciência e presciência divina, toda ação já estaria prédeterminada, inclusive aquelas pecadoras, sobre as quais os homens não teriam mais
responsabilidade, enquanto sabidas e permitidas por Deus, ainda que por razões que
desconhecemos. Já o poder absoluto de Deus implica em que Ele, de potentia absoluta, pode fazer
tudo que queira, desde que não envolva contradição, ao menos no mundo em que vivemos,
criado por Ele com uma ordem determinada, para nela exercer seu poder e sua vontade, de
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potentia ordenata. Daí decorrem grande e graves conseqüências, como no que diz respeito à
doutrina das causas, fundamento de toda ciência, tal como preconizou Aristóteles. Para ele, assim
como para a filosofia até Tomás,as causas seriam quatro, a saber, a causa material, que é a matéria
de que algo é feito, como a madeira para a estátua, no exemplo antes referido; a causa formal, que
é a figura que ela representa, como o Cristo crucificado, das imagens mais comuns na religião
católica; a causa eficiente, que no caso seria o escultor, e a causa final, o objetivo para o qual se
produz o objeto, que no nosso exemplo seria atender à devoção dos fiéis. Considerando Deus
como causa primeira, aquela que nenhuma outra precede e que possui em si mesma sua razão de
ser, e sendo Ele, como para Scotus, um ser infinito dotado de um poder absoluto, o mais
excelente de todos os seres ou o Ser por excelência, a causa primeira que Ele é seria do tipo
eficiente: Deus é assim associado à criação da existência, como sua origem e suporte – causa
primeira e “causa efficiens per conservationem” -, donde não poder com ela se identificar. A partir
dessa causa primeira estabelece-se um encadeamento de causas e efeitos cuja finalidade só se
poderia explicar conhecendo a causa final última, que, novamente, é Deus, o que está excluído de
nossas capacidades mentais. Somando-se esse raciocínio com aquele já exposto, sobre a distinção
formal, em que simplesmente a possibilidade da existência independente da forma em relação ao
conteúdo de um objeto, isto é, da sua causa formal em relação à causa material, tem-se que, a
partir de Scotus, surge a idéia que predominará no domínio científico, desde a chamada revolução
copernicana, com Galileu Galilei (1564 – 1642) à frente , quando ao se falar de causa, como para
nós hoje em dia, nos referimos apenas à causa eficiente. Essa idéia, aos poucos, minará os
fundamentos da construção do saber antigo e medieval, de cunho propriamente aristotélico,
criando as condições subjetivas para o aparecimento não só da ciência, mas de tudo o que é mais
característico da modernidade, também em termos políticos, éticos ou jurídicos, com o que nela
há de melhor e pior também – e, assim, tanto em um caso como no outro, o que nela há de
grandioso.
As causas, então, passam a ser ordenadas formalmente, quer em uma hierarquia que se
considera estabelecida de potentia absoluta Dei, quer de acordo com uma ordem estabelecida
arbitrariamente pela vontade de conhecer – ou de poder. Se sujeito e mundo já não estão
vinculados naturalmente, só restam para serem conhecidos os objetos, a forma de ambos. Se a
vontade e o fim por ela almejado não estão mais unidos pelo amor, só resta um desejo arbitrário
que pode se dirigir a objetos quaisquer, seja para conhecê-los, seja para dominá-los, o que na
modernidade, por exemplo, em um Francis Bacon (1561 – 1626), logo será considerado como
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praticamente o mesmo. Se o poder já não tem constrangimentos impostos pelo bem como fim
que justifica o seu exercício, só resta a lei que obriga sem limitações ou necessidade de maiores
justificativas, já que sua força arbitrária provém do simples fato de estar na lei mesma a sua
origem. Isso porque objeto do conhecimento, vontade arbitrária de agir e lei imposta do agir são,
afinal, considerados efeitos do concurso simultâneo de causas indiferentes ao que causam, nas
quais já não é possível discernir o que é forma e matéria, eficiência e finalidade, estando todas
reduzidas a uma só causa, que é formal, mas não como aquela que corresponde a uma matéria
determinada, e é eficiente, nem tampouco aquela destinada a uma certa finalidade, pois é a
causalidade mecanicista, dos impulsos, choques e trajetórias que quando conhecidos enquanto
causas explicam que (oti) e como se deu algo (ti), mas não por que (dioti) se deu.
É assim que o objeto do conhecimento passa a ser concebido diversamente. Nesse contexto, é
preciso que se destaque o papel de Guilherme de Ockham, cujo pensamento, como é
sobejamente conhecido, descende diretamente daquele de Scotus, mas introduzindo variações
que darão suporte a posições também da tradição (aristotélico-) tomista, indo reverberar, por
influência de seus professores parisienses, naqueles que, com seu líder, Francisco de Vitória,
integrarão a escolástica espanhola do século XVI, com destaque para o Pe. Suárez,, com sua
tentativa sincrética de restauração aristotélico-tomista, apesar de vinculado, secreta ou
discretamente, por questões políticas (afinal de contas, era um jesuíta) à “tradição scotiana”. Para
Ockham, o conhecimento resulta da ação, simultânea ou não, do ente extramental ou da vontade
divina, absolutos que co-existem sem qualquer relação necessária.
Guilherme de Ockham, dito doctor invencibilis e venerabilis inceptor, ou seja, alguém que, apesar de
venerável, não atingiu o grau supremo de mestre em teologia. Já no século XV o epíteto venerabilis
inceptor, atribuído a Ockham por não ter atingido o grau de mestre, por razões políticas, aparece
ampliado para venerabilis inceptor viae modernae, cometendo-se uma dupla imprecisão: uma
terminológica, por confundir “iniciante” com “iniciador”, outra histórica, pois se a via moderna
pode ser associada à adoção do nominalismo ou, como em Thomas Bradwardine (+ 1349), à
doutrina da predestinação divina, em nenhuma dessas hipóteses o pensamento ockhamiano, por
mais importante que seja, pode ser considerado pioneiro.
Segundo Gordon Leff, por seu intermédio operou-se em verdade uma “transformação do
discurso escolático”, que conduz o pensamento filosófico para além da Escolástica medieval,
diretamente na ambiência moderna, isto é, ensejando, dentre outros desenvolvimentos, a
emergência do “paradigma da subjetividade”, pelo qual o sujeito humano passa a ser a instância
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que garante a verdade de suas constatações, como exemplarmente enunciou Descartes, ao fixar
como primeira e inquestionável verdade, da que outras poderiam ser deduzidas, a de que pensava,
logo existia – o famoso cogito, ergo sum. Sua preocupação com a análise lógica da linguagem, por
outro lado, o torna precursor, igualmente, do que se pode considerar a temática fundamental de
nosso tempo, em filosofia, quando em se desconfiando da credibilidade do sujeito para dar
suporte à verdade, passa-se a buscar esse apoio na linguagem, intersubjetiva.
Concluindo, o que será da natureza dos direitos, assim com de seja lá o que for, não se poderá
saber de antemão, com a certeza em que ingenuamente acreditaram os modernos, nem tampouco
já se encontra previamente determinado de maneira exauriente, o que negaria a “potentia
absoluta” de Deus, e mesmo as mais restritas, mas ainda assim indefinidas, liberdade e dignidade
humanas.
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[Recebido em 4.3.2013]
[Aprovado em 6.8.2013]
Artigo submetido a doublé blind peer review.
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