PRAESCIENTIA Presciência é o título da aula, mas poderia muito bem ser “O propósito eterno de Deus X Liberdade humana”. Pois esse é o assunto, que levou a confrontos dentro do cristianismo desde Agostinho, que advogava a predestinação e foi confrontado por Pelágio, que pregava que a graça era conseguida por mérito individual. E a “presciência” de Deus nunca é negada, mas é interpretada de múltiplas formas. Cumpre esclarecer que, embora a fé seja abordada, vamos falar de “crença”, de onde veem os “credos”, o que é diferente de Fé. Sem aprofundar nesse assunto, que pode até ser objeto de outra aula, vamos entender que a crença é que fornece às pessoas as respostas, o que a fé não faz. A Fé vem pelo ouvir, a Crença pelo estudo; a Fé é individual, pessoal, a Crença é coletiva. E importante para nosso estudo: A Fé pressupõe dúvida; a crença serve para dirimir as dúvidas. Tanto que o oposto de dúvida não é fé, mas crença. A Fé não é um exercício intelectual, mas uma experiência existencial. Aqui vamos falar de “crença”, que pressupõe estudo bíblico e entendimento. Dentro de uma crença cristã, nada é mais confortador do que saber que Deus trabalha com rumo certo, e que sempre alcança seus objetivos. E isso nos leva a certeza logo de início que embora cada cristão, individualmente, seja responsável por fazer o máximo, dentro de seu conhecimento do evangelho, para Cristo, tanto dentro de uma igreja como fora dela, ele não é o responsável final por resultados. “Nele fomos também escolhidos, tendo sido predestinados conforme o plano daquele que faz todas as coisas segundo o propósito da sua vontade”. Efésios 1:11 Deus age de propósito, e sabemos que nesse plano a cruz de Cristo é essencial, o que fica claro no versículo anterior, “ de fazer convergir em Cristo todas as coisas” (1:10). O efeito colateral disso é que os crentes sejam conforme a imagem do filho. Há um plano para a salvação do povo de Deus, que o apóstolo Paulo nos ensina claramente em Romanos 8:2830. “Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito. Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, também chamou; aos que chamou, também justificou; aos que justificou, também glorificou. ” John Stott chama essas declarações do apóstolo de “ cinco afirmações irrefutáveis”. E essas afirmações são introduzidas no texto por um versículo que todo crente gosta, e que é muito familiar a nós todos, o 28. É confortador saber que é Deus que trabalha para que tudo, inclusive as dores e o sofrimento que foram descritos nos parágrafos anteriores da epístola, colaboram para o bem dos que foram chamados por Ele. E o apóstolo engata, na sequência, as cinco afirmações: 1 e a 2 são que Deus tinha presciência, e predestinou. Não é a mesma coisa, mas há uma relação. A eleição se dá antes da presente era, portanto havia presciência, e dentro da presente era, somos predestinados. Isso é o que o Reverendo Júlio chamou do contraste do além com o aquém. Ou o contraste dos aions. Vamos falar disso mais adiante, pois é importante para o entendimento do antes e do depois. Aqui no texto de Romanos, na nossa percepção, a decisão de Deus precedeu o seu decreto. E, para nossa compreensão, é assim que a palavra nos é revelada. É como C. J. Vaughan (comentarista bíblico do século 19 da Igreja Anglicana), citado por Stott, diz: “todo aquele que é salvo pode apenas atribuir sua salvação, do primeiro ao último passo, ao favor e a ação de Deus. O mérito humano deve ser excluído: isso só pode ser feito se considerarmos esse trabalho muito além da obediência que é apenas uma evidência dessa salvação”. Observe-se que o propósito da predestinação não é favoritismo, mas é santificação, separação para sermos como Cristo. É como no princípio, quando Deus criou o homem a sua imagem e semelhança, aqui na sua soberana graça, Deus predestina homens para serem conformes a imagem de seu Filho. 3 e 4 Ele chamou e Ele justificou. O chamamento de Deus é a expressão histórica, no aquém, da sua predestinação, decidida no além. Nós recebemos o chamado de Deus aqui, no curso da história, mas é a expressão de algo que acontece fora da história. Esses que Deus chamou respondem com fé, e aos que tem fé, Deus justifica, aceitando-os como seus. 5 E também glorificou, levando a ressureição e ao céu os que Ele predestinou, chamou, e justificou, dando a eles novos corpos em um novo mundo (1 Tessalonicenses 4:13-18). Aqui o processo de santificação é omitido, pois é um processo exclusivamente do aquém, mas, como ensina F.F. Bruce (falecido em 1990, professor de Criticismo Bíblico da Universidade de Manchester), “santificação é o início da glória; glória é a santificação completa. ” Tão certo é esse estágio final de glória, que é expressado aqui com o verbo no aoristo. Aoristo é um tempo verbal do grego antigo, que expressava a ação pura, sem determinação quanto a duração do processo ou ao seu acabamento. Seria um “passado contínuo”, com um gerúndio acrescido ao significado. No uso bíblico, é chamado de passado profético. Algo que não se completou, está acontecendo, e é tratado como acabado, profeticamente. O que possibilita esse tratamento¿ É a certeza que os desígnios de Deus são todos cumpridos; eles, mesmo que para nós sejam futuros, são como algo já acontecido. É difícil de entender, por causa do contraste dos aions. Tempo é um conceito que os gregos expressavam por meio de três palavras: chrónos, kairós e aión. Chrónos e kairós são mais conhecidos. Chrónos é o tempo como nós o vivenciamos, medido, humano. Kairós é o tempo de Deus, o tempo da ação Dele na história e na criação, que ocorre em momentos diferentes do cronológico que nós achamos que controlamos. Como kairós não segue a corrente do chrónos, Deus acerta sempre. Já o termo aión é menos conhecido, embora ocorra mais de 100 vezes no Novo Testamento. Aión, no dicionário, tem vários significados: o que é para sempre, um longo período de tempo, ou também a eternidade. Em um senso restrito, dentro de um contexto, significa tempo de vida, uma força vital natural, geração, ou simplesmente eterno. Daí as várias traduções, mas estamos mais familiarizados com termos bíblicos como “presente século” e como “porvir” ou “eternidade”. O Reverendo Júlio apresentava o contraste de chrónos e kairós com aión usando os termos mais compreensíveis de aquém x além, em um contexto de presente século x século que há de vir. Isso para explicar a ideia, o conceito que devemos ter em relação a esse contraste, que elucida muitas dúvidas. A ideia, mesmo que não explicita, que temos em relação ao contraste dos aions é que vamos do chrónos para a eternidade, que a eternidade começa quando termina o chrónos. Mas não é assim que vemos na Bíblia. Em 1 Coríntios 2:27 temos “pelo contrário, falamos da sabedoria de Deus, do mistério que estava oculto, o qual Deus preordenou, antes do princípio das eras, para nossa glória”. Antes de haver cronologia, havia Deus; e a Bíblia mostra que a eternidade engloba o chrónos. O Salmo 41:13 diz “Louvado seja o Senhor, o Deus de Israel, de eternidade a eternidade! Amém e amém. ” O chrónos entre duas eternidades! Deus, dentro da ideia de chrónos, vem antes e depois, e engloba o tempo. Daí o conceito que Deus transcende a criação, ao mesmo tempo que Ele é imanente nela. Então nós temos que o conceito de presciência de Deus vem da ideia que temos de Deus. Se entendermos Deus maior que a história, e que a história do ponto de vista de Deus já é acabada, sendo passado, futuro e presente conhecidos, e principalmente, controlados por Deus, entendemos o conceito, não só da presciência, como da predestinação. Tudo corresponde a fatos e propósitos estabelecidos no além. Como ensina o apóstolo Paulo: Efésios 3:9 a 11, ênfase no 11. Entendemos também que Deus exerce um juízo sobre nós, no que diz respeito a salvação, que só depende de nosso relacionamento com Jesus. E isso não vem de nós, mas é dom de Deus. Efésios 2:8 “Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus”. Entendemos também que Deus exerce sobre nós um outro juízo, que chamamos de juízo de galardão. Gálatas 6:7 “ Não se deixem enganar: de Deus não se zomba. Pois o que o homem semear, isso também colherá. ” Somos seres responsáveis, e Deus considera nossas ações. E Ele sempre consegue seus propósitos, sem se impor sobre nós. A Bíblia toda mostra isso. Pode parecer confuso, mas vamos lembrar: Romanos 8:37 “Mas em todas essas coisas somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. ” Solvitur ambulando cum Deo