2016-04-03-Geraldo Valim

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PRAESCIENTIA
Presciência é o título da aula, mas poderia muito bem ser “O propósito
eterno de Deus X Liberdade humana”. Pois esse é o assunto, que levou a
confrontos dentro do cristianismo desde Agostinho, que advogava a
predestinação e foi confrontado por Pelágio, que pregava que a graça era
conseguida por mérito individual. E a “presciência” de Deus nunca é
negada, mas é interpretada de múltiplas formas.
Cumpre esclarecer que, embora a fé seja abordada, vamos falar de
“crença”, de onde veem os “credos”, o que é diferente de Fé. Sem
aprofundar nesse assunto, que pode até ser objeto de outra aula, vamos
entender que a crença é que fornece às pessoas as respostas, o que a fé
não faz. A Fé vem pelo ouvir, a Crença pelo estudo; a Fé é individual,
pessoal, a Crença é coletiva. E importante para nosso estudo: A Fé
pressupõe dúvida; a crença serve para dirimir as dúvidas. Tanto que o
oposto de dúvida não é fé, mas crença. A Fé não é um exercício
intelectual, mas uma experiência existencial. Aqui vamos falar de
“crença”, que pressupõe estudo bíblico e entendimento.
Dentro de uma crença cristã, nada é mais confortador do que saber que
Deus trabalha com rumo certo, e que sempre alcança seus objetivos. E
isso nos leva a certeza logo de início que embora cada cristão,
individualmente, seja responsável por fazer o máximo, dentro de seu
conhecimento do evangelho, para Cristo, tanto dentro de uma igreja
como fora dela, ele não é o responsável final por resultados.
“Nele fomos também escolhidos, tendo sido predestinados conforme o
plano daquele que faz todas as coisas segundo o propósito da sua
vontade”. Efésios 1:11
Deus age de propósito, e sabemos que nesse plano a cruz de Cristo é
essencial, o que fica claro no versículo anterior, “ de fazer convergir em
Cristo todas as coisas” (1:10). O efeito colateral disso é que os crentes
sejam conforme a imagem do filho. Há um plano para a salvação do povo
de Deus, que o apóstolo Paulo nos ensina claramente em Romanos 8:2830. “Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que
o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito. Pois
aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a fim de que Ele seja o primogênito
entre muitos irmãos. E aos que predestinou, também chamou; aos que
chamou, também justificou; aos que justificou, também glorificou. ”
John Stott chama essas declarações do apóstolo de “ cinco afirmações
irrefutáveis”. E essas afirmações são introduzidas no texto por um
versículo que todo crente gosta, e que é muito familiar a nós todos, o 28.
É confortador saber que é Deus que trabalha para que tudo, inclusive as
dores e o sofrimento que foram descritos nos parágrafos anteriores da
epístola, colaboram para o bem dos que foram chamados por Ele. E o
apóstolo engata, na sequência, as cinco afirmações:
1 e a 2 são que Deus tinha presciência, e predestinou. Não é a mesma
coisa, mas há uma relação. A eleição se dá antes da presente era, portanto
havia presciência, e dentro da presente era, somos predestinados.
Isso é o que o Reverendo Júlio chamou do contraste do além com o
aquém. Ou o contraste dos aions. Vamos falar disso mais adiante, pois é
importante para o entendimento do antes e do depois.
Aqui no texto de Romanos, na nossa percepção, a decisão de Deus
precedeu o seu decreto. E, para nossa compreensão, é assim que a
palavra nos é revelada. É como C. J. Vaughan (comentarista bíblico do
século 19 da Igreja Anglicana), citado por Stott, diz: “todo aquele que é
salvo pode apenas atribuir sua salvação, do primeiro ao último passo, ao
favor e a ação de Deus. O mérito humano deve ser excluído: isso só pode
ser feito se considerarmos esse trabalho muito além da obediência que é
apenas uma evidência dessa salvação”. Observe-se que o propósito da
predestinação não é favoritismo, mas é santificação, separação para
sermos como Cristo. É como no princípio, quando Deus criou o homem a
sua imagem e semelhança, aqui na sua soberana graça, Deus predestina
homens para serem conformes a imagem de seu Filho.
3 e 4 Ele chamou e Ele justificou. O chamamento de Deus é a expressão
histórica, no aquém, da sua predestinação, decidida no além. Nós
recebemos o chamado de Deus aqui, no curso da história, mas é a
expressão de algo que acontece fora da história. Esses que Deus chamou
respondem com fé, e aos que tem fé, Deus justifica, aceitando-os como
seus.
5 E também glorificou, levando a ressureição e ao céu os que Ele
predestinou, chamou, e justificou, dando a eles novos corpos em um novo
mundo (1 Tessalonicenses 4:13-18). Aqui o processo de santificação é omitido, pois é
um processo exclusivamente do aquém, mas, como ensina F.F. Bruce
(falecido em 1990, professor de Criticismo Bíblico da Universidade de
Manchester), “santificação é o início da glória; glória é a santificação
completa. ” Tão certo é esse estágio final de glória, que é expressado aqui
com o verbo no aoristo. Aoristo é um tempo verbal do grego antigo, que
expressava a ação pura, sem determinação quanto a duração do processo
ou ao seu acabamento. Seria um “passado contínuo”, com um gerúndio
acrescido ao significado. No uso bíblico, é chamado de passado profético.
Algo que não se completou, está acontecendo, e é tratado como acabado,
profeticamente.
O que possibilita esse tratamento¿ É a certeza que os desígnios de Deus
são todos cumpridos; eles, mesmo que para nós sejam futuros, são como
algo já acontecido. É difícil de entender, por causa do contraste dos aions.
Tempo é um conceito que os gregos expressavam por meio de três
palavras: chrónos, kairós e aión. Chrónos e kairós são mais conhecidos.
Chrónos é o tempo como nós o vivenciamos, medido, humano. Kairós é o
tempo de Deus, o tempo da ação Dele na história e na criação, que ocorre
em momentos diferentes do cronológico que nós achamos que
controlamos. Como kairós não segue a corrente do chrónos, Deus acerta
sempre. Já o termo aión é menos conhecido, embora ocorra mais de 100
vezes no Novo Testamento.
Aión, no dicionário, tem vários significados: o que é para sempre, um
longo período de tempo, ou também a eternidade. Em um senso restrito,
dentro de um contexto, significa tempo de vida, uma força vital natural,
geração, ou simplesmente eterno. Daí as várias traduções, mas estamos
mais familiarizados com termos bíblicos como “presente século” e como
“porvir” ou “eternidade”.
O Reverendo Júlio apresentava o contraste de chrónos e kairós com aión
usando os termos mais compreensíveis de aquém x além, em um contexto
de presente século x século que há de vir. Isso para explicar a ideia, o
conceito que devemos ter em relação a esse contraste, que elucida muitas
dúvidas.
A ideia, mesmo que não explicita, que temos em relação ao contraste
dos aions é que vamos do chrónos para a eternidade, que a eternidade
começa quando termina o chrónos. Mas não é assim que vemos na Bíblia.
Em 1 Coríntios 2:27 temos “pelo contrário, falamos da sabedoria de Deus,
do mistério que estava oculto, o qual Deus preordenou, antes do princípio
das eras, para nossa glória”. Antes de haver cronologia, havia Deus; e a
Bíblia mostra que a eternidade engloba o chrónos. O Salmo 41:13 diz
“Louvado seja o Senhor, o Deus de Israel, de eternidade a eternidade!
Amém e amém. ” O chrónos entre duas eternidades! Deus, dentro da ideia
de chrónos, vem antes e depois, e engloba o tempo. Daí o conceito que
Deus transcende a criação, ao mesmo tempo que Ele é imanente nela.
Então nós temos que o conceito de presciência de Deus vem da ideia que
temos de Deus. Se entendermos Deus maior que a história, e que a
história do ponto de vista de Deus já é acabada, sendo passado, futuro e
presente conhecidos, e principalmente, controlados por Deus,
entendemos o conceito, não só da presciência, como da predestinação.
Tudo corresponde a fatos e propósitos estabelecidos no além. Como
ensina o apóstolo Paulo: Efésios 3:9 a 11, ênfase no 11.
Entendemos também que Deus exerce um juízo sobre nós, no que diz
respeito a salvação, que só depende de nosso relacionamento com Jesus.
E isso não vem de nós, mas é dom de Deus. Efésios 2:8 “Pois vocês são
salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é dom de
Deus”.
Entendemos também que Deus exerce sobre nós um outro juízo, que
chamamos de juízo de galardão. Gálatas 6:7 “ Não se deixem enganar: de
Deus não se zomba. Pois o que o homem semear, isso também colherá. ”
Somos seres responsáveis, e Deus considera nossas ações. E Ele sempre
consegue seus propósitos, sem se impor sobre nós. A Bíblia toda mostra
isso.
Pode parecer confuso, mas vamos lembrar: Romanos 8:37 “Mas em
todas essas coisas somos mais que vencedores, por meio daquele que nos
amou. ”
Solvitur ambulando cum Deo
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