A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO A AGRICULTURA CAMPONESA NO MARAJÓ: ENTRE O LATIFÚNDIO TRADICIONAL E O MODERNO 1 BENEDITO ELY VALENTE DA CRUZ2 DÉRICK LIMA GOMES3 MIQUÉIAS FREITAS CALVI4 RESUMO Caracterizado por sua dualidade geográfica, o arquipélago do Marajó possui a leste campos naturais historicamente apropriados pela pecuária extensiva ainda no período colonial. Porém, diante sua crescente decadência, o agronegócio avança estimulado pelos baixos preços de terras e ofertas de recursos naturais, como o hídrico. Essa simultânea coexistência e, por vezes, sucessão de latifúndios, não ocorre sem alterações significativas aos campesinato local. Objetivamos caracterizar a atual estrutura fundiária da microrregião do Arari,enfatizando as transformações sócio-espaciais decorrentes da implantação da rizicultura nesta parcela do Marajó. Trabalhos de campo, levantamento bibliográfico e documental, utilização de dados quantitativos compuseram a metodologia aqui efetuada. Palavras-chave: Pecuária; Agronegócio; Latifúndio; Marajó. ABSTRACT Characterized by its geographical duality, the Marajó’s archipelago has east natural grasslands historically suitable for extensive livestock even in the colonial period. However, up its growing decay, the agribusiness advances stimulated by the lands low prices and natural resources offers, such as water. This simultaneous coexistence and, sometimes, succession of estates, doesn’t occur without a significant change in the local peasants. We aimed to characterize the current land structure of Arari's microregion, emphasizing the socio-spatial transformations resulting from the implementation of the rice culture in this part of Marajó.Field work, bibliographical and documentary survey, use of quantitative data, composed the methodology performed in this article. Keywords: Livestock, Agribusiness, Estate, Marajó. 1 Trabalho elaborado a partir das ações do Núcleo de Extensão em Desenvolvimento Territorial NEDET/UFPA no Território do Marajó. Contou com auxílio financeiro da SDT/MDA e CNPq, a quem agradecemos. 2 Doutorando em Geografia-UNESP, Docente-Pesquisador UEPA. E-mail: [email protected] 3 Pesquisador NEDET/UFPA, Discente UEPA/Belém. E-mail: [email protected] 4 Doutorando em Ambiente e Sociedade-NEPAM/UNICAMP; Docente-Pesquisador UFPA/Campus Altamira, e-mail: [email protected]; 3115 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 1- Introdução. Pensar acerca da atual questão fundiária do Marajó, em particular da microrregião do Arari, só será possível diante sua formação histórica e o atual avanço do agronegócio nesta área específica do Pará. Isto porque a elevada concentração fundiária nos campos marajoaras resulta da desigual ocupação colonial do arquipélago, a partir da distribuição de sesmarias aos primeiros donatários, às missões religiosas e outros sujeitos no Período Pombalino. Se outrora a pecuária caracterizara a principal atividade rural da região, hoje, contudo, o agronegócio avança estimulado pelos baixos preços de terras, apoio estatal e ofertas de recursos naturais, como o hídrico. Essa simultânea coexistência e, por vezes, sucessão de latifúndios, não ocorre sem alterações significativas aos campesinato local, pois o agronegócio se constitui em agricultura altamente mecanizada, insumos químicos e biológicos, produção em larga escala que explora grandes extensões de terra, geralmente de base monocultura (FABRINI, 2010) que tende reordenar a dinâmica dos territórios rurais (FERNANDES et al., 2010). Diante a isto, nosso objetivo reside em caracterizar a atual estrutura fundiária da microrregião do Arari, enfatizando as transformações sócio-espaciais decorrentes da implantação da rizicultura nesta parcela do Marajó. A metodologia utilizada pautou-se nos levantamentos documentais e bibliográficos, aliados aos registros fotográficos realizados em campo, onde efetuamos entrevistas abertas e semiestruturadas com os sujeitos locais; a estes dados qualitativos aliamos dados estatísticos do Censo agropecuário (IBGE, 2006) a fim de enriquecer a compreensão da realidade estudada. 2- Formação sócio-espacial5da microrregião do Arari: o grande latifúndio como legado da pecuária. Enquanto ciência, a Geografia por muito tempo se preocupou mais em explicar as formas das coisas em si, já cristalizadas, do que buscar apreender as causas destas a partir da sua formação, negligenciando a influência das relações sociais na produção do espaço. Contudo, “a História não se escreve fora do espaço, 5 “Sócio-espacial” (com processo,movimento. hífen) é utilizado aqui como opção teórica, por representar 3116 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO e não há sociedade a-espacial. O espaço, ele mesmo, é social” (SANTOS, 1977, p. 81). Dessa forma, considerar as externalidades na conformação de determinado espaço, tal como, suas próprias condições internas (SANTOS, 1997) significa dizer que, o espaço é produto (efeito) e produtor (condição) dessas mesmas relações sociais; apresenta potencialidades e limitações às ações dos indivíduos; e, sobretudo, está inserido em escalas maiores de decisões sofrendo suas influências diretas, possuindo simultaneamente, particularidades. Por este motivo, a atual conjuntura do Marajó só poderá ser entendida se associada com sua formação sócio-espacial, pois se “os modos de produção escrevem a História no tempo, as formações sociais escrevem-na no espaço” (SANTOS, 1977, p. 87-88). Partindo desse pressuposto, nos reteremos à questão fundiária de uma área da Amazônia, a microrregião do Arari, localizada na mesorregião do Marajó-Pará. De início, devemos entender que a mesorregião do Marajó é composta por três microrregiões: Arari, Furos de Breves e Portel6 (ver mapa 01). Juntas, somam uma área de 104.139 Km². Esta divisão político administrativa, por vezes, se aproxima do dualismo geográfico (MIRANDA NETO, 2005) que a mesma possui, havendo predominância de campos naturais a leste, enquanto a sudoeste, as florestas são as formações naturais predominantes. De grande destaque, o arquipélago do Marajó possui também posição estratégica, pois se localiza na foz do Rio Amazonas, apresentando como litoral o Oceano Atlântico. Por este motivo, sua ocupação inicial, ocorrida no período colonial, esteve ligada a uma estratégia geopolítica de Portugal objetivando “assegurar a posse efetiva da imensa região, com seu desaguar a perder de vista por labirínticos rios e florestas” (PACHECO, 2010, p. 18), para assim descobrir novas terras e riquezas, defendendo-as de holandeses, ingleses, franceses e irlandeses. 6 A microrregião do Arari compreende os municípios de Cachoeira do Arari, Chaves, Muaná, Ponta de Pedras, Salvaterra, Santa Cruz do Arari e Soure. Já a microrregião de Furos de Breves é formada pelos seguintes municípios: Afuá, Anajás, Breves, Curralinho e São Sebastião da Boa Vista. E a microrregião de Portel, é composta pelos municípios de Bagre, Gurupá, Melgaço e Portel. 3117 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Mapa 01: localização das microrregiões do Marajó. Fonte: IBGE. Contudo, as tentativas de conquista do território marajoara foram frustradas por diversas vezes devido à elevada resistência dos indígenas residentes da ilha. Só em meados de 1659, com a interferência do Padre Antônio Vieira, é que se reduzem os conflitos a partir de um tratado de paz entre os índios e o religioso (LISBOA, 2012). Quanto aos missionários, “praticamente são eles os colonizadores que obtém maior sucesso; onde expedições militares e entradas falham, eles triunfam”(MIRANDA NETO, 2005, p. 58). Após a “pacificação” dos indígenas, inicia-se a colonização da região, por meio da doação da Ilha Grande de Joanes7 á Antônio de Souza de Macedo em 1665. Simultaneamente efetivava-se um dos seus aproveitamentos econômicos: o pasto de boa qualidade dos seus campos naturais é então destinado à criação do gado. Os campos do Marajó começaram a ser, assim, ocupados pela atividade pecuária. O primeiro Curral estabelecido na ilha é atribuído ao português Francisco Rodrigues Pereira, no sítio Anajatuba, em 1680, à margem esquerda do Igarapé Mauá, afluente da margem esquerda do rio Arari, 7 Antigo nome dado ao arquipélago do Marajó. 3118 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO próximo à sua foz. Já os Jesuítas, que viriam a dominar a atividade pastoril na ilha, só tomaram posse de uma sesmaria em 1686, no rio Marajó-açu, em área onde hoje é o município de Ponta de Pedras, ali implantando a primeira fazenda missionária. (LISBOA, 2012, p. 100). Sucede-se a partir desse momento o início do processo de concentração fundiária nos campos marajoaras (predominantes na microrregião do Arari), haja vista que, após o florescimento da pecuária nos pastos naturais, criadores de gado são convidados a ocupar o arquipélago com este objetivo econômico. O latifúndio se estabelece, uma vez que, pessoas desfavorecidas socioeconomicamente não tinham acesso às terras, ficando as sesmarias restritas a “pessoas abastadas, com trânsito na Corte, e com possibilidades de mobilizar mão de obra escrava”. (LISBOA, 2012, p. 102). Outra mudança ocorre já no Período Pombalino. Em 1754, por decreto de 29 de abril, extinguiu-se a donataria da ilha do Marajó, sendo a capitania incorporada à Coroa. Quatro anos depois, o descontentamento da coroa com os jesuítas8 resulta no confisco de suas fazendas. O modelo latifundiário continua mesmo após a expulsão dos mesmos, já que suas propriedades acabaram doadas a 22 civis e militares, conhecidos como contemplados (MIRANDA NETO, 2005). Após um novo período de expansão do rebanho bovino e equino no Marajó, a pecuária enfrentou nova fase de decadência a partir da segunda década do século XIX. No triênio 1807 a 1809, a produção de gado rendeu ao dízimo no atoa da ferra, cerca de 15.830 reses e, no triênio 1825 a 1827, declinou para 9.935, acompanhando, também, de uma redução do número de fazendas. As causas atribuídas a esses números negativos foram diversas: a presença de onça foi considerada a principal, seguindo-se dos atoleiros onde o gado ficava preso; a falta de um tratamento veterinário no gado doentio, o qual não recebia qualquer atenção; o roubo de gado (...). (LISBOA, 2012, p. 109). Ainda que a porção leste do Marajó possua potencialidades naturais à atividade pecuária, esta sempre encontrou obstáculos ao seu desenvolvimento, como na citação exposta acima. Segundo Lisboa (2012), apesar da pecuária marajoara atravessar os séculos, desde a década de 20 do século XIX a mesma vive em crise permanente. 8 Acusados de não se contentarem somente no âmbito da catequese e da crescente atividade pecuária desenvolvida nos campos, mas também na ambição de interferirem na política lusa. Antes do confisco, uma das formas de subjugá-los foi pressioná-los a pagar mais dízimos pelo gado que possuíam nos currais da ilha. (LISBOA, 2012). 3119 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Outros fatores contribuem para a sua diminuição (ver gráfico 01), tais como: o sistema de extrema seca e cheia ocasionando elevadas perdas de reses; aumento do consumo urbano forçando fazendeiros a exportar o gado em idade de reprodução (MIRANDA NETO, 2005); mas, sobretudo a perca de competitividade, seja pela abertura de rodovias no Sul do Pará à Belém-Brasília na década de 1970 (LISBOA, 2012) como pela precária infraestrutura de abatedouros, frigoríficos e no transporte à capital paraense (BRASIL, 2006). Gráfico 01: Evolução do rebanho bovino na microrregião do Arari. Fonte: adaptado de Lisboa (2012) e do censo agropecuário de 2006 e ADEPARÁ. Estes dados são menos preocupantes quando se percebe o crescente aumento da pecuária bubalina na ilha, que cada vez mais vem se adaptando às adversidades da região e ocupando espaço no mercado de carnes e laticínios (LISBOA, 2012), ultrapassando até mesmo o número de bovinos (ver tabela 01). Microrregiões Arari Furos de Breves Portel Marajó (total) Rebanho Bovino 236.119 Participação relativa no Marajó (%) 94,51 Rebanho Bubalino 329.493 Participação relativa no Marajó (%) 98,43 2.094 11.602 0,83 4,64 4.559 673 1,36 0,20 249.815 100 334.725 100 Tabela 01: Composição Pecuária Bovina e Bubalina na Ilha do Marajó – 2013. Fonte: ADEPARÁ. Diante o exposto neste tópico, à análise que segue caberá demonstrar como o enfraquecimento da pecuária, apesar do crescimento do rebanho bubalino, pode estimular a vinda de outros agentes na conformação da dinâmica econômica no meio rural do Marajó, sendo o agronegócio a atividade econômica mais importante. 3120 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 3- A situação camponesa diante ao latifúndio tradicional e o moderno na microrregião do Arari. De início, torna-se relevante destacar aqui a formação sócio-espacial da microrregião do Arari, tendo o espaço caráter de produto e produtor das relações sociais (SANTOS, 1977). Pois, se hoje a microrregião detém cerca de 94% de todo o gado bovino e 98% do bubalino do arquipélago (efeito), isto se deve ao seu dualismo geográfico, fato que impulsionou a pecuária nos campos naturais (condição) encontrados nessa porção do Marajó e que em consequência, ainda hoje, possui elevada concentração fundiária (efeito 2 – ver gráfico 02) desde o período colonial. Gráfico 02 – Estrutura fundiária da Microrregião do Arari. Fonte: Censo Agropecuário de 2006 (IBGE, 2015). Este mesmo dualismo geográfico, a partir dos campos naturais no leste marajoara, influenciou a chegada de um novo tipo de atividade agora presente na área, o agronegócio, representado pela rizicultura. Além do fator natural, essa microrregião possui valores de terra a preço extremamente baixo se confrontadas a outras regiões do Estado do Pará ou do Brasil. Tomando o exemplo de Santarém (PA), podemos comparar tal questão. Assim, os “12 mil hectares de Quartiero9 em Marajó, portanto, custariam 42 milhões [de reais] se tivessem sido comprados ali [em Santarém]. Em Cachoeira do Arari custaram 2 milhões - ou 4,7% do preço” (BARROS, 2014, p. 1). Soma-se a esses fatores atrativos o desejo do Governo do Estado, através da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (FAEPA), em transformar o Marajó em 9 Grande rizicultor expulso do Estado de Roraima após disputa judicial de áreas localizadas em terra indígena, quando da demarcação. Devido aos recursos naturais abundantes e ao baixo preço da terra, se instalou no Marajó após convite do Governo do Estado. 3121 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO um Polo Rizicultor, pois conforme o seu presidente, Carlos Xavier, com até 100 mil hectares a região conseguiria a sua autossuficiência, além de exportar para outros lugares do território nacional. Dessa forma, segundo o governo, o objetivo é “(...) tornar a região do Marajó, com 52 mil quilômetros quadrados, dos quais 1/3 é constituído de campos naturais, um dos maiores polos de rizicultura do país”. (FAEPA, 2015). Diante a exposta redução e enfraquecimento da pecuária e a simultânea possibilidade de ascensão da rizicultura, mudanças significativas começam a ocorrer no Arari. Isto porque, se outrora o discurso de atraso era latente mesmo à pecuária extensiva, hoje o agronegócio surge como a esperança de ser a mola propulsora do desenvolvimento na região. "Sabe o que estamos fazendo de errado ali? Estamos produzindo alimentos, olha só que crime. Estamos trazendo emprego e desenvolvimento a um dos lugares com IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] mais baixos do país. Mas tem gente que não quer ver o Brasil crescer", afirma Quartiero, durante entrevista por telefone de seu gabinete, em Brasília, antes de viajar ao Pará para apresentar sua propriedade rural à reportagem do Valor. (BARROS, 2014, p.1) O discurso sobre este modelo de desenvolvimento deve ser aqui problematizado com cautela, uma vez que o agronegócio se constitui em agricultura altamente mecanizada, insumos químicos e biológicos, produção em larga escala que explora grandes extensões de terra, geralmente de base monocultura (FABRINI, 2010) que tende reordenar a dinâmica dos territórios rurais (FERNANDES et al., 2010) ao mesmo tempo que conserva sua estrutura fundiária concentrada. Por este motivo, exemplifiquemos algumas das consequências da ascensão da rizicultura no Arari,citando primeiramente os de cunho socioambiental. Encontrados em estudos como o de Ruver (2013) e nos trabalhos de campo por nós realizados, novos problemas surgem ao campesinato polivalente e étinico desta região, como a poluição dos recursos hídricos, morte de animais e perca da sociobiodiversidade. Isto se deve, segundo Ruver (2013), ao fato do arroz irrigado se utilizar de significativas descargas de agrotóxicos, o que pode gerar problemas aos recursos hídricos, pois, esta é uma das culturas com maior uso de água, necessitando de dois 3122 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO mil litros para a produção de um quilograma de arroz. A água empregada é retirada de rios (também aproveitados pelos camponeses), lagos ou açudes por meio de bombeamento direto (ver figura 01). Figura 1: Canal que auxilia no bombeamento de água do rio à rizicultura (Cachoeira do Arari – PA) Fonte: Dérick Gomes. Os impactos ocasionados por este tipo de empreendimento podem ser evidenciados na fala de Margarida10, quilombola11do município de Salvaterra: Ele [rizicultor estabelecido recentemente em Salvaterra] não poderia perceber que isso ia causar um problema, mas pra nós que precisa do nosso território, de tudo o que existe, nas florestas, nas matas, nas águas, o que a gente precisa pescar, coletar o açaí, com certeza ia sofrer os impactos, né? Grandes impactos. Por quê? Quando foi feito esse plantio dele, ele mandou fazer uma grande “cavagem”, e a “cavagem” pegava de dentro da fazenda pra margem do rio, então se ele manda pulverizar, o plantio do arroz, claro que tudo aquele agrotóxico que cai, vai atingir a terra né, e quando a água, e a maré enche e vaza, aquele agrotóxico vem na água pra dentro do rio, e com isso nós comecemos a questionar sobre isso”. (Dona Margarida, entrevista realizada em abril de 2015). Por apresentar uma concentração fundiária extremamente elevada, simultânea aos problemas ambientais, outra mudança ocorre a partir da permanência – a do latifúndio. Contudo, um fato interessante deve ser aqui ressaltado: além da pecuária extensiva como atividade inerente ao latifúndio 10 Utilizaremos aqui codinomes por acharmos necessária a preservação da identidade de alguns entrevistados. 11 Os quilombolas de Salvaterra e Cachoeira do Arari formam uma parcela elevada dos impactados pela rizicultura na ilha. 3123 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO tradicional, somam-se aqueles grandes proprietários que extraem a renda da terra12a partir do aluguel do pasto a camponeses com pouca ou nenhuma área. O pagamento deste aluguel se constitui tanto em transferência de parte da produção, como por dinheiro, em R$ 8,00 por cabeça/mês. Em Cachoeira do Arari, para muitos sujeitos, a principal fonte de renda reside na criação do Gado. Os pequenos proprietários de gado bubalino, por exemplo, têm na venda do leite a principal atividade econômica (por vezes mesclada e associada com a posterior produção do queijo).Em contrapartida, os grandes proprietários desenvolvem pecuária de aptidão para Corte. Recentemente, porém, a compra de terras destinadas à rizicultura tem alcançado essas áreas, que no passado, fazendeiros alugavam aos pequenos criadores locais. Assim, a rizicultura para além de ocupar espaço do latifúndio tradicional, tem entre suas consequências sócio-espaciais, a exclusão de pequenos criadores do acesso aos pastos antigamente alugados, obrigando-os a buscarem espaços mais distantes e mais caros. Esse processo tende a se intensificar em decorrência da expectativa de expansão do agronegócio através do projeto do polo rizicultor do Marajó. Essas transformações que são consequências da formação sócio-espacial da região, podem ser entendidas melhor pela sucessão de funções que determinado espaço ganha em cada período histórico, (re)funcionalizando seu conteúdo a partir da forma já estabelecida. (...) A função da forma espacial depende da redistribuição, a cada momento histórico, sobre o espaço total da totalidade das funções que uma formação social é chamada a realizar. Esta redistribuição-relocalização deve tanto às heranças, notadamente o espaço organizado, como o atual, ao presente, representado pela ação do modo de produção ou de um dos seus momentos. (...) Se não podem criar formas novas ou renovar as antigas, as determinações sociais têm que se adaptar. São as formas que atribuem ao conteúdo novo provável, ainda abstrato, a possibilidade de torna-se conteúdo novo e real. (SANTOS, 1977, p. 89). 12 “[...] Como o capital tudo transforma em mercadoria, também a terra passa por essa transformação, adquire preço, pode ser comprada e vendida, pode ser alugada. A licença para a exploração capitalista da terra depende, pois, de um pagamento ao seu proprietário. Esse pagamento é a renda da terra”. (MARTINS, 1981, p. 160). 3124 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Assim, muda-se a denominação, o discurso e por vezes algumas práticas. Contudo, o latifúndio persiste na mudança, na forma fundiária concentrada historicamente estabelecida dessa área da Amazônia Oriental. Onde não há mudanças positivas, porém, é para aqueles que persistem em se recriar mesmo nas situações mais adversas. A modificação desse modelo que persiste em tutelar o pequeno produtor só será concretizada quando houver um reordenamento rural na forma-conteúdo deste espaço. Este terá que vir auxiliar àqueles que desde o período colonial vivem de maneira precária no Marajó: quilombolas, extrativistas, pescadores, agricultores, pequenos criadores de gado, entre outros. O fio condutor dessa transformação pode estar na regularização fundiária das terras desse campesinato polivalente supracitado (CASTRO, 1999), mas, sobretudo, na reforma agrária de maneira geral. 4- Considerações finais. Este artigo teve o objetivo de suscitar o debate acerca das transformações e permanências da questão fundiária na microrregião do Arari, tradicionalmente marcada pela pecuária associada ao grande latifúndio, e recentemente pela chegada do agronegócio do arroz que diante da decadência da pecuária na região, traz consigo o discurso modernizador e desenvolvimentista. Entre essas duas atividades encontram-se um conjunto de camponeses, que tem na posse da terra, muitas destas ainda não regularizadas, a condição imprescindível para sua reprodução social. A permanência do grande latifúndio associado à pecuária, ainda que decadente, monopoliza a terra e parte da sua renda, cria e reproduz uma situação de inércia sobre a microrregião do Arari. Esta inércia, recentemente tem sido quebrada pela chegada da rizicultura e seu discurso modernizador e desenvolvimentista, mas que na verdade traz em seu cerne um modelo de “desenvolvimento” que não inclui os múltiplos camponeses da região, pelo contrário, representam obstáculo ao dito desenvolvimento. Esta situação gera incertezas e é potencializadora de conflitos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, B.Terra barata e carências em profusão. Valor Econômico, 14/03/2014. 3125 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO BRASIL. Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó. Presidência da República. Casa Civil. Grupo Executivo Interministerial. Grupo executivo do Estado do Pará. 2007. 296p. CASTRO, E. 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