PROJETO – Elaborar e revisar protocolos assistenciais pediátricos em terapia intensiva. INTERLOCUTOR – Zina Maria Almeida de Azevedo – [email protected] PROTOCOLO PARA ABORDAGEM DA CRIANÇA COM DENGUE GRAVE NA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA PEDIÁTRICA Caixeta, D.M.L. e Azevedo Z.M.A. 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS: Febre hemorrágica da dengue (FHD) e síndrome do choque da dengue (SCD) são importantes causas de internação em UTI pediátrica, principalmente em epidemias sazonais1. Embora a taxa de mortalidade de todas as formas de dengue varia de 1 a 26%, esta pode chegar a 47 % nas formas graves2. O reconhecimento do impacto desta doença levou a Organização Mundial da Saúde a criar um protocolo para o diagnóstico e manejo da dengue. Este protocolo é útil para o estadiamento dos doentes e para a fase de ressuscitação volêmica inicial, mas não engloba o tratamento das formas complicadas incluindo aquelas com choque refratário, disfunção cardíaca, síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), coagulação intravascular disseminada (CIVD) e disfunção múltipla de órgãos e sistemas (DMOS)3. Em 2008 aconteceu uma alarmante epidemia no Rio de Janeiro. Foram notificados 145.350 casos no estado, segundo dados da Secretaria de Saúde e Defesa Civil, de janeiro a maio de 2008. Até 15 de maio foram confirmados 109 óbitos por dengue, sendo 46 (42%) na faixa etária pediátrica (0 a 15 anos)4. No mesmo período, na Unidade de Pacientes Graves (UPG), UTI Pediátrica da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), foram internados 53 crianças com formas graves da dengue. Vinte e três pacientes (43%) com febre hemorrágica da dengue e 30 (57%) com síndrome do choque da dengue. Das crianças internadas com choque, 13(43%) apresentaram disfunção cardíaca grave, 19 (63%) ficaram em ventilação mecânica e 11 tiveram diagnóstico de SDRA. Dentre os pacientes internados com dengue grave na UTI, 5 (9,4%) evoluíram para o óbito. Como causa do óbito, um paciente morreu por arritmia cardíaca, outro por hemorragia pulmonar e três por choque refratário. Todos apresentavam disfunção múltipla de órgãos e sistemas. Revisão da literatura mostrou escassez de dados e informações sobre o manejo das crianças com formas graves da dengue dentro da UTI pediátrica, principalmente com síndrome do choque da dengue, que possui particularidades importantes em relação ao choque séptico. O objetivo desta revisão é a abordagem sistematizada das formas graves de dengue dentro de uma Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP). FIOCRUZ Ministério da Saúde Fundação Oswaldo Cruz Instituto Fernandes Figueira 2 2. DIAGNÓSTICO CLÍNICO: A característica fisiopatológica que diferencia as formas benignas da dengue da FHD é a presença de aumento da permeabilidade capilar5,6. O termo FHD é inapropriado, uma vez que dá ênfase à hemorragia, nem sempre presente nas formas graves, e quando isto ocorre, é uma manifestação tardia e associada ao choque prolongado e refratário, levando à disfunção orgânica múltipla e coagulação intravascular disseminada (CIVD). Deve estar claro que o que leva as crianças com dengue ao óbito não é a hemorragia, mas o choque, muitas vezes não reconhecido, o que leva ao atraso da reposição volêmica e demora para a indicação e transferência para a UTIP7. Segundo a Organização Mundial da Saúde (WHO 1999), para a definição de FHD são necessários quatro critérios8,9 : - febre ou história recente de febre; - manifestações hemorrágicas; - plaquetopenia (100000/mm³ ou menos); - evidência objetiva de aumento da permeabilidade capilar: - aumento do hematócrito (20% ou mais) - hipoalbuminemia - sinais de saída de plasma (derrame pleural, ascite, hipoproteinemia) - diminuição do hematócrito após a reposição . Ocorrendo hemoconcentração e plaquetopenia, o paciente é considerado como portador de FHD e será caracterizado de acordo com a classificação de gravidade, também definida pela OMS: - Grau I : Ausência de sangramento espontâneo; - Grau II: Presença de sangramento espontâneo; - Grau III : Síndrome do choque da dengue. Sinais de choque (pulsos finos, alteração da perfusão e do sensório, oligoanúria, pressão arterial normal, alta ou baixa) - Grau IV: Síndrome do choque da dengue. Sinais de choque e com pulsos indetectáveis ou pressão arterial imensurável. Para a abordagem adequada da FHD e da SCD é necessário o conhecimento das fases da dengue. Inicia como uma doença viral febril, que dura 2 a 7 dias. No momento da defervescência, há a plaquetopenia e o aumento da permeabilidade capilar, com o aumento do hematócrito e a instalação do choque. A fase de extravasamento capilar dura de 24 a 36h, com períodos intermitentes de maiores perdas e súbita piora do choque, que se não reconhecido e tratado, leva ao prolongamento da doença, à DMOS e ao óbito10. 3. CONFIRMAÇÃO LABORATORIAL: A confirmação etiológica é desejável em todos os casos de dengue, porém é absolutamente desnecessária para o início das medidas terapêuticas, cujo retardo pode colocar em risco a vida do paciente11. I. Isolamento do vírus no estágio febril (até o sétimo dia de doença)- por cultura ou por reação em cadeia da polimerase (PCR). II. Sorologia (a partir do sexto dia de doença e 14 dias depois)- por ensaio imunoenzimático para detecção de IgM ( MAC-ELISA). A reatividade perdura por cerca de 2 meses. 3 4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL: Mesmo diante de uma epidemia de dengue, é fundamental avaliar o difícil diagnóstico diferencial com choque séptico, meningococcemia, leptospirose, malária e febre amarela. 5. CRITÉRIOS PARA INTERNAÇÃO NA UTI PEDIÁTRICA: 5.1) Comprometimento circulatório: Síndrome do choque do dengue que não respondeu ao volume ou que necessitou de mais de 60 ml/Kg de volume ou apresenta ao exame físico sinais de disfunção cardíaca ou de hipoperfusão tecidual (bradicardia acentuada relativa ao grau de choque, bulhas hipofonéticas, estertores crepitantes ou bolhosos ou aumento do fígado após expansão volêmica, extremidades com cianose em luva e bota, traduzindo enchimento capilar lentificado, oligúria ou anúria, lactato sérico alto, acidose metabólica). 5.2) Desconforto respiratório, que não melhora após administração de oxigênio suplementar sob a forma de máscara ou tenda. Hipóxia, apesar do oxigênio inalatório. Hipercarbia ou PCO2 anormalmente alto para o grau da taquipnéia, sinalizando fadiga respiratória. 5.3) Alteração do sensório, desde irritabilidade e agitação psicomotora à letargia, torpor e coma. É necessária a observação rigorosa à beira do leito, pois as crianças graves freqüentemente apresentam alternância do sensório, ora está normal e ora está alterado. 5.4) Sangramento anormal. Pacientes que apresentam sangramento incontrolável ou de sítios nobres, como em vias aéreas ou em locais de cirurgia recente. E naqueles com doença hematológica de base. 5.5) Manifestações raras da dengue, como encefalopatia, hepatopatia e cardiomiopatia12,13. 6. MONITORIZAÇÃO: Uma vez internados na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica, os doentes devem ser reavaliados pela equipe de enfermagem e pelo médico periodicamente e serem monitorizados de forma contínua. I. Monitor multiparamétrico, com cardioscópio, oxímetro de pulso e aferições da pressão arterial não invasiva . II. Aferição, de forma contínua acoplada ao monitor multiparamétrico ou periódica, da pressão venosa central (PVC). III. Monitorização da pressão arterial invasiva (PAi). IV. Aferição do débito urinário (diurese horária). V. Aferição seriada da pressão de pulso. VI. Avaliação da saturação venosa central do oxigênio (SvcO2), através de gasometria de sangue colhido do cateter venoso em veia cava superior, ou continuamente , com monitor específico. VII. Monitorização contínua do débito cardíaco, através de cateter na artéria pulmonar (Swan-Ganz), quando disponível, ou por métodos menos invasivos, como monitores que estimam o débito cardíaco através de doppler transesofageano, de análise do contorno do pulso arterial, de 4 termodiluição transpulmonar, ou mesmo intermitente, através de ecocardiogramas seriados. 7. EXAMES LABORATORIAIS: Na internação do paciente na UTI pediátrica devem ser realizados os seguintes exames: I. Sangue: - Hemograma, para avaliação do hematócrito inicial, série branca e contagem de plaquetas; - Coagulograma, para identificação de distúrbios da coagulação; - Tipagem sanguínea e fator Rh; - Hemocultura com antibiograma, para identificação de co-infecções bacterianas e fúngicas; - Albumina sérica, para avaliação de aumento da permeabilidade vascular; - Ionograma, para correção de distúrbios eletrolíticos; - Gasometria arterial, para avaliar presença de hipoxemia, hipercarbia e distúrbios ácido-básicos; - Gasometria venosa, se cateter na veia cava superior, para aferição da saturação venosa central; - Lactato sérico, para identificação e monitoramento do choque; - Enzimas cardíacas, principalmente troponina T, se houver suspeita de disfunção cardíaca; - Avaliação da função hepática, com dosagem de bilirrubinas, transaminases, além do TAP e albumina; - Avaliação da função renal, com dosagem das escórias nitrogenadas; - Marcadores de inflamação e proteínas de fase aguda, como a proteína C reativa (PCR), pro-calcitonina. II. Urina: - Urinocultura com antibiograma; - EAS para avaliação de hematúria. III. Radiografia de tórax. IV. Ultrassonografia de tórax, se houver suspeita de derrame pleural volumoso. V. Ultrassonografia abdominal, se houver suspeita de ascite volumosa. VI. Ecocardiograma, para estimar a volemia e avaliar a função cardíaca. A realização dos exames não deve retardar o tratamento do paciente. Não esperar o resultado para o início da abordagem do choque. 8. MONITORAMENTO LABORATORIAL: I) Hematócrito: A determinação do hematócrito (ou mesmo microhematócrito, operacionalmente mais simples) permite detectar a perda de líquidos para o 5 espaço extravascular e também é um dos parâmetros de avaliação de resposta à hidratação e expansão volêmica, na ausência de sangramento14. Deve ser medido a cada 2 horas durante o período de instabilidade. Após estabilização, deve ser aferido a cada 4 a 6 horas durante as primeiras 24 horas. II) Contagem de plaquetas: Deve ser realizada a cada 12 horas enquanto o paciente permanecer plaquetopênico ou quando surgir um episódio de sangramento espontâneo. 9. ABORDAGEM DO CHOQUE: A abordagem do choque começa com o seu reconhecimento precoce, nem sempre fácil, uma vez que não há perdas mensuráveis, os sinais clínicos característicos de desidratação (como choro sem lágrimas, mucosas secas, turgor da pele diminuído, taquicardia ) podem estar ausentes e pode não haver hipotensão nas fases mais iniciais. 9.1) Particularidades do choque da dengue: O início do choque na síndrome do choque da dengue segue uma sequência temporal típica. Há o estabelecimento do choque hipovolêmico pelo aumento da permeabilidade capilar, com extravasamento de plasma para o espaço extravascular, no momento, ou logo após o período de defervescência da febre da dengue. Normalmente as crianças apresentam história de febre, mas freqüentemente estão sem febre no momento da admissão15. Há sinais de choque, como extremidades frias e mal-perfundidas, com enchimento capilar periférico lentificado, pulsos centrais e periféricos de amplitude diminuída, alteração do sensório e oligoanúria. Pode haver história de sangramento espontâneo. Caracteristicamente, há bradicardia relativa ao grau do choque e o doente se apresenta edemaciado e mal-distribuído, devido à saída intensa de líquido para o terceiro espaço15. Inicialmente o padrão do choque é de vasoconstricção (choque frio), com resistência vascular periférica aumentada, sugerida pelo aumento da pressão diastólica, com pressão de pulso (pressão sistólica menos a pressão diastólica) diminuída, geralmente em torno de 15 a 30 mmHg (o normal é acima de 40 mmHg). Nos casos mais graves, pode haver disfunção cardíaca pela ação própria do vírus no tecido cardíaco e de mediadores inflamatórios deflagrados pela infecção, agravada pelo aumento da resistência vascular periférica e consequente pós-carga. A pressão arterial média no início está normal ou, mais frequentemente, alta , devido ao aumento da resistência vascular periférica. Se houver queda da pressão arterial média na instalação do choque, suspeitar de disfunção cardíaca grave, com hipotensão arterial por baixo débito cardíaco, agravada pelo aumento da pós-carga. A hipotensão por queda da resistência sistêmica é um evento mais tardio, causada pelas citocinas inflamatórias liberadas com o choque prolongado. 6 9.2) Disfunção cardíaca: Pacientes com síndrome do choque do dengue podem apresentar disfunção cardíaca biventricular. A prevalência pode ser alta, 36% em série publicada16 e 43 % dos doentes internados na UPG durante a epidemia no Rio de Janeiro em 2008. Geralmente de caráter transitório, durando poucos dias, com recuperação completa da função. Em casos mais graves, pode levar à falência cardiovascular, ao choque refratário, arritmias cardíacas e ser a causa do óbito. Por isto, é imperativa a avaliação da função cardíaca nos doentes com choque da dengue e a monitorização do débito cardíaco deve ser considerada nos pacientes com disfunção cardíaca. Os pacientes raramente apresentam sinais de baixo débito cardíaco já na admissão na UTI, o que torna a identificação mais difícil. O diagnóstico deve ser suspeitado para aqueles doentes que apresentam choque prolongado, apesar da ressuscitação volêmica, e naqueles que apresentam sinais de sobrecarga de volume com desconforto respiratório e estertores pulmonares, edema pulmonar, aumento rápido do derrame pleural e da ascite e hepatomegalia. O tratamento com aminas vasoativas, diuréticos e ventilação mecânica, quando indicada, deve ser iniciado imediatamente e a disfunção deve ser confirmada assim que possível. A etiologia ainda é desconhecida e há hipóteses de lesão direta do tecido cardíaco pelo vírus, hipoperfusão coronariana pelo choque prolongado ou resposta do hospedeiro à infecção, com a elevação de citocinas e fator de necrose tumoral α (TNF-α)16. 9.3) Tratamento do choque: 9.3.I) Expansão volêmica: A saída de plasma para o interstício na dengue, diferente do choque séptico, é lenta, com períodos intermitentes de maiores perdas e que continua por 24 a 36h10. Por isso, expansões volêmicas agressivas e rápidas, como as preconizadas para outros tipos de choque, podem levar à sobrecarga hídrica, com instabilibidade cardíaca, edema pulmonar, anasarca, aumento do derrame pleural e da ascite, levando à síndrome compartimental abdominal. Por apresentar uma perda mais lenta e pela vasoconstricção predominante, o volume inicial necessário para a ressuscitação é menor. Didaticamente, divide-se a reposição volêmica em duas fases: a primeira nas primeiras horas do tratamento do choque, para restaurar o intravascular, e a segunda nos dois dias subseqüentes, para repor os períodos intermitentes de perdas. Inicia-se a expansão com volume precocemente, com solução cristalóide (soro fisiológico ou ringer lactato), alíquotas de 20 ml/Kg, infundidas em 30 minutos, no caso de choque do dengue grau III, e em 5 a 15 minutos para doentes com choque grau IV. Reavaliar o paciente a cada etapa, procurando sinais de hipovolemia e de sobrecarga hídrica. Podem ser repetidas duas a três vezes. Se após 40 a 60 ml/Kg de solução cristalóide, a criança ainda apresentar sinais de choque, prescrever etapa de 20 ml/Kg, em 1 hora, de solução colóide (hydroxyethyl starch a 6%, soro ou ringer com albumina a 5%, dextran de baixo peso molecular). Podem ser repetidas duas vezes. Para o paciente que é internado na UTI com choque grau IV e ainda não foi expandido ou com choque grau III que já recebeu etapas de cristalóide na emergência e ainda necessita de mais volume, prescrever etapa de 20 ml/Kg de colóide já na 7 admissão. A ressuscitação com colóide parece ser mais eficaz nos doentes com choque mais grave17. Nesses casos o uso de colóide deve ser mais precoce. Após a etapa de restauração do intravascular, iniciar hidratação venosa para suprir a necessidade hídrica diária. As perdas subseqüentes, por aumentos da permeabilidade capilar intermitentes, devem ser repostas, no momento da sua identificação, com alíquotas de 20 ml/Kg, em 1 hora, de soluções cristalóide ou colóide. O volume deve ser apenas o suficiente para manter a circulação efetiva durante o período de extravasamento plasmático. Com a melhora do paciente, a infusão de líquido deve ser gradualmente diminuída e suspensa após 24 a 48 horas. A hiperhidratação é uma causa de morte tão importante quanto o choque refratário2. Os objetivos do tratamento com volume são: - normalização do sensório; - pulsos periféricos normais; - melhora na perfusão capilar periférica; - diminuição do hematócrito de entrada, com queda de aproximadamente 20%, se não houver sangramento espontâneo; - débito urinário de 1 ml/Kg/h. Se menor o doente pode ainda estar em choque e se maior pode indicar hiperhidratação; - pressão de pulso maior que 30 mmHg; - normalização da PVC. Pode não ser um bom indicador de volemia na presença de disfunção cardíaca e derrame pleural ou ascite volumosos. 9.3.II) Aminas vasoativas: Devem ser iniciadas imediatamente se não houver melhora do choque apesar da ressuscitação volêmica. A indicação é feita a partir do exame físico. Não esperar confirmação laboratorial, monitorização mais invasiva ou exames complementares. Iniciar ainda em veia periférica, enquanto acesso venoso profundo é providenciado. Por causa das características do choque do dengue expostas acima, na grande maioria dos doentes iniciar com inotrópico. A dobutamina, agonista β-adrenérgico (5 a 15 g/Kg/min) é a droga inicial de escolha, por sua ação inotrópica e vasodilatadora. Se, apesar da dobutamina, o doente apresentar vasoconstricção e pressão de pulso aumentada, iniciar milrinona (0,3 a 0,75 g/Kg/min), que é um inibidor da fosfodiesterase, com ação vasodilatadora maior que a dobutamina e inotrópica, potencializando o efeito do β- adrenérgico. Outra opção de inotrópico é a adrenalina em dose baixa (0,05 a 0,3 g/Kg/min), mas sem efeito vasodilatador. Se a vasoconstricção for intensa, com hipertensão arterial, piorando a disfunção cardíaca pelo aumento da pós-carga, iniciar um vasodilatador, como o nitroprussiato de sódio (0,3 a 4g/Kg/min ). Para as crianças com choque cardiogênico, associar levosimendam, sensibilizador dos canais de cálcio, droga inotrópica com mecanismo de ação diferente das catecolaminas e vasodilatadora, por ação nos canais de potássio no músculo liso. Dose de ataque (6 a 12 μg/Kg em mais de 10 minutos), somente em casos de choque cardiogênico grave, e manutenção ( 0,05 a 1μg/Kg/min , infusão de 24 a 48 h). Se o doente apresentar hipotensão diastólica, associar um vasopressor à dobutamina. Prescrever noradrenalina (0,1 a 2 g/Kg/min). Se não houver resposta, trocar para adrenalina (dose inicial 0,1 g/Kg/min ). No caso de hipotensão refratária à adrenalina, prescrever vasopressina (dose inicial 0,0003 U/Kg/min). 8 Idealmente todos os doentes com choque do dengue grave devem ter monitorização de débito cardíaco e avaliação da volemia e da resistência vascular periférica para melhor manejo das aminas vasoativas. 9.3.III) Uso de esteróides: O uso de corticosteróides para o tratamento do choque não está indicado, a partir de estudo controlado, duplo-cego publicado18. 9.3.IV) Sobrecarga hídrica: A terapia de remoção hídrica está indicada para os pacientes com disfunção cardíaca e para aqueles que receberam muito volume na emergência ou mesmo na UTI e que, por causa do aumento da permeabilidade capilar, estão em anasarca, com síndrome do desconforto respiratório agudo e hipertensão intra-abdominal. Pode ser feita de duas maneiras: através de infusão de furosemida ou de diálise peritoneal. A administração de furosemida de forma contínua (0,05 a 0,4 mg/Kg/h) ou, na dificuldade de via venosa exclusiva, intermitente (1 a 4 mg/Kg/dia, divididos a cada 4 a 6 h). O objetivo do tratamento com furosemida é manter débito urinário de 2 a 5 ml/Kg/h2. A diálise peritoneal está indicada naqueles pacientes em que houve falha na terapia com diurético e naqueles com insuficiência renal concomitante. Inicia-se com 10 ml/Kg do dialisato isotônico a cada ciclo, com tempos de permanência e drenagem de 30 min cada. Pode-se diminuir o tempo de permanência e aumentar o número de ciclos ou alternar banhos isotônicos e hipertônicos se a retirada de líquido for insatisfatória.O objetivo da retirada é também 2 a 5 ml/Kg/h. 10. TRANSFUSÃO DE HEMOCOMPONENTES: Seguindo a orientação do Ministério da Saúde, a transfusão de concentrado de plaquetas é indicada para os pacientes com dengue que apresentarem contagem de plaquetas menor que 50000/ mm³ e sangramento ativo3. Considerar transfusão de plaquetas (1 U para cada 10 Kg de peso) para os doentes com dengue com plaquetopenia (abaixo de 50000/mm³) e sem sangramento ativo, sempre antes de procedimento invasivo, como intubação orotraqueal, punção de acesso venoso central, punção arterial ou drenagem do tórax. Sangramentos catastróficos de vias aéreas, iniciados no momento da laringoscopia e intubação, podem ser evitados com a transfusão de plaquetas antes do procedimento. Concentrado de hemácias (10 ml/Kg) será transfundido nos pacientes instáveis e com anemia (geralmente hemoglobina abaixo de 7)19 . Plasma fresco congelado (10 ml/ Kg) e crioprecipitado (1U para cada 10 Kg de peso) está indicado somente para aqueles com discrasia sanguínea e sangramento ativo significativo e naqueles com coagulação intravascular disseminada, como em todos os doentes criticamente enfermos. Se o paciente apresentar sangramento incontrolável, pode ser utilizado fator VII ativado recombinante (100 μg/Kg). Há evidências de que seja um tratamento adjuvante aos hemocomponentes, especialmente quando não houver concentrado de plaquetas disponível para infusão imediata20. 9 11. USO DE ANTIBIÓTICOS: O uso de antibióticos, ainda dentro da primeira hora do tratamento do choque, é obrigatório, uma vez que o choque do dengue pode ser difícil de diferenciar do choque séptico e frequentemente há co-infecção por bactérias. Considerar cefalosporina de terceira ou quarta gerações e oxacilina como esquema inicial. Ampliar espectro se há suspeita de infecção hospitalar, imunodeficiência inata ou adquirida, infecção de sistema nervoso central ou infecção por germes resistentes de comunidade. 12. ACESSO VENOSO PROFUNDO: Necessário em todos os casos graves, nos pacientes com dificuldade de acesso venoso periférico, naqueles com choque persistente apesar de 40 a 60 ml/Kg de fluidos e nos doentes com indicação de aminas vasoativas. O início da amina, principalmente inotrópicos quando houver suspeita de disfunção cardíaca, não deve ser retardado até a instalação da via central. Iniciar a amina vasoativa precocemente ainda em veia periférica, enquanto é providenciado o acesso profundo. Idealmente, utilizar cateteres de dois ou três lumens (ou ainda mais de um cateter venoso) pela necessidade de infusão de volume, várias drogas , soluções para hidratação venosa, hemocomponentes e para monitorização hemodinâmica (aferição da pressão venosa central e coleta de sangue para saturação venosa central de oxigênio). Devido ao risco aumentado de sangramento, considerar inserção de cateter venoso central através da punção de veia jugular externa ou dissecção de veia. Punção de veias profundas somente nos doentes sem CIVD e por profissional devidamente treinado. Avaliar transfusão de concentrado de plaquetas antes do procedimento nos pacientes com contagem de plaquetas inferior a 50000/mm³. 13. INTUBAÇÃO OROTRAQUEAL E VENTILAÇÃO MECÂNICA: As indicações de intubação e ventilação mecânica são as seguintes: - Aumento do trabalho respiratório e desconforto respiratório grave; - Hipoxemia, apesar da oferta de oxigênio inalatório sob máscara ou tenda facial; - Hipercarbia, sugerindo fadiga respiratória e evolução para parada respiratória iminente; - Choque persistente, apesar de ressuscitação com 40 a 60 ml/Kg de líquido na primeira hora; - Presença de disfunção cardíaca (suspeita ou confirmada); - Sangramento grave em orofaringe ou em vias aéreas, com risco de broncoaspiração; - Alteração do sensório com Escala de Coma de Glasgow igual ou menor a 8; - Estado moribundo. Estando intubado, o doente deve ser adaptado ao ventilador mecânico e ventilado de forma protetora, idealmente com volume corrente de 4 a 6 ml/kg , com pressão de pico inspiratória (PIP) de até 30 a 35 cm H2O. Ajustar PEEP conforme oxigenação e monitorização da mecânica respiratória. A FiO2 deve permanecer abaixo de 0,6. Em pacientes com desconforto respiratório moderado, principalmente devido a derrame pleural volumoso ou edema pulmonar não cardiogênico, por aumento do extravasamento plasmático, pode ser tentada ventilação não invasiva (VNI), através de 10 máscaras ou prongas nasais. Lactentes e pré-escolares podem não tolerar a VNI, sendo o ajuste ideal da interface a grande dificuldade do método. A ventilação não invasiva está contra-indicada na presença de choque grave, no paciente com sensório anormal, na suspeita de disfunção cardíaca ou na hipoxemia grave (na síndrome do desconforto respiratório agudo). Nesses casos a intubação orotraqueal não deverá ser retardada, sob o risco de aumento da morbimortalidade. 14. DRENAGEM DO TÓRAX: Indicação controversa na literatura. Indicada somente nos casos em que há grande derrame pleural associado à síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), levando à necessidade de parâmetros elevados no ventilador por aumento do componente restritivo. A drenagem pode ser complicada por sangramento e hemotórax. Na grande maioria dos casos, os doentes toleram a presença do derrame pleural, muitas vezes volumosos, sem a necessidade da drenagem. A reabsorção da efusão ocorre em 2 a 3 dias, após o fim da fase de extravasamento plasmático. 15. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Pacientes com as formas graves do dengue, particularmente aqueles com síndrome do choque do dengue, têm alto risco de mortalidade por choque refratário e disfunção múltipla orgânica. Somente o reconhecimento precoce e o manejo agressivo sistematizado, por uma equipe multiprofissional capacitada, podem diminuir a mortalidade das formas graves. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1. Shann F. Severe dengue: Coming soon to a pediatric intensive care unit near you? Pediatr Crit Care Med 2005; 6(4): 490-492 2. Ranjit S, Kissoon N, Jayakumar I. Aggressive management of dengue shock syndrome may decrease mortality rate: A suggested protocol. Pediatr Crit Care Med 2005; 6: 412-419 3. Ministério da Saúde: Dengue diagnóstico e manejo clínico. 2º edição. Brasília, 2005 4. Secretaria de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro, 2008. Dados disponíveis na rede . 5. Cardosa MJ. Dengue haemorrhagic fever: questions of pathogenesis. Curr Opin Infect Dis 2000,13:471-475 6. Green S, Rothman A. Immunopathological mechanisms in dengue and dengue hemorrhagic fever. Curr Opin Infect Dis 2006; 19: 429-436 7. Torres EM, Anaya ACP, Sandoval EBP. Por qué y cómo mueren los niños com dengue? Rev Cubana Med Trop 2008;60(1):40-7 8. World Health Organization. Dengue haemorrhagic fever: Diagnosis, treatment, prevention and control. 2nd edition. Geneva, 1997 11 9. World Health Organization. Prevention and control of dengue and dengue haemorrhagic fever: Comprehensive Guidelines. New Delhi, WHO, 1999 10. Srikiatkhachorn A, Green S et al. Natural history of plasma leakage in dengue hemorrhagic fever. Pediatr Infect Dis J 2007; 26: 283-290 11. Schechter M, Marangoni DV. Doenças infecciosas: Conduta diagnóstica e terapêutica. Ed. Guanabara Koogan, 1998: 157-164 12. Kamath S R, Ranjit S. Clinical features, complications and atypical manifestations of children with severe forms of dengue hemorrhagic fever in south India. Indian Journal of Pediatrics 2006; 73: 889-895 13. Ferreira MLB, Mesquita SD et al. Manifestações neurológicas de dengue. Arq Neuropsiquiatr 2005;63(2-B): 488-493 14. Wills BA et al. Coagulation abnormalities in dengue hemorrhagic fever : Serial investigations in 167 vietnamese children with dengue shock syndrome. CID 2002; 35: 277-285 15. Ranjit S, Kissoon N, Gandhi D et al. Early differentiation between dengue and septic shock by comparison at admission hemodynamic, clinical, and laboratory variables. A pilot study. Pediatric Emergency Care . 2007; 23 (6): 368-375 16. Khongphatthanayothin et al. Myocardial depression in dengue hemorrhagic fever : Prevalence and clinical description. Pediatr Crit Care Med 2007; 8(6): 524-529 17. Wills B A, Dung N M et al. Comparison of three fluid solutions for resuscitation in dengue shock syndrome. N Engl J Med 2005; 353(9): 877-889 18. Tassniyom S, Vasanawathana S, Chirawatkul A et al. Failure of high-dose methylprednisolone in established dengue shock syndrome: A placebocontrolled, double-blind study. Pediatrics 1993; 92: 111-115 19. Lum LC, Lam SK et al. Preventive transfusion in dengue shock syndrome – Is it necessary? J Pediatr 2003;143:682-4 20. Chuansumrit A, Komwilaisak P et al. The use of recombinant activated factor VII for controlling life-threatening bleeding in dengue shock syndrome. Blood Coagulation and fibrinolysis 2004,15:335-342 1 Rio de Janeiro, 14 de setembro de 2009.