91 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA ENTREVISTA COM JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA.1 Questões e tradução por Carla Milani Damião (Professora de Estética na FAFIL-UFG) Revisão da tradução por Miguel Gally (Professor de Estética na FAU-UNB). Revisão conceitual por Virgínia Figueiredo (Professora de Estética da UFMG)2 APRESENTAÇÃO Josef Früchtl é considerado parte da terceira geração da Escola de Frankfurt 3. É autor, além de muitos artigos publicados em jornais, revistas e periódicos, dos seguintes livros: Mimesis - Konstellation eines Zentralbegriffs bei Adorno (Königshausen & Neumann,1986) – (Mímesis – constelação de um conceito central em Adorno); Aesthetische Erfahrung und moralisches Urteil. Eine Rehabilitierung (Suhrkamp, 1996) – (Experiência estética e juízo moral. Uma reabilitação); Das unverschämte Ich. Eine Heldengeschichte der Moderne (O Eu impertinente. Uma história heroica da modernidade) 4. Seu livro mais recente é Vertrauen in die Welt: eine Philosophie des Films 5 (Confiança no Mundo. Uma Filosofia do filme). Atualmente, Früchtl é professor da Faculdade de Filosofia e Artes da Universidade de Amsterdã, na Holanda, após um período como professor da Universidade de Münster, na Alemanha. Foi presidente da Sociedade Alemã de Estética (Deutsche Gesellschaft für Ästhetik) e é co-editor da revista Zeitschrift für Ästhetik und Allgemeine Kunstwissenschaft. 1 Enviado para a revista paralaxe, publicação simultânea e integral com a revista de estética e semiótica. Publicação resumida na revista cult set.2013. Endereço: http://revistas.pucsp.br/index.php/paralaxe/index 2 Essa entrevista foi realizada em língua inglesa, ao longo de alguns meses envolvendo não apenas o entrevistado e a entrevistadora-tradutora, mas contou também com a gentileza e colaboração de Virginia Figueiredo, como revisora conceitual da primeira parte da entrevista, e de Miguel Gally, como revisor geral da tradução, cujos comentários e conversas contribuíram para enriquecer o resultado. Expresso a ambos nossa gratidão. 3 Josef Früchtl foi orientado inicialmente por Jürgen Habermas e Brigitte Scheer, da qual foi professor assistente na Universidade de Frankfurt. 4 Este livro foi publicado originalmente pela Editora Suhrkamp em 2004 e traduzido para o inglês pela Stanford University Press em 2009 sob o título The impertinent Self. An heroic history of modernity. Cf. comentários a este livro na Revista Inquietude (www.revistainquietude.org) 5 Vertrauen in die Welt : eine Philosophie des Films. München, Fink, 2013. Traduzido para o inglês Trust in the World. A Philosophy of Film. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 92 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA Essa entrevista é resultado de meu intercâmbio acadêmico e cultural com Josef Früchtl, desde sua vinda ao Brasil em 2011, e de minha visita a Universidade de Amsterdã no mesmo ano 6. Quanto ao gênero da entrevista, gostaria de citar Fábio Akcelrud Durão, que, ao se referir à entrevista que fez com Robert Hullot-Kentor, ressaltou dessa uma qualidade particular: “As entrevistas [deste livro] procuram recuperar algo do impulso irônico, não tanto na igualdade entre os participantes, quanto na insistência de que a forma da conversa não é avessa à profundidade, nem incompatível com a complexidade, nem impermeável a uma postura interrogativa crítica” 7. Tendo por referência um vasto repertório de teorias, com as quais dialoga em seus escritos, Früchtl respondeu com tenacidade e paciência às questões dessa entrevista que foi dividida em duas partes: 1. A primeira é dedicada ao posicionamento de diferentes perspectivas que confluem para formar um entendimento claro e sintético das correntes clássicas e atuais que constituem a Estética como um largo campo de interesse na Filosofia; 2. A segunda parte concentra a discussão sobre as relações entre Filosofia e Filme ou da área de interesse que se formou recentemente sob o nome de “Filosofia do filme” 8. Antes de apresentar a entrevista em suas duas divisões, entretanto, incluo aqui uma pergunta mais informal e provocadora a respeito deste segundo interesse – 6 Früchtl veio como professor visitante ao Brasil em agosto de 2011, a convite do Programa de PósGraduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia (FAFIL) da Universidade Federal de Goiás (UFG), com auxílio do CNPQ, ocasião na qual ministrou um conjunto de aulas e proferiu palestras na Universidade Federal Fluminense (UFF) e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No mesmo período, participou do evento de lançamento do primeiro volume das obras de juventude de Walter Benjamin. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921), - tradução de Susana Kampff Lages, Ernani Chaves e Willi Bolle, sob a coordenação de Jeanne Marie Gagnebin -, em mesa redonda com Detlev Schöttker, Jeanne Marie Gagnebin e Alberto Martins no Instituto Goethe em São Paulo, estendendo sua participação ao evento do Centro Cultural Maria Antonia da USP sobre a temática “Walter Benjamin e as Artes”, em agosto de 2011. 7 Fábio Akcelrud Durão. Entrevistas com Robert Hullot-Kentor. São Paulo, Nankin Editorial, 2012. 8 Em inglês Film philosophy. Optamos em nossa tradução por traduzir film por filme e não cinema, posto que a palavra cinema pode ser equívoca (originada do grego kinema, “movimento”, e de kinein, “mexer, movimentar”, tornou-se cinéma no francês, como abreviação de cinématographe, nome dado à invenção no final do século XIX pelos irmãos Lumière). Por um lado, a palavra cinema é frequentemente relacionada ao espaço, à sala de cinema, à sala de “imagens em movimento” (em inglês: moving pictures ou movies reúne os dois sentidos). Em português, nós vamos ao cinema para assistir o filme e não para assistir o cinema. A palavra em nossa língua, além da acepção de espaço e de originariamente significar a técnica utilizada para fixar a imagem em fotogramas para serem projetados em movimento e causar a ilusão do movimento real no processo de recepção das imagens, designa também a “indústria” relacionada aos filmes: a indústria do cinema ou indústria cinematográfica. O filme será entendido no sentido estrito de obra cinematográfica. É sobre o filme, portanto, que, em geral, reflete a filosofia. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 93 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA Filosofia e filme e sua respectiva resposta. Perguntei ao entrevistado se poderíamos filiar sua filosofia do filme à chamada “filosofia pop” ou se esta designação não lhe seria demasiadamente ambígua. A resposta não deixa dúvidas sobre o posicionamento deste autor frente ao assunto: O fato de eu me referir ao filme como o meio artístico mais popular do século XX não faz de mim um "filósofo pop". É preciso mais do que isso; acima de tudo, é preciso que você se apresente como tal em livros e artigos, de uma maneira que conhecemos muito bem como cultura pop. Falando metaforicamente, você deve se apresentar, como um teórico, no estilo "berrante", "colorido", "alegre", "suave", e talvez "barulhento", "gritante". Uma forma que autoriza mais o consumo do que o trabalho, o "trabalho do conceito", como dizia Hegel. Esta atitude foi preparada com sucesso pelo chamado pós-modernismo. Supondo que "pop" signifique ter uma imagem (pública), a filosofia pop quer entregar uma imagem que possa ser trazida para o mercado de consumidores, que está - isso continua a ser verdade – interessada também em filosofia. O filósofo “pop” mais conhecido do nosso tempo é Slavoj Zizek - o que não significa dizer que ele não seja inteligente. Pelo contrário. E isso não significa dizer que o que ele esteja fazendo seja nada mais do que consumismo intelectual. Como a cultura pop não é desprovida de ambiguidade, e nela existam alguns elementos de resistência, então é possível encontrar também tais elementos na filosofia pop. PARTE I – QUESTÕES GERAIS SOBRE ESTÉTICA 1. Minha primeira questão é sobre a distinção entre Estética e Filosofia da Arte. Existe uma diferença? Podemos entender que a Estética deva ser nomeada somente em relação a sua origem - século XVIII - e que no decorrer do século XIX, tornou-se Filosofia da Arte, de tal maneira que os temas iniciais foram postos de lado (tais como o gosto, juízo estético, conceitos notoriamente relacionados à chamada “estética da recepção”), e a arte em geral se tornou a fonte principal e tema das teorias? JF - Há certamente uma diferença vista a partir da perspectiva histórica que você menciona. A Estética surgiu como uma disciplina filosófica no século XVIII, explicitamente na Aesthetica (1750) de A.G. Baumgarten, concebida como uma ciência da cognição sensorial (scientia cognitionis sensitivae), ou, dentro da tradição britânica, e até Kant, como crítica do gosto ou do juízo de gosto. Foi com o Sistema do Idealismo Transcendental (1800) de Schelling que a arte tornou-se objeto privilegiado da Estética, REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 94 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA até mesmo da filosofia como tal. Estética tornou-se filosofia da arte. E esta tradição sobreviveu até Heidegger e Adorno (embora ele tenha reintroduzido a estética da natureza), e do outro lado do oceano até Danto. Mas há uma diferença sistemática também. Experiências estéticas (da natureza ou da vida cotidiana) e experiências de uma obra de arte possuem certamente características superpostas e comuns, mas sua ênfase é diferente. Simplificando: os aspectos da sensibilidade, do entendimento e da imaginação desempenham para mim um papel constitutivo em cada experiência estética, mas no caso de uma experiência com uma obra de arte, o entendimento desempenha um papel muito maior do que no caso de uma experiência estética da natureza. Essa diferença sistemática continua a existir quando tentamos caracterizar certas formas de arte. Por exemplo, respondendo à pergunta sobre como o filme difere do teatro, da pintura ou da literatura, mantemo-nos dentro da esfera de uma filosofia da arte. 2. Considerando ainda as raízes da Estética, como você qualifica as seguintes obras: A investigação sobre o belo e o sublime (1757) de Burke e o ensaio “Do padrão de gosto” (1757) de Hume. Seriam obras condenadas a um sentido restrito de Estética, ligadas apenas a uma resposta psicológica e moral à arte e à natureza, ou, elas preparariam o nascimento da Estética como um ramo distinto em Filosofia, cuja notoriedade teria se revelado apenas sob as teorias de Baumgarten e Kant? JF - Eu certamente não diria que a estética de Hume e a de Burke estão "condenadas a um sentido restrito da Estética". Elas são restritas apenas sob a perspectiva da filosofia transcendental kantiana e do idealismo alemão. Mas desde que estes dois últimos modelos de estética passaram a ser, por bons motivos, criticados ao longo de um período pós-nietzscheano, marxista ocidental e - numa espécie de mistura – pelas teorias pós-modernas, nós podemos muito bem olhar para trás e voltar a Hume e Burke. Suas abordagens empirista, sensualista, e até mesmo psicológica se tornam mais atraentes na era da neuro-ciência e na era de um conceito alargado de estética, remetendo ao antigo significado grego de aisthesis. Mas há outro ponto importante que pode ajudar a reavaliar a estética de Hume e de Burke. Na era da globalização, podemos observar o agravamento de um problema que é muito bem conhecido no mundo ocidental desde o Iluminismo (ou Esclarecimento), e que tem consequências diretas para o sistema REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 95 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA político democrático: o problema da subjetividade e da universalidade. A questão fundamental era e é, novamente, como é possível legitimar reivindicações universais (verdade, retidão, objetividade) com base na subjetividade. Com base, portanto, no direito de cada indivíduo de dizer sim ou não a todas as reivindicações. A filosofia do século XVIII, em geral, reagiu a isto sob a orientação do conceito de "crítica", especialmente sob a acepção de uma crítica do gosto e do juízo. Podemos afirmar, portanto, que há historicamente uma coincidência entre o surgimento da democracia no mundo ocidental e a crítica estética, o que nos autoriza a verdadeiramente falar, com Luc Ferry, da "invenção do gosto na era democrática". Os teóricos de formação do século XVIII, Hume, Burke e Kant, formularam esta conexão explicitamente. Eles sabiam que, para defender o intercurso da vida cotidiana moderna, é necessário praticar a influência sobre a razão e os sentimentos das pessoas. E eles sabiam que a esfera do chamado "gosto", portanto, desempenhava uma importante função, se não a mais importante. O acesso às teorias formativas do século XVIII parece ser anunciado hoje em dia por causa de razões político-sociais. As condições pré-democráticas do século XVIII (a respeito das quais devemos ter consciência das diferenças específicas entre os britânicos e os desenvolvimentos continentais) partilham com os "pós-democráticos" (Crouch, Rancière) do século XXI o problema mencionado entre subjetividade e universalidade. A erosão das pretensões universalistas e solidárias que tomam o lugar sob o signo de situações problemáticas individualizadas (economicamente chamadas de "neoliberalismo") deixam para trás um vazio sensível. Para isso os teóricos do século XVIII inventaram ou reinventaram o conceito de gosto, julgamento (estético) e senso comum (estético). Disputar sobre o gosto ou sobre experiências estéticas, portanto, significa tornar possível a comunitarização de um confronto. Os partidos que se opõem uns aos outros têm nomes diferentes: imagens contra conceitos, imaginação contra entendimento, sentimento contra razão, nonsense e contrassenso. Eles sempre possuem um significado antropológico e social: o animalesco contra o divino no homem, as classes mais baixas contra as superiores, o povo contra a aristocracia e a monarquia. É o recurso caracterizador do domínio da estética que obtém sua energia da interação de uma oposição. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 96 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA 3. Você concorda com os autores que afirmam ser a hipótese de um senso comum estético uma estrutura frágil à definição kantiana da universalidade parcial – ou pretensão de universalidade - de gosto? A resposta kantiana constitui realmente uma solução para o problema do juízo universal com base em um juízo subjetivo? JF - Argumentar sobre a universalidade de um juízo, em princípio, tornou-se difícil nos chamados tempos pós-metafísicos. Para mim, Kant ainda dá uma explicação geral convincente ao fato de que os juízos estéticos ou- como preferimos dizer hoje em dia experiências, por um lado, reivindiquem uma validade intersubjetiva (até mesmo universal), embora sejam, por outro lado, obviamente, baseadas em experiências subjetivas. A explicação de Kant, ao menos, aponta para a direção correta. Isso significa que nós temos que explicar a situação (ou status) discursiva/o de uma experiência estética como certo jogo (inter-play) entre nossas dimensões de argumentação e de experiência. Assim, em algum momento poder-se-ia argumentar que nossa dimensão estética compartilha com outras dimensões - as da ciência, ética, política, a da prática diária (o senso comum prático) e assim por diante - certos aspectos, talvez todos os aspectos (essa é maneira de Dewey seguir a direção de Kant), mas coloca-se então uma ênfase bem diferente em um aspecto ou em certos aspectos. Por exemplo, alguém pode argumentar que, na dimensão científica e moral, estamos principalmente interessados na obtenção de um resultado, quer seja uma fórmula teórica ou um princípio prático; ao passo que na dimensão estética o que nos interessa é o caminho que conduz a um resultado. Esteticamente, então, o caminho como tal é a meta. Não há uma diferença categórica entre as nossas dimensões da argumentação e da experiência, apenas uma diferença gradual entre elas. Quanto à questão de um senso comum estético, gostaria de repetir o que já disse acima. Este tipo de senso comum parece ser necessário para a realização de uma comunidade, que é baseada em contradições. Assim, algumas pessoas, como Terry Eagleton, denominam-na uma ideologia tipicamente burguesa. Mas acho que há muito mais a dizer do que acenar com um gesto tão marxista. A sociedade moderna (ou mesmo "pós-moderna"), altamente diferenciada por permitir a oposição de perspectivas, deve preocupar-se com o elemento - ou com os elementos que congrega a sociedade. Regras abstratas ou constituições não são certamente suficientes para isso. Mas o modo como falamos e discutimos sobre questões estéticas "O novo filme de Clint Eastwood é bom, tão simples e dramático como Million Dollar Baby (A garota de ouro)?"; "Há uma maneira melhor de expressar o clima de uma REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 97 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA cidade moderna em si conflitante do que pela música jazz?”; "O Barcelona (como a gente diz no cotidiano) não está jogando futebol como um exemplo profano da metafísica: tanto fascinante quanto assustador em sua perfeição?"; “A combinação de uma minissaia com um coturno não é um forte sinal dos jovens da década de 1980? "podem oferecer um modelo para uma instigante, tensionada e provocante relação entre individualidade e universalidade. 4. É possível libertar o campo da estética daquele da ética, considerando-se a maioria das teorias estéticas tradicionais? Kant, baseado na ideia de desinteresse - um conceito herdado de Shaftesbury e outros - procurou separar as esferas da experiência – teórica prática e estética -, mas, como muitos intérpretes dizem, ele acabou por tornar a experiência estética um ensaio de experiência ética. O que você diria sobre essas considerações e como podemos entender o compromisso entre os dois campos? JF - No meu livro sobre a experiência estética e juízo moral, publicado em alemão em 1996 (Aesthetische Erfahrung und moralisches Urteil. Eine Rehabilitierung), tentei desenvolver uma perspectiva diferenciada sobre a relação entre estética e ética. A primeira coisa que deve ficar clara sobre o assunto - e isso é algo que eu não esclareci o suficiente em meu livro - é que precisamos de um critério para essa perspectiva diferenciada. Ele oferece um excelente recurso de distinção, e o critério é simplesmente a "modernidade", ou mais precisamente: "autolegitimação". Seguindo Hegel e Habermas, podemos dizer que uma época, uma cultura, uma sociedade e seus subsistemas são modernos, desde que sejam legitimados e fundados por eles mesmos. Podemos redescrever esse critério também como o de "autonomia". Isso significa que a autolegitimação deixa sua marca em todas as formas de racionalidade e subsistemas sociais. Todos eles se referem principalmente a si mesmos, e sua influência ou efeito sobre os outros só pode ser indireta. Kant na verdade foi o primeiro que deu expressão a esta estrutura da modernidade em um sentido filosófico, marcando a diferença entre as formas de racionalidade cognitiva, moral e estética. Por isso a estética tem que ser vista para além da nossa maneira lógico-cognitivo, moral, sensualista e pragmática de pensar. Caso contrário, não seríamos capazes de dizer qual é afinal a característica específica da estética. Em uma segunda etapa, temos que ser conscientes de que existem superposições, analogias e efeitos indiretos. Então, justamente Kant pode afirmar que a REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 98 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA beleza é um "símbolo" do moralmente bom. Temos vários exemplos de perspectivas diferenciadas sobre a relação entre estética e ética. Há, em primeiro lugar, o modelo da complementaridade. Ética e estética possuem validade, cada qual de sua própria maneira. Mas há uma diferenciação interna, porque dentro dessa relação de complementaridade, a estética pode ser avaliada como mais forte, ou a ética como mais forte; ou, ainda, ambas podem ser avaliadas com pesos iguais. Não temos exemplos claros dentro da filosofia que sejam condizentes com a primeira opção, isto é, que confiram primazia à estética; talvez o Schelling de 1800. Temos exemplos muito claros para a segunda opção, isto é, para a primazia da ética sobre a estética, por exemplo, em Hegel e Habermas. E temos exemplos claros para a terceira opção, nos quais estética e ética possuem peso igual, como em Adorno e Heidegger. Existe um segundo grande modelo. Podemos chamá-lo modelo da agonia e incomensurabilidade. A esfera estética, neste contexto, é também individual, diferente das outras esferas. Esta diferença é tão forte que reunir as esferas em uma influência mútua é ou só é possível de forma altamente indireta, como é em Kant, ou totalmente impossível, como ocorre em algumas das chamadas teorias pós-modernistas. Estética e ética aqui ficam lado a lado, de maneira tão incomparável, tão incomensurável como as teorias científicas de paradigmas diferentes, seguindo Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. Ética e estética estão aqui em dois lados de uma disputa que não possui nenhuma regra de julgamento e que, portanto, segundo Jean-François Lyotard, devem ser reconhecidas como "conflitantes" (différend). Em nossos tempos um terceiro grande modelo foi desenvolvido em nome, mais uma vez, da "pós-modernidade". É o modelo da de-diferenciação (dedifferentiation), representado em Jacques Derrida e Richard Rorty. De acordo com este modelo, não há diferença (real) entre estética e ética. Em sua variante deconstrutivista e neopragmatista, a pós-modernidade se mostra justamente enquanto o que não quer ser: um antimodernismo. Isto é assim porque se rejeita o significado intrínseco da individualidade das esferas opostas. Assim, para a mim, apenas o primeiro e segundo modelo acima mencionados estão adequados às condições da modernidade. 5. Atualizando a oposição entre Estética e Filosofia Analítica, podemos falar de uma tradição que une as áreas hoje em dia? Será que os filósofos analíticos encamparam efetivamente a Estética após Wittgenstein nomeá-la como um dos temas inomináveis? REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 99 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA JF - Nós recebemos uma série de contribuições úteis para a estética provindas do campo da filosofia da linguagem/analítica. Monroe C. Beardsley e Frank N. Sibley podem ser vistos como um começo nos últimos anos de 1950, mas já na década de 1960 George Dickie e acima de tudo, Nelson Goodman e Arthur C. Danto oferecem esclarecimentos sobre o conceito de estética, a definição da arte, o problema da ontologia da arte, o conceito de representação e sobre outros aspectos da Estética. No que respeita à definição de arte, por exemplo, o anti-essencialismo de Wittgenstein – o Wittgenstein tardio, é claro - serve como ponto de partida. Com efeito, não faz sentido falar da "essência" da arte ou de como descobrir "condições necessárias e suficientes" da arte. Dickie, neste contexto, desenvolveu uma teoria das instituições. Há, portanto, interessantes sugestões teóricas para estética com base na análise conceitual. Mas, certamente, a filosofia da linguagem/ analítica da arte em geral não está interessada nas principais questões da estética europeia-continental clássica, ou seja, se - e em caso afirmativo, em que medida - beleza e, especialmente, a arte é um símbolo de uma vida moralmente boa (Kant), ou uma expressão de liberdade que conduz a um "Estado estético" (Schiller), ou o espelho necessário da filosofia e da subjetividade (Schelling), ou uma aparência do Absoluto (Hegel), o que significa: uma aparência (representação) da auto-compreensão coletiva de um povo, ou uma forma inconsciente de metafísica (Schopenhauer), ou a única legitimação da existência (Nietzsche), ou a abertura de uma nova forma de Ser (Heidegger), ou a melhor maneira de praticar a crítica social na era da uma ideologia totalitária (Adorno). A filosofia analítica da arte, portanto, em minha opinião, perde o melhor da estética. 6. Em sua visita a São Paulo, na participação de mesa redonda no evento no Instituto Goethe, você fez uma associação entre Walter Benjamin e John Dewey. Com base nesta exposição, pergunto como poderia o conceito de experiência benjaminiano ser relacionado à estética pragmática de "A arte como experiência" de John Dewey (1934)? Sendo o interesse do pragmatismo, criar uma continuidade entre arte e ciência, por meio de seus laços ou habilidades comuns como o simbolismo, a criatividade, a capacidade de formar uma expressão inteira, isto é, o que se busca, dito de maneira geral, é uma espécie de melhoria do conhecimento científico através da experiência estética, é possível afirmar tal associação em Benjamin? Ou seria melhor manter sua teoria mais REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 100 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA próxima da noção kantiana do juízo estético em um sentido amplo, na qualidade de uma percepção que é também uma forma social e cultural de recepção na história, particularmente considerada nas circunstâncias da modernidade, que incluem o tema da tecnologia como a transformação mais importante na recepção arte? JF - Você seguramente tem razão, que há um contraste entre Benjamin e Dewey em relação ao conceito de experiência (estética). Ao menos, se pensarmos que o Benjamin “tardio” - como uma espécie de teórico marxista contra um pano de fundo judaicoteológico - estava preponderantemente interessado no elemento "chocante" da experiência que explode ao abrir nossa experiência cotidiana – e que é justamente a forma de experiência que interessa a Dewey, como um pragmático. Porém o conceito inicial de Benjamin – ou dizendo melhor no plural: conceitos - é muito mais kantiano e, novamente, teológico. Ele é também influenciado pela Lebensphilosophie (filosofia de vida), embora de uma forma menos clara. Por outro lado, o conceito de Dewey da "arte como experiência" foi desenvolvido na linha da biologia darwiniana, evitando assim o direito à especulação metafísica desde o início. A biologia oferece a base para todos os tipos de experiência, para a experiência intelectual, moral ou estética. Todos esses tipos de experiência compartilham os elementos essenciais da experiência, mas há uma diferença entre elas. Isto permite uma perspectiva da unidade e da diferença. Finalmente Dewey está também interessado em demonstrar que "a imaginação (estética) é o principal instrumento do bem", e que é por meio da imaginação (estética) que aprendemos a ver do outro, aprendemos a sentir no lugar do outro, e que as obras de arte, portanto, são meios de avanço da civilização – se por civilização se entende que os seres humanos não são divididos em seitas não-comunicantes, raças, nações, classes e grupos. Assim, além da primeira vista, há encontros frutíferos entre o pragmatismo de Dewey e uma certa Teoria Crítica em Benjamin. PARTE II – FILOSOFIA DO FILME 1. CMD - Thomas Elsaesser 9 vê o interesse em filmes no mundo acadêmico como sintoma da crise da chamada ciências humanas, e que devemos fazer uma distinção 9 Cf. Thomas Elsaesser, 'Etat de la recherche et place du cinema', in Hors Cadre (Paris) nº 10, 1992. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 101 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA entre teoria do filme (teoria do cinema) e filosofia do filme. Você poderia explorar esta distinção especificando o que considera ser uma filosofia do filme? JF - A teoria do cinema e a filosofia do filme têm muito em comum, mas permanecem diferentes. Historicamente, a teoria do filme vem em primeiro lugar e tem o seu primeiro auge na década de 1920, com teóricos como Béla Balázs, Dziga Vertov, Rudolf Arnheim, e, claro, Sergej M. Eisenstein. Ela se tornou institucionalizada somente após a Segunda Guerra Mundial; e sua carreira acadêmica começou na década de 1970. No início, essas teorias estavam lidando, sobretudo, com a questão de saber se o filme era ou não uma (forma de) arte. Eles desenvolveram teorias sobre a atuação no cinema, sobre a linguagem cinematográfica (movimentos de câmera, enquadramentos) e teorias de montagem. A atenção dessas teorias voltava-se para os temas estéticos mais gerais, relativos ao formalismo e ao realismo. A filosofia do filme, diferentemente, aproxima-se do filme com base em perspectivas filosóficas específicas. Podemos ver claramente que existe a questão de saber se o filme é (uma forma de) arte. A razão disto é que nós não podemos responder a essa pergunta sem um conceito normativo de arte, e assim, finalmente, sem concebermos uma filosofia da arte. Mas as perspectivas filosóficas típicas surgem quando fazemos perguntas tais como: “O que é o Eu? ‘, ' eu realmente existo? '' como posso conhecer o outro? ‘, ' como é que é possível entender o outro? ', 'o que é espaço, movimento e tempo? '. Estas questões são ontológicas e epistemológicas, às quais devemos adicionar, sem sombra de dúvida, questões da filosofia moral. E, finalmente, ao menos dentro de uma certa tradição, questões da crítica social. Como sabemos, não há muitos filósofos que de forma produtiva e genuína tenham realmente refletido sobre filme ou cinema: Walter Benjamin (que deve aqui ser considerado um filósofo), Theodor W. Adorno (que era majoritariamente crítico do cinema), Siegfried Kracauer (que foi mais um crítico do que filósofo) e, posteriormente, Gilles Deleuze e Stanley Cavell. Hoje em dia podemos adicionar pessoas como Jacques Rancière, Jean-Luc Nancy, Slavoj Zizek e do campo da Filosofia Analítica, Noel Carroll. Assim, o filme finalmente tornou-se um objeto com dignidade filosófica! A Filosofia do filme em geral está interessada no filme como um meio tecnológico e estético que está lidando com questões filosóficas de uma maneira específica, o que REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 102 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA significa: de um modo que apenas o filme pode oferecer, diferentemente de outras mídias (como a literatura, o teatro e a pintura). Problemas ontológicos e epistemológicos parecem ser centrais aqui, o que significa dizer que o modo como o filme nos convida ou nos compele a repensar nossa compreensão do "ser", do "mundo", do "tempo", do "movimento", da "identidade do Eu" e da "realidade". Isto é, ao menos, o que eu aprendi, entre outras coisas, com Deleuze e Cavell. 2. Como podemos inserir sua perspectiva na amplitude desse debate que inclui a teoria do cinema de Gilles Deleuze e a de Stanley Cavell? JF - Meu livro sobre a história heroica da modernidade 10 refere-se ao medium do filme em um duplo sentido: como uma área na qual podemos estudar a história da subjetividade moderna, e como um conjunto de gêneros que são interessantes para esta história de uma maneira diferente. Eu escolhi os gêneros do western, do thriller e o filme de ficção científica. Mas eu poderia ter escolhido um gênero como o melodrama ou comédia ou história de amor e outros também. Todos eles elucidam as camadas - de acordo com os três gêneros que incidem em três camadas – que representam a constituição da modernidade e do Eu, camadas que eu chamo de "clássica", "agonal", e "híbrida". O que chamamos de "modernidade" ou "Eu" é uma sobreposição destas camadas, e em toda a história dos últimos duzentos anos podemos observar que, em certos períodos, uma dessas camadas é dominante. Em meu novo livro eu não estou interessado em certos gêneros cinematográficos, mas no filme enquanto um medium como tal. Poderia também dizer que estou interessado em questões ontológicas e epistemológicas sobre cinema. O ponto de partida é a tese de Deleuze de que o cinema moderno (para ele o cinema que surge com o neorrealismo italiano na década de 1950, o filme noir francês em 1960, e o "filme de autor” – Autorenfilm- alemão da década de 1970) é capaz de "restaurar nossa fé/crença no mundo". Nossa fé no mundo foi destruída na longa história de raciocínio ocidental, pela doutrina de Platão sobre as ideias, pela religião cristã, pela divisão de Descartes entre o Ego-cogito e o resto (o mundo) e, finalmente, além deste raciocínio, pela queda da civilização, executada pela 10 Das unverschämte Ich. Eine Heldengeschichte der Moderne (O Eu impertinente. Uma história heroica da modernidade.) REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 103 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA política dos totalitarismos no início do século 20. Acho que Deleuze está certo em seu protesto. Mas ao mesmo tempo, estou convencido, primeiramente, que ele está certo só em um sentido histórico específico e, em matéria de estética, apenas em um sentido geral, pois ele não nos fornece razões suficientes. Para mim, o filme é realmente capaz de restaurar nossa crença, ou como prefiro dizer: nossa confiança no mundo. Mas o filme partilha essa realização com a arte em geral. Se há algo específico no filme, não é que ele seja capaz de restaurar nossa confiança no mundo, mas na modernidade. Para mim, o filme é o meio (medium) mais adequado para o Eu moderno. Para fornecer razões para esta afirmação historicamente específica e esteticamente universalizada: o filme é um meio da autorreflexão moderna e, como arte, enquanto tal, de uma afirmação ontológica - não requer a restauração da metafísica de Spinoza através de Nietzsche (o do "eterno retorno"), até Bergson, como Deleuze, de fato, faz. É perfeitamente suficiente combinar a Crítica da faculdade do juízo de Kant com o pragmatismo filosófico na linha de Dewey, do segundo Wittgenstein, e Cavell. Isto é o que eu faço no meu novo livro. 3. CMD - Em seu novo livro, Confiança no Mundo. Uma Filosofia do filme (Trust in the World. A Philosophy of Film) – você revê criticamente as principais filosofias do cinema, com um foco maior de interesse na teoria de Deleuze, a quem você também critica severamente. As ideias de Deleuze, entretanto, foram importantes para iniciar a discussão sobre o tema que relaciona ontologia e confiança. Você poderia explicar essa ambiguidade: em primeiro lugar, qual é o conteúdo de sua crítica a Deleuze e, em segundo lugar, qual é o tema que você compartilha com esse autor? JF - Eu posso responder sua pergunta resumidamente em uma frase: eu acredito que Deleuze está certo ao afirmar que o cinema moderno - o cinema que surgiu após a Segunda Guerra Mundial, com neorrealismo italiano, com a Nouvelle Vague francesa, e com o filme alemão de diretor - tem o poder "de restaurar a nossa crença no mundo"; mas, ao mesmo tempo, eu acredito que Deleuze não forneceu uma fundamentação adequada para sua pretensão teórica. Ele se refere principalmente a três filósofos: Spinoza, Nietzsche e Bergson. Para ele, realmente, esses filósofos formam a "santíssima trindade". Spinoza nos oferece a teoria de que o Ser é sem transcendência (externa) e não possui classificações (internas), portanto, não tendo hierarquias. Ele possui apenas formas de REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 104 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA expressão do Uno, da substância que tudo abrange. Esta substância não pode ser uma coisa, ela só pode ser temporal. "Temporal" aqui, contudo, não significa "linear" e "infinito", em vez disso, significa aquilo que Bergson chama durée. Essa ideia de tempo faz com que seja possível pensar o passado como algo que se atualiza a cada momento. O tempo existe, assim, "virtualmente". Combinando essa ideia com a doutrina especulativa de Nietzsche do "eterno retorno", Deleuze é capaz de prolongar a existência virtual para a dimensão do futuro e alterar a ideia de eterno retorno do mesmo para a de eterno retorno do diferente. O Ser, portanto, tem de ser afirmado como algo que é eternamente vir a ser. Este é o tipo de teoria, característico à metafísica clássica e a um pensamento altamente especulativo, que Deleuze precisa fundamentar em sua pretensão teórica sobre o cinema (moderno). Eu, ao contrário, acredito que podemos argumentar sobre tal alegação de uma maneira muito mais fácil, ou seja, referindo-se por um lado à teoria de Kant dos juízos ou experiências estéticas e, por outro lado, a questões centrais do pragmatismo filosófico, àquelas que se tornaram proeminentes na formulação de filósofos como John Dewey e o último Ludwig Wittgenstein. No contexto da teoria do filme, Stanley Cavell é o melhor representante dessa tradição. Por isto, ele desempenha um papel importante no meu novo livro também. 4. CMD - Walter Benjamin escreveu um único ensaio sobre a relação entre cinema, arte e estética (A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica), e embora esta não seja absolutamente uma obra tão extensa como a de Deleuze, a teoria de Benjamin parece ser uma indicação mais afirmativa na sua compreensão crítica dos autores, ou seja, aqueles que, no contexto da filosofia, dedicaram alguma atenção a filmes. Podemos entender que isto se deve ao fato da teoria de Benjamin fornecer uma maior ênfase ao contexto social e político e por ser esta também baseada em uma teoria da modernidade e nas transformações perceptivas que ocorreram neste contexto? JF - Você tem razão. Benjamin é importante para mim porque ele ainda permite fazer uma ligação entre filme e modernidade. Deleuze muda da teoria social para ontologia, da filosofia da história para a filosofia da natureza e da vida. É, a meu ver, uma mudança causada pelas frustrações da esquerda política durante a década de 1960, REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 105 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA semelhante ao que podemos observar na filosofia alemã após a Revolução Francesa. Assim, em Deleuze, "o espectador" torna-se importante como um sujeito epistêmico oscilando entre misticismo e estética. Para mim, ele permanece, portanto, fortemente dentro da tradição romântica ou, mais exatamente, dentro de uma tradição muito duvidosa do Romantismo. Em contraste, os conceitos românticos efetivos no contexto da filosofia da arte são negados por Benjamin em função de uma enérgica politização da percepção. Este tipo de percepção é posto em exercício por meio da experiência moderna da grande cidade, tal como foi descrito sociologicamente, em primeiro lugar, por Georg Simmel. E o filme, segundo a conhecida afirmação de Benjamin, é o meio artístico e popular mais adequado para essa experiência da modernidade. Neste contexto podemos também reinterpretar o conceito de "valor de exposição". Existe um direito e uma necessidade de cada indivíduo na sociedade moderna em ser exibido. Isso porque a igualdade universal exige uma diferenciação visual [exposta]. Neste sentido, é útil referirmo-nos ao conceito de Michel Foucault (se é que é de fato um conceito) do dispositivo (apparatus), porque também ajuda a mostrar a ambivalência da visualização social. Ao final, pode-se dizer, sem dúvida alguma, em um tom polêmico, que a filosofia do cinema de Deleuze, estilizando-se como um ato revolucionário, na verdade reestabelece o "valor de culto" na arte, ao passo que Benjamin está interessado no poder da arte e do cinema de "exibirse" em um sentido democrático-igualitário. 5. CMD - Em seu livro anterior - O Eu impertinente - você escolheu os gêneros do Western, dos filmes de gângsteres e de ficção científica, considerando-os como matrizes de outros subgêneros, tais como o filme de suspense, o melodrama, histórias de detetive, etc. Embora esses gêneros de filme sejam desenvolvidos no contexto da cultura norteamericana, é possível associá-los a outras culturas? Devemos considerar que eles são frutos únicos da imaginação norte-americana, um imaginário que se constitui como imposição ao resto do mundo dada a característica “industrial” e altamente competitiva de Hollywood, restando a outras culturas, a tarefa de apenas imitá-los, porém com um orçamento infinitamente menor e sem o mesmo poder de distribuição? Ou devemos reconhecer que a influência cultural desses filmes, - para o bem ou para o mal -, formam a cultura global, aceitando esses gêneros como a maior representação cultural do século passado e do atual? Poderíamos certamente supor que, provavelmente, existam trocas e REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 106 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA contribuições culturais neste campo, minimizando o papel ideológico dos filmes, considerando casos que, ocasionalmente, podem levar a uma autocrítica de seu próprio modo de produção (Sunset Boulevard – O crepúsculo dos deuses - é um exemplo clássico, entre muitos outros). Que exemplos você poderia pensar que poderiam ser citados como espécie de intercâmbios culturais entre a todo-poderosa indústria cinematográfica norte-americana e outros países; exemplos que poderiam mostrar mais criatividade e não somente cópias culturais camaleônicas como resultados? JF – De fato, falando de maneira simples, eu tomo meus exemplos do cinema de Hollywood. Mas esta foi uma decisão bem refletida. Contra a minha própria base teórica - o “background” da Teoria Crítica desenvolvida pela Escola de Frankfurt - tive que lidar com a situação um tanto esquizofrênica, daquilo que aprendi de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, isto é, de que o filme é a área central da assim chamada "indústria cultural", que produz objetos culturais da mesma maneira que produz outros objetos, ou seja, de uma forma padronizada e com o único objetivo de ser lucrativa. O livro em que os dois autores apresentam sua tese, pela primeira vez, Dialética do Esclarecimento, tem um capítulo a respeito com o subtítulo: "O Esclarecimento como engano da massa" [No Brasil: o capítulo é intitulado “Indústria cultural: O Esclarecimento como mistificação das massas”]. A indústria cultural, assim reza a história, tem a pretensão de oferecer esclarecimento para as massas, mas na verdade é um grande engano. Por outro lado, eu sempre senti que há algo de errado com essa tese. Pode-se facilmente assistir filmes de faroeste e filmes de gângsteres da década de 1940 (quando Horkheimer e Adorno estavam escrevendo seu livro no exílio californiano) e da década de 1950 (que mais tarde puderam ser vistos na Alemanha Ocidental - e eu vi todos eles), como parte da ideologia norte-americana espalhando mensagens do individualismo capitalista, do rígido protestantismo e do forte comunitarismo. No entanto, há algo mais sobre eles. Isto tem a ver com múltiplas camadas estéticas que geralmente - não estão presentes nestas películas da mesma maneira como estão presentes em obras de arte típicas. Os filmes, porém, não substituem essas camadas estéticas sem falta de ambiguidade. Eles não têm mensagens "simples", mas mensagens escondidas - mensagens que eles [tais filmes] não podem evitar. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 107 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA Por exemplo, o envio da mensagem para a nova geração da década de 1950, para que eles se mantivessem longe "dos selvagens", das “gangues de rock” e das festas da Dolce Vita, era preciso mostrar tais gangues e festas visualmente. Assim, eles tiveram que expor o que era visto como moralmente negativo, juntamente com o que era visto como positivo. Adorno, aliás, oferece uma análise muito mais sutil em alguns de seus ensaios da década de 1960. Nestes, ele admite que, mesmo em um filme popular, há em funcionamento "uma ideologia heterodoxa” ou, se você preferir, “não oficial". Então, esta foi uma das razões para escrever o livro O Eu impertinente, no qual quis elaborar em detalhe a situação ambivalente de filmes como um produto da indústria cultural. Ao fazer isso, eu considero-o como um livro da tradição da Escola de Frankfurt. Agora, quanto a outra parte de sua pergunta - se esses filmes são produtos exclusivos da imaginação norte-americana ou se eles podem ser ligados à auto-compreensão imaginativa de outras culturas -, é certamente um fato histórico-cultural que esta ligação tenha ocorrido. Como eu já mencionei, o cinema da Alemanha Ocidental do período pós-Segunda Guerra Mundial foi profundamente influenciado pelo cinema de Hollywood. E isso, mais ou menos, parece ser verdadeiro para o resto da Europa Ocidental também. Mas eu não entenderia isso como um simples ato imperialista de hegemonia cultural. Como mencionei acima, a mensagem dos produtos culturais não é simplesmente simplória. Assim, os destinatários têm a possibilidade e a oportunidade de dar a estes produtos uma interpretação própria, culturalmente determinada, e reagir produtivamente por conta própria. Esta é uma das lições que podemos aprender também com a área de estudos culturais das últimas décadas. Como Stuart Hall uma vez apontou, podemos ou nos submeter a uma interpretação oferecida por um produto cultural, ou nos opormos completamente a ele, ou ainda sintetizá-lo com nossas próprias interpretações. E a última opção é possível porque o produto propriamente dito não é isento de ambiguidades. Existem inúmeros exemplos de reinterpretações culturalmente determinadas da cultura norte-americana. Quanto ao gênero western, o exemplo mais famoso é o chamado "western spaghetti", a versão italiana de um gênero originalmente norte-americano. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 108 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA Além do cinema há o jazz e a música pop que tem de ser considerada como outra grande área onde as fusões produtivas e variações ocorrem o tempo todo. Assim, a indústria cultural norte-americana é poderosa, mas não todo-poderosa. Ela não pode se tornar todo-poderosa, porque nunca poderá controlar as interpretações. 6. CMD - Considerando O Eu impertinente, você poderia sintetizar as seguintes associações: 1. Hegel e o western, 2. Romantismo alemão e o filme de gângster, 3. Nietzsche, Deleuze e o gênero da ficção científica? JF – Ambos, Hegel e o western, demonstram o princípio da modernidade, ou seja, o Eu (subjetividade) em sua dimensão de autojustificação. O Eu é o herói moderno, que é constitutivo para o que existe: o mundo como um entrelaçamento do subjetivo, do objetivo e das relações intersubjetivas. Na filosofia de Hegel e nos filmes de western, o Eu (masculino) é o poder que tudo justifica constituindo as leis da natureza e da sociedade, o princípio da moralidade e os padrões de gosto. O romantismo alemão e o filme de gângster reforçam um elemento que já está presente no idealismo alemão e nos filmes de faroeste, ou seja, o elemento da auto-contradição. Ele agora aparece como agonia, como conflito interior, como ruptura e a nunca alcançada reconciliação. Em vez da ideia e método de Hegel de uma Aufhebung - que significa "negação", "conservação", e finalmente "superação" de uma antiga e criticada posição – o Romantismo salienta tanto o conflito trágico quanto a peça irônica, e no domínio do filme esses elementos são cruciais para os filmes de gângsteres, nos quais os heróis - e heroínas também se tornam figuras precárias e altamente ambivalentes, travando batalhas contra si mesmos. Nietzsche, Deleuze e gênero da ficção científica, por último, dão um pequeno passo, contudo decisivo, para além da alternativa da tragédia e da ironia. Eles oferecem um jogo criativo e às vezes um jogo de combinações selvagens com os elementos do Eu e da Modernidade. Ele é "híbrido", em ambos os sentidos da palavra: mostram tanto o "orgulho" quanto o "abastardamento". E a figura ficcional representativa disso é o cyborg. Ele é "mais humano do que humano”, uma espécie de "Übermensch" (superhomem e além-do-homem), exatamente porque ele / ela / a coisa é capaz de jogar o jogo REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 109 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA “cool” da afirmação ontológica, de reconhecer o Ser como tal (o que não quer dizer reconhecer as formas empírica e política do Ser). 7. CMD - A última pergunta está relacionada novamente ao filósofo Walter Benjamin, para quem o cinema é uma espécie de grande escola no contexto da modernidade ao ensinar à massa um novo tipo de percepção diante da técnica como uma segunda natureza. Isto não deve ser visto apenas como um tipo de “treinamento” social, pois, através do riso, o filme grotesco é capaz de causar um efeito catártico ou uma sensação inconsciente, de libertação do homem frente ao domínio da técnica. Sabemos, no entanto, que filmes como Tempos Modernos e O Grande Ditador, ambos de Chaplin, não são facilmente repetidos, e que o gênero grotesco se revela pouco capaz de cumprir a tarefa catártica desejada. Podemos concluir que os pensamentos de Benjamin sobre a experiência coletiva do cinema, mediada pela tela grande do cinema, pela técnica e seus mecanismos inconscientes, seriam capazes de diminuir o processo de individualização e isolamento do homem moderno, de tal forma que possa nos levar a pensar na vida como uma existência ou experiência plena? Podemos pensar nesta perspectiva em relação ao tema da confiança em seu novo livro? JF - Quando falamos em confiança, Benjamin não parece ser uma boa referência. Basta pensar em sua famosa declaração polêmica próxima ao final de seu ensaio sobre o Surrealismo, no qual ele discute a oposição entre um mero otimismo socialdemocrata em andamento, de um lado, e o tratamento pessimista do surrealismo por outro. Benjamin se coloca claramente do lado do surrealismo e, portanto, ao lado do pessimismo, e isso significa "acima de toda desconfiança, a desconfiança e a desconfiança em cada entendimento / acordo / comunicação / compromisso" (a palavra alemã para tudo isso é "Verständigung"). Como eu já mencionei acima, Benjamin parece ser muito mais interessante se desejamos apoiar a ideia de que o filme é capaz de restaurar nossa crença no mundo moderno, nossa confiança na Modernidade. Mas repito: esse tipo de confiança não é moral e política, é sim uma confiança ontológica e existencial, uma confiança baseada na hipótese de que há algo que me reúne aos outros, o mundo como uma totalidade de relações. O cinema, em alguma medida, está reagindo à crítica fundamental do ceticismo. E é por isso que, mais uma vez, Stanley Cavell, também, torna-se importante para mim, porque foi ele quem REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013. 110 ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA primeiro e, enfaticamente, relacionou o cinema ao problema do ceticismo. Diferentemente dele, eu estou ressaltando que, em primeiro lugar, a capacidade de realização do filme não é única, porque o filme compartilha algo com a arte enquanto tal. O que é de fato único é que o filme intensifica essa realização. Em segundo lugar, sublinho que o restabelecimento da nossa confiança no mundo (moderno) não quer certamente dizer que poderíamos estar em um estado de certeza absoluta. Ao contrário, a confiança é exatamente necessária quando não temos conhecimento seguro. É uma dimensão fundamental, não só por atuar em cooperação com os outros, mas em cada ação, porque nós nunca saberemos se vamos realmente realizar o que queremos que se realize. A confiança, portanto, é tão fundamental quanto precária. E aqui o papel ou a função da arte, ou, mais genericamente, da experiência estética se torna importante. Isto porque, a meu ver, a experiência estética é uma experiência evidente da existência, uma experiência de evidência da ligação entre (as coisas, criaturas, e os eventos) o mundo e o Eu. A interação entre percepção, imaginação e interpretações ou, em termos kantianos, entre a sensibilidade, imaginação e entendimento, leva à evidência da situação de ficção - portanto, uma ficção, mas baseada em evidências - de uma interação lúdica [interplay] entre o sujeito da experiência e o mundo. Assim, a prática da experiência estética reforça uma afirmação existencial ou ontológica enquanto, ao mesmo tempo, expõe essa experiência como ficção. A confiança no mundo é, portanto, não mais do que isso, mas também não menos do que uma atitude do tipo como-se (als ob). As experiências estéticas nos encorajam a nos comportarmos como se fôssemos capazes de confiar no mundo. À luz da ampla aniquilação da confiança no mundo ocidental - desde a doutrina cristã dos dois mundos, passando pela divisão do Ser dividido em duas substâncias em Descartes, até as experiências morais devastadores dos totalitarismos no século XX -, a realização da arte e, especialmente, do cinema em restaurar nossa confiança "no mundo" certamente não deve ser desconsiderada ou “descontada”. REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013.