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ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA
ENTREVISTA COM JOSEF FRÜCHTL: FILME
E FILOSOFIA.1
Questões e tradução por Carla Milani Damião (Professora de Estética na FAFIL-UFG)
Revisão da tradução por Miguel Gally (Professor de Estética na FAU-UNB).
Revisão conceitual por Virgínia Figueiredo (Professora de Estética da UFMG)2
APRESENTAÇÃO
Josef Früchtl é considerado parte da terceira geração da Escola de Frankfurt 3. É
autor, além de muitos artigos publicados em jornais, revistas e periódicos, dos seguintes
livros: Mimesis - Konstellation eines Zentralbegriffs bei Adorno (Königshausen &
Neumann,1986) – (Mímesis – constelação de um conceito central em Adorno);
Aesthetische Erfahrung und moralisches Urteil. Eine Rehabilitierung (Suhrkamp, 1996)
– (Experiência estética e juízo moral. Uma reabilitação); Das unverschämte Ich. Eine
Heldengeschichte der Moderne (O Eu impertinente. Uma história heroica da
modernidade) 4. Seu livro mais recente é Vertrauen in die Welt: eine Philosophie des
Films 5 (Confiança no Mundo. Uma Filosofia do filme). Atualmente, Früchtl é professor
da Faculdade de Filosofia e Artes da Universidade de Amsterdã, na Holanda, após um
período como professor da Universidade de Münster, na Alemanha. Foi presidente da
Sociedade Alemã de Estética (Deutsche Gesellschaft für Ästhetik) e é co-editor da
revista Zeitschrift für Ästhetik und Allgemeine Kunstwissenschaft.
1
Enviado para a revista paralaxe, publicação simultânea e integral com a revista de estética e semiótica.
Publicação resumida na revista cult set.2013. Endereço: http://revistas.pucsp.br/index.php/paralaxe/index
2
Essa entrevista foi realizada em língua inglesa, ao longo de alguns meses envolvendo não apenas o
entrevistado e a entrevistadora-tradutora, mas contou também com a gentileza e colaboração de Virginia
Figueiredo, como revisora conceitual da primeira parte da entrevista, e de Miguel Gally, como revisor
geral da tradução, cujos comentários e conversas contribuíram para enriquecer o resultado. Expresso a
ambos nossa gratidão.
3
Josef Früchtl foi orientado inicialmente por Jürgen Habermas e Brigitte Scheer, da qual foi professor
assistente na Universidade de Frankfurt.
4
Este livro foi publicado originalmente pela Editora Suhrkamp em 2004 e traduzido para o inglês pela
Stanford University Press em 2009 sob o título The impertinent Self. An heroic history of modernity. Cf.
comentários a este livro na Revista Inquietude (www.revistainquietude.org)
5
Vertrauen in die Welt : eine Philosophie des Films. München, Fink, 2013. Traduzido para o inglês Trust
in the World. A Philosophy of Film.
REVISTA DE ESTÉTICA E SEMIOTICA, BRASÍLIA, V. 3, N. 2 P. 91-110 JUL./DEZ. 2013.
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ENTREVISTA JOSEF FRÜCHTL: FILME E FILOSOFIA
Essa entrevista é resultado de meu intercâmbio acadêmico e cultural com Josef
Früchtl, desde sua vinda ao Brasil em 2011, e de minha visita a Universidade de
Amsterdã no mesmo ano 6.
Quanto ao gênero da entrevista, gostaria de citar Fábio Akcelrud Durão, que, ao
se referir à entrevista que fez com Robert Hullot-Kentor, ressaltou dessa uma qualidade
particular: “As entrevistas [deste livro] procuram recuperar algo do impulso irônico, não
tanto na igualdade entre os participantes, quanto na insistência de que a forma da
conversa não é avessa à profundidade, nem incompatível com a complexidade, nem
impermeável a uma postura interrogativa crítica” 7.
Tendo por referência um vasto repertório de teorias, com as quais dialoga em
seus escritos, Früchtl respondeu com tenacidade e paciência às questões dessa entrevista
que foi dividida em duas partes: 1. A primeira é dedicada ao posicionamento de
diferentes perspectivas que confluem para formar um entendimento claro e sintético das
correntes clássicas e atuais que constituem a Estética como um largo campo de interesse
na Filosofia; 2. A segunda parte concentra a discussão sobre as relações entre Filosofia
e Filme ou da área de interesse que se formou recentemente sob o nome de “Filosofia do
filme” 8.
Antes de apresentar a entrevista em suas duas divisões, entretanto, incluo aqui
uma pergunta mais informal e provocadora a respeito deste segundo interesse –
6
Früchtl veio como professor visitante ao Brasil em agosto de 2011, a convite do Programa de PósGraduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia (FAFIL) da Universidade Federal de Goiás (UFG),
com auxílio do CNPQ, ocasião na qual ministrou um conjunto de aulas e proferiu palestras na
Universidade Federal Fluminense (UFF) e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No mesmo
período, participou do evento de lançamento do primeiro volume das obras de juventude de Walter
Benjamin. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921), - tradução de Susana Kampff Lages, Ernani
Chaves e Willi Bolle, sob a coordenação de Jeanne Marie Gagnebin -, em mesa redonda com Detlev
Schöttker, Jeanne Marie Gagnebin e Alberto Martins no Instituto Goethe em São Paulo, estendendo sua
participação ao evento do Centro Cultural Maria Antonia da USP sobre a temática “Walter Benjamin e as
Artes”, em agosto de 2011.
7
Fábio Akcelrud Durão. Entrevistas com Robert Hullot-Kentor. São Paulo, Nankin Editorial, 2012.
8
Em inglês Film philosophy. Optamos em nossa tradução por traduzir film por filme e não cinema, posto
que a palavra cinema pode ser equívoca (originada do grego kinema, “movimento”, e de kinein, “mexer,
movimentar”, tornou-se cinéma no francês, como abreviação de cinématographe, nome dado à invenção
no final do século XIX pelos irmãos Lumière). Por um lado, a palavra cinema é frequentemente
relacionada ao espaço, à sala de cinema, à sala de “imagens em movimento” (em inglês: moving pictures
ou movies reúne os dois sentidos). Em português, nós vamos ao cinema para assistir o filme e não para
assistir o cinema. A palavra em nossa língua, além da acepção de espaço e de originariamente significar a
técnica utilizada para fixar a imagem em fotogramas para serem projetados em movimento e causar a
ilusão do movimento real no processo de recepção das imagens, designa também a “indústria”
relacionada aos filmes: a indústria do cinema ou indústria cinematográfica. O filme será entendido no
sentido estrito de obra cinematográfica. É sobre o filme, portanto, que, em geral, reflete a filosofia.
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Filosofia e filme e sua respectiva resposta. Perguntei ao entrevistado se poderíamos
filiar sua filosofia do filme à chamada “filosofia pop” ou se esta designação não lhe
seria demasiadamente ambígua. A resposta não deixa dúvidas sobre o posicionamento
deste autor frente ao assunto:
O fato de eu me referir ao filme como o meio artístico mais popular do século
XX não faz de mim um "filósofo pop". É preciso mais do que isso; acima de
tudo, é preciso que você se apresente como tal em livros e artigos, de uma
maneira que conhecemos muito bem como cultura pop. Falando
metaforicamente, você deve se apresentar, como um teórico, no estilo
"berrante", "colorido", "alegre", "suave", e talvez "barulhento", "gritante".
Uma forma que autoriza mais o consumo do que o trabalho, o "trabalho do
conceito", como dizia Hegel. Esta atitude foi preparada com sucesso pelo
chamado pós-modernismo. Supondo que "pop" signifique ter uma imagem
(pública), a filosofia pop quer entregar uma imagem que possa ser trazida
para o mercado de consumidores, que está - isso continua a ser verdade –
interessada também em filosofia. O filósofo “pop” mais conhecido do nosso
tempo é Slavoj Zizek - o que não significa dizer que ele não seja inteligente.
Pelo contrário. E isso não significa dizer que o que ele esteja fazendo seja
nada mais do que consumismo intelectual. Como a cultura pop não é
desprovida de ambiguidade, e nela existam alguns elementos de resistência,
então é possível encontrar também tais elementos na filosofia pop.
PARTE I – QUESTÕES GERAIS SOBRE ESTÉTICA
1. Minha primeira questão é sobre a distinção entre Estética e Filosofia da Arte. Existe
uma diferença? Podemos entender que a Estética deva ser nomeada somente em relação
a sua origem - século XVIII - e que no decorrer do século XIX, tornou-se Filosofia da
Arte, de tal maneira que os temas iniciais foram postos de lado (tais como o gosto, juízo
estético, conceitos notoriamente relacionados à chamada “estética da recepção”), e a
arte em geral se tornou a fonte principal e tema das teorias?
JF - Há certamente uma diferença vista a partir da perspectiva histórica que você
menciona. A Estética surgiu como uma disciplina filosófica no século XVIII,
explicitamente na Aesthetica (1750) de A.G. Baumgarten, concebida como uma ciência
da cognição sensorial (scientia cognitionis sensitivae), ou, dentro da tradição britânica, e
até Kant, como crítica do gosto ou do juízo de gosto. Foi com o Sistema do Idealismo
Transcendental (1800) de Schelling que a arte tornou-se objeto privilegiado da Estética,
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até mesmo da filosofia como tal. Estética tornou-se filosofia da arte. E esta tradição
sobreviveu até Heidegger e Adorno (embora ele tenha reintroduzido a estética da
natureza), e do outro lado do oceano até Danto. Mas há uma diferença sistemática
também. Experiências estéticas (da natureza ou da vida cotidiana) e experiências de
uma obra de arte possuem certamente características superpostas e comuns, mas sua
ênfase é diferente. Simplificando: os aspectos da sensibilidade, do entendimento e da
imaginação desempenham para mim um papel constitutivo em cada experiência
estética, mas no caso de uma experiência com uma obra de arte, o entendimento
desempenha um papel muito maior do que no caso de uma experiência estética da
natureza. Essa diferença sistemática continua a existir quando tentamos caracterizar
certas formas de arte. Por exemplo, respondendo à pergunta sobre como o filme difere
do teatro, da pintura ou da literatura, mantemo-nos dentro da esfera de uma filosofia da
arte.
2. Considerando ainda as raízes da Estética, como você qualifica as seguintes obras: A
investigação sobre o belo e o sublime (1757) de Burke e o ensaio “Do padrão de gosto”
(1757) de Hume. Seriam obras condenadas a um sentido restrito de Estética, ligadas
apenas a uma resposta psicológica e moral à arte e à natureza, ou, elas preparariam o
nascimento da Estética como um ramo distinto em Filosofia, cuja notoriedade teria se
revelado apenas sob as teorias de Baumgarten e Kant?
JF - Eu certamente não diria que a estética de Hume e a de Burke estão "condenadas a
um sentido restrito da Estética". Elas são restritas apenas sob a perspectiva da filosofia
transcendental kantiana e do idealismo alemão. Mas desde que estes dois últimos
modelos de estética passaram a ser, por bons motivos, criticados ao longo de um
período pós-nietzscheano, marxista ocidental e - numa espécie de mistura – pelas teorias
pós-modernas, nós podemos muito bem olhar para trás e voltar a Hume e Burke. Suas
abordagens empirista, sensualista, e até mesmo psicológica se tornam mais atraentes na
era da neuro-ciência e na era de um conceito alargado de estética, remetendo ao antigo
significado grego de aisthesis. Mas há outro ponto importante que pode ajudar a
reavaliar a estética de Hume e de Burke. Na era da globalização, podemos observar o
agravamento de um problema que é muito bem conhecido no mundo ocidental desde o
Iluminismo (ou Esclarecimento), e que tem consequências diretas para o sistema
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político democrático: o problema da subjetividade e da universalidade. A questão
fundamental era e é, novamente, como é possível legitimar reivindicações universais
(verdade, retidão, objetividade) com base na subjetividade. Com base, portanto, no
direito de cada indivíduo de dizer sim ou não a todas as reivindicações. A filosofia do
século XVIII, em geral, reagiu a isto sob a orientação do conceito de "crítica",
especialmente sob a acepção de uma crítica do gosto e do juízo. Podemos afirmar,
portanto, que há historicamente uma coincidência entre o surgimento da democracia no
mundo ocidental e a crítica estética, o que nos autoriza a verdadeiramente falar, com
Luc Ferry, da "invenção do gosto na era democrática". Os teóricos de formação do
século XVIII, Hume, Burke e Kant, formularam esta conexão explicitamente. Eles
sabiam que, para defender o intercurso da vida cotidiana moderna, é necessário praticar
a influência sobre a razão e os sentimentos das pessoas. E eles sabiam que a esfera do
chamado "gosto", portanto, desempenhava uma importante função, se não a mais
importante. O acesso às teorias formativas do século XVIII parece ser anunciado hoje
em dia por causa de razões político-sociais. As condições pré-democráticas do século
XVIII (a respeito das quais devemos ter consciência das diferenças específicas entre os
britânicos e os desenvolvimentos continentais) partilham com os "pós-democráticos"
(Crouch, Rancière) do século XXI o problema mencionado entre subjetividade e
universalidade. A erosão das pretensões universalistas e solidárias que tomam o lugar
sob o signo de situações problemáticas individualizadas (economicamente chamadas de
"neoliberalismo") deixam para trás um vazio sensível. Para isso os teóricos do século
XVIII inventaram ou reinventaram o conceito de gosto, julgamento (estético) e senso
comum (estético). Disputar sobre o gosto ou sobre experiências estéticas, portanto,
significa tornar possível a comunitarização de um confronto. Os partidos que se opõem
uns aos outros têm nomes diferentes: imagens contra conceitos, imaginação contra
entendimento, sentimento contra razão, nonsense e contrassenso. Eles sempre possuem
um significado antropológico e social: o animalesco contra o divino no homem, as
classes mais baixas contra as superiores, o povo contra a aristocracia e a monarquia. É o
recurso caracterizador do domínio da estética que obtém sua energia da interação de
uma oposição.
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3. Você concorda com os autores que afirmam ser a hipótese de um senso comum
estético uma estrutura frágil à definição kantiana da universalidade parcial – ou
pretensão de universalidade - de gosto? A resposta kantiana constitui realmente uma
solução para o problema do juízo universal com base em um juízo subjetivo?
JF - Argumentar sobre a universalidade de um juízo, em princípio, tornou-se difícil nos
chamados tempos pós-metafísicos. Para mim, Kant ainda dá uma explicação geral
convincente ao fato de que os juízos estéticos ou- como preferimos dizer hoje em dia experiências, por um lado, reivindiquem uma validade intersubjetiva (até mesmo
universal), embora sejam, por outro lado, obviamente, baseadas em experiências
subjetivas. A explicação de Kant, ao menos, aponta para a direção correta. Isso significa
que nós temos que explicar a situação (ou status) discursiva/o de uma experiência
estética como certo jogo (inter-play) entre nossas dimensões de argumentação e de
experiência. Assim, em algum momento poder-se-ia argumentar que nossa dimensão
estética compartilha com outras dimensões - as da ciência, ética, política, a da prática
diária (o senso comum prático) e assim por diante - certos aspectos, talvez todos os
aspectos (essa é maneira de Dewey seguir a direção de Kant), mas coloca-se então uma
ênfase bem diferente em um aspecto ou em certos aspectos. Por exemplo, alguém pode
argumentar que, na dimensão científica e moral, estamos principalmente interessados na
obtenção de um resultado, quer seja uma fórmula teórica ou um princípio prático; ao
passo que na dimensão estética o que nos interessa é o caminho que conduz a um
resultado. Esteticamente, então, o caminho como tal é a meta. Não há uma diferença
categórica entre as nossas dimensões da argumentação e da experiência, apenas uma
diferença gradual entre elas. Quanto à questão de um senso comum estético, gostaria de
repetir o que já disse acima. Este tipo de senso comum parece ser necessário para a
realização de uma comunidade, que é baseada em contradições. Assim, algumas
pessoas, como Terry Eagleton, denominam-na uma ideologia tipicamente burguesa.
Mas acho que há muito mais a dizer do que acenar com um gesto tão marxista. A
sociedade moderna (ou mesmo "pós-moderna"), altamente diferenciada por permitir a
oposição de perspectivas, deve preocupar-se com o elemento - ou com os elementos que congrega a sociedade. Regras abstratas ou constituições não são certamente
suficientes para isso. Mas o modo como falamos e discutimos sobre questões estéticas "O novo filme de Clint Eastwood é bom, tão simples e dramático como Million Dollar
Baby (A garota de ouro)?"; "Há uma maneira melhor de expressar o clima de uma
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cidade moderna em si conflitante do que pela música jazz?”; "O Barcelona (como a
gente diz no cotidiano) não está jogando futebol como um exemplo profano da
metafísica: tanto fascinante quanto assustador em sua perfeição?"; “A combinação de
uma minissaia com um coturno não é um forte sinal dos jovens da década de 1980? "podem oferecer um modelo para uma instigante, tensionada e provocante relação entre
individualidade e universalidade.
4. É possível libertar o campo da estética daquele da ética, considerando-se a maioria
das teorias estéticas tradicionais? Kant, baseado na ideia de desinteresse - um conceito
herdado de Shaftesbury e outros - procurou separar as esferas da experiência – teórica
prática e estética -, mas, como muitos intérpretes dizem, ele acabou por tornar a
experiência estética um ensaio de experiência ética. O que você diria sobre essas
considerações e como podemos entender o compromisso entre os dois campos?
JF - No meu livro sobre a experiência estética e juízo moral, publicado em alemão em
1996 (Aesthetische Erfahrung und moralisches Urteil. Eine Rehabilitierung), tentei
desenvolver uma perspectiva diferenciada sobre a relação entre estética e ética. A
primeira coisa que deve ficar clara sobre o assunto - e isso é algo que eu não esclareci o
suficiente em meu livro - é que precisamos de um critério para essa perspectiva
diferenciada. Ele oferece um excelente recurso de distinção, e o critério é simplesmente
a "modernidade", ou mais precisamente: "autolegitimação". Seguindo Hegel e
Habermas, podemos dizer que uma época, uma cultura, uma sociedade e seus
subsistemas são modernos, desde que sejam legitimados e fundados por eles mesmos.
Podemos redescrever esse critério também como o de "autonomia". Isso significa que a
autolegitimação deixa sua marca em todas as formas de racionalidade e subsistemas
sociais. Todos eles se referem principalmente a si mesmos, e sua influência ou efeito
sobre os outros só pode ser indireta. Kant na verdade foi o primeiro que deu expressão a
esta estrutura da modernidade em um sentido filosófico, marcando a diferença entre as
formas de racionalidade cognitiva, moral e estética. Por isso a estética tem que ser vista
para além da nossa maneira lógico-cognitivo, moral, sensualista e pragmática de pensar.
Caso contrário, não seríamos capazes de dizer qual é afinal a característica específica da
estética. Em uma segunda etapa, temos que ser conscientes de que existem
superposições, analogias e efeitos indiretos. Então, justamente Kant pode afirmar que a
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beleza é um "símbolo" do moralmente bom. Temos vários exemplos de perspectivas
diferenciadas sobre a relação entre estética e ética. Há, em primeiro lugar, o modelo da
complementaridade. Ética e estética possuem validade, cada qual de sua própria
maneira. Mas há uma diferenciação interna, porque dentro dessa relação de
complementaridade, a estética pode ser avaliada como mais forte, ou a ética como mais
forte; ou, ainda, ambas podem ser avaliadas com pesos iguais. Não temos exemplos
claros dentro da filosofia que sejam condizentes com a primeira opção, isto é, que
confiram primazia à estética; talvez o Schelling de 1800. Temos exemplos muito claros
para a segunda opção, isto é, para a primazia da ética sobre a estética, por exemplo, em
Hegel e Habermas. E temos exemplos claros para a terceira opção, nos quais estética e
ética possuem peso igual, como em Adorno e Heidegger. Existe um segundo grande
modelo. Podemos chamá-lo modelo da agonia e incomensurabilidade. A esfera estética,
neste contexto, é também individual, diferente das outras esferas. Esta diferença é tão
forte que reunir as esferas em uma influência mútua é ou só é possível de forma
altamente indireta, como é em Kant, ou totalmente impossível, como ocorre em algumas
das chamadas teorias pós-modernistas. Estética e ética aqui ficam lado a lado, de
maneira tão incomparável, tão incomensurável como as teorias científicas de
paradigmas diferentes, seguindo Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. Ética e estética estão
aqui em dois lados de uma disputa que não possui nenhuma regra de julgamento e que,
portanto, segundo Jean-François Lyotard, devem ser reconhecidas como "conflitantes"
(différend). Em nossos tempos um terceiro grande modelo foi desenvolvido em nome,
mais uma vez, da "pós-modernidade". É o modelo da de-diferenciação (dedifferentiation), representado em Jacques Derrida e Richard Rorty. De acordo com este
modelo, não há diferença (real) entre estética e ética. Em sua variante deconstrutivista e
neopragmatista, a pós-modernidade se mostra justamente enquanto o que não quer ser:
um antimodernismo. Isto é assim porque se rejeita o significado intrínseco da
individualidade das esferas opostas. Assim, para a mim, apenas o primeiro e segundo
modelo acima mencionados estão adequados às condições da modernidade.
5. Atualizando a oposição entre Estética e Filosofia Analítica, podemos falar de uma
tradição que une as áreas hoje em dia? Será que os filósofos analíticos encamparam
efetivamente a Estética após Wittgenstein nomeá-la como um dos temas inomináveis?
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JF - Nós recebemos uma série de contribuições úteis para a estética provindas do campo
da filosofia da linguagem/analítica. Monroe C. Beardsley e Frank N. Sibley podem ser
vistos como um começo nos últimos anos de 1950, mas já na década de 1960 George
Dickie e acima de tudo, Nelson Goodman e Arthur C. Danto oferecem esclarecimentos
sobre o conceito de estética, a definição da arte, o problema da ontologia da arte, o
conceito de representação e sobre outros aspectos da Estética. No que respeita à
definição de arte, por exemplo, o anti-essencialismo de Wittgenstein – o Wittgenstein
tardio, é claro - serve como ponto de partida. Com efeito, não faz sentido falar da
"essência" da arte ou de como descobrir "condições necessárias e suficientes" da arte.
Dickie, neste contexto, desenvolveu uma teoria das instituições. Há, portanto,
interessantes sugestões teóricas para estética com base na análise conceitual. Mas,
certamente, a filosofia da linguagem/ analítica da arte em geral não está interessada nas
principais questões da estética europeia-continental clássica, ou seja, se - e em caso
afirmativo, em que medida - beleza e, especialmente, a arte é um símbolo de uma vida
moralmente boa (Kant), ou uma expressão de liberdade que conduz a um "Estado
estético" (Schiller), ou o espelho necessário da filosofia e da subjetividade (Schelling),
ou uma aparência do Absoluto (Hegel), o que significa: uma aparência (representação)
da auto-compreensão coletiva de um povo, ou uma forma inconsciente de metafísica
(Schopenhauer), ou a única legitimação da existência (Nietzsche), ou a abertura de uma
nova forma de Ser (Heidegger), ou a melhor maneira de praticar a crítica social na era
da uma ideologia totalitária (Adorno). A filosofia analítica da arte, portanto, em minha
opinião, perde o melhor da estética.
6. Em sua visita a São Paulo, na participação de mesa redonda no evento no Instituto
Goethe, você fez uma associação entre Walter Benjamin e John Dewey. Com base nesta
exposição, pergunto como poderia o conceito de experiência benjaminiano ser
relacionado à estética pragmática de "A arte como experiência" de John Dewey (1934)?
Sendo o interesse do pragmatismo, criar uma continuidade entre arte e ciência, por meio
de seus laços ou habilidades comuns como o simbolismo, a criatividade, a capacidade
de formar uma expressão inteira, isto é, o que se busca, dito de maneira geral, é uma
espécie de melhoria do conhecimento científico através da experiência estética, é
possível afirmar tal associação em Benjamin? Ou seria melhor manter sua teoria mais
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próxima da noção kantiana do juízo estético em um sentido amplo, na qualidade de uma
percepção que é também uma forma social e cultural de recepção na história,
particularmente considerada nas circunstâncias da modernidade, que incluem o tema da
tecnologia como a transformação mais importante na recepção arte?
JF - Você seguramente tem razão, que há um contraste entre Benjamin e Dewey em
relação ao conceito de experiência (estética). Ao menos, se pensarmos que o Benjamin
“tardio” - como uma espécie de teórico marxista contra um pano de fundo judaicoteológico - estava preponderantemente interessado no elemento "chocante" da
experiência que explode ao abrir nossa experiência cotidiana – e que é justamente a
forma de experiência que interessa a Dewey, como um pragmático. Porém o conceito
inicial de Benjamin – ou dizendo melhor no plural: conceitos - é muito mais kantiano e,
novamente, teológico. Ele é também influenciado pela Lebensphilosophie (filosofia de
vida), embora de uma forma menos clara. Por outro lado, o conceito de Dewey da "arte
como experiência" foi desenvolvido na linha da biologia darwiniana, evitando assim o
direito à especulação metafísica desde o início. A biologia oferece a base para todos os
tipos de experiência, para a experiência intelectual, moral ou estética. Todos esses tipos
de experiência compartilham os elementos essenciais da experiência, mas há uma
diferença entre elas. Isto permite uma perspectiva da unidade e da diferença. Finalmente
Dewey está também interessado em demonstrar que "a imaginação (estética) é o
principal instrumento do bem", e que é por meio da imaginação (estética) que
aprendemos a ver do outro, aprendemos a sentir no lugar do outro, e que as obras de
arte, portanto, são meios de avanço da civilização – se por civilização se entende que os
seres humanos não são divididos em seitas não-comunicantes, raças, nações, classes e
grupos. Assim, além da primeira vista, há encontros frutíferos entre o pragmatismo de
Dewey e uma certa Teoria Crítica em Benjamin.
PARTE II – FILOSOFIA DO FILME
1. CMD - Thomas Elsaesser
9
vê o interesse em filmes no mundo acadêmico como
sintoma da crise da chamada ciências humanas, e que devemos fazer uma distinção
9
Cf. Thomas Elsaesser, 'Etat de la recherche et place du cinema', in Hors Cadre (Paris) nº 10, 1992.
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entre teoria do filme (teoria do cinema) e filosofia do filme. Você poderia explorar esta
distinção especificando o que considera ser uma filosofia do filme?
JF - A teoria do cinema e a filosofia do filme têm muito em comum, mas permanecem
diferentes. Historicamente, a teoria do filme vem em primeiro lugar e tem o seu
primeiro auge na década de 1920, com teóricos como Béla Balázs, Dziga Vertov,
Rudolf Arnheim, e, claro, Sergej M. Eisenstein. Ela se tornou institucionalizada
somente após a Segunda Guerra Mundial; e sua carreira acadêmica começou na década
de 1970. No início, essas teorias estavam lidando, sobretudo, com a questão de saber se
o filme era ou não uma (forma de) arte. Eles desenvolveram teorias sobre a atuação no
cinema, sobre a linguagem cinematográfica (movimentos de câmera, enquadramentos) e
teorias de montagem. A atenção dessas teorias voltava-se para os temas estéticos mais
gerais, relativos ao formalismo e ao realismo.
A filosofia do filme, diferentemente, aproxima-se do filme com base em perspectivas
filosóficas específicas. Podemos ver claramente que existe a questão de saber se o filme
é (uma forma de) arte. A razão disto é que nós não podemos responder a essa pergunta
sem um conceito normativo de arte, e assim, finalmente, sem concebermos uma
filosofia da arte. Mas as perspectivas filosóficas típicas surgem quando fazemos
perguntas tais como: “O que é o Eu? ‘, ' eu realmente existo? '' como posso conhecer o
outro? ‘, ' como é que é possível entender o outro? ', 'o que é espaço, movimento e
tempo? '. Estas questões são ontológicas e epistemológicas, às quais devemos adicionar,
sem sombra de dúvida, questões da filosofia moral. E, finalmente, ao menos dentro de
uma certa tradição, questões da crítica social.
Como sabemos, não há muitos filósofos que de forma produtiva e genuína tenham
realmente refletido sobre filme ou cinema: Walter Benjamin (que deve aqui ser
considerado um filósofo), Theodor W. Adorno (que era majoritariamente crítico do
cinema), Siegfried Kracauer (que foi mais um crítico do que filósofo) e, posteriormente,
Gilles Deleuze e Stanley Cavell. Hoje em dia podemos adicionar pessoas como Jacques
Rancière, Jean-Luc Nancy, Slavoj Zizek e do campo da Filosofia Analítica, Noel
Carroll. Assim, o filme finalmente tornou-se um objeto com dignidade filosófica!
A Filosofia do filme em geral está interessada no filme como um meio tecnológico e
estético que está lidando com questões filosóficas de uma maneira específica, o que
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significa: de um modo que apenas o filme pode oferecer, diferentemente de outras
mídias (como a literatura, o teatro e a pintura). Problemas ontológicos e
epistemológicos parecem ser centrais aqui, o que significa dizer que o modo como o
filme nos convida ou nos compele a repensar nossa compreensão do "ser", do "mundo",
do "tempo", do "movimento", da "identidade do Eu" e da "realidade". Isto é, ao menos,
o que eu aprendi, entre outras coisas, com Deleuze e Cavell.
2. Como podemos inserir sua perspectiva na amplitude desse debate que inclui a teoria
do cinema de Gilles Deleuze e a de Stanley Cavell?
JF - Meu livro sobre a história heroica da modernidade 10 refere-se ao medium do filme
em um duplo sentido: como uma área na qual podemos estudar a história da
subjetividade moderna, e como um conjunto de gêneros que são interessantes para esta
história de uma maneira diferente. Eu escolhi os gêneros do western, do thriller e o
filme de ficção científica. Mas eu poderia ter escolhido um gênero como o melodrama
ou comédia ou história de amor e outros também. Todos eles elucidam as camadas - de
acordo com os três gêneros que incidem em três camadas – que representam a
constituição da modernidade e do Eu, camadas que eu chamo de "clássica", "agonal", e
"híbrida". O que chamamos de "modernidade" ou "Eu" é uma sobreposição destas
camadas, e em toda a história dos últimos duzentos anos podemos observar que, em
certos períodos, uma dessas camadas é dominante. Em meu novo livro eu não estou
interessado em certos gêneros cinematográficos, mas no filme enquanto um medium
como tal. Poderia também dizer que estou interessado em questões ontológicas e
epistemológicas sobre cinema. O ponto de partida é a tese de Deleuze de que o cinema
moderno (para ele o cinema que surge com o neorrealismo italiano na década de 1950, o
filme noir francês em 1960, e o "filme de autor” – Autorenfilm- alemão da década de
1970) é capaz de "restaurar nossa fé/crença no mundo". Nossa fé no mundo foi
destruída na longa história de raciocínio ocidental, pela doutrina de Platão sobre as
ideias, pela religião cristã, pela divisão de Descartes entre o Ego-cogito e o resto (o
mundo) e, finalmente, além deste raciocínio, pela queda da civilização, executada pela
10
Das unverschämte Ich. Eine Heldengeschichte der Moderne (O Eu impertinente. Uma história heroica
da modernidade.)
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política dos totalitarismos no início do século 20. Acho que Deleuze está certo em seu
protesto. Mas ao mesmo tempo, estou convencido, primeiramente, que ele está certo só
em um sentido histórico específico e, em matéria de estética, apenas em um sentido
geral, pois ele não nos fornece razões suficientes. Para mim, o filme é realmente capaz
de restaurar nossa crença, ou como prefiro dizer: nossa confiança no mundo. Mas o
filme partilha essa realização com a arte em geral. Se há algo específico no filme, não é
que ele seja capaz de restaurar nossa confiança no mundo, mas na modernidade. Para
mim, o filme é o meio (medium) mais adequado para o Eu moderno. Para fornecer
razões para esta afirmação historicamente específica e esteticamente universalizada: o
filme é um meio da autorreflexão moderna e, como arte, enquanto tal, de uma afirmação
ontológica - não requer a restauração da metafísica de Spinoza através de Nietzsche
(o do "eterno retorno"), até Bergson, como Deleuze, de fato, faz. É perfeitamente
suficiente combinar a Crítica da faculdade do juízo de Kant com o pragmatismo
filosófico na linha de Dewey, do segundo Wittgenstein, e Cavell. Isto é o que eu faço no
meu novo livro.
3. CMD - Em seu novo livro, Confiança no Mundo. Uma Filosofia do filme (Trust in
the World. A Philosophy of Film) – você revê criticamente as principais filosofias do
cinema, com um foco maior de interesse na teoria de Deleuze, a quem você também
critica severamente. As ideias de Deleuze, entretanto, foram importantes para iniciar a
discussão sobre o tema que relaciona ontologia e confiança. Você poderia explicar essa
ambiguidade: em primeiro lugar, qual é o conteúdo de sua crítica a Deleuze e, em
segundo lugar, qual é o tema que você compartilha com esse autor?
JF - Eu posso responder sua pergunta resumidamente em uma frase: eu acredito que
Deleuze está certo ao afirmar que o cinema moderno - o cinema que surgiu após a
Segunda Guerra Mundial, com neorrealismo italiano, com a Nouvelle Vague francesa, e
com o filme alemão de diretor - tem o poder "de restaurar a nossa crença no mundo";
mas, ao mesmo tempo, eu acredito que Deleuze não forneceu uma fundamentação
adequada para sua pretensão teórica. Ele se refere principalmente a três filósofos:
Spinoza, Nietzsche e Bergson. Para ele, realmente, esses filósofos formam a "santíssima
trindade".
Spinoza nos oferece a teoria de que o Ser é sem transcendência (externa) e não possui
classificações (internas), portanto, não tendo hierarquias. Ele possui apenas formas de
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expressão do Uno, da substância que tudo abrange. Esta substância não pode ser uma
coisa, ela só pode ser temporal. "Temporal" aqui, contudo, não significa "linear" e
"infinito", em vez disso, significa aquilo que Bergson chama durée. Essa ideia de tempo
faz com que seja possível pensar o passado como algo que se atualiza a cada momento.
O tempo existe, assim, "virtualmente". Combinando essa ideia com a doutrina
especulativa de Nietzsche do "eterno retorno", Deleuze é capaz de prolongar a
existência virtual para a dimensão do futuro e alterar a ideia de eterno retorno do mesmo
para a de eterno retorno do diferente. O Ser, portanto, tem de ser afirmado como algo
que é eternamente vir a ser.
Este é o tipo de teoria, característico à metafísica clássica e a um pensamento altamente
especulativo, que Deleuze precisa fundamentar em sua pretensão teórica sobre o cinema
(moderno). Eu, ao contrário, acredito que podemos argumentar sobre tal alegação de
uma maneira muito mais fácil, ou seja, referindo-se por um lado à teoria de Kant dos
juízos ou experiências estéticas e, por outro lado, a questões centrais do pragmatismo
filosófico, àquelas que se tornaram proeminentes na formulação de filósofos como John
Dewey e o último Ludwig Wittgenstein. No contexto da teoria do filme, Stanley Cavell
é o melhor representante dessa tradição. Por isto, ele desempenha um papel importante
no meu novo livro também.
4. CMD - Walter Benjamin escreveu um único ensaio sobre a relação entre cinema, arte
e estética (A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica), e embora esta não seja
absolutamente uma obra tão extensa como a de Deleuze, a teoria de Benjamin parece
ser uma indicação mais afirmativa na sua compreensão crítica dos autores, ou seja,
aqueles que, no contexto da filosofia, dedicaram alguma atenção a filmes. Podemos
entender que isto se deve ao fato da teoria de Benjamin fornecer uma maior ênfase ao
contexto social e político e por ser esta também baseada em uma teoria da modernidade
e nas transformações perceptivas que ocorreram neste contexto?
JF - Você tem razão. Benjamin é importante para mim porque ele ainda permite fazer
uma ligação entre filme e modernidade. Deleuze muda da teoria social para ontologia,
da filosofia da história para a filosofia da natureza e da vida. É, a meu ver, uma
mudança causada pelas frustrações da esquerda política durante a década de 1960,
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semelhante ao que podemos observar na filosofia alemã após a Revolução Francesa.
Assim, em Deleuze, "o espectador" torna-se importante como um sujeito epistêmico
oscilando entre misticismo e estética. Para mim, ele permanece, portanto, fortemente
dentro da tradição romântica ou, mais exatamente, dentro de uma tradição muito
duvidosa do Romantismo.
Em contraste, os conceitos românticos efetivos no contexto da filosofia da arte são
negados por Benjamin em função de uma enérgica politização da percepção. Este tipo
de percepção é posto em exercício por meio da experiência moderna da grande cidade,
tal como foi descrito sociologicamente, em primeiro lugar, por Georg Simmel. E o
filme, segundo a conhecida afirmação de Benjamin, é o meio artístico e popular mais
adequado para essa experiência da modernidade. Neste contexto podemos também
reinterpretar o conceito de "valor de exposição". Existe um direito e uma necessidade de
cada indivíduo na sociedade moderna em ser exibido. Isso porque a igualdade universal
exige uma diferenciação visual [exposta]. Neste sentido, é útil referirmo-nos ao conceito
de Michel Foucault (se é que é de fato um conceito) do dispositivo (apparatus), porque
também ajuda a mostrar a ambivalência da visualização social. Ao final, pode-se dizer,
sem dúvida alguma, em um tom polêmico, que a filosofia do cinema de Deleuze,
estilizando-se como um ato revolucionário, na verdade reestabelece o "valor de culto"
na arte, ao passo que Benjamin está interessado no poder da arte e do cinema de "exibirse" em um sentido democrático-igualitário.
5. CMD - Em seu livro anterior - O Eu impertinente - você escolheu os gêneros do
Western, dos filmes de gângsteres e de ficção científica, considerando-os como matrizes
de outros subgêneros, tais como o filme de suspense, o melodrama, histórias de detetive,
etc. Embora esses gêneros de filme sejam desenvolvidos no contexto da cultura norteamericana, é possível associá-los a outras culturas? Devemos considerar que eles são
frutos únicos da imaginação norte-americana, um imaginário que se constitui como
imposição ao resto do mundo dada a característica “industrial” e altamente competitiva
de Hollywood, restando a outras culturas, a tarefa de apenas imitá-los, porém com um
orçamento infinitamente menor e sem o mesmo poder de distribuição? Ou devemos
reconhecer que a influência cultural desses filmes, - para o bem ou para o mal -, formam
a cultura global, aceitando esses gêneros como a maior representação cultural do século
passado e do atual? Poderíamos certamente supor que, provavelmente, existam trocas e
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contribuições culturais neste campo, minimizando o papel ideológico dos filmes, considerando casos que, ocasionalmente, podem levar a uma autocrítica de seu próprio
modo de produção (Sunset Boulevard – O crepúsculo dos deuses - é um exemplo
clássico, entre muitos outros). Que exemplos você poderia pensar que poderiam ser
citados como espécie de intercâmbios culturais entre a todo-poderosa indústria
cinematográfica norte-americana e outros países; exemplos que poderiam mostrar mais
criatividade e não somente cópias culturais camaleônicas como resultados?
JF – De fato, falando de maneira simples, eu tomo meus exemplos do cinema de
Hollywood. Mas esta foi uma decisão bem refletida. Contra a minha própria base
teórica - o “background” da Teoria Crítica desenvolvida pela Escola de Frankfurt - tive
que lidar com a situação um tanto esquizofrênica, daquilo que aprendi de Max
Horkheimer e Theodor W. Adorno, isto é, de que o filme é a área central da assim
chamada "indústria cultural", que produz objetos culturais da mesma maneira que
produz outros objetos, ou seja, de uma forma padronizada e com o único objetivo de ser
lucrativa. O livro em que os dois autores apresentam sua tese, pela primeira vez,
Dialética do Esclarecimento, tem um capítulo a respeito com o subtítulo: "O
Esclarecimento como engano da massa" [No Brasil: o capítulo é intitulado “Indústria
cultural: O Esclarecimento como mistificação das massas”].
A indústria cultural, assim reza a história, tem a pretensão de oferecer esclarecimento
para as massas, mas na verdade é um grande engano. Por outro lado, eu sempre senti
que há algo de errado com essa tese.
Pode-se facilmente assistir filmes de faroeste e filmes de gângsteres da década de 1940
(quando Horkheimer e Adorno estavam escrevendo seu livro no exílio californiano) e da
década de 1950 (que mais tarde puderam ser vistos na Alemanha Ocidental - e eu vi
todos eles), como parte da ideologia norte-americana espalhando mensagens do
individualismo capitalista, do rígido protestantismo e do forte comunitarismo. No
entanto, há algo mais sobre eles. Isto tem a ver com múltiplas camadas estéticas que geralmente - não estão presentes nestas películas da mesma maneira como estão
presentes em obras de arte típicas. Os filmes, porém, não substituem essas camadas
estéticas sem falta de ambiguidade. Eles não têm mensagens "simples", mas mensagens
escondidas - mensagens que eles [tais filmes] não podem evitar.
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Por exemplo, o envio da mensagem para a nova geração da década de 1950, para que
eles se mantivessem longe "dos selvagens", das “gangues de rock” e das festas da Dolce
Vita, era preciso mostrar tais gangues e festas visualmente. Assim, eles tiveram que
expor o que era visto como moralmente negativo, juntamente com o que era visto como
positivo. Adorno, aliás, oferece uma análise muito mais sutil em alguns de seus ensaios
da década de 1960. Nestes, ele admite que, mesmo em um filme popular, há em
funcionamento "uma ideologia heterodoxa” ou, se você preferir, “não oficial".
Então, esta foi uma das razões para escrever o livro O Eu impertinente, no qual quis
elaborar em detalhe a situação ambivalente de filmes como um produto da indústria
cultural. Ao fazer isso, eu considero-o como um livro da tradição da Escola de
Frankfurt.
Agora, quanto a outra parte de sua pergunta - se esses filmes são produtos exclusivos da
imaginação norte-americana ou se eles podem ser ligados à auto-compreensão
imaginativa de outras culturas -, é certamente um fato histórico-cultural que esta ligação
tenha ocorrido. Como eu já mencionei, o cinema da Alemanha Ocidental do período
pós-Segunda Guerra Mundial foi profundamente influenciado pelo cinema de
Hollywood. E isso, mais ou menos, parece ser verdadeiro para o resto da Europa
Ocidental também.
Mas eu não entenderia isso como um simples ato imperialista de hegemonia cultural.
Como mencionei acima, a mensagem dos produtos culturais não é simplesmente
simplória. Assim, os destinatários têm a possibilidade e a oportunidade de dar a estes
produtos uma interpretação própria, culturalmente determinada, e reagir produtivamente
por conta própria. Esta é uma das lições que podemos aprender também com a área de
estudos culturais das últimas décadas. Como Stuart Hall uma vez apontou, podemos ou
nos submeter a uma interpretação oferecida por um produto cultural, ou nos opormos
completamente a ele, ou ainda sintetizá-lo com nossas próprias interpretações. E a
última opção é possível porque o produto propriamente dito não é isento de
ambiguidades.
Existem inúmeros exemplos de reinterpretações culturalmente determinadas da cultura
norte-americana. Quanto ao gênero western, o exemplo mais famoso é o chamado
"western spaghetti", a versão italiana de um gênero originalmente norte-americano.
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Além do cinema há o jazz e a música pop que tem de ser considerada como outra
grande área onde as fusões produtivas e variações ocorrem o tempo todo. Assim, a
indústria cultural norte-americana é poderosa, mas não todo-poderosa. Ela não pode se
tornar todo-poderosa, porque nunca poderá controlar as interpretações.
6. CMD - Considerando O Eu impertinente, você poderia sintetizar as seguintes
associações: 1. Hegel e o western, 2. Romantismo alemão e o filme de gângster, 3.
Nietzsche, Deleuze e o gênero da ficção científica?
JF – Ambos, Hegel e o western, demonstram o princípio da modernidade, ou seja, o Eu
(subjetividade) em sua dimensão de autojustificação. O Eu é o herói moderno, que é
constitutivo para o que existe: o mundo como um entrelaçamento do subjetivo, do
objetivo e das relações intersubjetivas. Na filosofia de Hegel e nos filmes de western, o
Eu (masculino) é o poder que tudo justifica constituindo as leis da natureza e da
sociedade, o princípio da moralidade e os padrões de gosto.
O romantismo alemão e o filme de gângster reforçam um elemento que já está presente
no idealismo alemão e nos filmes de faroeste, ou seja, o elemento da auto-contradição.
Ele agora aparece como agonia, como conflito interior, como ruptura e a nunca
alcançada reconciliação. Em vez da ideia e método de Hegel de uma Aufhebung - que
significa "negação", "conservação", e finalmente "superação" de uma antiga e criticada
posição – o Romantismo salienta tanto o conflito trágico quanto a peça irônica, e no
domínio do filme esses elementos são cruciais para os filmes de gângsteres, nos quais os
heróis - e heroínas também se tornam figuras precárias e altamente ambivalentes,
travando batalhas contra si mesmos.
Nietzsche, Deleuze e gênero da ficção científica, por último, dão um pequeno passo,
contudo decisivo, para além da alternativa da tragédia e da ironia. Eles oferecem um
jogo criativo e às vezes um jogo de combinações selvagens com os elementos do Eu e
da Modernidade. Ele é "híbrido", em ambos os sentidos da palavra: mostram tanto o
"orgulho" quanto o "abastardamento". E a figura ficcional representativa disso é o
cyborg. Ele é "mais humano do que humano”, uma espécie de "Übermensch" (superhomem e além-do-homem), exatamente porque ele / ela / a coisa é capaz de jogar o jogo
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“cool” da afirmação ontológica, de reconhecer o Ser como tal (o que não quer dizer
reconhecer as formas empírica e política do Ser).
7. CMD - A última pergunta está relacionada novamente ao filósofo Walter Benjamin,
para quem o cinema é uma espécie de grande escola no contexto da modernidade ao
ensinar à massa um novo tipo de percepção diante da técnica como uma segunda
natureza. Isto não deve ser visto apenas como um tipo de “treinamento” social, pois,
através do riso, o filme grotesco é capaz de causar um efeito catártico ou uma sensação
inconsciente, de libertação do homem frente ao domínio da técnica. Sabemos, no
entanto, que filmes como Tempos Modernos e O Grande Ditador, ambos de Chaplin,
não são facilmente repetidos, e que o gênero grotesco se revela pouco capaz de cumprir
a tarefa catártica desejada. Podemos concluir que os pensamentos de Benjamin sobre a
experiência coletiva do cinema, mediada pela tela grande do cinema, pela técnica e seus
mecanismos inconscientes, seriam capazes de diminuir o processo de individualização e
isolamento do homem moderno, de tal forma que possa nos levar a pensar na vida como
uma existência ou experiência plena? Podemos pensar nesta perspectiva em relação ao
tema da confiança em seu novo livro?
JF - Quando falamos em confiança, Benjamin não parece ser uma boa referência. Basta
pensar em sua famosa declaração polêmica próxima ao final de seu ensaio sobre o
Surrealismo, no qual ele discute a oposição entre um mero otimismo socialdemocrata
em andamento, de um lado, e o tratamento pessimista do surrealismo por outro.
Benjamin se coloca claramente do lado do surrealismo e, portanto, ao lado do
pessimismo, e isso significa "acima de toda desconfiança, a desconfiança e a
desconfiança em cada entendimento / acordo / comunicação / compromisso" (a palavra
alemã para tudo isso é "Verständigung"). Como eu já mencionei acima, Benjamin
parece ser muito mais interessante se desejamos apoiar a ideia de que o filme é capaz de
restaurar nossa crença no mundo moderno, nossa confiança na Modernidade.
Mas repito: esse tipo de confiança não é moral e política, é sim uma confiança
ontológica e existencial, uma confiança baseada na hipótese de que há algo que me
reúne aos outros, o mundo como uma totalidade de relações. O cinema, em alguma
medida, está reagindo à crítica fundamental do ceticismo. E é por isso que, mais uma
vez, Stanley Cavell, também, torna-se importante para mim, porque foi ele quem
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primeiro e, enfaticamente, relacionou o cinema ao problema do ceticismo.
Diferentemente dele, eu estou ressaltando que, em primeiro lugar, a capacidade de
realização do filme não é única, porque o filme compartilha algo com a arte enquanto
tal. O que é de fato único é que o filme intensifica essa realização. Em segundo lugar,
sublinho que o restabelecimento da nossa confiança no mundo (moderno) não quer
certamente dizer que poderíamos estar em um estado de certeza absoluta. Ao contrário,
a confiança é exatamente necessária quando não temos conhecimento seguro. É uma
dimensão fundamental, não só por atuar em cooperação com os outros, mas em cada
ação, porque nós nunca saberemos se vamos realmente realizar o que queremos que se
realize. A confiança, portanto, é tão fundamental quanto precária.
E aqui o papel ou a função da arte, ou, mais genericamente, da experiência estética se
torna importante. Isto porque, a meu ver, a experiência estética é uma experiência
evidente da existência, uma experiência de evidência da ligação entre (as coisas,
criaturas, e os eventos) o mundo e o Eu. A interação entre percepção, imaginação e
interpretações ou, em termos kantianos, entre a sensibilidade, imaginação e
entendimento, leva à evidência da situação de ficção - portanto, uma ficção, mas
baseada em evidências - de uma interação lúdica [interplay] entre o sujeito da
experiência e o mundo. Assim, a prática da experiência estética reforça uma afirmação
existencial ou ontológica enquanto, ao mesmo tempo, expõe essa experiência como
ficção.
A confiança no mundo é, portanto, não mais do que isso, mas também não menos do
que uma atitude do tipo como-se (als ob). As experiências estéticas nos encorajam a nos
comportarmos como se fôssemos capazes de confiar no mundo. À luz da ampla
aniquilação da confiança no mundo ocidental - desde a doutrina cristã dos dois mundos,
passando pela divisão do Ser dividido em duas substâncias em Descartes, até as
experiências morais devastadores dos totalitarismos no século XX -, a realização da arte
e, especialmente, do cinema em restaurar nossa confiança "no mundo" certamente não
deve ser desconsiderada ou “descontada”.
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