predicação e argumentação no discurso - ALFAL 2008

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PREDICAÇÃO E ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO
Carmem Luci da Costa Silva*
[email protected]
1. Introdução
Este trabalho pretende mostrar a construção do sentido argumentativo no discurso a
partir da noção de predicação de Marion Carel, desenvolvida no interior da Teoria dos Blocos
Semânticos, versão atual da Teoria da Argumentação na Língua. Essa perspectiva de estudo
da linguagem apresenta a tese de que o encadeamento argumentativo é uma unidade
lingüística doadora de sentido, com a defesa de que um encadeamento é dito argumentativo
quando, numa seqüência entre dois segmentos A e B, ocorre interdependência de sentido,
constituindo uma unidade semântica. Essa interdependência semântica é marcada por
conectores do tipo normativo (donc abreviado como DC) ou transgressivo (pourtant
abreviado como PT), que estabelecem a inter-relação entre os segmentos, já que A somente
adquire sentido quando relacionado a B e vice-versa.
É com tal concepção de sentido que Carel (2005) trata de dois tipos de predicação no
enunciado predicativo, entendido como unidade argumentativa composta de sujeito e de
predicado. Os dois tipos, concebidos como predicação centrada e predicação conectiva,
funcionam argumentativamente de modo distinto, pois, no primeiro tipo, a argumentação
centra-se ou no sujeito ou no predicado e, no segundo tipo, a argumentação está presente nas
duas partes do enunciado. A análise aqui empreendida pretende mostrar como o
funcionamento de cada tipo de predicação orienta o sentido do discurso. Assim, este texto
está composto das seguintes partes: 1) introdução; 2) contextualização do tema predicação; 3)
tratamento da predicação a partir do ponto de vista argumentativo da linguagem; 4) análise do
funcionamento argumentativo da predicação no discurso e 5) considerações finais, com
algumas reflexões sobre o estudo realizado.
2. Predicação: uma breve contextualização
Ligadas à filosofia, as primeiras especulações sobre predicação surgem na Grécia
Antiga, época de seu apogeu cultural, em que, sobre o fundamento da lógica, nascem as
primeiras sistematizações gramaticais de base nocional.
*
Professora do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Federal do Rio Grande do
Sul – Brasil. Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Essas especulações sobre a língua de filósofos como Aristóteles conduziram às
primeiras sistematizações gramaticais nos compêndios de Dionísio, o Trácio, e de Apolônio
Díscolo.
A Dionísio, o Trácio, deve-se a primeira gramática do Ocidente, mas foi com
Apolônio Díscolo (séc. I d. C), conforme Castilhos (1994), que aparece a identificação de duas
relações sintáticas de base: a predicação, que é marcada pela concordância, e a
complementação, que é uma relação não marcada pela concordância. Nesse sentido, tanto a
predicação quanto a complementação implicam a atribuição de casos: nominativo à esquerda
do verbo, no caso da predicação, acusativo, dativo ou ablativo à sua direita, no caso da
complementação. Tais casos, como chama a atenção Castilhos (op. cit.), podem ter uma
representação morfológica, como no grego clássico, ou uma representação abstrata, no caso do
português. Assim, a predicação pode ser definida como a relação entre o verbo e seu sujeito, ao
passo que a complementação é a relação entre o verbo e seus complementos.
No entanto, as gramáticas tradicionais geralmente unificam na predicação os dois
processos, pois o que importa é a relação sujeito e predicado, em que o primeiro é definido
como o “ser sobre o qual se faz uma declaração” e o segundo é “tudo aquilo que se diz do
primeiro”1. Vemos nessas definições que subjaz um critério semântico aliado ao sintático.
Castilho (op. cit.) trata das implicações semânticas ligadas à predicação. Em Aristóteles,
o autor salienta que a designação é um processo de predicação e assim cada item lexical pleno
de significado é um predicador. Os nomes predicam por designar os seres e as coisas; os
adjetivos, os estados; os verbos, as ações e os eventos. Nesse caso, como salienta o autor, “a
predicação por designação gera o sentido, que decorre da relação entre o item e seu referente”
(Castilhos, 1994, p. 81). Além disso, a semântica está implicada na relação sintática dos
termos, pois o processo de sentidos depende crucialmente da relação entre o item-predicador e
o item-sujeito. Nesse último caso, o sentido é resultante da combinação de dois itens lexicais
relacionados sintaticamente.
Já Neves (2000), de um ponto de vista funcional, defende que todas as palavras que
constituem o léxico da língua podem ser analisadas dentro da predicação. Os predicados são
semanticamente interpretados como designadores de propriedades ou relações, e suas
categorias são distintas segundo suas propriedades formais e funcionais. Para a autora, “uma
predicação constitui um conteúdo proposicional, isto é, um fato,” que pode ser mencionado,
rejeitado ou lembrado. É na parte dos verbos que a autora chama a atenção para a questão de
que os elementos verbais, em geral, constituem os predicados das orações. Os predicados
1
Definições retiradas de Cunha &Cintra (1985).
designam as propriedades ou relações que estão na base das predicações que se formam quando
eles se constroem com seus argumentos (participantes da relação predicativa) e com os demais
elementos da oração. Com isso, Neves (op. cit.) complementa:
A predicação constitui, pois, o resultado da aplicação de um certo número de termos
(que designam entidades) a um predicado (que designa propriedades ou relações). A
construção de uma oração requer, portanto, antes de mais nada, um predicado,
representado basicamente pela categoria do verbo, ou, ainda, pela categoria adjetivo
(construído com um verbo de ligação).
Destacamos dessa breve contextualização duas questões ligadas a essa noção de
predicação: 1)
designação/remissão a entidades do mundo (referentes) e 2) relação sintática
entre itens lexicais que constituem a oração. Disso resulta a seguinte conclusão: a predicação é
um fenômeno da língua que envolve sintaxe e semântica.
É justamente na imbricação entre sintaxe e semântica que pretendemos, neste trabalho,
situar a predicação no estudo da língua com as seguintes indagações: Se a predicação, nos
diferentes estudos da tradição ou não, é tratada no âmbito da oração, como pode ser deslocada
para o âmbito do discurso? Pode a predicação contribuir para o estudo do funcionamento do
sentido no discurso? Como a Teoria da Argumentação na Língua, na versão dos Blocos
Semânticos, pode contribuir, através da noção de predicação, para a constituição do sentido
argumentativo no discurso? Tais questões norteiam o desenvolvimento deste estudo nos
próximos itens.
3. Predicação e argumentação no discurso
A teoria semântica que se ocupa da argumentação, criada por Oswald Ducrot e JeanClaude Anscombre, conta atualmente com a colaboração de Marion Carel, autora que tem se
dedicado ao estudo da predicação. Essa teoria opõe-se à concepção tradicional de sentido, que
conteria um aspecto objetivo, segundo o qual os enunciados descreveriam a realidade.
Nessa concepção de argumentação, a descrição da realidade se expressa pela atitude do
locutor em relação a essa realidade e pelo chamado que ele faz a seu interlocutor. Os dois
aspectos – subjetivo e intersubjetivo –
constituem o valor argumentativo, definido como “a
orientação que uma palavra dá a seu discurso” (Ducrot, 1988, p. 15). Nesse caso, o valor
argumentativo dá conta dos efeitos subjetivos e intersubjetivos dos encadeamentos. Daí advém
o axioma “a argumentação está na língua”.
Dois motivos justificam, segundo Ducrot (1999), a escolha da relação argumentativa
como foco de estudos da Teoria da Argumentação na Língua. O primeiro é que essa relação é
intrinsecamente ligada ao discurso, não deduzida de informações. O segundo é que a
argumentação parece fundamental em muitas relações discursivas, permitindo a unificação da
descrição lingüística.
Para operacionalizar o axioma “a argumentação está na língua” no tratamento do uso
da língua, Ducrot (1984, 1988) procura distinguir as entidades abstratas – a frase e o texto –
de suas ocorrências concretas – o enunciado e o discurso. Frase e enunciado situam-se em
um nível elementar de análise, enquanto texto e discurso situam-se num nível complexo.
Assim, o discurso é a realização do texto. Para que uma seqüência de enunciados constitua um
discurso, e não uma justaposição incoerente de enunciados, o autor propõe, como condição
suplementar, que os enunciados sucessivos não sejam acontecimentos independentes, mas se
apóiem uns nos outros.
A proposta atual da Teoria da Argumentação na Língua,
a Teoria dos Blocos
Semânticos, compreende o encadeamento como unidade lingüística doadora de sentido. Por
isso, nessa acepção, o discurso é entendido como o próprio encadeamento argumentativo e o
sentido das palavras é dele dependente. Disso se depreende que enunciado é constituído pelo
encadeamento no nível elementar e o discurso é constituído por seqüências de encadeamentos
no nível complexo.
Os encadeamentos são formados por dois segmentos interdependentes ligados por
conectores normativo (DONC no francês e PORTANTO no português) e transgressivo
(POURTANT no francês e NO ENTANTO no português). Nessa concepção, o sentido não
preexiste ao discurso, mas advém dele, pois somente o discurso é “doador de sentido”. Assim,
a seqüência “Pedro é inteligente” não tem sentido argumentativo sem que a ele sejam
conectados outros possíveis segmentos como “então passará no concurso”. Do mesmo modo,
esse sentido não é conferido apenas pela continuidade, mas pela interdependência semântica.
Em encadeamentos discursivos como “Paulo tem um bom salário: ele deve ser feliz” e “Paulo
tem muitos amigos: ele deve ser feliz”, o sentido de “felicidade” não é o mesmo. No primeiro
exemplo, o sentido de “felicidade” está ligado à questão monetária; no segundo, o sentido de
“felicidade” está ligado à questão afetiva. Nesses exemplos, ocorre uma interdependência
semântica entre dois segmentos, formando uma unidade de sentido, o bloco semântico.
Além dessas noções, Carel (2000) apresenta a de enunciado predicativo, considerado
como aquele que pode ser analisado em duas partes: a do grupo nominal (sujeito) e a do grupo
verbal (predicado). Nesse caso, os enunciados são analisados em termos de predicação e de
argumentação, pois defende que a interdependência de sentido entre sujeito e predicado
constitui a argumentação do enunciado. Em nosso estudo, tratamos do enunciado predicativo
no discurso, em que o discurso aqui é concebido como seqüência de enunciados predicativos
articulados. Nesse caso, nossa análise situa-se no nível complexo de descrição lingüística.
A Teoria dos Blocos Semânticos, embora trate o encadeamento argumentativo como
discurso, ocupa-se da argumentação de entidades lexicais e de enunciados simples, situados
no nível elementar de descrição lingüística.
utilizados por Carel (2000, 2002, 2005)
Por isso, estamos deslocando os conceitos
para o tratamento de entidades lexicais e de
enunciados de nível elementar para o tratamento do discurso, seqüências de enunciados, que
se situam no nível complexo.
No tratamento das entidades lexicais e dos enunciados, Carel (2000, 2002, 2005)
aborda
três tipos de argumentações: argumentação interna ao léxico (AI), argumentação
externa ao léxico (AE) e argumentação interna ao enunciado. A argumentação interna de uma
entidade lexical é entendida como o aspecto argumentativo que condensa a paráfrase dessa
entidade. Isso ocorre, por exemplo, com a palavra “prudente”, que pode ser parafraseada “se
há perigo, se toma precaução”.
precaução”. Já
Essa paráfrase é representada pelo aspecto “perigo DC
na argumentação externa,
o sentido argumentativo
contido na palavra
“prudente” determina a continuidade do discurso. Assim, em um enunciado do tipo “Pedro é
prudente, não sofrerá acidentes”, o primeiro segmento “Pedro é prudente” pode ter como
continuidade “não sofrerá acidentes”. Esses segmentos podem ser expressos pelo aspecto
normativo “prudente DONC não ter acidentes”. Assim, a argumentação externa diz respeito
aos prolongamentos que podem preceder ou seguir a entidade em análise.
Além das argumentações interna e externa contidas em entidades lexicais, a Teoria dos
Blocos Semânticos descreve a argumentação interna ao enunciado, definida por Carel (2002)
como argumentações condensadas no próprio interior dos enunciados simples. Em exemplos
como “A polícia apressa Paulo para que vá vê-la e, por isso, ele irá até lá” e “Os professores
apressavam Maria para responder e ela respondeu” condensam a mesma argumentação, qual
seja: “coação DONC ação realizada”.
Assim, situamos nosso estudo na versão atual da Teoria da Argumentação na Língua
para tratar do discurso, considerado como constituído por enunciados predicativos. Nessa
acepção, os
enunciados têm a predicação como propriedade definidora e a relação
argumentativa entre o grupo nominal e verbal como pressuposto de análise.
Diante disso,
passamos a descrever o funcionamento da predicação nos enunciados deste ponto de vista
argumentativo com o propósito de verificar o sentido do discurso.
Em Carel (2000), os enunciados contêm dois tipos de predicação: atributiva e
referencial. Na predicação atributiva, a argumentação interna do sujeito participa do sentido do
enunciado, como ocorre em “Este homem virtuoso será caro a meus olhos”, em que o sujeito
“Este homem virtuoso” tem papel argumentativo importante para o sentido do enunciado,
porque fundamenta a argumentação nele expressa (virtuosidade DC admiração). Já na
predicação referencial, a argumentação interna do sujeito não participa do sentido do
enunciado. Nesse tipo de predicação, que ocorre em enunciados predicativos como “Pedro será
prudente”, a argumentação do enunciado é a argumentação interna do predicado (perigo DC
precaução).
Já Carel (2005) reclassifica a predicação, distinguindo-a em dois tipos: predicação
centrada, que reúne as predicações atributiva e referencial anteriormente esboçadas,
e
predicação conectiva. Nesse trabalho a autora refuta a concepção clássica de predicação,
porque pretende dar conta, através da predicação, de três questões: a da referência ao mundo
do sujeito gramatical, a da função do grupo verbal de designar uma propriedade e a da
significação da oração pela relação entre o grupo nominal e o grupo verbal. Quanto à primeira
questão, a autora, inserida na concepção enunciativo-argumentativa da linguagem de que “o
discurso é doador de sentido”, defende que o sujeito gramatical não refere um ser ou objeto do
mundo, mas um ser lingüístico. Quanto à segunda questão, a autora questiona o fato de essa
concepção estar ligada à idéia de universalidade das propriedades designadas pelos predicados
e ao fato de que o sujeito é concebido como um ser do mundo. Quanto à terceira questão, Carel
(op. cit.) observa o problema da inerência entre o grupo nominal e verbal, em que um sujeito
somente poderia ter uma propriedade. Segundo a autora, Aristóteles procurou resolver esse
problema distinguindo duas formas de predicação: as essenciais e as acidentais. No exemplo,
“Sócrates é homem e filósofo”, “Sócrates é homem” indicaria a essência de Sócrates, enquanto
“é filósofo” traz uma propriedade acidental. Carel (op. cit.) rejeita também essa terceira
questão de predicação, porque discorda da concepção ontológica da referência ligada ao
mundo.
Discordando dessas concepções clássicas da predicação, porque ancoradas em sentidos
constituídos no mundo e não no discurso, Carel (op. cit.) defende uma concepção
argumentativa da predicação, em que o sentido se constitui no discurso pela relação entre o
grupo nominal e o grupo verbal. Por isso, ancora sua reflexão sobre predicação na Teoria dos
Blocos Semânticos, versão atual da Teoria da Argumentação na Língua. Para tratar do que
chama de operação de predicação, vale-se das noções de AI e AE, argumentando que o
problema central da predicação está na relação existente entre a significação do sujeito e a
significação do predicado.
Com a defesa de que o grupo nominal e o verbal formam um bloco semântico, Carel
mostra haver dois modos de constituição do bloco. No primeiro caso, o bloco expresso pela
oração provém de um dos componentes sintáticos (ou do sujeito ou do predicado) e, no outro,
o bloco da oração constitui-se pelos dois constituintes da oração (sujeito e predicado). O
primeiro caso é denominado de predicação centrada e o segundo, de predicação conectiva.
Na predicação centrada no sujeito gramatical, o bloco expresso pela oração provém do
sujeito gramatical. Nesse caso, as argumentações interna (AI) e externa (AE) provêm das
argumentações interna e externa do sujeito. Com o exemplo “A melhora é pequena”, a autora
mostra que o predicado “é pequena” atua sobre o grupo sujeito, porém não intervém nem em
sua AE nem em sua AI.
O exemplo,
que
pode ser parafraseado por “a situação era
complicada, portanto as coisas não vão bem”, expressa o aspecto “era complicado DC neg2estar bem”. Nesse caso, a AI de melhora seria “estava mal PT estar bem”. Porém, segundo a
autora, essa argumentação contraria o que diz o sujeito gramatical. Com isso, observa que o
grupo verbal, através do termo
“pequena”, opera sobre o aspecto do grupo sujeito,
transformando o aspecto em seu converso3 “estava mal DC neg-estar bem”. No exemplo, a
entidade que provê os aspectos que constituem o sentido da expressão é do grupo sujeito,
enquanto o grupo verbal opera sobre tais aspectos, intervindo na escolha dos encadeamentos
discursivos evocados. Com relação à AE do termo “melhora”, Carel (op. cit.) apresenta
aspectos do tipo “melhora DC neg-preocupado”. O grupo verbal opera sobre esse aspecto
transformando-se agora em seu recíproco4 “neg-melhora DC preocupado”.
Na predicação centrada no grupo verbal, o bloco expresso pelo enunciado provém do
grupo verbal. Como exemplo, Carel (op. cit.) traz o enunciado “Pedro é prudente” para
mostrar que, nesse caso, o sentido da palavra “Pedro” não intervém no sentido do enunciado.
Por isso, argumenta que a argumentação externa (AE) e a argumentação interna (AI) do grupo
verbal são as responsáveis pelo sentido argumentativo do enunciado. Para comprovar sua
argumentação, a autora descreve a AI do enunciado, que pode ser parafraseada como “Se
houver perigo, Pedro tomará precauções” ou “Se há perigo, Pedro toma precauções”. Ambos
encadeamentos pertencem ao aspecto “perigo DC precaução”, que está expresso no enunciado
A expressão “neg” indica negação. No caso, o segmento pode ser concebido como “não estar bem”.
Os aspectos conversos são explicados por Ducrot (2008), através do quadrado argumentativo. Trata-se
daqueles aspectos do bloco que possuem argumentação contrária, em que um aspecto é concebido como
normativo e outro como transgressivo. Exs.: “É rico no entanto não é feliz” e “é rico portanto é feliz”. Nesse
caso, o aspectos conversos seriam rico PT neg-feliz e rico DC feliz.
4
Os aspectos recíprocos são explicados por Ducrot (2008), através do quadrado argumentativo. Trata-se
daqueles aspectos do bloco que possuem a mesma argumentação, porém com mudança de posição da negação
no segmento. Exs.: “É rico no entanto não é feliz” e “não é rico no entanto é feliz”. Nesse caso, o aspectos
recíprocos seriam rico PT neg-feliz e neg-rico PT feliz.
2
3
“Pedro é prudente”. Na verdade, esse aspecto pertence à AI de “prudente”. Nas predicações
centradas no grupo verbal como o exemplo citado, não significa que o sujeito gramatical não
tenha nenhuma função, sua função é a de selecionar certos encadeamentos do aspecto. Assim,
Carel (op. cit.) salienta que, nas predicações centradas no predicado, o sujeito gramatical não
intervém na determinação do bloco expresso, mas na escolha dos encadeamentos evocados.
Assim, se no lugar de “Pedro” tiver “João” ou “Maria”, o bloco expresso no enunciado será o
mesmo, porém os encadeamentos que evocarão serão distintos. Além disso, a autora chama a
atenção para o papel do tempo verbal na argumentação, pois, no exemplo “Pedro é prudente”, o
tempo presente é atemporal e não corresponde ao presente da enunciação e, nesse caso, “ser
prudente” faz parte da natureza de “Pedro” e não que ele tenha se comportado de modo
“prudente” em determinada situação. Desse modo, os encadeamentos evocados (as paráfrases
para se chegar à argumentação interna) terão a presença de articuladores condicionais como
“se” e não “portanto”, devido ao tempo gramatical. Do contrário, se o exemplo fosse “Pedro
foi prudente”, seria parafraseado por “Houve perigo, portanto Pedro tomou precauções”.
Portanto, nas predicações centradas no grupo verbal,
há duas questões: 1) Quanto à
argumentação externa (AE) do enunciado “Pedro é prudente”, encontramos encadeamentos
como: a) “Pedro é prudente, portanto não lhe ocorrerá nada de mau”; b) “Pedro é prudente, no
entanto teve um acidente”; c) “Pedro é medroso, portanto prudente” e “Pedro não é medroso,
no entanto é prudente”. Todos esses encadeamentos pertencem aos aspectos que estão na AE
de “prudente”, ou seja, a AE do enunciado provém da AE do grupo verbal.
A predicação centrada tem as seguintes características: 1) é o tipo de predicação em
que apenas um dos grupos sintáticos (grupo sujeito ou grupo verbal) seleciona o bloco
semântico; 2) a argumentação interna (AI) dos enunciados advém tanto da argumentação
interna (AI) do termo pleno5 de um dos grupos sintáticos como de sua argumentação externa
(AE). Do mesmo modo, a AE do enunciado advém da AE do termo pleno de um dos grupos
sintáticos.
Já na predicação conectiva, o bloco do enunciado constitui sua argumentação interna
(AI) a partir de um termo pleno do grupo sujeito e de um termo pleno do grupo verbal. Nesse
tipo de predicação, Carel (op. cit. ) verifica apenas a argumentação interna, tratando de dois
tipos: a conectiva normativa e a conectiva transgressiva.
Como exemplo de predicação conectiva normativa, apresenta o enunciado
“Evidentemente, os bons estudantes serão aprovados”, em que a introdução do enunciado com
5
Termo pleno relaciona-se à definição de Ducrot (2002) para palavra plena, considerada como aquela a que se
pode atribuir uma argumentação interna e uma argumentação externa.
“evidentemente” já encaminha a uma interpretação conectiva, ao vincular a palavra “bons” do
sujeito com a palavra “aprovar” do grupo verbal. A argumentação interna do enunciado
apresenta o aspecto “bom DC aprova”. Como exemplo de predicação conectiva transgressiva,
apresenta o enunciado “Inclusive os maus estudantes aprovaram”, em que o termo “maus” do
grupo sujeito se vincula à palavra “aprovar” do grupo verbal e o termo “inclusive” impõe ver
essa conexão como transgressiva em “pourtant”, através do aspecto “mau PT aprova” .
Com a descrição dos dois tipos de predicação, a centrada e a conectiva, Carel (op. cit.)
mostra que o sentido de um enunciado predicativo
depende da relação argumentativa
constituída entre uma das palavras plenas do sujeito e uma das palavras plenas do predicado.
Essa relação pode ser descrita em termos de argumentação interna (AI) da palavra plena de um
dos grupos ou em termo de argumentação externa dessa palavra (AE).
Com isso, a autora
mostra a relevância da Teoria dos Blocos Semânticos para a descrição do funcionamento
gramatical da língua.
Nosso propósito neste estudo é mostrar como o funcionamento da predicação no nível
de enunciado predicativo pode contribuir para a produção do sentido no discurso. É dessa
descrição do sentido argumentativo do discurso a partir da análise da predicação que tratamos
no próximo item.
4. O funcionamento da predicação no discurso
O discurso em análise foi encontrado na seção Informe-Opinião ZH do jornal Zero
Hora6 do dia 31 de março de 2008. Para analisar o seu funcionamento argumentativo, por
meio da predicação, utilizamos as noções de predicação centrada e predicação conectiva,
conforme explicitação realizada no item anterior assim como os conceitos teóricos
relacionados a esse tipo de predicação: argumentação interna ao enunciado e argumentação
interna à palavra. Como estamos no nível complexo de análise lingüística, que é o do
discurso, tratamos da argumentação externa, como ligada às possibilidades de continuidade do
discurso determinadas pela escolha da palavra pelo locutor.
De fato, o discurso,
diferentemente do enunciado, mostra as escolhas feitas pelo locutor para expressar a
argumentação, através de seqüências de enunciados. Nesse caso, as escolhas das palavras e
enunciados pelo locutor
formam o contexto discursivo, constituindo, a nosso ver, sua
argumentação externa.
6
Jornal diário publicado na cidade de Porto Alegre que circula em toda a Região Sul do Brasil.
Assim, analisamos o discurso, recortando-o em enunciados predicativos para mostrar o
tipo de predicação que cada um expressa. A partir do tipo de predicação, fazemos a descrição
do bloco do enunciado através da argumentação interna da palavra plena do grupo sujeito ou
do grupo verbal, no caso da predicação centrada, e a descrição do bloco do enunciado
constituída pela argumentação interna de uma palavra plena do grupo sujeito e de uma
palavra plena do grupo verbal no caso de predicação conectiva. Após essa descrição,
mostramos como cada tipo de predicação contribui para a construção do sentido
argumentativo do discurso, relacionando a argumentação interna da palavra à argumentação
externa manifesta no discurso.
Além disso, os articuladores são considerados como elementos relacionadores de
argumentações e, nesse sentido, os enunciados que os contiverem são analisados juntos. Isso
porque, para Ducrot (2002), a categoria de articulador, tais como “mas”, “porém”, “pois”, “e”,
etc., tem como função comparar as argumentações que constituem o sentido dos segmentos
que os precedem e os seguem.
Estabelecidos os procedimentos de análise, a seguir inserimos o discurso para, em
seguida, buscar explicar o seu funcionamento argumentativo a partir da noção de predicação.
Informe
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Opinião ZH
A alma da escola
A comunidade de Taquari, cidade de 26 mil habitantes situada a 94 quilômetros de Porto
Alegre, ainda lamenta a destruição do Instituto Estadual de Educação Pereira Coruja, atingido
por um incêndio na última sexta-feira. A instituição é uma referência na região: tem 106 anos
e por lá passou a maior parte dos habitantes do município. Chega a ser emocionante constatar
a dor da comunidade com o infortúnio da escola, mas não houve perdas humanas e agora é
essencial que o sentimento de solidariedade se sobreponha a tudo mais. Como bem diz a
diretora Maria Consuelo Saraiva Dias, “a alma da escola não foi prejudicada”. Sua
manifestação é bem adequada para o momento: “A escola não são paredes, são as pessoas – e
as pessoas estão aqui para recomeçar”.
Primeiro enunciado:
A comunidade de Taquari, cidade de 26 mil habitantes situada a 94
quilômetros de Porto Alegre, ainda lamenta a destruição do Instituto
Estadual de Educação Pereira Coruja, atingido por um incêndio na
última sexta-feira.
Esse primeiro enunciado condensa a seguinte argumentação: instituto destruído por
um incêndio DC comunidade lamenta. Esse enunciado centra sua argumentação no grupo
verbal, já que duas palavras plenas (“destruição” e “lamenta”) contidas nessa condensação
estão cada uma num dos segmentos do encadeamento. Como “lamentar a destruição do
Instituto”
faz parte do grupo verbal do enunciado destacado, consideramo-lo elemento
central da argumentação do enunciado. Isso porque o grupo sujeito poderia ser alterado para
“Comunidade da cidade X, Y ou Z” sem alteração da argumentação. Conforme salienta Carel
(op. cit.), na predicação centrada no grupo verbal, o bloco expresso pelo enunciado provém
desse grupo e a função do sujeito é a de selecionar certos encadeamentos do aspecto. Ou seja,
o sentido argumentativo do enunciado provém da argumentação interna do grupo verbal.
Nesse caso, destacamos, desse grupo, a palavra “incêndio” para evidenciar a sua
argumentação interna (AI), que contém o bloco expresso pelo enunciado:
fogo
DC
destruição. Interessante observar na AI da palavra “incêndio” é a presença, em um dos
seus segmentos, do elemento lexical “destruição”, também presente no grupo verbal do
enunciado.
Isso
evidencia
que
as
palavras
“incêndio”
argumentativamente ligadas através da argumentação externa,
e
“destruição”
estão
porque expressas nas
seqüências discursivas escolhidas pelo locutor para encadear o seu discurso. Do mesmo
modo, a seqüência “comunidade lamenta” faz parte da argumentação externa expressa no
discurso, ligada à palavra “incêndio”, porque faz parte do que precede essa palavra no
discurso.
Segundo enunciado: A instituição é uma referência na região: tem 106 anos e por lá passou a
maior parte dos habitantes do município.
Esse segundo enunciado condensa a seguinte argumentação: Instituição formadora da
maior parte da comunidade DC instituição de referência. Se tomarmos o enunciado “A
instituição é uma referência na região”, novamente temos uma argumentação centrada no grupo
verbal “é uma referência na região”, em que a argumentação interna da palavra “referência”
constitui o bloco expresso pelo enunciado: indicação de outrem DC capacidade. As demais
palavras que precedem ou seguem a palavra “referência” constituem a sua argumentação
externa no discurso.
Terceiro e quarto enunciados: Chega a ser emocionante constatar a dor da comunidade com
o infortúnio da escola, mas não houve perdas humanas e
agora é essencial que o sentimento de solidariedade se
sobreponha a tudo mais.
Nessa passagem do discurso, temos na verdade enunciados encadeados pelo articulador
“mas”. A seqüência que precede o “mas” apresenta a seguinte argumentação condensada: dor
pela perda da escola por parte da comunidade DC sentimento de emoção do locutor. Essa
argumentação é encadeada com outras, que enfatizam o ponto de vista do locutor: a) perdas
materiais PT neg-perdas humanas e b) antes lamento PT agora deve haver solidariedade.
Nessas argumentações condensadas, que constituem a argumentação interna aos
enunciados,
temos os pontos de vista do locutor
expressos através de palavras como
“emocionante” e “agora é essencial”. Tais pontos de vista estão ligados à argumentação interna
das palavras “dor” e “solidariedade”. No primeiro caso, centrada no grupo verbal, por meio da
AI de “dor”: perda DC sofrimento. No segundo caso, centrada no grupo sujeito, por meio da
palavra “solidariedade”: perda social DC apoio à causa da comunidade.
Quinto enunciado: Como bem diz a diretora Maria Consuelo Saraiva Dias, “a alma da escola
não foi prejudicada.”
Nesse enunciado, temos o posicionamento do locutor responsável pelo discurso sobre o
dizer de outro locutor, constituindo uma espécie de “dupla enunciação” 7.
O locutor
responsável pelo discurso posiciona-se favoravelmente à argumentação do locutor que cita.
Esse enunciado relatado apresenta a seguinte argumentação condensada: as pessoas são a alma
da escola DC neg-prejuízo. Essa argumentação centra-se na palavra “alma’ do grupo sujeito,
que tem a seguinte argumentação interna: essência da vida DC condição de existência.
Sexto, sétimo e oitavo enunciados: Sua manifestação é bem adequada para o momento: “A
escola não são paredes, são as pessoas – e as pessoas
estão aqui para recomeçar”.
Novamente o sexto, o sétimo e o oitavo enunciados constituem-se em uma “dupla
enunciação”, já que o locutor explicita novamente o seu ponto de vista sobre o dizer de outro
locutor, que considera ser uma “manifestação bem adequada” (sexto enunciado).
Essa
manifestação “bem adequada” retoma a argumentação do enunciado precedente relatado pelo
locutor responsável pelo discurso, com o sétimo enunciado “A escola não são paredes, são as
pessoas”, que condensa a seguinte argumentação: escola são pessoas DC escola neg-paredes.
Essa argumentação é articulada com outra contida no oitavo enunciado, através do articulador
“e”: “As pessoas estão aqui para recomeçar”. Esse enunciado condensa a seguinte
argumentação: existência das pessoas DC recomeço. Interessante observar que, no sétimo
enunciado, temos a argumentação conectiva, porque a argumentação do enunciado advém das
O termo “dupla enunciação” é utilizado por Ducrot (1984/1987) em “Esboço de uma teoria polifônica da
enunciação” no livro O dizer e o dito, quando aborda a questão do discurso relatado.
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argumentações internas das palavras “escola” do grupo sujeito e “pessoas” do grupo verbal.
Já no oitavo enunciado articulado ao sétimo por meio do articulador “e”, temos a argumentação
centrada na palavra “recomeçar” do grupo verbal,
já que o sujeito “pessoas” retoma a
argumentação contida nessa palavra presente no grupo verbal do enunciado anterior.
Assim, no primeiro caso, temos as seguintes argumentações internas para “escola” e
“pessoas”: a) estabelecimento de ensino DC existência de aluno e professor; b) ser humano
DC capacidade de ação. No segundo caso, temos a seguinte argumentação para “recomeçar”:
problema em obra concluída DC reconstrução.
Esses enunciados podem ser condensados pela argumentação do locutor, que é
necessidade de recomeço DC afirmação da diretora é adequada.
Com essa análise,
descrevemos o funcionamento da predicação para constituir o
sentido do discurso. De maneira ainda provisória, pretendemos responder à indagação
formulada no primeiro item deste trabalho Como a Teoria da Argumentação na Língua, na
versão dos Blocos Semânticos, pode
contribuir, através da noção de predicação,
para
constituição do sentido argumentativo no discurso? Tal questão norteia a reflexão que
desenvolvemos nas considerações finais.
5. Considerações finais
Com este estudo, pretendemos verificar o papel da noção de predicação, tal como
tratada por Marion Carel na Teoria dos Blocos Semânticos, na análise de manifestações
situadas em nível complexo de uso da língua, que é o discurso.
Para tanto, valemo-nos da noção de enunciado predicativo considerando o discurso
como uma seqüência de enunciados. No discurso analisado, verificamos o predomínio de
enunciados com predicação centrada no grupo verbal. Nesse caso, o bloco expresso pelo
enunciado provém da argumentação interna de uma palavra plena presente nesse grupo,
enquanto o grupo sujeito tem a função de selecionar os aspectos do bloco. Somente no final do
texto aparece a predicação conectiva, em que a argumentação do enunciado advém de palavras
do grupo sujeito e do grupo verbal.
A análise do discurso permite-nos concluir que, num nível complexo de manifestação
lingüística, as argumentações internas de algumas palavras presentes no grupo sujeito ou no
grupo verbal constituem “núcleos argumentativos”, possibilitando ao locutor encadear as
argumentações externas para fazer do seu discurso uma unidade de sentido argumentativa. No
discurso analisado, consideramos que as palavras “incêndio”, “referência”, “dor”,
“solidariedade”, “alma”, “escola”,
“pessoas” e “recomeçar” funcionam como núcleos
argumentativos, porque suas argumentações internas permitem ao locutor seqüencializar
encadeamentos, que constituem a argumentação externa do discurso.
Parece-nos que a noção de predicação é uma ferramenta importante para a análise
argumentativa do discurso caso consideremos o contexto discursivo como a argumentação
externa das entidades do grupo sujeito e do grupo verbal eleitas para análise. Consideramos o
contexto discursivo como uma argumentação externa, porque o aspecto argumentativo expresso
no enunciado evoca encadeamentos. E, nesse caso, o locutor, entre tantos encadeamentos
evocados, faz suas escolhas para orientar a sua argumentação e constituir o seu discurso. Além
disso, os articuladores, como elementos que estabelecem a ligação entre os enunciados, são
necessários para a análise argumentativa do discurso.
Com este trabalho procuramos aplicar a noção de predicação à análise argumentativa do
discurso. Cabe lembrar que a busca dessa aplicação está começando e, como todo começo, está
marcado pela provisoriedade.
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