O IDEÁRIO DA INCLUSÃO (SOCIAL E EDUCACIONAL) NA POLÍTICA PARA A EDUCAÇÃO ESPECIAL BRASILEIRA PÓS 1990 Ana Paula Hamerski Romero1 Amélia Kimiko Noma2 Universidade Estadual de Maringá –UEM INTRODUÇÃO O objetivo deste estudo é a análise da configuração da política brasileira para a Educação Especial a partir de compromissos balizados internacionalmente em conferências mundiais sobre Educação. Busca-se evidenciar em torno de que principais idéias e justificativas a proposta da inclusão social e educacional brasileira está amparada. Para esse fim, analisa-se o conteúdo de documentos acordados na Conferência Mundial de Educação para Todos (1990) e na Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais: Acesso e Qualidade (Salamanca, 1994). Dar conta da análise da política para a Educação Especial demanda a inserção no debate sobre os processos de construção e execução de políticas públicas educacionais pós 1990. Isso por sua vez, em termos metodológicos, implica no entendimento de que os fundamentos que dão sustentação à política educacional adotada pelo governo brasileiro, obviamente, não são gerados exclusivamente em âmbito nacional. Em decorrência, ao admitir vinculações de abrangência mundial, torna-se obrigatório considerar a influência direta ou indireta das agências internacionais nas reformas estruturais de cunho neoliberal implementadas pelos Professora de Educação Especial da Rede Estadual e Municipal-PR e Mestranda do Programa de PósGraduação em Educação, da Universidade Estadual de Maringá. Endereço: Rua Osvaldo Cruz, 2992, apto 33, bloco 01. Cascavel. PR. CEP: 85810150. Fone: (45) 3223-0751. Email: <[email protected]> 2 Professora do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Maringá. 1 governos, bem como no direcionamento das políticas públicas, dentre elas a educação. Essas considerações permitem argumentar que os programas de ajustes estruturais, dentre eles o da educação, mantêm vinculações com a conjuntura mais geral de reestruturação capitalista e de ajustes macroeconômicos implementados sob orientações de instituições financeiras internacionais. Nesse sentido, o Banco Mundial e demais instituições associadas aparecem como os principais articuladores de consensos sobre prioridades e estratégias de reformas educacionais, as quais têm como alvo principal os países considerados “em desenvolvimento”. É atribuído papel central à educação básica como fator de desenvolvimento social e de garantia de estabilidade do sistema capitalista mundial. No entanto, há de se enfatizar que esse poder é assumido paralelamente à atuação dos governos e de outros atores e autores nacionais, não significando, dessa forma, a supremacia dessas agências sobre todas as decisões efetivadas. Destarte, necessário se faz a consideração de que “[...] embora seja reconhecida a importância das mencionadas agências na formulação das políticas sociais dos países em desenvolvimento, sobretudo os devedores do FMI [Fundo Monetário Internacional], não é possível considerar que suas agendas se resumem em mera execução das orientações oriundas daqueles organismos” (OLIVEIRA, 2000, p.108). Os documentos analisados neste trabalho, ao expressarem as orientações e recomendações aprovadas pelos representantes dos Estados-membros e demais participantes nas ditas conferências, configuram-se numa peculiar relação interestatal de poder, caracterizada pela capacidade do conjunto de atores estatais de aprovar recomendações, propostas e sugestões que podem influenciar a tomada de decisão dos governos para definição de linhas e a implantação de políticas educativas pelos países membros. O IDEÁRIO DA INCLUSÃO Da análise das fontes selecionadas apreende-se que os encaminhamentos propostos para a promoção da reforma educacional brasileira estão balizados, fundamentalmente, pelas exigências impostas ao processo de ajuste estrutural do país. Nesse sentido, as agências internacionais, representadas mais especificamente pelo Banco Mundial (BM), pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), prescrevem as mudanças na esteira de uma concepção desenvolvimentista, em que os pressupostos da inclusão social passam a ser amplamente difundidos nos países periféricos. A promoção da “igualdade de oportunidades” é o grande eixo sustentado por essas iniciativas, justificando-se as mudanças nos modelos educacionais propostos para as pessoas com deficiência. Defende-se que todas as pessoas, sem distinção, tenham asseguradas, na escola de ensino regular, as devidas condições para o seu desenvolvimento, independentemente do tipo da demanda requerida. Assim, a eqüidade3 torna-se a principal referência na construção de uma sociedade em que todos os indivíduos, sem distinção, possam participar na sociedade e ter assegurados seus direitos sociais. O ideário da inclusão social e educacional, defendido em âmbito nacional e internacional, torna-se um dos pontos principais de consolidação dos preceitos de uma sociedade justa, igualitária e aberta à diversidade. Em conformidade com essa perspectiva, as políticas públicas brasileiras para a Educação Especial formuladas e implementadas no período pós-1990, se fundamentam em princípios integradores firmados nas declarações e recomendações balizadas nas conferências mundiais de educação. Os preceitos defendidos na Conferência Mundial de Educação para Todos e na Declaração de Salamanca orientam-se pela necessidade de mudança da perspectiva social, no sentido de intervir nas condições de segregação nas quais têm sido relegadas não só as pessoas com deficiência, mas também os grupos considerados minoritários. Essa intervenção está ancorada fundamentalmente em questões de ordem humanitária, prescrevendo-se a necessidade de formação de valores como o altruísmo, a tolerância, a solidariedade, bem como a formação de atitudes de não discriminação. Segundo Fonseca (2003, p.8), “No quadro mais atual das relações humanas e internacionais, a eqüidade passou a adquirir o sentido de um julgamento fundamentado na apreciação do que é devido a cada um (...). Por conseqüência, as desigualdades entre os homens são consideradas como efeitos naturais da sua própria circunstância.” 3 Na legislação brasileira, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, o Plano Nacional de Educação (2001) e a Resolução CNE/CEB 2/2001 (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica) definem a Educação Especial em conformidade ao sistema educacional inclusivo a ser ofertada preferencialmente na rede regular de ensino. Ressalte-se que para alguns autores, o indicativo “preferencialmente” pode constituir-se em termo-chave para o não cumprimento do direito à inclusão escolar, “pois quem ‘dá primazia’ já tem a exceção arbitrada legalmente” (MINTO, 2002, p.20). O termo inclusão tem sido mencionado em discursos progressistas e conservadores, servindo a diferentes posicionamentos político-ideológicos, fato que gera dificuldades para identificar suas filiações. Esse parece ser um conceito originado na contemporaneidade por sua focalização, no debate das políticas sociais, feito a partir de meados dos anos 1990, sendo-lhe dada uma ênfase própria na área da educação e educação especial. A questão que se busca compreender é “porque, justamente num momento histórico em que o mundo produz tamanha desigualdade social, esse conceito ganha a cena no discurso de agências multilaterais e governos de diferentes países, com orientações político-partidárias diversas e antagônicas” (GARCIA, 2004, p. 23). O questionamento de Garcia é de muita pertinência, sendo que uma análise mais aprofundada da crise do capital e do processo de monopolização revela a exacerbação das contradições imanentes ao próprio sistema capitalista. De acordo com Mazzucchelli (1985, p.96), “a monopolização se refere [...] ao domínio do ‘capital global da sociedade’ pelos grandes blocos privados de capital”. Congrega, nesse processo, “a própria internacionalização dos circuitos produtivos e financeiros de valorização”, a partir da “exportação do capital”, onde os “blocos do capital centralizados monopolicamente tendem a exercer o comando da produção e do trabalho numa escala mundial” (MAZZUCCHELLI, 1985, p. 99). Chesnais (1997, p.46) utiliza-se do termo mundialização do capital para designar “um modo de funcionamento específico do capitalismo predominantemente financeiro e rentista, situado no quadro ou no prolongamento direto do estágio do imperialismo”. De acordo com o autor, a chamada globalização "não tem nada a ver com um processo de integração mundial que seria um portador de uma repartição menos desigual das riquezas". Ao contrário, a mundialização, nascida da liberalização e da desregulamentação, "liberou todas as tendências à polarização e à desigualdade que haviam sido contidas, com dificuldades, no decorrer da fase precedente" (CHESNAIS, 2001, p.12). O que significa dizer que a "homogeneização, da qual a mundialização do capital é portadora no plano de certos objetos de consumo e de modos de dominação ideológicos por meio das tecnologias e da mídia, permite a completa heterogeneidade e a desigualdade das economias". O resultado é "a polarização da riqueza em um pólo social (que é também espacial), e no outro pólo, a polarização da pobreza e da miséria mais desumana” (CHESNAIS, 2001, p.13). Exatamente nesse contexto de exacerbação da desigualdade, da exclusão, da marginalização social e econômica de imensas parcelas da população mundial, ao ser apropriado no campo das políticas, “o conceito inclusão, nas suas diferentes expressões (social, educacional, escolar, entre outras), aparece acompanhado de uma aura de ‘inovação’ e ‘revolução’, até mesmo como ‘novo paradigma’ social”. Embora “suas raízes pareçam estar em uma matriz de pensamento que explica de maneira mecânica as relações sociais, e de ter sido originado numa compreensão que privilegia a manutenção da organização social vigente”, atualmente, o termo vem assumindo o significado de “algo que pode superar a ordem social estabelecida”, sendo “apresentado como solução para a exclusão social” (GARCIA, 2004, p.24). As políticas públicas eiras para a Educação Especial, implementadas a partir da década de 1990, anunciam uma significativa reorientação destas em relação às até então existentes, sendo elas respaldadas por um conjunto de tendências propaladas e assumidas pelos mais diversos segmentos da sociedade nacional e internacional. O foco principal é a proposta de integração e inclusão educacional das pessoas com deficiência na rede regular de ensino. Embora a defesa pela integração ou inclusão educacional já tenha sido pauta das políticas educacionais anteriores à década de 1990, é a partir desse período que esse ideário assume uma dimensão maior e passa a constituir-se em referência principal no conjunto das diretrizes educacionais estabelecidas. Esse movimento está atrelado, em parte, à tendência mundial em curso, que preconiza a oferta de educação básica para todos, a partir da Conferência Mundial de Educação para Todos (UNESCO, 1990) e da Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994). A INCLUSÃO EDUCACIONAL A PARTIR DE JOMTIEN E SALAMANCA Tem-se, a partir da Declaração Mundial de Educação para Todos, realizada em 1990, em Jomtien (Tailândia), o marco principal do postulado das redefinições da política educacional nacional, convergindo-se inicialmente para a estruturação e promoção educacional básica. A promoção da “educação para todos” justifica-se num contexto definido por sérios limites no acesso educacional, fator esse que compromete a inserção dos países ditos periféricos aos padrões requeridos pela competitividade internacional. Pautando-se em metas que preconizam não só a luta pela “satisfação das necessidades básicas de aprendizagem para todos” (UNESCO, 1990, p.4), o referido documento contempla a destinação de tais medidas a todos os grupos considerados minoritários, entre esses, o grupo das pessoas com deficiência. Propala-se que “As necessidades básicas das pessoas com deficiência requerem atenção especial. É preciso tomar medidas que garantam a igualdade de acesso aos portadores de todo e qualquer tipo de deficiência como parte integrante do sistema educativo” (UNESCO, 1990, p.5). A meta de “educação para todos”, amplamente preconizada pelas agências internacionais encontra, na reforma educacional brasileira, o principal argumento para a viabilização do processo de inserção de todos os alunos na esfera escolar. Um dos pontos da reforma preconiza a necessidade de a escola não só ampliar-se como também readequar-se às diferentes demandas educativas, resultante do ingresso de uma significativa parcela da população que, por razões diversas, estariam afastadas do âmbito educativo. É nessa perspectiva que ganha terreno a defesa da educação inclusiva, cujo princípio fundamental recai na condição de todas as crianças aprenderem juntas. No plano educacional, a propalada eqüidade deverá ser viabilizada a partir do acesso à educação básica de qualidade, traduzida pela educação aos diferentes grupos, tal como prescreve a Declaração Mundial de Educação para Todos: “Para que a educação básica se torne eqüitativa, é mister oferecer a todas as crianças, jovens e adultos, a oportunidade de alcançar e manter um padrão mínimo de qualidade da aprendizagem.”(UNESCO, 1990, p. 4). De tal modo, o discurso promovido acerca da necessidade do acesso à educação por todos aqueles grupos considerados minoritários, e os possíveis efeitos que tal oferta definitivamente sugere viabilizar, realmente conduzem ao entendimento de que, à educação, parece estar delegada toda a responsabilidade de resolução das problemáticas de diversas ordens, sejam estas sociais ou econômicas. O viés integracionista pela qual o acesso eqüitativo é proclamado na proposta de Educação para Todos pauta-se na defesa de “um compromisso efetivo para superar as disparidades educacionais”. O tom humanitário é evidenciado quando enfatiza que o grupo dos excluídos4 “não deve sofrer qualquer tipo de discriminação no acesso às oportunidades educacionais” (UNESCO, 1990, p. 5). A questão da eqüidade está relacionada aos preceitos da inclusão social, uma vez que sugere que a viabilização do acesso às condições sociais e educacionais por diferentes indivíduos reverte-se em desenvolvimento. Essa condição é analisada por Oliveira (2000, p. 126), que associa a defesa do critério da eqüidade em relação à “uma nova percepção de que uma distribuição mais eqüitativa de recursos públicos e privados pode melhorar as perspectivas de crescimento futuro”. Em razão dessa assertiva, os encaminhamentos são propostos com base no entendimento de que “capacidades humanas bem desenvolvidas e oportunidades bem distribuídas podem assegurar que o crescimento não seja desequilibrado e que seus benefícios sejam partilhados eqüitativamente.” Embora a eqüidade seja apresentada sob uma nuance que realmente sugira igualdade nas diferentes formas de participação social, o fato é que, de acordo com Oliveira (2003), a promoção da eqüidade, no plano educacional, demandaria altos custos, o que contradiz a retórica de minimização dos gastos públicos. De tal forma a eqüidade fica reduzida à oferta mínima da educação. [...]da forma como aparece nos estudos produzidos pelos Organismos Internacionais ligados à ONU e promotores da Conferência de Jomtien, sugere a possibilidade de estender certos benefícios obtidos por alguns grupos sociais à totalidade das populações, sem, contudo, ampliar na mesma proporção as despesas públicas para este fim. Nesse sentido, educação com eqüidade implica oferecer o mínimo de instrução indispensável às populações para sua inserção na sociedade atual. (OLIVEIRA, 2003, p. 74) 4 Tal como consta na Declaração Mundial de Educação para Todos, o grupo dos excluídos estaria representado pelos “pobres; os meninos e meninas de rua ou trabalhadores; as populações das periferias urbanas e zonas rurais; os nômades e os trabalhadores migrantes; os povos indígenas; as minorias étnicas, raciais e lingüísticas; os refugiados; os deslocados pela guerra; e os povos submetidos a um regime de ocupação” (UNESCO, 1990, p. 4 -5). Na esteira das deliberações que orientam as propostas para a reforma educacional, situam-se também os compromissos e orientações da Conferência Mundial realizada em Salamanca, Espanha, no período de 7 a 10 de junho de 1994, na qual aprovou-se a Declaração de Salamanca e Linhas de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Amparada na estrita defesa do acesso educacional eqüitativo, tal Declaração promove em suas diretrizes as “Linhas de Ação sobre necessidades educativas especiais”, que devem viabilizar as condições necessárias para a inserção dos grupos considerados minoritários, no sistema educacional. Ratifica-se, portanto, a proposta da Educação para Todos, fundamentada num viés integrador e direcionada ao reconhecimento das especificidades de diferentes grupos. Propala-se, assim, a defesa da luta contra a exclusão, uma vez que “a integração e a participação fazem parte essencial da dignidade humana” (UNESCO, 1997, p.23). Dessa forma, os representantes de 92 governos e 25 organizações internacionais reafirmam, na referida Declaração, o compromisso com a “educação para todos”, onde reconhecem a “necessidade e a urgência de ser o ensino ministrado no sistema comum da educação, a todas as crianças, jovens e adultos com necessidades educativas especiais” (UNESCO, 1997, p. 9). Na referida Declaração, a definição da expressão “necessidades educativas especiais” é associada a “todas as crianças e jovens cujas necessidades decorrem de sua capacidade ou de suas dificuldades de aprendizagem.” Considera-se que “muitas crianças experimentam dificuldades de aprendizagem e tem, portanto, necessidades educativas especiais em algum momento de sua escolarização” (UNESCO,1997, p. 18). Percebe-se o quanto os limites dessa definição tornam-se amplos, uma vez que considera as necessidades educativas especiais no contexto das dificuldades de aprendizagens, não se definindo, portanto, os critérios ou os determinantes para estabelecer as causas associadas a essas dificuldades. Portanto, as deliberações promovidas pela Declaração Mundial de Salamanca estão fundamentadas, em grande medida, na oportunização das condições educacionais a todos os indivíduos, inclusive ao grupo das pessoas com necessidades educativas especiais. Propala-se, assim, uma “reforma considerável da escola comum” (UNESCO, 1997, p. 5), uma vez que tem como critério a condição primeira de que [...] as escolas devem acolher todas as crianças, independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas ou outra. Devem acolher crianças com deficiências e crianças bem dotadas; crianças que vivem nas ruas e que trabalham; crianças de populações distantes ou nômades; crianças de minorias lingüísticas, étnicas ou culturais e crianças de outros grupos ou zonas de desfavorecidos ou marginalizados. (UNESCO, 1997, p. 1718) Enfatiza-se, para tanto, a organização e adaptação da escola para responder a essa diversidade. A escola integradora deve oportunizar as devidas condições para que todas as crianças possam aprender juntas, independentemente de suas dificuldades ou diferenças. Defende-se para isso que “as escolas integradoras devem reconhecer as diferentes necessidades de seus alunos e a elas atender”, como também deve “adaptar-se aos diferentes estilos e ritmos de aprendizagem das crianças e assegurar um ensino de qualidade por meio de um adequado programa de estudos, de boa organização escolar, criteriosa utilização dos recursos e entrosamento em suas comunidades” (UNESCO, 1997, p. 23). Por conta disso, o Banco Mundial orienta que “as escolas comuns têm de estar aptas a reconhecer e a responder as necessidades dos diversos estudantes, incluindo aqueles que têm tradicionalmente sido excluídos, tanto do acesso escolar, como de uma participação e oportunidades iguais na escola” (PETERS, 2005 , p.1). A Unesco centra a análise sobre a questão da desigualdade social e a indicação dos possíveis caminhos para debelá-la, na necessidade da “reavaliação do papel e das funções da política social” (KLIKSBERG, 2002, p. 39). A desigualdade, na ótica da Unesco, encerra um “circuito perverso”, cujos inúmeros determinantes a ela ligados compõem o problemático quadro enfrentado principalmente pelos países considerados em desenvolvimento. Assim, as orientações elaboradas por essa agência concernentes aos efeitos dessa desigualdade, focalizam-se sobre os níveis indicadores da pobreza e seus impactos, na questão do desemprego e informalidade, nos déficits em saúde pública, no aumento da criminalidade, no problema do acesso à educação, etc. (KLIKSBERG, 2002) Em busca de alternativas e levando em conta as “contingências e idiossincrasias do cotidiano das pessoas” a proposta para as políticas educacionais está embasada num viés humanitário, enquadrado na perspectiva da “formação humana” que é amplamente referenciado como parte da condição para o equacionamento das desigualdades, concernentes aos países periféricos. É nesse sentido que a defesa dos princípios e valores humanos5 compõem, em grande medida, as orientações propostas pela Unesco. A ênfase na “urgente necessidade de uma mudança de paradigma nas relações humanas” (KLIKSBERG, 2002, p. 31), é sustentado diante das ameaças que o acirramento de situações conflituosas mundiais representam. Isso sugere o entendimento de que a manifestação desses conflitos se deve, fundamentalmente, a determinantes pessoais, circunscritos, por exemplo, a aspectos de ordem moral, tal como a discriminação, o preconceito, a intolerância; não se enfrentando, portanto, as causas que realmente estão na origem dessas expressões de conflitos. Se o foco é convertido para a questão da formação moral, logo é a educação, em grande medida, que deverá propiciar as bases para essa mudança. Assim, “quando a Unesco persegue hoje uma cultura de paz, percebe-se logo que a âncora dessa busca é a educação [...]. É por intermédio da educação que reside a esperança de formação de mentes verdadeiramente democráticas” (WERTHEIN; CUNHA, 2000, p. 7). Portanto, não só o conhecimento, mas acima de tudo, a necessidade de formação humana, perfazem o eixo das propostas empreendidas pela Unesco. A relevância concedida a essa condição é assim expressa: A educação deve ter como objetivo o pleno desenvolvimento da personalidade humana e o fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Ela deve promover a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e os grupos religiosos e raciais (WERTHEIN; CUNHA, 2000, p. 7). Neste trabalho, partindo-se do pressuposto de que as denominadas políticas inclusivas assumem tal dimensão num contexto histórico, marcado fundamentalmente pelo acirramento das condições de desigualdade e de exclusão social, questiona-se em que medida a educação inclusiva de cunho neoliberal realmente responderá aos preceitos de uma sociedade justa, humana e igualitária, como está exposto nas Declarações de Jomtien e de Salamanca. Argumenta-se que a análise do movimento da inclusão não deve estar dissociada da análise do contexto em que este movimento se constitui. Deve-se levar em consideração o modo como tais iniciativas são implementadas, atentando-se para o fato de que geralmente as forças que são impostas e legitimadas provêm de segmentos defensores da manutenção do capital. Assim, considerando-se, por exemplo, o foco de intervenção das agências internacionais, sugere-se que, à primeira Esses valores estariam representados pela: tolerância, solidariedade, cooperação, altruísmo, compreensão, amizade. 5 vista, estas sinalizam e amplificam as possibilidades de acesso educacional, dada a pertinência da proposta de ampliação das oportunidades educacionais. Entretanto, dado o contexto social em que estas propostas estão circunscritas, ou seja, num momento histórico de acirramento das contradições sociais, questiona-se sobre a dimensão que o ideário de inclusão educacional tem assumido. Subjacente ao discurso da “igualdade de oportunidades”, foco principal das deliberações promovidas pelas agências internacionais, gesta-se o consenso de que a oportunização do acesso educacional igualitário responderá pelas condições de exclusão pelas quais os indivíduos se encontram. Logo, a situação da exclusão social parece, de fato, estar equacionada quando se propala que a inclusão educacional dará conta de responder pela exclusão social. A análise da exclusão social, situada numa perspectiva reducionista, conforme indica Castel (2000, p. 25) é improcedente. Ao dimensionar esse aspecto, explica o autor que “economiza-se a necessidade de se interrogar sobre as dinâmicas sociais globais que são responsáveis pelos desequilíbrios atuais”, adverte para a tendência em que “descreve-se da melhor forma estados de despossuir, mas criam-se impasses sobre os processos que os geram”. A exclusão portanto, passa a ser explicada somente na perspectiva de “análises setoriais, renunciando-se à ambição de recolocá-las a partir dos mecanismos atuais da sociedade.” Esse tipo de enfrentamento aos aspectos que se julga estarem associados à exclusão implica, na concepção do autor, em uma maneira reducionista de conceber esse problema. Tratado sob essa dimensão, a “luta contra a exclusão fica reduzida a um pronto socorro social, isto é, intervir aqui e ali para tentar reparar as rupturas do tecido social”. O autor reconhece que “esses empreendimentos não são inúteis”, mas adverte para o fato de que “deter-se neles implica a renúncia de intervir sobre o processo que produz essas situações” (CASTEL, 2000, p.28). Ao mesmo tempo, essas medidas focalizadas, embora até permitam melhorias nas condições de vida de grupos mais desfavorecidos, há de se destacar que não sugerem mudanças nos padrões em que já estão constituídas essas relações, fator esse que implica portanto, na permanência de situações de exclusão. CONCLUSÃO Os princípios que orientam os documentos analisados amparam-se na concepção de que as condições de segregação às quais os grupos minoritários estão expostos se devem à mera perspectiva de ordem pessoal e singular. Isso significa que o enfrentamento às situações de segregação deve ocorrer a partir da própria formação de valores pessoais, como por exemplo, a eliminação de atitudes discriminatórias e a convivência com as diferenças. Pautando-se a análise da exclusão social em uma perspectiva reducionista, certamente neutraliza-se o enfrentamento das complexas relações sociais da sociedade capitalista que implicam nas atuais circunstâncias de segregação, ignorando-se a amplitude dos processos sociais, políticos e econômicos que as geram. É necessário considerar o fato de que a defesa da igualdade de oportunidades educacionais vem sendo empreendida num contexto de prática social orientada pela redução de direitos sociais universais, num movimento em que o Estado, ao configurar-se numa perspectiva neoliberal, torna-se mínimo apenas para as políticas sociais e máximo para o capital. Este fator tende a comprometer a qualidade do processo educacional inclusivo de pessoas, cujas necessidades e demandas reais são requeridas; resultando na permanência de situações de segregação vivenciadas pelas pessoas com deficiência. Há de se reforçar o fato de que o movimento da inclusão, seja social ou educacional, não ocorre num espaço social vazio, e por isso, de forma alguma se apresenta condicionado internacional. estritamente Por essa às deliberações razão, torna-se políticas em âmbito fundamental nacional considerar e que, concomitantemente às forças que são legitimadas pelos segmentos defensores do capital, atuam também nessa arena de embates amplos segmentos da sociedade que lutam pela garantia e ampliação dos direitos sociais das pessoas com deficiência. Essas forças têm, certamente, produzido um legado histórico sem precedentes no que condiz à viabilização de condições de vida digna a essas pessoas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Ministério da Justiça. 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