A vida criativa em Winnicott: um contraponto ao biopoder e ao desamparo no contexto contemporâneo Conselho Editorial Bertha K. Becker Candido Mendes Cristovam Buarque Ignacy Sachs Jurandir Freire Costa Ladislau Dowbor Pierre Salama Beatriz Gang Mizrahi A vida criativa em Winnicott: um contraponto ao biopoder e ao desamparo no contexto contemporâneo Copyright © 2010, Beatriz Gang Mizrahi Direitos cedidos para esta edição à Editora Garamond Ltda. Rua da Estrela, 79 - 3º andar - Rio Comprido Rio de Janeiro - Brasil - 20.251-021 Tel: (21) 2504-9211 [email protected] Revisão Carmem Cacciacarro Editoração Eletrônica Estúdio Garamond / Luiz Oliveira Capa Estúdio Garamond / Anderson Leal Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98. Sumário Prefácio ................................................................................................9 Introdução..........................................................................................13 1. Biopoder e desamparo: de suas formas modernas a seus desdobramentos contemporâneos..............................................25 1.1. Sobre os mecanismos do poder na era moderna.....................26 1.2. Sobre o biopoder na contemporaneidade ...............................43 1.3. O problema do desamparo: questão central na modernidade que se intensifica na atualidade ...............................55 1.4. Desafios do contemporâneo para a prática psicanalítica.........70 2. O ambiente facilitador em Winnicott: uma alternativa para o desamparo e a regulação na experiência subjetiva ..........................77 2.1. Uma psicanálise sem pulsão de morte.....................................78 2.2. O objeto subjetivo...................................................................85 2.3 Integração e personalização: processos fundamentais envolvendo a unidade psique-soma................................................92 2.4. A experiência transicional: um desvio em relação ao ideal de autonomia absoluta? ...................................................97 2.5. O uso de um objeto e a capacidade de se preocupar: a criação da alteridade como uma necessidade subjetiva.............104 2.6 A moralidade como potencialidade natural............................ 111 2.7. Um “estar só” que implica a presença de alguém.................123 2.8. A clínica winnicottiana: uma forma de resistência na atualidade?...............................................................................127 3. A subjetividade em Foucault: estabelecendo um diálogo possível com o pensamento winnicottiano...........................133 3.1. Identificando as principais questões trabalhadas pelo último Foucault ..................................................................137 3.2. Os prazeres............................................................................147 3.3. Dietética e econômica...........................................................158 3.4. A erótica e a questão do verdadeiro amor.............................163 3.5. O cuidado de si......................................................................170 3.6. Uma outra relação sujeito e verdade na moral antiga e no pensamento de Winnicott...........................................178 3.7. A amizade como espaço transicional: pensando as formas de resistência política na atualidade............183 Conclusão..........................................................................................197 Bibliografia.......................................................................................205 Agradecimentos À Claudia Garcia, pela orientação firme e inteligente, capaz de oferecer um espaço generoso onde puderam caber, construtivamente, também as nossas diferenças. À Faperj, que apoiou e tornou possível a realização deste trabalho. A Edna Vilete, André Martins, Carlos Augusto Peixoto, Gustavo Matta, Esther Arantes, Jurandir Freire Costa, Renato Baraúna, Francisco Ortega e Benilton Bezerra e aos demais colegas dos respectivos seminários e grupos de estudo. Vocês fizeram parte da experiência afetiva e teórica que sustentou a elaboração deste trabalho. Às amigas Tatiana Katz, Elaine Decache, Valéria Rodrigues e Alzira Kuster, pelas conversas proveitosas e importantíssimas, onde minhas inquietações puderam encontrar acolhida. A Carlos Plastino, meu analista, por me emprestar sua força e me ajudar a reconhecer a minha. Aos meus pais, minha irmã e meus avós, pelo suporte e inspiração. Nossa história foi marcada tanto por um dos efeitos mais devastadores do biopoder – o nazismo – quanto pelos desvios esperançosos que permitiram a sobrevivência, a continuidade e o sentido da vida. Este trabalho fala dessas duas experiências que, em boa medida, me chegaram através de vocês. Aos meus amores Isaac e Juliana, pelo enorme carinho e apoio ao longo desses anos de muito trabalho e pouco descanso. E também ao pequeno Daniel, que me inspira diariamente tanta vida criativa. Prefácio Ao postular o conceito de pulsão de morte, Freud se junta a uma corrente da filosofia política que concebe o homem como dividido em uma parte natural, bestial, corporal e pulsional, e outra cultural – ou mesmo civilizatória –, espiritual e propriamente humana que deve contrapor-se àquela. A partir dessa dicotomia, parece necessário e imprescindível que haja um controle, individual e coletivo, sobre nós mesmos, que impeça nossa natureza de nos autodestruir e destruir o outro e a coletividade. Esta concepção freudiana, herdada aliás de autores como Platão, Schopenhauer e Hobbes, legitima politicamente o controle social, não diretamente a fim de, acredita-se (é preciso ver por quais afetos e poderes se acredita nisso), exercer-se um poder de coerção da vida, mas de, supostamente, torná-la viável. A própria sexualidade, sublinha Beatriz Gang Mizrahi, é entendida como pondo em apuros a coletividade, concepção que implica a “necessidade” de regulação e controle dos corpos. Contudo, imiscuem-se, assim, na teoria freudiana, e por conseguinte no freudismo e em parte da herança da psicanálise, apesar de seu caráter intrinsecamente transgressor e revolucionário, os alicerces teóricos de justificação e legitimação do exercício do que Foucault chamara de um biopoder segundo o qual “a vida precisa ser defendida dela mesma”, pois seria intrinsecamente destrutiva. Dessa maneira, uma metafísica da vida se instaura, um desejo de corrigir a existência e, mais, como diria Nietzsche, um desejo ressentido e vingativo contra a vida, que por não entendê-la e não afirmá-la pretende coagi-la, julgá-la e puni-la. O que vai no sentido oposto de um pensamento afirmativo e criativamente transformador do real presente. Em termos de um pensamento filosófico social e político, Michel Foucault denunciou o biopoder, esse poder que se exerce em nome da vida sobre ela mesma, como controle e coerção, que disfarça seu fundo moralista sob argumentos “a favor” da vida – enquanto sobrevivência e qualidade padronizada de vida. E nesse contexto propôs, fazendo face ao biopoder, o conceito de resistência. Na psicanálise, por sua vez, aponta com precisão Mizrahi, Winnicott, por meio de sua teoria e clínica afirmativas, nos traz um outro conceito de resistência, como contenção do ambiente ao bebê e ao indivíduo, e contrarresistência criativa do bebê e do indivíduo aos estímulos de contenção do ambiente. O que permite pensar a teoria de Winnicott como uma valiosa contribuição não só para a psicanálise, mas também para a sociologia, a filosofia política, a educação, a ética e todas as áreas das humanidades que trabalham com a questão da vida em comum. A resistência criativa se configura assim como um contraponto ao biopoder alardeado por grande parte da sociologia contemporânea – assim como ao desamparo, por sua vez alardeado por grande parte da psicanálise contemporânea. Enquanto Foucault propõe que resistamos politicamente ao biopoder, a resistência analisada, observada e proposta por Winnicott, relativa ao desenvolvimento emocional do bebê, pode ser tomada como uma forma específica de resistência criativa a esse mesmo biopoder. Afinal, abandonando o conceito de pulsão de morte, e com isso também a ênfase numa sexualidade disruptiva, escreve Mizrahi, Winnicott introduziu uma concepção de subjetividade formada necessariamente pela interação social com o ambiente. Na medida em que essa relação inicial com o ambiente é bem recebida, o indivíduo desenvolve seu desejo natural de busca de uma vida social e de uma inserção criativa na cultura, não sendo necessárias interferências reguladoras e controladoras que o forcem a entrar na cultura, contra uma suposta tendência intrapsíquica 10 e pulsional destrutiva de si e do outro. Neste novo contexto, nessa nova compreensão, o que passa a ganhar importância são as referências facilitadoras e os ambientes acolhedores, familiares, mas também sociais e políticos. Ambientes acolhedores não produzem crianças mimadas e adultos individualistas, mas o seu oposto, pessoas mais criativas e mais confiantes de que podem ter o prazer de contribuir a seu modo com a sociedade, desejosas dessa contribuição singular e não submissa. No modelo do biopoder, temos os indivíduos reagindo, mais do que sendo ou agindo, sob ameaça de colapso, de surto, de destrutividade, de inviabilidade pessoal e social. No modelo winnicottiano, temos os indivíduos mais confiantes em expressar e expandir sua singularidade no sentido da partilha social e da coletividade. No primeiro modelo, as diferenças incomodam o que é comum, e somente podem encontrar seu lugar social como transgressões, no fim das contas negativamente integradas ao controle social. No segundo modelo, são as diferenças que enriquecem diretamente o que é comum, a vida em comum, na qual as singularidades não necessitam mais ser coagidas a enquadrar-se, pois não são mais tidas como ameaças à sociedade. Mizrahi nos mostra com o seu livro de que forma Winnicott, ao conceber a resistência criativa, reinterpreta de maneira inovadora, esclarecedora e libertadora a famosa função dos limites na interação com os bebês, com nossos filhos e de maneira geral, tão apregoada pela tradição psicanalítica. Pois abandonando o conceito de pulsão de morte, Winnicott permite ver a agressividade como expressão do próprio impulso vital, da própria espontaneidade do bebê em sua descoberta do mundo. Sendo assim, essa força vital não só se expressa gerando um certo grau de tensão, como necessita de uma resistência acolhedora de seu gesto para que, ao encontrar esse anteparo, o bebê, a pessoa, possa sentir-se vivo, existindo. Esse limite que não se dá por antagonismo, essa resistência do ambiente que não é uma oposição (senão uma “oposição sintônica”, como diz 11 Mizrahi) nem uma intrusão, nem retaliação, mas interação de corpos distintos, de duas forças que se encontram, é fundamental para o desenvolvimento de ambas – no caso, sobretudo do bebê, cujos self e ego estão em formação. Não se trata mais de um justo-meio quanto aos limites a serem dados – estamos agora muito longe do fundo moral (ainda que em sua versão transgressora) que espreita a teoria psicanalítica freudiana e o freudismo. Trata-se de uma resistência intrínseca ao acolhimento, que é o contrário tanto da negligência, da permissividade e da ausência, quanto da invasão, do autoritarismo e por conseguinte da submissão. Essa resistência do ambiente que diz “estou aqui” permite ao bebê, por sua vez, resistir criativamente ao ambiente, sentindo-se vivo e buscando espontaneamente maneiras singulares de interagir com os elementos que o ambiente lhe traz, aprendendo assim de maneira criativa e construtiva a conhecer o mundo, e a como ser si próprio nele. O trabalho de Mizrahi, que tem origem em sua tese de Doutorado em Psicologia Clínica realizado na PUC-Rio, se junta valorosamente àqueles que buscam repensar alguns alicerces da psicanálise a partir das impactantes e surpreendentes contribuições de Winnicott, cujos textos nos mostram com simplicidade e limpidez a relevância e a urgência de se sair de um modelo que restringe a vida psíquica a um funcionamento intrapsíquico, se entendemos que a gênese e a formação do psiquismo se dá na interação deste com o ambiente. Mizrahi explora de forma criativa e competente as implicações políticas dessa nova concepção para o ambiente social. Por um lado, elabora uma pertinente crítica a alguns valores tanto da modernidade quanto da pós-modernidade, e, por outro, enfatiza a importância, para os indivíduos como para a sociedade, de contextos sociais facilitadores. André Martins Professor Associado da UFRJ Programas de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e em Filosofia Membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ) e do Espace Analytique de Paris 12