Resumo expandido - corrigido _Thiago_

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Anais do XIX Encontro de Iniciação Científica – ISSN 1982-0178
Anais do IV Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – ISSN 2237-0420
23 e 24 de setembro de 2014
AMOR, JUSTIÇA E PERDÃO: A ÓTICA DA SUPERABUNDÂNCIA
EM PAUL RICOEUR
Thiago Gonçalves da Cruz
Faculdade de Filosofia
CCHSA
[email protected]
Prof. Dr. Walter Ferreira Salles
Teologia Contemporânea
CCHSA – Faculdade de Filosofia
[email protected]
Resumo: A presente pesquisa cientifica pretende
desenvolver uma investigação de caráter filosófico e
teológico, descritiva e interpretativa do pensamento
de Paul Ricoeur, tomando como base duas de suas
obras, “Amor e Justiça” e “A memória, a história, o
esquecimento”. Como o próprio titulo indica, partirei
dos ideais humanos de amor, justiça e perdão,
reafirmados
pelo
conceito
hiperbólico
da
superabundância. O amor não deve ser considerado
apenas em seu aspecto moral, mas antes, é aquilo
que me humaniza e dá sentido a minha
humanidade. Para Ricoeur, ele é o guardião da
justiça, a medida em que esta vê-se ameaçada pelo
cálculo interessado. O perdão é composto por uma
dinâmica que faz com que o individuo se reconheça
culpado, sem que tenhamos que reduzir sua
humanidade. É algo no qual está em jogo essa
dialética entre o reconhecimento de quem errou e a
liberdade de quem perdoa em estar apto a perdoar.
E a justiça é o desejo de viver unidos em uma
sociedade que seja justa, sem que se caia numa
lógica calculista, mas, que deixe-se permear por
uma profunda relação com a prática do amor.
Área do Conhecimento: Fenômeno Religioso:
instituição e prática. Grupo de pesquisa: Teologia
Contemporânea. FAPIC/Reitoria
Diferentemente de todas estas exortações, aparecenos Paul Ricoeur, que propõem resolver esse
impasse e nos apresentar bases que mostrem uma
intrínseca relação entre amor e justiça, auxiliado
pela prática do perdão. É em seus livros intitulados
“Amor e Justiça” e “A memória, a história, o
esquecimento”, que observamos de maneira mais
clara essa proposta que nos é dada. Não é
pretensão de Ricoeur, exterminar as tensões que
existem entre a dialética do amor, a prosa da justiça
e o difícil perdão, mas tão somente, mostrar que
estes ideais não se constituem apenas de
discordâncias, mas podem estabelecer uma relação
de diálogo e comunhão, sendo características de
um mesmo próprias da existência humana.
Neste texto nos atentaremos em esclarecer o
significado que cada termo carrega, mostrando a
relação conflituosa entre eles, porém, que pode
resultar no diálogo que nos é proposto.
Analisaremos a via que perpassa desde a tensão,
até a possibilidade de construção de um efetivo
diálogo entre amor e justiça, ancorados e
sustentados pela vivência do difícil perdão, que
necessariamente deve ser entendido numa
perspectiva superabundante, para daí sim,
manifestar o sentido real de três características
encarnadas no ser humano, que carregam sim sua
singularidade, mas que estão em profunda
consonância e comunhão.
1. INTRODUÇÃO
O tema que me proponho a refletir é definitivamente
muito sublime e também, muito complexo. Amor,
justiça e perdão são três sentimentos que
expressam significados diversos, mas que estão em
intensa relação. É uma problemática atualizada e
que se apresenta ao ser humano como fonte de
possibilidades. Porém, foca-se muito na tensão
existente entre estes ideais, deixando-nos a
sensação de que é quase impossível vivenciá-los
mutuamente.
2. AMOR E JUSTIÇA: TENSÃO E DIÁLOGO
Comecemos por esboçar acerca das três
característica do amor que entram em conflito com a
justiça. Primeiro encontramos uma forte ligação
entre o amor e o cântico de louvor, que é
encontrada principalmente na poética bíblica, que
procura amplificar o sentido de um fenômeno,
dificultando dessa forma, o esclarecimento
conceitual que a ética nos propõem, estabelecendo
uma primeira resistência do amor com a ética.
Ricoeur chama a atenção sobre esse risco, pois, o
Palavras-chave: Amor. Justiça. Perdão.
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amor não pode viver nesta exaltação ingênua, sem
que seja praticado por nós, seres humanos, de
maneira desinteressada e sem nada esperar em
troca. Segundo encontramos a forte ligação entre o
amor e a obrigação kantiana. Porém, é necessário
que difiramos este sentimento da pura lei, para que
dessa forma, reconheçamos no outro o si-mesmo,
ou seja, amar significa que devo encontrar no outro
esse amor. Não é impor nada, mas é levar em
consideração o mandamento do amor. E aqui
podemos fazer uma ponte com o cântico de louvor
que retira do amor a característica da obrigação
kantiana e dá ares do mandamento ama-me.
Terceiro encontramos o amor que se revela como
um sentimentalismo absurdo.E isso é introduzido
pela metaforização que retira do sentimento seu real
significado e transforma-o num vasto campo de
analogias e de comparações extravagantes.
Feito este primeiro contato acerca do amor,
podemos analisar a justiça por dois víeis diferentes,
no qual nos deteremos em explicitá-la como sendo
um aparelho judiciário e depois no nível dos
princípios. Partindo da justiça como um aparelho
judiciário
vemo-la
como
uma
atividade
comunicacional, pois, há diálogo entre as partes, e
não só, mas as próprias leis, os tribunais e os
juízes, são os canais pelos quais a justiça se realiza
e dão a ela esse caráter comunicacional. Esse é um
primeiro confronto que encontramos face a vivência
do amor como sendo incompatível com a justiça.
Bem sabemos que amar não nos pede argumentos,
pois, apenas se ama. Em contrapartida, a justiça
precisa de argumentos, que serão analisados e por
uma marca de força será decidido a favor de um
lado. Ai reside o que Ricoeur chamará de primeiro
formalismo da justiça.
No segundo nível da justiça, analisaremos
reflexivamente o ideal de justiça, que está inserido
numa prática social. Se levarmos em questão a
justiça na sua característica distributiva, veremos
que a cada pessoa é destinada uma função, que
ajudará na conservação de uma sociedade justa.
Mas, num mundo onde acontecem impactantes
distribuições desiguais, como isso é possível?
Rawls deixou-nos um legado importante, quando
acredita que maximizando a menor parte,
resolveremos o problema, ou seja, seria o mesmo
que elevar os menos favorecidos e dar-lhes
condições favoráveis de igualdade. E a partir desta
sentença, Ricoeur nos evidenciará o segundo
formalismo da justiça. Temos dois polos distintos,
mas, que fazem parte de um mesmo fenômeno,
pois, a justiça não é só uma pratica social, mas
também, é um ideal de partilha que favoreça a
todos. Partilha esta movida pelos sentimentos de
distribuição e de igualdade, cabendo a justiça
regular isso, para que os seres humanos
reconheçam-se devedores entre si e gerem uma
economia da solidariedade verdadeira.
Realizado esse percurso da exploração da tensão
viva entre amor e justiça, tentaremos construir um
efetivo diálogo entre os dois ideais. Ricoeur utiliza
das
Escrituras,
mais
especificamente
dos
Evangelistas Mateus e Lucas, para mostrar que
tanto o mandamento do amor, quanto a Regra de
Ouro se mostram entrelaçados. Para Ricoeur o
mandamento novo segue os mesmos passos da
economia da doação e retira seu fundamento
supraético daí. Supraético aqui num sentido de
transcender a forma imperativa que o mandamento
pressupõem, pois, este mandamento nasce do
campo da doação. Porém, não podemos cair no
cálculo interessado e transformá-lo numa fonte de
obrigação. A economia da doação é impulsionada
por uma Lógica da Superabundância, opondo-se a
lógica da equivalência, que gera o cálculo
interessado e dá bases à Regra de Ouro. São duas
lógicas conflitantes entre si, até por que se
analisarmos o sermão da planície em Lucas,
veremos uma severa critica de Jesus a Regra de
Ouro e em termos formais, esta se apresenta com
sendo Regra da Justiça, voltando-nos a máxima
rawlsiana de maximizar a mínima parte.
Não podemos focalizar somente na tesão entre
amor e justiça, mas, devemos buscar construir um
caminho que concilie-os mesmo com suas
particularidades. O mandamento do amor pode ser
a manifestação generosa da Regra de Ouro e
assim, teremos uma nova interpretação dessa,
sendo canal deste mandamento que se realiza a
partir de extremos, ou seja, de um amor doação, de
um amor supraético. Uma lógica necessita da outra
para não se esquivar de sua missão, pois, devemos
tomar cuidado pra não deixar o amor cair num
sentimentalismo ingênuo e nem deixarmos a Regra
da Justiça mover-se tão-somente pelo cálculo
interessado,
numa
máxima
utilitarista.
O
mandamento do amor permeado da Lógica da
Superabundância dá esse caráter desinteressado a
Regra de Ouro. É a partir do equilíbrio refletido que
Ricoeur se apoia para mostrar esse parentesco
entre amor e justiça. O filósofo não quis extirpar as
diferenças que ambos fenômenos apresentam, mas,
buscou mostrar que para se atingir a verdadeira
justiça é necessário o auxilio do amor e para que o
amor seja vivenciado encarnadamente é necessário
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a justiça como campo ético, que não deixa o amor
cair num mero sentimentalismo que não consegue
“pensar” e viver intensamente.
Não é fácil concilia-los, porém, não é impossível.
Precisamos vivenciá-los mutuamente, não como um
agir utilitarista e ingenuamente sentimental,
totalmente discrepantes entre si, mas antes, um agir
que revele que Amor e Justiça podem e devem ser
vividos no intimo do ser humano, não em conflito,
mas em mutua participação no agir do homem.
Amar nos humaniza e ser justo nos impele a uma
vivência plena da prática do amor. Em conjunto,
estes dois ideais dão plenitude e sentido ao ser
humano e não nos faz ter a obrigação de escolher
entre um ou outro. Não é ser justo e se esquecer de
amar e muito menos amar e esquecer de ser justo.
É buscar sempre as mediações práticas entre estes
dois extremos, mesmo que seja de maneira frágil
e/ou provisória e que para isso seja necessário
lançar mão de um caminho árduo e penoso.
3. O PERDÃO NA FILOSOFIA RICOEURIANA
Ricoeur nos oferece inúmeros escritos acerca do
perdão e de suas implicações na vivência
comunitária do ser humano. Podemos dizer que ao
caminharmos pelo percurso filosófico ricoeuriano,
vamos descobrindo que o tema do difícil perdão dá
vida a todo seu pensamento. O perdão se mostra
como possibilidade de sanar toda a dívida que
existe no homem capaz, tema recorrente na
antropologia ricoeuriana, e assim, extirpar todo tipo
de lesão que tal homem realizou ou sofreu, seja por
uma mal praticado ou pelo mal padecido. Para se
atingir o perdão é necessário uma via longa, na qual
caminhamos por entre a desproporção existente
entre a culpa e o perdão.
O início deste labor filosófico se dará na formulação
da equação do perdão, que está sustentada numa
disparidade vertical, indo desde a profundidade da
falta à altura do perdão. Para discursar sobre o
perdão precisamos saber qual o sentido da falta,
que segundo Ricoeur, “é o pressuposto existencial
do perdão” [1]. Mas, para que exista a falta e desse
modo o perdão, faz-se necessário a imputabilidade,
que é o ato de poder acusar, presumir ou declarar
culpa a alguém, de modo tal que esta pessoa sintase culpada e assuma-se como o autor destes atos
que ferem a humanidade de uma pessoa. A falta
deve ser remetida a alguém e esse alguém “acolhêla” como sendo dela. Para Ricoeur, a dimensão da
falta está presente no homem capaz, que a todo
momento utiliza-se do verbo poder, ou seja, é um
ser humano que pode fazer, que pode falar, que
pode acolher e reconhecer seus atos, mesmo que
receba uma sentença por isso. Outro termo
cunhado por Ricoeur é o da confissão, que é um ato
de linguagem que dá ao ser humano a possibilidade
de reconhecer-se culpado e tomar para si uma
acusação.
Para compreender a profundidade da falta, Ricoeur
procurará esclarecer os três benefícios que este
“aprofundamento da profundidade” ganha na
relação com o mal. Primeiro, apoiado pela
metacategoria encontramos a falta em relação com
outras situações negativas da experiência humana.
Segundo, o mal nos leva a imaginar algo
insuportável, que está em demasia no íntimo
humano. E em terceiro, podemos suscitar com a
ligação entre mal e falta, a descoberta de uma
profundidade na elaboração cultural de inúmeros
discursos mítico-simbólicos acerca do mal, que
desde os confins alimentou um grande imaginário.
Será neste ponto que nosso filósofo se arraigará
para encontrar um lugar viável para a prática do
perdão, pois, como ele mesmo indica, depois desta
descida às profundezas da falta parece-nos que é
impossível proferir uma outra palavra que não seja
de imperdoável.
Ricoeur analisará o segundo extremo da
disparidade vertical, no caso a altura do perdão,
mostrando que a culpabilidade e a ipseidade estão
intrinsecamente em comunhão e que uma falta é
imperdoável, tanto no plano do fato, quanto do
direito. Para ele, há o perdão, sendo este um
desafio inverso, sendo uma voz silenciosa que vem
da altura, do mesmo modo que a voz da confissão
vem da profundidade existencial da ipseidade. O
perdão procede da mesma família do amor, que tem
sua fonte do alto. Para que entendamos essa
familiaridade entre amor e perdão, Ricoeur busca
fundamento na grande exortação que São Paulo
dirige à comunidade de Coríntios, que mostra o
amor como a maior de todas as virtudes humanas,
sendo ela a própria Altura. Dessa maneira, Ricoeur
deixa claro que o perdão só existe, de fato, à
medida em que está confrontando-se com aquilo
que é imperdoável, sendo um amor incondicional
que não tem fronteiras que o privem de agir. Não é
preciso pedir perdão para que este exista, basta
haver algo que seja considerado imperdoável, pois,
ai já residirá de fato o perdão.
Caminhando na empreitada rumo ao desvelamento
do que é o difícil perdão, Ricoeur se centrará na
explanação acerca da odisseia do espírito do
perdão, que se dá na travessia das instituições.
Trilhando o mesmo caminho que Karl Jaspers, Paul
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Ricoeur analisará os quatro tipos de culpabilidade
existentes na sociedade, e desse modo, analisará a
relação do perdão no meio dos níveis institucionais.
O primeiro tipo de culpabilidade é chamado de
criminal e imprescritível, sendo sob esta questão
que nosso filósofo se pautará na elaboração do
problema do perdão. O imprescritível emerge devido
à existência de seu contrário, no caso a prescrição.
Esta prescrição não é o extermínio de uma ação
jurídica, mas, apenas reforça o caráter conclusivo
das sentenças penais, preservando a ordem social
que está inscrita num determinado tempo. Do outro
lado, a imprescritibilidade exerce uma força de
persistência no tempo, mesmo que seja necessário
superar as barreiras imposta pela ação da
prescrição. Ricoeur chama-nos a atenção para não
cairmos no erro de confundir imprescritível com
imperdoável. No caso da culpabilidade criminal, o
espírito do perdão, segundo Ricoeur, é algo inviável,
pois, perdoar seria o mesmo que deixar impune
aquilo que de fato é imperdoável. Isso causaria uma
enorme injustiça perante a lei e as vitimas que estão
envolvidas no caso. Na culpabilidade criminal todo
crime é medido a partir da infração cometida, mas
quem sofre as duras penas da justiça é o criminoso.
Por isso, tratar os casos de crimes com o perdão, é
esquivar o criminoso de sua sentença e declará-lo
impune diante da sociedade.
O segundo tipo de culpabilidade é chamada de
política, que se difere da responsabilidade criminal
julgada a partir dos tribunais. Temos a noção de
uma culpabilidade dita coletiva e não de povo
criminoso. Segundo afirma Ricoeur: “quem usufruiu
os benefícios da ordem publica deve, de certo
modo, responder pelos males criados pelo Estado
do qual faz parte” [2], evidenciando, desta maneira,
o caráter coletivo da culpabilidade política. É sob os
limites desta culpabilidade e os conflitos por ela
emergidos que a problemática do perdão se
encontra.
O terceiro tipo de culpabilidade é chamada de
moral, que perde o caráter coletivo da culpabilidade
política, passando a ser uma responsabilidade em
nível pessoal. Aqui pensasse uma possível troca
entre demanda e perdão, deixando de lado o regime
de acusação. A partir de então, Ricoeur se dirigirá à
análise da escala da troca, na qual o perdão ganha
um espaço, mesmo que de maneira periférica.
Ainda na busca do sentido do perdão, Ricoeur
refletirá sobre a odisseia do espírito do perdão,
analisando a escala da troca. Aqui relacionar-se-á o
pedido de perdão e dar o perdão. Ricoeur identifica
esta relação entre demanda e oferta do perdão
como sendo bilateral, o que não dá bases para que
a relação vertical que já fora exposta seja
reconhecida. A dinâmica do espírito da troca está
fundada sobre dois atos de discurso, sendo um
culpado que reconhece seu erro diante de outrem e
um outrem que é capaz de pronunciar o perdão que
se tornaria uma palavra de libertação. Diante disso,
Ricoeur construirá dilemas, inspirado por Oliver
Abel, que podem ilustrar claramente como se dá
essa dinâmica própria do espírito da troca.
O primeiro dilema aparece a partir da seguinte
interrogação: “Pode-se perdoar aquele que não
confessa sua falta?” [3]. Segundo Ricoeur, com este
questionamento podemos respeitar o orgulho do
culpado. O segundo dilema é o seguinte: “É preciso
que quem enuncia o perdão tenha sido ofendido?”
[4]. Aqui é importante nos atentarmos para não
cairmos numa espécie de teatro, no qual apenas
representamos um pedido de perdão e não fazemos
de coração. Ai Ricoeur acredita residir uma grande
perturbação no que tange uma resposta. E o
terceiro dilema que desvela-se de um último
questionamento: “Pode-se perdoar a si mesmo?”
[5]. Esta última indagação só será de fato
respondida por completo no final desta odisseia.
Perdoar a si mesmo carrega em si uma dupla
problemática. Primeiro que somente a vítima
perdoa, sendo que esta é diversa de mim. E a
segunda, está no sentido da diferença vertical entre
o perdão e a falta, que não dá espaço para uma
projeção horizontal desta relação. Feito esta
distinção de dilemas, Ricoeur procurará esclarecer a
economia do dom, para dissipar a ambiguidade
suscitada pelo terceiro dilema. Para o filósofo, dom
e perdão sofrem de uma comparação devido às
proximidades semânticas e etimológicas que elas
absorvem em várias línguas. É uma tentativa de
mostrar a diferença de altitude que existe entre o
dom e o perdão, a partir do espírito de troca.
Primeiro, vemos que o dom deve estar livre do
espírito de troca, pois, nos doamos sem nada
esperar em troca. Para Ricoeur, “a ênfase recai
mesmo, aqui, na ausência de reciprocidade” [6].
Porém, há uma lógica que empurra o dom em outra
direção e esta força nos convida a retribuir e não
receber. É um caráter que parece-nos gratuito e
livre, mas, que em si carrega uma força que nos
motiva a retribuir algo ganhado sendo um enigma
que encontra-se segundo Ricoeur, no vínculo de um
tríade, a saber: “a de dar, a de receber, a de
retribuir” [7].
Mergulhado no modelo arcaico da economia do
dom, podemos caminhar na tentativa de responder
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aos dilemas do perdão, mesmo que seja no nível de
sua dimensão bilateral e recíproca. Deste modo,
Ricoeur coloca-nos diante da inversão do dilema,
pois, somos confrontados com o mandamento
cristão de amar aos inimigos sem nada esperar em
troca. Para Ricoeur, “este mandamento impossível
parece ser o único a altura do espírito do perdão”
[8].
Encontramos na ótica da superabundância da
narrativa evangélica, as bases para o início da
destruição da regra da reciprocidade, que visa a
troca como meio eficaz de sua plenificação. Para
Ricoeur, a hipótese de que nada se espera em troca
do inimigo é falsa, pois, no fundo, este amor pelo
inimigo pede sua conversão. Aqui, encontra-se uma
nova forma de expressar o dom, desvinculado de
um caráter comercial: “não mais a troca entre dar e
retribuir, mas, entre dar e simplesmente receber” [9].
O que chama-nos a atenção é que entre a relação
do pedir perdão e dar o perdão, encontra-se um
obstáculo muito intrigante, pois, aquele que
confessa seu erro e quer o perdão, deve estar
aberto também a escutar um não, já que quem tem
o poder de perdoar deve se sentir na liberdade de
dar ou não seu perdão. Uma dificuldade está na
assimetria que constitui a equação do perdão, já
que este dom ultrapassa todo o intervalo existente
entre a profundidade da culpa e a altitude do
espírito do perdão.
Ricoeur utilizará exemplos de comissões que se
pautaram em encontrar meios de promover a justiça
e a paz, sem a disseminação de vingança, ódio e
guerra, para analisar os dois lados da situação:
vitimas e acusados. Do lado das vítimas,
encontramos benefícios morais, terapêuticos e
políticos, pois, estas comissões lhes possibilitaram o
alívio de suas angustias e sentimentos perante os
condenados, porém, é de certa maneira
questionável, pois, o que Ricoeur levante e que nos
interpela hoje quando nos deparamos com estes
casos é o seguinte: até que ponto as vitimas
avançaram
rumo
ao
perdão
que
seja
verdadeiramente sincero? A resposta ricoeuriana é
muito sucinta: “é difícil dizer” [10]. Do lado dos
acusados que pedem publicamente perdão, temos
um agravante, pois, até que ponto é verdadeiro e
sincero
seu
pedido
de
perdão?
Muitos
simplesmente utilizam destes artifícios para
expressarem um espetáculo que aos olhos
humanos é puro, é belíssimo, mas que na sua
essência é podre e mentiroso. Diante destas
perplexidades, Paul Ricoeur vê-se novamente frente
à provocação inicial, a saber: se é possível
realmente perdoar. Também caímos face ao abismo
existente entre pedir perdão e perdoar, que para
Ricoeur se resume em uma única pergunta: “que
força torna capaz de pedir, de dar, de receber a
palavra perdão?” [11].
Mais um passo é dado pelo filósofo retornando
sobre o si mesmo, no centro da questão da
ipseidade. Inspirado por Hannah Arendt, a questão
da promessa e do perdão será o último ponto
enfrentado por Ricoeur, antes de esclarecer o
paradoxo do arrependimento. O perdão desliga o
agente de seu ato e a promessa o liga. Ambos os
fenômenos dependem da pluralidade para se
efetivarem,
visto
que,
ninguém
consegue
experiênciá-los na solidão. Do lado da promessa,
vemos que ela pode se institucionalizar, a medida
que com o perdão é bem diferente, pois, este
constrói uma relação com o amor, que o faz
esquivar do campo político. Segundo Ricoeur: “não
há política do perdão” [12]. Necessitamos dos
outros para colocarmos em prática o perdão e
querer perdoar a nós mesmos necessitaria de nos
reconhecermos. Este dom diferentemente da
promessa tem uma áurea religiosa, vinda do alto,
sendo capaz de tamanha doação que pode desligar
o agente de seu ato.
Este desligamento do agente de seu ato nos leva a
uma outra questão importante deste epílogo e que
dá sentido à prática do perdão. Amparado pelas
“religiões do Livro”, Ricoeur trará a tona dois
conceitos que ainda não tinham sido elucidados, no
caso, a relação entre perdão e arrependimento. No
perdão encontramos o poder revitalizador que traz
ao homem culpado a possibilidade de voltar a ser
aquilo que é sua essência de ser humano, ou seja,
viver novamente pautado pelo espírito da bondade.
Precisamos entender o perdão como a fonte que
renova o pecador, estabelecendo sua força
originária. A partir do arrependimento, o culpado se
lança ao novo de sua existência, prometendo viver
sob os pilares do amor, da paz e da bondade. No
perdão encontramos essa capacidade de devolver
ao sujeito sua capacidade criadora e mais ainda, de
começar uma vida nova. É o que Ricoeur afirma
com certa veemência sobre um acusado: “tu vales
mais que teus atos” [13]. É fazer uma pessoa
reconhecer que mesmo tendo cometido um erro, ela
ainda é ser humano e pode viver sua humanidade.
O que Ricoeur procurou durante todo seu percurso
filosófico foi compreender e investigar acerca do
que move todo homem, a saber: o desejo de ser
feliz e viver sua memória, sua história e seu
esquecimento ancorado sobre este bonito dilema,
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que faz todas criaturas serem mais humanas e
fraternas.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao refletirmos sobre cada termo aqui designado,
encontramos o reflexo de um ser humano que
soube traduzir sua vida na vivência plena de tais
sentimentos e mais, deixou um belíssimo legado
filosófico para todos. Diferentemente de todo tipo de
egoísmo, ganância e violência que o mundo pode
manifestar, vimos o real sentido do que é o amor, a
justiça e o perdão. Estamos diante de uma
sociedade que cada vez menos está pautada pelo
anuncio de ideais tão ricos e que possuem uma
singularidade serena e humanizadora.
Com Ricoeur pudemos aprender que amor, justiça e
perdão são polos distintos da vida humana,
possuindo suas singularidades, mas, que estão em
intima relação quando encarados como sendo
complemento um do outro. Amor e perdão são
familiares. São sentimentos que procuram e
almejam alcançar o mesmo fim. Eles são da ótica
do dom que traspõem qualquer barreira para se
manifestar. Somos humanizados por eles e nos
humanizando somos convidados a prática da
justiça, que mais do que um simples aparato
judicial, possibilita em nós, seres humanos,
vivermos em constante comunhão, sem que
caiamos simplesmente num cálculo interessado,
mas, reconheça no outro minha própria
humanidade. Não é uma troca de favores, mas pelo
contrário,é uma atitude que vise primeiramente uma
vida boa com os outros em instituições justas, onde
com minhas atitudes, contribua para a edificação de
uma sociedade mais humana e fraterna. A justiça
deve ser a base de toda prática humana e social,
amparada sempre pelo amor e o perdão que nos
leva a perdoar o mal padecido e reconhecermo-nos
pecadores diante do mal praticado. Não é diminuir
minha humanidade, nem a humanidade do meu
próximo, mas sim, dar bases para a construção de
um efetivo diálogo entre as partes que se
reconhecem como necessitados do amor, do perdão
e da justiça que nos faz todos sermos iguais.
Perdoar não é simplesmente liberar o acusado de
sua culpa, fazendo com que haja injustiça e/ou
impunidade, mas, é fazer com que a pessoa saiba
reconhecer seu erro perante a sociedade e esteja
disposta a pedir perdão, mesmo que ela se encontre
a mercê da resposta daquele que fora prejudicado
pelo seu ato. Ser justo diante do mal praticado e/ou
padecido é esta capacidade de trazer um acusado a
realidade de sua culpa e não deixá-lo perder sua
humanidade, mas, possibilite-o viver uma vida nova.
Podemos sim perdoar e ser justos, pois, mesmo
sendo ideais com perspectivas diferentes, ambos,
juntamente com o amor, são importantes para a
construção de uma sociedade melhor e mais
humana, onde na fraternidade, todos vivamos como
irmãos, mesmo que sejamos diferentes e tenhamos
nossas próprias convicções.
5. AGRADECIMENTOS
Agradeço à Pontifícia Universidade Católica de
Campinas por incentivar os estudantes de
graduação a realização da Iniciação Científica, em
especial, ao me conceder uma bolsa que supriu
algumas despesas durante o desenvolvimento da
presente pesquisa, auxiliando-me na participação
de encontros importantes em nível acadêmico,
como é o caso do 27º Congresso Internacional da
SOTER em Belo Horizonte.
De forma muito especial agradeço meu orientador
Prof. Dr. Walter Ferreira Salles, por ter me orientado
nesse trabalho, dispensando-me seu grande
conhecimento em Paul Ricoeur e seu brilhante
profissionalismo.
6. REFERÊNCIAS
[1] RICOEUR, Paul. Amor e justiça. São Paulo:
Martins Fontes, 2012, p.467.
[2] RICOEUR, Paul. Amor e justiça, p.481.
[3] RICOEUR, Paul. Amor e justiça, p.485.
[4] RICOEUR, Paul. Amor e justiça, p.485.
[5] RICOEUR, Paul. Amor e justiça, p.485.
[6] RICOEUR, Paul. Amor e justiça, p.486.
[7] RICOEUR, Paul. Amor e justiça, p.487.
[8] RICOEUR, Paul. Amor e justiça, p.488.
[9] RICOEUR, Paul. Amor e justiça, p.489.
[10] RICOEUR, Paul. Amor e justiça, p.491.
[11] RICOEUR, Paul. Amor e justiça, p.492.
[12] RICOEUR, Paul. Amor e justiça, p.496.
[13] RICOEUR, Paul. Amor e justiça, p.501.
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