“Estratégias na Prevenção de Acidentes por Mordedura” M.Sc. Mariângela Freitas de Almeida e Souza Médica Veterinária e Psicóloga Consultora Veterinária da World Society for the Protection of Animals (WSPA) E-mail: [email protected] Estudos recentes realizados pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) em relação às agressões caninas revelam que as principais vítimas são as crianças e os idosos, que os ataques se dão mais freqüentemente no final da manhã e da tarde e nos fins de semana (horários de maior presença de pessoas na casa), que a maioria dos cães são da própria família ou conhecidos da vítima, que as agressões são, em sua maior parte, provocadas pela própria vítima e que a situação do cio é um fator predisponente. Contribuem para a ocorrência de agressão canina: a falta de socialização do animal, a criação inadequada e os maus-tratos, a não compreensão dos sinais de comunicação canina, as situações geradoras de estresse e de medo e a não esterilização dos machos. Só no ano de 2002, foram registrados cerca de 450 mil casos de acidentes por mordeduras de animais em todo o país, resultando em mais de 300 mil indicações de tratamento, no que foi gasto em torno de 17 milhões de reais só com o uso de vacinas contra a raiva. Esses números dão uma indicação da dimensão do problema e da necessidade urgente de prevenção. O comportamento agressivo, assim como toda e qualquer forma de conduta animal, é expressão da interação complexa entre múltiplos fatores (biológicos, psicológicos, sociais e ambientais) e, em virtude dessa complexidade, não é algo tão facilmente previsível ou modificável. A prevenção e o tratamento dessa questão exige, antes de tudo, um diagnóstico confiável. E esse diagnóstico, considerando a visão sistêmica, implica a avaliação de aspectos diversos tais como as condições do próprio animal, as condições do ambiente em que vive, o tipo e freqüência de interações estabelecidas e os vínculos criados, principalmente com os seres humanos. O diagnóstico vai direcionar o tratamento e definir um protocolo que poderá incluir uma ou mais ações, por exemplo, alterando ou enriquecendo o ambiente em que o animal vive, corrigindo o manejo ou orientando o proprietário para o estabelecimento de relações mais apropriadas e saudáveis, submetendo o animal a uma das técnicas que constituem a terapia comportamental ou até utilizando um esquema medicamentoso, quando for o caso. A domesticação é responsável por profundas alterações na aparência e no comportamento de espécies selvagens que resultaram no cão e no gato domésticos, mas esses animais ainda mantêm tendências primitivas em seus arranjos sociais e os instintos básicos dos seus ancestrais. Cães, assim como os lobos, são altamente sociais e necessitam viver em grupo, organizando-se de forma hierárquica, onde a posição e os privilégios de cada animal são firmados e sustentados através da dominância e da conduta agressiva. Os felinos, diferentemente, possuem uma natureza mais solitária. A domesticação e uma convivência amistosa com as pessoas transformou o gato numa espécie também grupal e social, mas essa conduta precisa ser reforçada. O conhecimento da evolução das espécies com as quais lidamos é um primeiro passo importante para o estabelecimento de relações harmoniosas e para a prevenção de acidentes. No caso dos cães, além dos instintos, outro fator biológico importante a considerar na compreensão da agressividade é o temperamento. Entre os temperamentos caninos mais comuns, o dominante agressivo e o independente são os que mais atenção chamam no que se relaciona à possibilidade de manifestação de comportamentos agressivos. À parte a necessidade de manter o controle e a liderança que exibe o primeiro, ambos os temperamentos se expressam em animais considerados de relacionamento difícil, que não aceitam ser contrariados e que podem atacar e morder nessas circunstâncias. A American Temperament Test Society (www.atts.org) é uma organização especializada em estudar e avaliar o temperamento canino. Em seu site podemos encontrar referências de testes, aplicáveis a cães a partir dos dezoito meses de idade, e que avaliam o temperamento animal, medindo aspectos como estabilidade emocional, confiança, nível de agressividade, instinto de autopreservação e de proteção do dono. O trabalho do médico veterinário começa antes mesmo do cliente adquirir um cão ou um gato. É fundamental que aquele que pretende criar um animal de companhia e sua família sejam auxiliados, de forma profissional, para escolherem um animal que se adeqüe às suas expectativas e recursos, de modo que o perfil do animal seja compatível com o perfil do futuro proprietário/família. Isso implica, em primeiro lugar, uma reflexão acerca das motivações para terem um animal de companhia e das condições disponíveis para criá-lo. É indispensável a conscientização de que, ao levar um cão ou um gato para casa, a família assume um compromisso, inclusive afetivo, a longo prazo. Conscientes do seu papel com respeito ao bem-estar animal, o profissional deve empreender junto à família uma orientação e discussão acerca da espécie mais apropriada, de que sexo e de que idade, se de raça (qual delas?) ou sem raça definida, quais características físicas e psicológicas devem ser preferenciais no animal a ser escolhido. A preparação para o recebimento de um animal é importante fator de prevenção de incompreensões e insatisfações futuras, motivos geradores de maus-tratos, abandono e problemas de conduta do animal, incluindo agressões. É importante também entender a relação entre agressividade e estresse. Estresse pode ser definido como um conjunto de reações biológicas e psicológicas que se desencadeiam em um organismo quando ele se depara, de uma forma brusca, com um agente nocivo, qualquer que seja a sua natureza. Diante de uma situação estressora, o animal se coloca em um estado de alerta e se prepara: a reação poderá ser fugir ou enfrentá-la, defendendo-se ou atacando. Como exemplos de situações geradoras de estresse para um cão ou um gato podemos citar: fome, sede, calor e frio; doenças e dor; o cio; presença de ninhada; ameaça física ou agressão; ameaça às coisas ou pessoas que guarda; ausência do dono; separação; abandono ou perder-se; confinamento prolongado; pessoas, animais e ambiente estranho; manipulação excessiva, imprópria ou violenta; aglomeração ou isolamento; ruído forte ou contínuo; ambiente agitado, agressivo ou impróprio; punição excessiva ou contínua; confrontação ou desafio. Como dissemos anteriormente, estudos realizados pela OPAS sugerem que a própria vítima pode provocar as agressões e isso ocorre com freqüência. Relacionamos aqui alguns comportamentos que são propícios nesse sentido, de modo geral induzindo instintos básicos de defesa da sobrevivência: a pessoa se aproxima de repente ou por trás, aborda o animal com gestos rápidos e bruscos, invade seu território, o ameaça com algo nas mãos, grita, desafia olhando-o fixamente, aproxima-se em momentos impróprios (dormindo, comendo, doente, com dor, com filhotes, com medo, irritado), ameaça seu dono ou algo que esteja protegendo. Em todas essas situações, ter conhecimentos básicos e corretos do comportamento e dos sinais que o animal utiliza para se comunicar são fundamentais para um convívio equilibrado. A atitude de interpretar o comportamento e os sinais de comunicação de um cão ou de um gato sob o ponto de vista antropocêntrico pode resultar num entendimento falho e, conseqüentemente, em reações imprevisíveis por parte do animal, inclusive de ataque ou agressão. Os sinais característicos de um cão agressivo pronto para atacar são: late forte à aproximação; rosna, mostra os dentes; expressão agressiva; postura contraída; olhar fixo; movimentos agitados; cauda tensa, levantada, abanando com vigor; pêlos arrepiados (na nuca e no dorso); orelhas eretas ou abaixadas e para trás; membros afastados e dorso encurvado; não foge à aproximação e pode avançar e morder. A conduta natural de ataque de um cão a um invasor do território que ele guarda deve estar obrigatoriamente sob o controle humano. Isso significa que o cão deve ser capaz de dar o alarme e imobilizar o invasor, mas, ao comando humano, largá-lo sem dificuldade. Para prevenir problemas na relação homem–animal de companhia, duas palavras são básicas: Educar e Socializar. No caso de um cão, por exemplo, o reforço de determinadas condutas ou o aprendizado de certos comandos pode contribuir para uma convivência melhor, entre esses: atender ao chamado, sentar e deitar, permanecer, andar com coleira e guia, ter hábitos higiênicos, permitir ser manipulado, esperar a vez para comer e permitir manipular sua comida, não pular nas pessoas e não ser estimulado para brincadeiras agressivas ou competitivas. Socialização pode ser definida como o ensino de regras sociais ao animal, a apresentação (preferencialmente ao filhote) de diversas situações às quais deverá se ambientar e sua adaptação a diferentes tipos de pessoas e de animais com os quais deverá conviver. O processo de socialização implica o convívio do filhote com a mãe e com os irmãos de ninhada e a estimulação do seu contato com todas as pessoas da casa, com visitantes e pessoas estranhas, com outros animais, com ruídos e ambientes diversos. Para uma socialização apropriada, algumas observações básicas precisam ser consideradas: a) necessidades críticas de socialização estão presentes a partir de três semanas de vida do animal; b) não tendo sido socializados até 14 semanas de idade, cão ou gato poderão tornar-se medrosos ou agressivos e, conseqüentemente, não confiáveis; c) nunca deve ser permitida a um cão a posição de liderança sobre qualquer pessoa, inclusive sobre crianças; d) as crianças também devem saber usar os comandos de obediência para o controle sobre o animal; e) com vistas a disciplinar o animal, elogiar quando manifesta o comportamento desejado e ignorar quando se comporta de modo impróprio é uma técnica eficaz; o comportamento indesejado deve sempre ser corrigido sem uso de violência; f) ao alcançar a maturidade sexual, pode haver incremento da agressividade, motivo pelo qual a socialização deve ser reforçada por essa ocasião e g) o proprietário deve “ganhar” em todas as situações de enfrentamento com o seu cão, principalmente quando se trata de um animal de temperamento dominante. Gostaria de fazer aqui uma síntese das conclusões a que se chegou em encontro realizado em São Paulo, no período de 02 a 04 de dezembro de 2003, para elaboração do “Programa de Prevenção de Mordeduras de Cães e Gatos para a Cidade de São Paulo”, numa iniciativa do Centro de Controle de Zoonoses daquela Cidade. As reuniões contaram com a participação de cerca de vinte e cinco pessoas, em sua maioria médicos veterinários, representantes de órgãos governamentais e privados da área de educação e de saúde, incluindo a OPAS, de instituições de ensino, de entidades de classe, do poder legislativo e de organizações não governamentais de proteção animal. Foram apresentadas algumas considerações fundamentais para o entendimento da questão da agressão animal: a) o comportamento agressivo faz parte naturalmente da conduta social de caninos e felinos; b) regras básicas de educação e de socialização ajudam a controlar a agressividade animal; c) maus-tratos e estresse prolongado aumentam a possibilidade de reações agressivas; d) a escolha do animal deve considerar as expectativas e os recursos da família. Constituem regras básicas para a prevenção de mordeduras: interagir de forma a não provocar e não exacerbar a agressividade do animal, respeitar seus limites físicos e emocionais evitando situações de estresse, realizar aproximação e manipulação adequadas. Para a prevenção de ataques e mordeduras de animais, os seguintes cuidados devem ser transmitidos, especialmente às crianças: a) antes de tocar um animal, pedir permissão ao seu proprietário; b) só entrar nos locais depois de ter a certeza de que o cão que o guarda está devidamente contido e c) NUNCA: brincar com um animal puxando ou sacudindo seu corpo, olhar fixamente nos olhos de um cão, mexer em animal através das grades ou quando solto na rua, correr ou gritar quando um cão chega perto, mexer com animal dormindo, comendo ou com filhotes, mexer em seus pertences. Diante do ataque de um cão, sugere-se: a) em pé, manter-se absolutamente imóvel e encobrindo cabeça, rosto e pescoço com mãos e braços; b) caído ao chão, manter-se absolutamente imóvel, em posição fetal, encobrindo pescoço e orelhas com as mãos; c) esperar o cão se afastar e sair devagar no sentido oposto. Foram feitas, durante o encontro, as seguintes propostas gerais: atualização e capacitação dos médicos veterinários para a avaliação do comportamento animal; criação e distribuição de material informativo e educativo para proprietários e segmentos do mercado pet; regulamentação das atividades de criação, comercialização e adestramento de animais. O grupo apontou como estratégias para a prevenção de mordeduras de cães e gatos: a) aquisição orientada; b) educação do animal para obediência básica; c) socialização adequada; d) atendimento às suas necessidades físicas e emocionais fundamentais; e) boa integração à família e boa compreensão dos seus sinais de comunicação; f) liderança humana. A prevenção de problemas de comportamento como a agressividade canina e felina fundamenta-se, portanto, numa inter-relação esclarecida, responsável e, preferencialmente, afetiva que o médico veterinário pode e deve reforçar.