textualidade e articulação: sentidos produzidos pela conjunção ou

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TEXTUALIDADE E ARTICULAÇÃO: SENTIDOS
PRODUZIDOS PELA CONJUNÇÃO OU
CAROLINA DE PAULA MACHADO
UFSCar (Uehposol)
[email protected]
Resumo: O presente artigo tem como objetivo discutir a articulação
realizada a partir da conjunção ou considerando a textualidade e o
acontecimento da enunciação. Para tanto, pautamo-nos nos linguistas
Eduardo Guimarães e Luiz Francisco Dias que discutem esta questão a
partir da Semântica Histórica da Enunciação.
Palavras-chave: semântica; articulação; textualidade; acontecimento da
enunciação.
Abstract: The present article aims to discuss the articulation made either
from the conjunction or taking into consideration the textuality and the
enunciation happening. Thus, we guided our work on the linguistics
Eduardo Guimarães and Luiz Francisco Dias who base their discussion
upon the historic semantics of enunciation.
Keywords: semantics; articulation; textuality; enunciation happening
Considerando que o sentido é uma construção linguística que se constitui no
acontecimento enunciativo do enunciado que integra um texto, sendo, portanto,
resultado da história e do social, tivemos por objetivo analisar a designação da palavra
preconceito em diversas obras que tratavam da formação social brasileira1. Na obra
Casa-Grande e Senzala (1933) de Gilberto Freyre, observamos as palavras que
reescreviam a palavra preconceito, ou seja, que a rediziam ao mesmo tempo que
atribuiam-lhe outros significados, e as articulações dessa palavra com outras palavras, o
que também produz uma relação de sentido na medida em que a textualidade é
produzida.
Ao realizar esta análise, pautando-nos na teoria da Semântica do Acontecimento,
uma semântica não formal mas materialista histórica, deparamo-nos com palavras
articuladas entre si pela conjunção ou sobre a qual vamos nos deter neste artigo a partir
de duas questões: 1) a constituição de sentidos e 2) a textualidade por ela realizada.
1
Este trabalho foi desenvolvido em nossa tese de doutorado intitulada “Política e sentidos da palavra
preconceito: uma história no pensamento social brasileiro na primeira metade do século XX,
defendida em 2011 no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp sob orientação do professor
1 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.7, jul/2013. Disponível em <http://www.entremeios.inf.br> Frente a este articulador, a dificuldade foi compreender, na análise em questão, qual a
relação de sentido que a conjunção estabelecia uma vez que ela pode realizar mais de
uma ao contribuir para a textualidade do texto.
Não pretendemos aqui fazer uma análise exaustiva do funcionamento da
conjunção ou, ou seja, não pretendemos esgotar o assunto. Nosso intuito é o de tratar
desta articulação na materialidade textual relacionada ao domínio enunciativo
observando assim alguns de seus funcionamentos para compreender a polissemia por
ela produzida a partir do funcionamento enunciativo dos enunciados.
Segundo Dias (2003),
Podemos afirmar que a articulação na língua é contraída no confronto
entre uma história das enunciações da língua e uma atualidade do uso.
A história das enunciações proporciona a estabilização de lugares e
esses lugares são essenciais para a configuração das unidades da
língua. E qualquer expressão que viermos a proferir tem,
necessariamente, de se organizar a partir desse arcabouço de lugares.
A explicitação ou não da articulação entre as unidades sofre, de um
lado, a coerção dos lugares sintáticos e, de outro, as necessidades
constituídas na constituição da textualidade. (p. 63)
O olhar enunciativo permite-nos, assim, explicar como e por que a conjunção ou,
uma palavra gramatical, funciona de forma polissêmica pois não nos restringimos ao
funcionamento sintático mas relacionamos os lugares sintáticos à história de
enunciações das palavras ou expressões que ocupam esses lugares. Desse modo, nossa
preocupação é pensar a estrutura da língua em relação à enunciação.
1. A conjunção ou articulando orações
Guimarães (1987) realiza um importante estudo sobre as conjunções
considerando que estas são “elementos de fundamental importância na organização
textual” (2007, p.35). Tanto aspectos gramaticais como aspectos semânticos são
abordados no estudo das conjunções realizado por ele, assim como a orientação
argumentativa que as conjunções estabelecem no texto.
Ao constatar que as gramáticas escolares reproduzem uma classificação “vazia”
das conjunções em coordenadas e subordinadas sem haver um maior aprofundamento
das relações que as conjunções estabelecem na organização textual, ele realiza uma
análise detalhada das conjunções para melhor caracterizar seu funcionamento ao ligar
orações partindo da teoria da Semântica da Enunciação.
Na sua análise da conjunção ou, o autor observa a articulação entre orações e
atenta para o fato de que esta conjunção pode aparecer reduplicada: ou...ou, como pode
aparecer sem esta reduplicação.
No caso da conjunção ou sem a reduplicação, as orações que esta conjunção
articula não apresentam dependência entre si, e a conjunção distingue o tema e o
comentário, marcando o comentário. Neste caso, o autor conclui que esta conjunção faz
2 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.7, jul/2013. Disponível em <http://www.entremeios.inf.br> parte de um grupo de conjunções do tipo coordenação, que seria o segundo grupo
formado pelas conjunções e, além disso, mas PA2, ou.
Guimarães pauta-se em Charles Bally (1965) que considera que as orações
podem se relacionar de três formas distintas. A primeira forma seria a da coordenação
em que a segunda oração tem a primeira oração como tema; além disso, as orações não
são dependentes uma da outra. A segunda forma seria a da segmentação, nesse caso, a
primeira oração é tema da segunda mas as orações relacionadas não são independentes.
Por fim a terceira forma é a subordinação em que não se consegue diferenciar o tema do
comentário e há uma relação de dependência entre as orações.
O estudo acima exposto foca-se na articulação entre orações, de maneira que se
observa a conjunção como operador argumentativo e desse modo produzindo uma
relação de sentido, ou seja, a conjunção dentro de relações argumentativas entre
orações, apresentando sempre polifonia na organização textual.
Nas gramáticas tradicionais, as conjunções são classificadas em coordenativas e
subordinativas. Segundo Cunha e Cintra (1985), elas
são os vocábulos gramaticais que servem para relacionar duas orações
ou dois termos semelhantes da mesma oração. As conjunções que
relacionam termos ou orações de idêntica função gramatical têm o
nome de coordenativas. (...) Denominam-se subordinativas as
conjunções que ligam duas orações, uma das quais determina ou
completa o sentido da outras (p.565).
A explicação da gramática tradicional para as conjunções coordenativas limitase à sua função gramatical de “relacionar” duas orações ou dois termos, sem mencionar
seu papel argumentativo, e quando menciona o aspecto semântico o faz de forma bem
pontual e resumida, como apenas mais uma classificação.
2. A conjunção ou na constituição da textualidade e dos sentidos
Nossa questão, entretanto, se coloca em outro nível, isto é, quando a conjunção
ou articula palavras ou expressões, e não apenas duas orações em uma frase. Neste caso,
consideramos a maneira como Guimarães, mais recentemente, teoriza a constituição da
textualidade produzindo-se assim as relações de sentidos. Sua preocupação diz respeito
à maneira como os sentidos de uma palavra se constituem dentro de um enunciado que
integra um texto observando dois processos que dão a textualidade ao texto, a
reescritura e a articulação. A análise dos sentidos a partir destes dois procedimentos leva
à elaboração do domínio semântico de determinação (DSD) de uma palavra em um
texto o que representa a sua designação.
2
Nos estudos argumentativos focados na conjunção mas realizados por Anscombre e Ducrot (1977) e
Ducrot e Vogt (1980), tal como cita Guimarães(2001) distinguem-se dois tipos de mas: o mas SN e o mas
PA. O primeiro “tem uma função opositiva, mas não argumentativa”(Guimarães, 2001, p.61) e “aparece
sempre depois de um enunciado negativo, com uma função de correção de algo suposta ou realmente dito
antes.(Idem, p. 61) e esta negação é a chamada negação polêmica. Já o mas PA é o que estabelece a
orientação argumentativa. A entidade semântica nomeada pela sigla SN deve-se ao fato de que esse mas
pode ser traduzido, em espanhol, por sino e em alemão por sondern. Já a sigla PA nomeia a entidade
semântica que pode ser traduzida por pero em espanhol e por aber em alemão. (Ducrot, 1978, p.110)
3 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.7, jul/2013. Disponível em <http://www.entremeios.inf.br> Trata-se, então, de observar como uma palavra determina outra palavra
produzindo-se uma relação de sentido entre elas a partir da palavra que as articula, no
caso, a conjunção ou. A articulação “diz respeito às relações próprias das contiguidades
locais. De como o funcionamento de certas formas afetam outras que elas não redizem”
(Guimarães, 2007, p. 88).
Dias (2003) também tratou da articulação considerando a dimensão enunciativa.
Segundo ele, a sintaxe permite observar através dela um dos fundamentos da língua, a
articulação. No entanto, a gramática é apenas uma das formas de estudar a língua e o faz
a partir de sua organicidade. A língua comporta uma dimensão orgânica, isto é, possui
unidades que se articulam formando núcleos, mas essa articulação não depende apenas
da estrutura orgânica, ou seja, “a articulação de uma unidade com outra unidade muitas
vezes não está presente na estrutura” (Dias, 2003, p.59). Para tanto, ele elenca três
formas de articulação.
A primeira forma é através de um elemento articulador. Como exemplo, ele dá a
seguinte expressão:
1) Casa de madeira
A preposição de articula entre as unidades “casa” e “madeira” que são dois
substantivos.
A segunda forma de articulação se dá através da alteração em uma das unidades.
Exemplos:
2) Eu cantei/ Você cantou
Essas duas formas de articulação podem ser observadas no próprio plano da
organicidade da sentença, ou seja, podemos localizá-las nas terminações dos verbos, isto
é, nos morfemas em negrito que estabelecem a concordância com os pronomes Eu e
Você.
Por fim, ele descreve a terceira forma de articulação que é mais complexa
porque não se pode detectar um elemento articulador no corpo da sentença. Os
exemplos dados por Dias são os senguintes:
3) Eu amei Maria.
Como se pode entender, segundo o autor, a relação entre amei e Maria? Essas
palavras fazem parte também do processo de articulação. Quando se diz “Eu amei”,
espera-se que se diga a quem amou, então “Maria” entra para completar o sentido do
verbo, havendo então uma relação de dependência.
Vejamos o exemplo seguinte:
4)
L1 - Pedro gostou muito de Maria. E você?
L2 - Mais do que isso. Eu amei.
Neste caso, temos dois enunciados na forma de um diálogo. No segundo caso,
no enunciado de L2, mais especificamente em “Eu amei.”, não há elemento articulador,
4 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.7, jul/2013. Disponível em <http://www.entremeios.inf.br> não há também uma flexão para marcar a relação entre as unidades, somente uma das
unidades está presente no corpo da sentença: Eu amei Ø3.
Em L2, segundo Dias, pode-se recuperar a outra unidade que mantém a
articulação com o verbo “amei”, trata-se do substantivo “Maria”. Mas essa unidade é
recuperada na sentença de outro locutor, L1. Ou seja, é preciso levar em consideração a
enunciação e recuperar o complemento num enunciado anterior, nesse caso, é a
textualidade que fornece o objeto, a ocupação do lugar sintático está no nível da
enunciação.
A gramática diz que há uma elipse, isto é, “Maria” não aparece materialmente no
enunciado de L2. No entanto, o complemento pode ser recuperado no lugar do objeto
pela relação com outro enunciado, relação entre enunciados que não seria considerada
pela gramática tradicional já que esta analisa apenas frases isoladas.
Ainda, considerando essa questão, Dias traz mais alguns exemplos interessantes
dos quais reproduzimos apenas um:
5) Só quem ama conhece a Deus.
Neste caso não, segundo o autor, diferentemente do exemplo anterior, não seria
possível recuperar o objeto do verbo amar de um enunciado anterior uma vez que este
exemplo é um provérbio tirado de uma lista de vários provérbios que não apresentam
relação entre si, ou seja, não fazem parte de um mesmo texto, são frases isoladas. Nesse
caso, é preciso recorrer à história de enunciações do verbo amar, assim como no
exemplo anterior, que teria preparado o lugar sintático do seu complemento. Segundo
ele, aqui o verbo amar na enunciação proverbial da sentença oferece uma condição de
uso generalizante para o verbo. O uso generalizante faz com que não haja uma
representação através de palavras que ocupe o lugar sintático de complemento do verbo.
Dias nos oferece um quadro bastante preciso dos tipos de articulação possíveis e
mostra com muita clareza a necessidade de relacionar a estrutura sintática no caso dos
exemplos 4 e 5 com a enunciação para preencher o lugar sintático.
Para nós, no entanto, seja qual for o tipo de articulação, ela sempre depende da
enunciação para estabelecer o sentido do enunciado, das palavras ou expressões
articuladas. Mesmo havendo um elemento articulador presente, e a ocupação dos
lugares sintáticos na materialidade textual, a enunciação necessariamente deve ser
levada em consideração para a constituição semântica das palavras, nos enunciados no
texto. Foi isso que observamos no funcionamento da conjunção ou nos recortes que
analisamos do livro Casa-Grande e Senzala.
Desse modo, perguntamos quais efeitos de sentido a conjunção ou produz ao
articular duas palavras ou duas expressões?
3
O símbolo Ø representa a falta, a ausência do complemento.
5 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.7, jul/2013. Disponível em <http://www.entremeios.inf.br> 3. A conjunção ou nos instrumentos de gramatização
Primeiramente, vejamos o que uma gramática tradicional explica desta
conjunção. Segundo Cunha e Cintra (1985), as conjunções coordenativas podem ser
divididas em: aditivas, adversativas, alternativas, conclusivas e explicativas.
A conjunção ou, repetida ou não, é classificada como “alternativa”. Segundo os
autores, as alternativas “ligam dois termos ou orações de sentido distinto que, ao
cumprir-se um fato, o outro não se cumpre” (p. 566).
Já o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa Eletrônico (2009), nos oferece
uma definição um pouco mais abrangente do funcionamento da conjunção ou que não
se restringe ao sentido de algo como alternativa, isto é, um sentido é excluído por outro
sentido.
A conjunção ou, segundo Houaiss, “serve para ligar palavras ou orações,
indicando:
1.1 alternância ou exclusão
Ex.: aceitam doações de gêneros alimentícios ou cobram ingresso
1.2 dúvida, incerteza
Ex.: não sei se vou a Londres ou Lisboa
1.3 ênfase antes de cada termo ou frase da alternativa
Ex.: ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil
1.4 uma outra maneira de dizer algo; isto é
Ex.: Héracles, entre os gregos, ou Hércules para os romanos”
Desse modo, além do sentido de alternância, isto é, “cumprindo-se um fato o
outro não se cumpre”, temos também os sentidos de dúvida, de ênfase, e o de “uma
outra maneira de se dizer algo”, que podemos considerar como sendo a sinonímia, o que
contradiz o que foi dito na gramática que diz que os termos ligados pela conjunção
devem ser de “sentido distinto”.
Esta definição nos indica a amplitude semântica da conjunção ou que não se
restringe à ideia de alternativa trazida pela gramática. Mas como então saber a qual
desses sentidos a conjunção ou remete ao articular palavras ou expressões no texto?
4. Análise: a relação do texto com a enunciação
Tendo em vista o que afirma o dicionário sobre o que a conjunção ou indica,
vejamos então o seguinte recorte retirado da obra Casa Grande e Senzala:
As crônicas não indicam nenhuma discriminação ou segregação
inspirada por preconceito de cor ou de raça contra os índios; o regime
que os padres adotaram parece ter sido o de fraternal mistura dos
alunos. O colégio estabelecido por Nóbrega na Bahia dá Varnhagen
como frequentado por filhos de colonos, meninos órfãos vindos de
Lisboa e piás da terra. (Freyre, 1933, pp. 223-224)
6 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.7, jul/2013. Disponível em <http://www.entremeios.inf.br> Como então interpretar a relação de sentido que a conjunção ou estabelece entre
as palavras discriminação e segregação e entre as expressões preconceito de cor e
preconceito de raça?
Pensando nas acepções do Dicionário Houaiss para a conjunção, pelo menos
quatro possibilidades poderiam ser levadas em consideração:
a) a de alternância ou exclusão;
b) de dúvida ou incerteza;
c) de ênfase antes de cada termo;
d) uma outra maneira de dizer algo (isto é).
Excluímos a terceira possibilidade, alternativa c), a de ênfase, pois esta exige
que a conjunção apareça duas vezes (ou... ou) para cada caso, o que não acontece no
excerto tomado como exemplo.
Assim, das possibilidades apontadas, nos restam as seguintes: alternância ou
exclusão, incerteza ou dúvida e a de que seria uma outra maneira de dizer o mesmo o
que estamos considerando como uma relação semântica de sinonímia.
Mas como saber qual dessas relações semânticas é a estabelecida no exemplo
que estamos analisando?
Como o objetivo foi o de analisar a designação da palavra preconceito em nossa
tese de doutorado, além da articulação das palavras e expressões em relação a ela,
recorremos às reescrituras dessa palavra na obra Casa Grande e Senzala na constituição
dos sentidos para tentar compreender melhor qual relação semântica a conjunção
estabelece.
A designação é compreendida aqui como sendo “a significação de um nome,
mas não enquanto algo abstrato. Seria a significação linguística (simbólica) remetida ao
real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história” (Guimarães,
2002, p. 09).
Já a “a reescrituração é o procedimento pelo qual a enunciação de um texto rediz
insistentemente o que já foi dito fazendo interpretar uma forma como diferente de si.
Este procedimento atribui (predica) algo ao reescriturado” (Guimarães, 2007,p. 84) e,
assim como o procedimento de articulação, também é responsável pela textualidade.
Preconceito, no acontecimento enunciativo do recorte do livro Casa- Grande e
Senzala, é reescrito por repetição articulado a ‘de cor’ que o especifica. A expressão
preconceito de cor, por sua vez está articulada pela conjunção ou por de raça e
preconceito é reescrito por elipse. Discriminação aparece articulada pela conjunção ou à
segregação.
Embora o locutor-cientista, como enunciador universal, diga que as crônicas não
indicam discriminação ou segregação inspirada por preconceito, podemos considerar
que esse enunciado tem como elemento de sentido o seguinte enunciado pressuposto:
7 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.7, jul/2013. Disponível em <http://www.entremeios.inf.br> E- Existe o preconceito inspirado por segregação ou discriminação
E o enunciador assume esta posição de afirmar a existência do preconceito.
Observamos então que discriminação e segregação predicam preconceito de cor e
preconceito de raça através do verbo inspirar.
Temos assim a articulação com a conjunção ou que pode tanto significar uma
alternância e, nesse caso, temos dois tipos distintos de preconceitos, de cor e de raça que
se alternam, e o mesmo ocorre para segregação e discriminação que seriam duas formas
diferentes de exclusão que se alternam.
Assim, teríamos o seguinte Domínio Semântico de Determinação (DSD)4:
segregar
┴
Discriminar ┤ Preconceito ┤de cor
┴
de raça
Isso também pode ser interpretado como uma relação de sinonímia, em que
preconceito de cor e preconceito de raça estão funcionando no acontecimento
enunciativo como duas expressões sinônimas, que podem ser substituídas uma pela
outra, assim como as palavras segregação e discriminação. Nesse caso, teríamos o
seguinte DSD:
segregar − discriminar
┴
Preconceito ┤de cor − de raça
Além dessas duas possibilidades, ainda pode-se considerar que há dúvida, isto é,
incerteza quanto ao tipo de preconceito. Não se sabe se é um preconceito de raça ou de
cor; e se o preconceito é inspirado por discriminação ou por segregação. Assim, nesse
caso, não desfizemos as expressões nominais articuladas pela conjunção ou e as
representamos pelo seguinte DSD:
segregar ou discriminar
┴
Preconceito ┤de cor ou de raça
4
O Domínio semântico de determinação (DSD) é a representação da designação da palavra analisada, isto
é, das relações de sentidos que determinam a palavra analisada em um acontecimento enunciativo. O
símbolo ┤em qualquer direção significa “determina”. O Símbolo – significa “sinônimo”.
8 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.7, jul/2013. Disponível em <http://www.entremeios.inf.br> Observamos então a polissemia no funcionamento dessas expressões em que o
ou pode tanto significar, alternância, dúvida ou sinonímia. No entanto, nosso objetivo
não é o de buscar uma solução para resolver este suposto problema, ou seja, não é o
caso aqui de desfazer polissemia, mas de procurar compreendê-la, isto é, compreender o
que este fato linguístico está significando da história e do social, já que a polissemia é
constitutiva do funcionamento da linguagem.
Assim, é preciso recorrer ao texto que as palavras e expressões articuladas
integram. Primeiramente, verificamos se a relação entre as palavras segregação e
discriminação se tratava de uma relação de sinonímia. Para tanto, observamos como
essas palavras apareciam em outras partes do texto, recorrendo assim à textualidade e à
transversalidade. Com isso, não observamos a textualidade apenas pelas relações
segmentais do enunciado, mas a relação das palavras e expressões em qualquer parte do
texto, desde que a relação de sentido assim o possibilite.
Chegamos a outros recortes e, nessas outras ocorrências, a palavra segregação
aparece reescrita por repetição articulada à palavra extermínio através do conectivo ou.
Também tem seus sentidos relacionados à palavra separação. No entanto, em nenhuma
outra parte do texto a palavra segregação aparece reescrita articulada à palavra
discriminação.
Nas reescrituras por repetição de discriminação, esta não aparece articulada
diretamente a outra palavra que possa reescrevê-la. Desse modo, concluímos que nesse
acontecimento enunciativo, a segregação e discriminação não estão funcionando como
palavras sinônimas e a articulação com a conjunção ou pode ser de exclusão como
também pode ser de incerteza.
Recorrendo à intertextualidade e à história de enunciações da palavra
preconceito, observando o domínio semântico de determinação (DSD) que representa a
designação da palavra preconceito no livro Evolução do povo brasileiro de
aproximadamente dez anos antes (1923), obra que analisamos também, a especificação
de raça não aparece como especificação de preconceito, (embora o adjetivo raciais
apareça especificando diferenças). O que aparece apenas é a especificação de cor. Isso
pode ser explicado porque de acordo com a análise, a diferença racial e a sua
hierarquização não era significada como parte do domínio semântico de preconceito.
Também não aparecem as reescrituras discriminação e segregação no domínio
semântico dessa palavra. O que temos é separação e divisão.
Desse modo, a relação da palavra preconceito com os sentidos de raça,
segregação e discriminação parece ser algo recente para tratar das relações sociais e
que é registrado na obra de Freyre. A construção sintática com a conjunção ou, que
permite a interpretação de mais de um sentido, parece estar assim indicando uma
incerteza, uma imprecisão, quanto ao sentido de preconceito que circula na enunciação
dessas palavras e expressões na época em que a obra foi escrita, mas que parecia não
circular anteriormente.
Portanto, o modo como os termos estão articulados no acontecimento
enunciativo do recorte da obra Casa Grande e Senzala parece indicar uma imprecisão,
uma dúvida na significação da palavra preconceito que por sua vez significa algo das
relações sociais brasileiras que ainda não está estabilizado na escrita da ciência pois
nem mesmo nas relações sociais isto parece estar está estabilizado. Trata-se da
nomeação preconceito de raça, preconceito este inspirado pela discriminação ou pela
9 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.7, jul/2013. Disponível em <http://www.entremeios.inf.br> segregação, predicação que também ainda é incerta já que segregação e discriminação
também circulam de maneira simultânea, o que demonstra uma incerteza, uma
imprecisão sobre o que “inspira” o preconceito de raça.
Também podemos considerar que se não são palavras e expressões que não estão
em uma relação de sinonímia, a relação semântica produzida pela conjunção também é
de exclusão.
Além disso, De raça, especificando o preconceito em concomitância com de cor
indica um movimento de sentido para a palavra raça. Esta deixa de ser vista como uma
questão biológica, natural e, portanto, inquestionável como era na obra Evolução do
Povo Brasileiro, para especificar o sentido de preconceito, dividindo o espaço de
enunciação com o sentido de preconceito de cor.
Considerações Finais
Para compreender os efeitos de sentido da conjunção ou é preciso
observá-la no acontecimento enunciativo, sendo este compreendido como a língua em
funcionamento na diferença, ou seja, o acontecimento instaura a sua temporalidade pela
seleção de um sentido passado, o memorável que, relacionado ao presente da
enunciação, projeta um futuro de interpretação. Desse modo, é preciso considerar os
efeitos de sentidos na relação com a história de enunciações e na textualidade do texto.
Isso possibilitou observarmos o movimento político de sentidos e a espessura semântica
das palavras na relação com a história e com o social.
A partir disso, temos que a articulação entre as palavras sendo ela sem um
elemento articulador ou através de um elemento articulador (no caso a conjunção)
acontece pela enunciação. Isto porque a articulação não promove apenas uma mera
ligação entre palavras na estrutura da sentença mas produz sentido ao articular palavras,
expressões e enunciados, sentido este constituído no acontecimento da enunciação.
Desse modo, podemos também concluir que a sinonímia não é uma relação de
sentido que se dá fora do funcionamento enunciativo, que o precede como uma relação
referencial, mas que se constitui pelas relações instáveis de sentido no interior dos
textos na relação com a história e com o social. Portanto, não é o sentido da palavra
independentemente do texto em que circula que deve-se considerar. Mas é preciso
analisar a palavra estabelecendo relações com outras palavras no texto e na sua história
de enunciações para que se possa chegar a uma possível sinonímia com outra palavra,
isto é, é na textualidade e pelo acontecimento enunciativo que a sinonímia ocorre, e não
fora dela.
Compreendemos que a articulação através da conjunção ou é uma forma que
está representando a simultaneidade das palavras que ocorre no acontecimento
enunciativo por uma imprecisão própria do real representada na materialidade
linguística: as expressões de cor e de raça circulam ao mesmo tempo na enunciação
para significar o preconceito especificando-o, assim como as palavras discriminação e
segregação ocorrem simultaneamente por não se ter certeza sobre o que inspira o
preconceito.
O efeito de sentido da conjunção ou no acontecimento analisado é o de produzir
a simultaneidade da ocorrência dos termos, o que materializa o significado da dúvida,
10 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.7, jul/2013. Disponível em <http://www.entremeios.inf.br> da incerteza, já que considerar as diferenças raciais não mais como algo natural,
biológico, mas como um preconceito ainda era algo incerto na sociedade brasileira. E
em certa medida, pode-se também considerar o sentido de alternância / exclusão, o que
produz uma ambiguidade como efeito de sentido para a conjunção nesse acontecimento.
Referências
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11 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.7, jul/2013. Disponível em <http://www.entremeios.inf.br> 
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