Este trabalho versará acerca do olhar que um muçulmano branco

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ESTEREOTIPIA DO MUÇULMANO NEGRO PARA IBN BATUTTA
Ricardo Cortez Lopes1
(UFRGS)
Resumo: este texto trata da construção do estereótipo de muçulmano negro para Ibn
Batutta, viajante muçulmano do medievo oriental. Dada a abertura do conceito de
representações sociais para Moscovici, inserimos a discussão sobre raça para entender ela
como um intermediário também na construção da subjetividade. Assim sendo,
encontramos alguns comportamentos observados por Batutta que serviram de estrutura
para a construção da modalidade de conhecimento sobre um grupo social específico.
Palavras-Chave: estereotipia; Ibn Batutta; raça;
Abstract: This text deals with the construction of the black Muslim stereotype to Ibn
Batutta, Muslim traveler of the Eastern medieval. Given the openness of the concept of
social representations of Moscovici, we enter the discussion of race to understand it as an
intermediary also in the construction of subjectivity. Thus, we find some behaviors
observed by Batutta that served as a framework for building this type of knowledge of a
particular social group.
Keywords: Social representations; Ibn Batutta; breed;
Introdução
Este trabalho versará sobre a construção de uma representação através de uma
situação de trânsito geográfico. No caso, o olhar que um muçulmano branco - Ibn Batutta
– elaborou e foi levado a elaborar sobre muçulmanos negros no decorrer de uma de suas
1
Doutorando pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul,
Porto
Alegre,
Brasil,
e-mail:
[email protected],
Currículo
Lattes:
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viagens pela mundo islâmico, na época da Idade Média. O tema se mostra relevante
porque estar em fluxo faz parte da própria identidade muçulmana:
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[...] percorriam as terras conquistadas pelo Islã – desde aquelas mais ocidentais,
na península Ibérica, aos limites orientais, próximos da China – sempre buscando
conhecer e preservar a sua herança árabe-islâmica para a posteridade (BISSIO,
2009: 70).
A hospitalidade, para os muçulmanos, é também um dever. Macedo e Marques
(2008: 22) afirmam que:
De modo geral, a figura do viajante era admirada. Devido à obrigação de
peregrinação a Meca e o constante fluxo de peregrinos, a hospitalidade
fazia parte das formas tradicionais de sociabilidade islâmica. Os
peregrinos eram beneficiados com esmolas e desfrutavam do direito de
hospedagem, ficando ainda desobrigados ao cumprimento do jejum do
ramadã e às orações diárias caso fossem atacados ou dominados pelos
“infiéis”.
Abordaremos a construção dessa estereotipia – que é em última análise uma
representação social - a partir de algumas categorias construídas no processo de
convivência: alimentação, presentes e recepção
Ibn Batutta, fluxo muçulmano e a Rihla
Ibn Batutta, conhecido como ““o príncipe dos viajantes” ou o “viajante do islã”
(MACEDO. MARQUES, 2008: 18), nasceu no dia 25 de fevereiro do ano de 1304, e
faleceu entre os anos de 1368 e 1377 (MACEDO, MARQUES, 2008: 21). Sunita,
utilizou-se do costume muçulmano para peregrinar por lugares santos e iniciar uma
sequência de viagens que durou aproximadamente trinta anos (MACEDO, MARQUES,
2008: 21), do que resultou uma obra escrita.
É importante ressaltar que o autor pertence à religião muçulmana, que tem sofrido
atualmente com uma série de estigmas devido a políticas de alguns de seus fiéis, mas que,
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segundo autores, se trata de uma prática muito centrada (AL-SUWAIDI, 2015: 29, conf.
DE CASTRO VIEIRA, 2015) e piedosa (HIRSCHKIND, 2001: 7). Nesse sentido,
precisamos definir alguns contornos dela para contextualizar melhor nosso cenário.
A religião islâmica – que significa “submissão” ao da’wa (HIRSCHKIND, 2001:
6) - teria sido revelada por seu Profeta, que, além de descrever essa palavra no Alcorão,
também teria expresso conhecimento a partir das hadith (os Seus ditos e feitos). O código
de direito chama-se a Sharia que regula a comunidade que se organiza em volta da prática,
a Ummah. (conf. DE CASTRO VIEIRA, 2015, HIRSCHKIND, 2001: 6). O Islamismo
conta com cinco pilares de fé: (1) as profissões de fé (Shahada), (2) as orações (Al-Salat),
(3) mês do jejum (Ramadã), (4) as esmolas (Zakat) e (5) a peregrinação (Al Hajj) (conf.
MUBARAK, 2014). Ummah que está sendo conhecida “fisicamente” pelo viajante, e que
dá origem ao julgamento étnico que investigaremos nesse espaço.
O fragmento de obra a que nos propomos a analisar faz parte de um gênero
“literário” de relato chamado Rihla (“que significa “viagem”, “périplo”” (BISSIO, 2009:
71). O Rihla de Batutta aborda “setenta e cinco mil milhas em três continentes, passando
por quarenta e quatro países do mundo atual” (MACEDO, MARQUES, 2008: 18).
O objetivo de um viajante era o de percorrer “[...] domínios muçulmanos para ir
ao encontro dos grandes mestres, com os quais seria possível aperfeiçoar os estudos, era
a condição sine quo non para entrar no seleto reduto dos sábios.” (BISSIO, 2009: 67).
Nas palavras de Maomé, “aqueles que viajam a procura de conhecimento estarão no
caminho de Deus até o seu retorno” (BISSIO, 2009: 68).
Além dessa necessidade há também a busca pelo adab, palavra “que não tem
equivalente nas línguas ocidentais pela amplidão de conceitos que encerra, e que, na falta
de outra melhor, tem sido traduzida por “cultura” (BISSIO, 2009: 69). As dificuldades da
viagem eram o preço do aprimoramento dos conhecimentos (BISSIO, 2009: 69), para
além da própria “transmissão epistemológica” do mesmo.
O objetivo do Rihla não é o de tão somente descrever a geografia física dos locais
visitados pelo autor - muito embora esta tenha sido a utilidade quando do momento da
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criação deste gênero (BISSIO, 2009: 72) – de modo a apenas exercer uma atividade de
mapeamento. É, antes disso tudo:
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[...] descrever [...] instituições sociais, políticas, econômicas, culturais.
Estamos diante de narrativas longas, escritas em primeira pessoa, com a
finalidade de descrever com maior ou menor profundidade a experiência
de uma ou mais viagens.
De maneira que existe uma certa organização do texto em grandes tópicos, que
constituem uma descrição
[...] da experiência da viagem comporta informações de natureza
econômica (produtos comercializáveis, atividades locais desenvolvidas),
de natureza política (forma de governo, condições e possibilidade de
intercâmbio), de natureza social (grupos e instituições particulares) e de
natureza cultural (crenças, tradições, mitos, lendas hábitos e costumes)
[grifos nossos] (MACEDO, MARQUES, 2008: 18)
Mas que podem sofrer mais minúcias ainda:
a) descrição geral dos lugares visitados; b) menção aos santuários e lugares
de culto; c) breve descrição de seus contatos e informantes; d) lista dos
notáveis (sultões, sheiks, emires) e líderes religiosos; e) retrato do
governante das terras visitadas com suas qualidades pessoais, beleza física
e conduta moral, caráter, generosidade e posição entre os demais
soberanos; f) apreciação de audiências públicas e etiqueta palaciana, com
a descrição dos palácios; g) apreciação das orações prescritas na lei
corânica; h) descrição das rainhas e princesas.
Essa seria a estrutura dos relatos de Batutta. As Rihla demonstram que há uma
mudança em curso, e que o deslocamento torna essas gradações muito mais visíveis:
[...] apesar de estar politicamente dividido e de ocupar a maior parte do mundo
conhecido, o islã continuava tendo uma grande unidade cultural. Fronteiras
intangíveis, porém nítidas, de caráter cultural, separavam a umma do resto do
mundo, dominado por não-muçulmanos, chamados “infiéis” (BISSIO, 2009: 71).
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O momento histórico era o de consolidação dos domínios muçulmanos, o que
permitia que o islão se voltasse para si mesmo e refletisse sobre a prática ao perceber seus
ensinamentos serem absorvidos e ressignificados por outras coletividades (BISSIO, 2009:
71):
Na área sudanesa, os contatos com o islã foram muito superficiais até o
século XI. Daí até o século XVI, houve um gradual e irregular processo de
islamização, cujo alcance, no máximo, foram as áreas urbanas e as
camadas dirigentes. Os intercâmbios culturais e os contatos humanos que
as redes comerciais proporcionaram estão entre os fatores principais da
inserção do Islã. Nesta primeira etapa, que alguns denominam de “Islã de
Corte”, o mais comum era que membros das dinastias reais africanas
adotassem a religião monoteísta, inclusive por razões políticas (pois a
doutrina islâmica fornecia elementos que capacitavam maior organização
e centralização do poder), sem esquecer as solicitações das crenças locais.
Desde as pesquisas de Nehemia Levtizion, admite-se que as relações entre
o islamismo e as religiões africanas tenham oscilado entre a acomodação
e o confronto e que as bases ideológicas do poder dos chefes de Estado
tenham assentado nos princípios e nas práticas religiosas tradicionais dos
clãs (MACEDO, MARQUES, 2008: 27).
Por fim, “certas correspondências entre o Islã e os cultos africanos levaram a que
se produzisse um amplo conjunto de crenças amalgamadas, sincretizadas, que alguns
especialistas denominam de islã negro” (MACEDO, MARQUES, 2008: 29).
Pouca simpatia do viajante pelos sudaneses, aspecto recorrente em toda a
narração de viagem. Ele os qualifica como gente mal educada, cheia de
desprezo pelos “brancos”. Esta rejeição mostra-se desde a descrição da
hospitalidade que lhe ofereceram em Iwatan (MACEDO, MARQUES,
2008: 24)
A narrativa - ou pelo menos, a última parte desta - que iremos abordar foi escrita
na última viagem - a oitava, realizada no ano de 1352 (BISSIO, 2009: 76) - de Ibn Battuta,
direcionada para o Mali, acompanhando uma caravana (MACEDO, MARQUES, 2008:
22).
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Representações Sociais e Estereotipia
A teoria de representações sociais visa analisar, a partir de uma perspectiva da
psicologia social, modalidades de conhecimento prático dirigidas para a comunicação e
para a compreensão do contexto social (JODELET, 1985: p. 31). São formas de
conhecimento que se manifestam como elementos cognitivos tais como imagens,
conceitos, categorias, teorias - mas que não se reduzem aos seus componentes cognitivos.
Segundo Moscovici (1981: 181), seriam as Representações Sociais “[...]um conjunto de
conceitos, proposições e explicações criados na vida quotidiana no decurso da
comunicação interindividual”. (MOSCOVICI, 1981: p. 181). Ou seja, são maneiras
representacionais socialmente compartilhadas estruturantes e estruturadas (SPINK, 1993:
p. 303) de se explicar o mundo revestidas da dinâmica própria que envolve os mecanismos
do meio social, criando, assim, uma realidade comum (BAPTISTA, 1996: p. 2).
Vamos chegar à essas representações sociais através da técnica de análise de
conteúdo, um conjunto de instrumentos metodológicos para a análise de uma série de
manifestações diversificadas de algum enunciado (BARDIN, 1977: p. 9). A análise de
conteúdo busca o que está latente ou escondido da mera percepção cognitiva (BARDIN,
1977: p. 9). Definida a técnica de abordagem, inicia-se o método propriamente dito.
Bardin afirma que há 3 fases deste método: (a) a pré-análise (leitura flutuante), (b) a
exploração do material e (c) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação
(BARDIN, 1977: p. 95).
As representações sociais podem ou não desembocar em estereotipias:
Do ponto de vista genético, os estereótipos surgem como representações
partilhadas que reflectem e têm origem em projectos, problemas e estratégias dos
grupos sociais. [...] Tal como as representações sociais, os estereótipos têm como
função formar e orientar, tanto a comunicação como os comportamentos. As
representações sociais, quando surgem sob a forma de estereótipos sociais, são
«teorias sociais práticas», [...] «um saber prático», [...] «organizadores das
relações simbólicas entre os actores sociais». [...] Trata-se, no entanto, de dois
conceitos diferentes, pois remetem para dois níveis de abordagem cujo grau de
generalidade difere: se os estereótipos sociais podem ser vistos como formas de
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representação social, nem todas as representações sociais dão origem a
estereótipos (BAPTISTA, 2004: 4)
As estereotipias nascem de erros de atribuição causal:
Investigações realizadas no âmbito da teoria da atribuição causal, ao procurar
esclarecer «o processo de julgar as intenções e disposição dos indivíduos a partir
das suas acções», [...] detectaram a existência do que se pode designar o «erro
fundamental na atribuição». Tal erro consiste na frequente tendência que os
indivíduos apresentam em atribuir a causas internas a explicação dos seus
próprios comportamentos e, sobretudo, dos comportamentos dos outros
(disposições, traços de personalidade, atributos pessoais, etc.) (BAPTISTA,
2004: 7)
É importante ressaltar, no entanto, que a teoria das representações sociais possui
uma abertura para o aporte de outros conceitos. Gostaríamos de trazer para esse trabalho
a noção de raça, porque esse fator está completamente imbuído na construção da
estereotipia referida.
Conceito de raça: uma revisão
É importante ressaltar que, devido à natureza de nosso problema, poderíamos
optar ou pelo conceito de etnia ou pelo de raça. Embora muitos autores juntem as duas
categorias, dado que são formas de hierarquização (NOGUEIRA, 2015: 6), vamos optar
pelo conceito de raça devido a este também ter um acento biológico, diferentemente do
de etnia - que nos parece mais adequado, isso sim, para sociedades contemporâneas, onde
a globalização contribui para outras (re)configurações de identidades e outras
interseccionalidades. Ademais, para além dessa dimensão epistêmica, acreditamos que
podemos contribuir para a discussão desse conceito que “[...]parece estar no centro de
uma constelação de debates cruciais, não só no Brasil, mas no mundo; não só na
antropologia, mas na vida pública” (PINHO,2008: 9).
Observar o conceito de raça é acompanhar um conceito em ebulição constante do
ponto de vista temporal. Isso porque ele assumiu uma série de significações. Mas
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previamente a essa polissemia existe o conceito de raça. Se hoje em dia ele é mais
considerado como “marca ou traço fenotípico” (IANNI, 2004: 2): “Essa palavra “raça” tem
pelo menos dois sentidos analíticos: um reivindicado pela biologia genética e outro pela
sociologia” (GUIMARÃES, 2003: 95).
Porque a sociologia se volta justamente contra uma ideia biológica:
[...]Vamos voltar, por um momento, ao final do século XIX para lembrar que
quando a sociologia se forma — lemos isso em Marx [...], em Durkheim [...], em
Boas [...] — ocorre um deslocamento em termos de explananda: abandonamos as
explicações sobre o mundo social baseadas em raça ou clima, em favor de
explicações baseadas no social e na cultura. O que funda as ciências sociais é essa
idéia de cultura. Que idéia é essa? É a idéia de que a vida humana, a sociedade
política, etc., não são determinadas, de uma maneira forte, por nada além da
própria vida social [...] Assim se constituiu o campo das ciências sociais
(GUIMARÃES, 2003: 95)
Mas e a dimensão biológica? Ela que foi base de derivação para a explicação de
comportamentos sociais. Que não foi abordada exclusivamente da biologia, mas também
da antropologia física que:
[...] criaram a idéia de raças humanas, ou seja, a idéia de que a espécie humana
poderia ser dividida em subespécies, tal como o mundo animal, e de que tal
divisão estaria associada ao desenvolvimento diferencial de valores morais, de
dotes psíquicos e intelectuais entre os seres humanos. [...] isso foi ciência por
certo tempo e só depois virou pseudociência. Todos sabemos que o que
chamamos de racismo não existiria sem essa idéia que divide os seres humanos
em raças, em subespécies, cada qual com suas qualidades. Foi ela que
hierarquizou as sociedades e populações humanas e fundamentou um certo
racismo doutrinário.
Mas essa ideia não ficou tanto tempo assim como sendo considerada ciência séria,
porque o próprio contexto histórico parece ter afetado a prática científica:
Depois da tragédia da Segunda Guerra, assistimos a um esforço de todos os
cientistas — biólogos, sociólogos, antropólogos — para sepultar a idéia de raça,
desautorizando o seu uso como categoria científica. O desejo de todos era apagar
tal idéia da face da terra, como primeiro passo para acabar com o racismo. Alguns
cientistas naturais, biólogos, tentaram impedir o uso do conceito na biologia,
mesmo que tenha ficado claro que ele não pretendia mais explicar a vida social e
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as diferenças entre os seres humanos; propuseram que o seu nome fosse mudado,
que se passasse a falar de “população” para se referir a grupos razoavelmente
isolados, endogâmicos, que concentrassem em si alguns traços genéticos. Essa
idéia de “população”, apesar de próxima de “raça”, seria extremamente útil em
alguns estudos biológicos e, ao mesmo tempo, evitaria as implicações
psicológicas, morais e intelectuais do antigo termo. Mesmo que se possa
demonstrar estatisticamente que a população mundial, em termos genéticos, não
pode ser dividida em raças, seria necessário, para alguns biólogos, conservar a
idéia da existência desses grupamentos geneticamente mais uniformes
Mas ainda houve uma outra transformação:
A “raça” não é uma condição biológica como a etnia, mas uma condição social,
psico-social e cultural, criada, reiterada e desenvolvida na trama das relações
sociais, envolvendo jogos de forças sociais e processos de dominação e
apropriação. Racializar uns e outros pela classificação e hierarquização revela-se
inclusive uma técnica política, garantindo a articulação sistêmica em que se
fundam as estruturas de poder. Racializar ou estigmatizar o “outro” e os “outros”
é também politizar as relações cotidianas, recorrentes, em locais de trabalho,
estudo e entretenimento; bloqueando relações, possibilidades de participação,
inibindo aspirações, mutilando a praxis humana, acentuando a alienação de uns e
outros, indivíduos e coletividades. Sob todos os aspectos a “raça” é sempre
“racialização”, trama de relações no contraponto e nas tensões “identidade”,
“alteridade”, “diversidade”, “desigualdade”, compreendendo integração e
fragmentação, hierarquização e alienação [...] Um segredo da constituição da
“raça”, enquanto categoria social, está na acentuação de algum signo, traço,
característica ou marca fenotípica por parte de uns e outros, na trama das relações
sociais. Simultaneamente, na medida em que o indíviduo em causa, podendo ser
negro, índio, árabe, judeu, chinês, japonês, hindú, angolano, paraguaio ou portoriquenho, está em relação com outros, aos poucos é identificado, classificado,
hierarquizado, priorizado ou subalternizado (IANNI, 2004: 23)
Ou seja, para essa vertente, formar raças significa criar estigmas. Todas essas
preleções só mostram como a ideia de raça é polêmica nas próprias ciências sociais. O
próprio Alcorão, por exemplo, prevê questões de crença – “Os não-muçulmanos, para
serem dhimmis, devem aderir a um pacto coletivo (dhimmah) aceitando as regras gerais
da Comunidade de Fiéis e tendo, em contrapartida, a proteção jurídica, a segurança
patrimonial e a liberdade religiosa” (DE CASTRO VIEIRA, 2015: 190) – e de gênero,
mas a questão racial pareceu uma novidade para nosso autor. De modo que esse nos
parece ser um caminho frutífero de investigação, dado que essa interseccionalidade (conf.
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RODRIGUES, 2013) também está inevitavelmente inserida na constituição da Ummah,
devido ao seu assento universalista de querer integrar a toda a humanidade.
100
Presentes recebidos das autoridades locais
Egresso de uma sociedade patriarcal, o viajante espanta-se ao constatar que o reino
do Mali era de organização matrilinear (MACEDO, MARQUES, 2008: 33).
Os presentes são uma espécie de compromisso com a transmissão do islã, um ato
de fé, nesse sentido. Porque o fluxo do fiel pela sua Umma faz parte da cosmogonia
religiosa intrinsecamente. É como se fosse uma dádiva que permite que o sistema siga.
O relato de Ibn Batutta demonstra, ao dialogar com um soberano que não lhe
cedera nenhuma espécie de ajuda para apetecer sua estadia, sua indignação perante à
indiferença do interlocutor.
He viajado por las regiones de La Tierra y conocido a sus reyer, ahora estoy en
tu país desde hace cuatro meses, sin que me ofrezcas hospitalidad ni me des nada,
que diré de ti ante los otros soberanos? (BATUTTA, 1987: 776)
A reação do soberano negro ilustra um desamparo institucional para o recémchegado, o que não é costume do islão para com viajantes. Nesse sentido, nos parece que
Ibn aponta um estranhamento para com um “outsider”, o que poderia se derivar para outra
categoría identitária: os dhimmis. Assim sendo, essa desconfiança causa o estranhamento
pelo contraste. Ou seja, demarca-se um carácter institucional.
A alimentação
Quem atravessa muitos reinos submete o paladar a uma boa faina de novidades.
Não é de se surpreender que Ibn Batutta reserve sempre um espaço de seus relatos para a
descrição da culinária da região.
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Uma iguaria que aparentemente Ibn Batutta nunca ouvira falar e é a carne de uma
espécie de vaca do deserto, que, segundo este, a ingestão resultaria em sede para o
consumidor.
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Este desierto […] Abundan alli las vacas salvajes [addax] y se acercan en rebaños
a la caravana hasta el punto de que los viajeros pueden cazarlas con perros y
flechas, pero su carne da sed y por eso las gentes se guardan de comerla. Es
curioso que cuando se mata a estas vacas en sus tripas se halla agua (BATUTTA,
1987: 769).
Outra desventura gastronômica de nosso desbravador:
Diez dias después de llegar allí comimos una ‘asida condimentada con algo
semejante a la colocasia – que llaman – qafi y que es más apreciada entre ellos
que cualquier otra comida – y caímos todos enfermos. Éramos seis y uno de
nosostros murió. […] Pedí a cierto egipcio algún rémedio purgante y me trajo uno
llamado baydar […]. Ingerí el bebaje y vomité cuando comiera junto com mucha
bilis amarilla. Dios me salvó de la muerte pero estuve enfermo dos meses.
(BATUTTA, 1987: 769).
O modo como foram expressos os episódios mostram uma surpresa. O que faz
Batutta concluir que há certas comidas que se reservam estritamente ao consumo de
negros, com as quais os brancos não devem tomar contato. Isso aponta para a concepção
de uma outra constituição fisiológica.
Os moradores
Depois de averiguar a questão institucional, é possível avançar-se para a dimensão
da relação interpessoal.
Ibn Batutta considera muito importante o modo como é recebido pelas populações
autóctones, muito embora não deixe impressões muito claras sobre como as pessoas que
estão fora dos postos administrativos o tratam. Tal “seleção” pode indicar que o autor
falava apenas com pessoas estratégicas: guias do deserto, o sultão, administradores locais.
Esta impressão que ficou do texto é corroborada pela afirmação de Macedo e Marques
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(2008: 21): “por todos os locais por onde passou, Ibn Battuta estabeleceu contato com as
autoridades locais, às vezes sendo hospedado e alimentado gratuitamente e às vezes
prestando serviços administrativos”.
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Uma idiossincrasia que chamou muita a atenção do viajante foi a questão da
educação. Como não houve um comparativo com outros povos, podemos supor que se
trata de uma genuína característica do povo observado.
Mas outro tópico interessante é o do que ele convencionou como má-educação:
Cierto dia Bajé al Nilo para cumplir uma necessidad y he aquí que un negro
vino y se plantó entre el cauce y yo, quedé espantado de su mala educación
y desvergüenza y referí el asunto a algunas personas que me dijeron: “Hizo
eso porque temía por ti, para protegerte del cocodrilo se situó entre tú y el”
(BATUTTA, 1987: 774).
Ou seja, um traço bem marcante seria exatamente essa falta de comunicabilidade
intenção, o que dá a impressão de que existe uma má educação. Mas isso é um outro traço:
a incapacidade comunicativa.
Os costumes religiosos
A profissão de fé muçulmana afirma claramente que “Alá é o único deus, e Maomé
o seu único profeta”. Maomé adquirira essa condição de canal da vontade da divindade,
mas não assumira o papel de divindade. Por este motivo, como se sabe, não aceitava
Muhamed ser venerado do mesmo modo como seu deus.
Ibn Batutta pensa que “los negros son La gente más sometidas a su soberano y la
que más se humilla ante él” (BATUTTA, 1987: 778). Diante das demonstrações de
devoção dirigidas aos líderes tribais, afirma o nosso viajante que “Yo quedaba
assombrado de cómo no se les cegaban los ojos” (BATUTTA, 1987: 778).
Tão cega obediência provavelmente
indignou Ibn, visto que criaria ídolos
intermediários à adoração e servilidade exclusiva à Alá.
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Todavia, o viajante parece compreender mais tardiamente que a religião islâmica
não está puramente aplicada no território do Mali. A respeito desse hábito não-islâmico
que lhe parece bastante desagradável, afirma: “se me informo que ésta es costumbre
antigua entre ellos, anterior a La adopción Del Islam y mantenida posteriormente”
(BATUTTA, 1987: 780).
A estereotipia do negro muçulmano
Um cientista social precisa sempre identificar os conceitos dos “nativos” e os
conceitos de análise (GUIMARÃES, 2003: 94). Nesse ponto em que já levantamos uma
série de aspectos, procederemos à análise do ator – Batutta – e depois a nossa própria
análise sociológica.
Vamos começar pelos conceitos nativos. Sobre o comportamento dos negros,
Batutta elenca três pontos positivos e dois pontos negativos (MACEDO, MARQUES,
2008: 27). Entre as características positivas: a da justiça existente, a da segurança do
território (livre de assaltantes de viajantes), da assiduidade no cumprimento das rezas
islâmicas. Entre as negativas, o fato de as servas e as mulheres livres andarem nuas pelos
locais e de os súditos que palestravam com o rei terem de atirar terra à cabeça como um
requisito para ser recebido.
Agora vamos analisar sociologicamente o material coligido. Assim, resulta um
estereótipo de negro muçulmano que explica o comportamento deste a partir de um erro
de atribuição causal. E esse estereótipo explica determinados comportamentos
O primeiro comportamento que pareceu-nos mais ressaltado foi a desconfiança
com os outsiders. Isso fica bem evidente na relação que chamamos de institucional,
quando não foram entregues presentes, como manda a tradição islâmica.
Essa desconfiança resulta em uma falta de comunicabilidade na dimensão
ordinária, que aparenta uma má educação. Isso fica claro quando se vê que o negro
muçulmano do dia a dia compartilha com o seu soberano essa característica. Se no líder
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isso resulta em uma indiferença institucional, no súdito isso pode significar uma série de
conflitos com outsiders.
Outra questão parece ser biológica, intermediada a partir da culinária. Isso porque
a constituição física do negro muçulmano permite que se coma esses gêneros sem passar
mal. Assim, para além da prática, há ainda uma diferença fisiológica que também demarca
uma diferença, porque nem mesmo a comida parece ser receptiva para brancos.
Um último caracter é a devoção exagerada ao seu rei. Nesse sentido, parece que
existe uma conversão menor ao islamismo, porque faz o rei parecer menos califa diante
da Ummah.
Conclusão
Neste artigo investigamos o estereótipo de muçulmano negro para um viajante do
Medievo Oriental, Ibn Batutta. Para a análise dos dados nos utilizamos da teoria das
representações sociais, uma vez que estereótipos são representações sociais colocadas em
práticas.
Assim, encontramos uma série de comportamentos que são associados à
identidade racial, como a desconfiança, a má educação, a biológica e a devoção
exagerada. Esses comportamentos engendram uma estereotipia específica e analisam e
explicam atitudes de sujeitos que possuem essa identidade. É importante ressaltar que
esses relatos e esses julgamentos serviam de “mapeamento” para autoridades islâmicas
da época, daí a sua capacidade de construção de conhecimentos sobre outros.
Concluímos esse texto com algumas reflexões finais.
A primeira delas é de como a questão racial pode ser menos complexa em tempos
pré-modernos no tocante à sistemas classificatórios - que na época de circulação de
informações, se torna as vezes uma questão de gradiente mais do que uma diferença
completa (GUIMARÃES, 1999: 39), de modo que o próprio Batutta poderia não ser
considerado como branco nos dias de hoje – mas que essa falta de circulação de
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informações também acelera a formação de estereótipos com muito mais velocidade e
permanência.
A segunda delas diz respeito à condição de viajante. O viajante coloca seu mundo
em movimento e abre seu ser-aí para o não-cotidiano. Nesse sentido, é interessante
quando acompanhamos essa prática a partir de um parâmetro fixo, como o da
religiosidade. Assim é possível acompanhar a mudança tanto das crenças individuais
quanto conhecer a prática de sua sociedade na comparação com outras práticas. E assim
mergulhar com mais profundidade na experiência do autor, mudando junto com ele.
Concluímos o texto com a afirmação de que não se trata da formação de um
estigma racial, o que, no nosso entender, acrescenta uma raça sem racismo aos estudos
sobre raça. Não nos pareceu se tratar de uma hierarquização social. Nos pareceu mais
uma situação de atribuição causal de uma categoria social que não entraria em contato
direto com a Ummah. Ou seja, não se trata de uma classificação para uma convivência
direta – nem indireta, como acontece com a globalização - o que exclui, ao nosso ver, o
rótulo de estigma. Situação que coloca novos desafios teóricos.
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