Nietzsche e a música: uma análise de “O nascimento da

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA
Nietzsche e a música: uma análise de
“O nascimento da tragédia”
Relatório
Científica
Final
de
Pesquisa
apresentado
à
de
Iniciação
Escola
de
Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo - Bolsa PIBIC/CNPq.
Aluna: Rafaela Pedreira Martins
Orientador: Prof. Dr. Mário Rodrigues Videira
Junior
São Paulo
Agosto/2012
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Nietzsche e a Música: Uma Análise de “O Nascimento da Tragédia”
1. INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como objetivo investigar o papel da música no pensamento
de F. Nietzsche, por meio da análise do texto “O Nascimento da Tragédia”. Num
primeiro momento, parece-nos importante determinar qual é a relação entre a filosofia
de Nietzsche e o pensamento estético clássico alemão, e de que maneira o filósofo se
opõe às teorias estéticas de dois importantes predecessores, a saber, Winckelmann e
Schiller. Assim, seria possível nos perguntarmos: como a filosofia de Nietzsche se
relaciona aos conceitos estéticos de sua época? Que linhas de pensamento ele
combate? Quais são seus aliados?
Para tentar responder a tais questões, iremos analisar de maneira mais pormenorizada
os conceitos de dionisíaco e de apolíneo. Especial ênfase será dada ao estudo do
dionisíaco, bem como ao papel do coro e da música na tragédia antiga. Aliás, a
importância da arte dos sons para a concepção nietzscheana do trágico é indicada
desde o subtítulo do livro, quando o autor afirma que o nascimento da tragédia se dá
justamente a partir do espírito da música”. Nesse sentido é preciso notar que tanto o
“Prefácio” (1871) como a “Tentativa de autocrítica” (1886), que abrem o livro O
nascimento da tragédia (1872), de Nietzsche, apontam para uma influência e um
diálogo do autor com o pensamento e as ideias estéticas do compositor Richard
Wagner.
A pesquisa adota como metodologia a análise estrutural do texto-base, bem como a
leitura e fichamento dos principais escritos relacionados à pesquisa, tanto de
comentadores quanto de alguns filósofos anteriores a Nietzsche, e que também
desenvolveram teorias sobre a tragédia. Sempre que possível, procurou-se combinar a
interpretação imanente ao texto com o recurso a outras fontes históricas.
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No livro “O Nascimento da Tragédia”, Nietzsche propõe uma discussão estética a
respeito do que seria a tragédia grega e principalmente como ela surgiu, através da
análise dos dois elementos da arte trágica grega, o apolíneo e o dionisíaco, que
opostos um ao outro reúnem aquilo que é necessário para a criação dessa arte trágica,
em eterna contradição. O autor nos apresenta momentos de dominação apolínea e
dionisíaca na história da cultura grega, e através dessas análises faz sua grande crítica
à modernidade alemã, à concepção até então predominante a respeito da arte grega,
criando, assim, uma nova visão a respeito dos rumos que a música e a arte em geral –
principalmente aquela que reúne tantas outras artes: a ópera – deveriam tomar.
Podemos observar a existência de uma problemática da tragédia grega no contexto
artístico alemão daquela época, em que Nietzsche critica a maneira de seus
predecessores de interpretação da arte grega. Na presente pesquisa, o principal foco
da crítica de Nietzsche a esses predecessores foi dado a Schiller e Winckelmann. A
crítica de Nietzsche se dá principalmente na relação de Winckelmann com a arte grega.
Na medida em que valoriza apenas o aspecto apolíneo dessa arte, classificando-a
como uma “nobre simplicidade e grandeza serena”, Winckelmann se coloca de maneira
superficial em relação às artes gregas, de maneira que só se pode ver o aspecto do
prazer na contemplação da bela imagem, da representação da mais perfeita natureza,
e, dessa forma, a única maneira de nós contemporâneos sermos tão grandiosos
quanto os gregos se encontrava na tentativa de imitar a arte grega. Já Schiller, em seu
livro “Poesia Ingênua e Sentimental” faz a diferenciação do artista moderno do antigo.
Enquanto os gregos antigos possuíam uma relação totalmente íntima com a natureza,
de modo que se viam unidos um ao outro, o homem moderno rompeu com essa
relação, se encontra paralelo ao desenvolvimento natural. Dessa maneira, a arte do
homem antigo se encontrava em expressar a própria natureza em si, sua excelência
estava em sua limitação, era o ingênuo, enquanto a arte do homem moderno se dava
na busca por essa natureza perdida, ou seja, não se encontrava na representação do
objeto, mas em suas significações, o sublime, a excelência no ilimitado, assim era o
artista sentimental.
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Para explicar o pensamento de Nietzsche sobre o nascimento da arte trágica grega, é
preciso antes analisar seus conceitos de dionisíaco e apolíneo, pois esses serão os
dois pilares, as duas divindades que se fizeram necessárias para a criação da tragédia.
Apolo como deus da beleza, aquele que dá medidas, é o deus do princípio de
individuação, em que cada ser é reconhecido como único e individual, faz dessa bela
aparência uma ilusão que oculta os sofrimentos da existência. E Dionísio como
desmesurado, o deus que une homem e natureza, em que as festas orgiásticas
transpõem as barreiras das convenções sociais, fazendo com que tudo se torne uno, o
uno primordial, originário de todas as coisas. A oposição entre esses dois elementos da
arte, representados pelos deuses, fez com que se tornasse possível a criação da arte
trágica a partir do momento de sua união.
A partir do momento em que houve a junção desses princípios estéticos da natureza,
foi revelada a arte trágica, e com ela, seus dois componentes principais: 1) a música
(uma vez que a própria tragédia só se faz possível através dela, como o próprio título
do livro nos diz: “O Nascimento da Tragédia a Partir do Espírito da Música”. Esse é o
componente dionisíaco, pois a música é a manifestação direta da vontade primordial);
2) a palavra e a cena, ou seja, aquilo que é apolíneo, dá a forma objetiva e direção.
Juntos, estes elementos formam o coro trágico “a muralha viva que a tragédia estende
à sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si seu chão ideal e
sua liberdade poética” (NIETZSCHE, 1992, p. 51). Em suma, é aquilo que separa o
espectador da obra de arte, e faz com que essa tenha total liberdade de criação e total
credibilidade.
Nietzsche reconhece a música como sendo a arte propriamente dionisíaca, e as artes
plásticas a manifestação artística do apolíneo, e nos diz que apenas um filósofo foi
capaz de ver a música como uma arte totalmente diversa de todas as outras, este é
Schopenhauer, e, para ele, a música é a expressão direta da vontade, é o reflexo
imediato dela. A influência de Schopenhauer na concepção de música de Nietzsche e
Wagner está justamente nesse conceito: no tratamento diferenciado da música, não
através de conceitos de beleza estética, mas como uma linguagem universal, em que
um único estado da alma poderia ser expresso através de infinitas melodias. “A partir
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dessa relação interior que a música mantém com a verdadeira essência de todas as
coisas explica-se também que, ao soar uma música adequada a qualquer cena, ação,
ocorrência, ambiente, ela pareça descerrar-nos o sentido mais secreto destes e se
apresente como seu comentário mais justo e claro: do mesmo modo que aquele que se
entrega por inteiro à impressão de uma sinfonia vê como se todos os possíveis
sucessos da vida e do mundo já estivesses desfilando diante de si; no entanto, quando
reflete, não consegue indicar nenhuma semelhança entre aquele jogo sonoro e as
coisas que lhe passaram pela fantasia” (SCHOPENHAUER apud NIETZSCHE”, 1992,
p. 97). O efeito que a música dionisíaca exerce sobre a arte apolínea está presente na
medida em que ela traz a imagem de seu universo dionisíaco através de Apolo, dessa
forma nasce na mais verdadeira essência o mito trágico, e a partir desse fenômeno é
possível sentir alegria perante a existência “A alegria metafísica com o trágico é uma
transposição da sabedoria dionisíaca instintivamente inconsciente para a linguagem
das imagens: o herói, a mais elevada aparição da vontade, é, para o nosso prazer,
negado, porque é apenas aparência, e a vida eterna da vontade não é tocada de modo
nenhum pelo seu aniquilamento. ‘nós acreditamos na vida eterna’, assim exclama a
tragédia; enquanto a música é a ideia imediata dessa vida.” (NIETZSCHE, 1992, p. 99).
Nietzsche se faz bem claro quanto a sua crítica à ópera moderna, principalmente
quanto ao stilo rappresentativo e ao recitativo, de modo a se perguntar como a mesma
civilização posta em contato com a sublime arte de Palestrina, com o mais alto nível de
expressão da música, pôde receber tão calorosamente uma música tão superficial, em
que as palavras são pronunciadas dentro de um contexto que não chega nem a ser
musical? Essa apreciação pelo gênero semi-musical dessa ópera se dá pela ênfase
dada à palavra por meio de uma expressão patética dela, dessa maneira a música fica
em segundo plano. Porém o recitativo é intercalado com momentos de puro lirismo,
onde apenas a melodia se faz presente e muitas vezes sua intenção não está na
expressão de ideias, mas simplesmente serve para a satisfação do ego de cantores
virtuosísticos. É dessa alternância entre o gênero épico e lírico que se faz o stilo
rappresentativo, este que nunca alcança a verdadeira expressão da arte, que é
contrário à expressão dos impulsos dionisíacos e apolíneos. “A ópera é o fruto do
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homem teórico, do leigo crítico, não do artista: um dos fatos mais estranhos na história
de todas as artes. Entender acima de tudo a palavra foi uma exigência dos ouvintes
propriamente amusicais: tanto assim que só se poderia esperar um renascimento da
arte dos sons se se descobrisse um modo de cantar em que a palavra do texto
dominasse o contraponto como o senhor domina o servo” (NIETZSCHE, 1992, p. 112).
A ópera não vê o ideal como inalcançável ou a natureza como algo perdido, mas ela
trata a arte como se fosse uma brincadeira, voltada para o simples entretenimento do
público, suas fontes não estão presentes no estético próprio da verdadeira arte, mas
possuem um valor moral que foi transportado para o âmbito artístico, o que torna a
ópera nada mais que um parasita se alimentando e tomando o lugar da verdadeira arte.
A queda da civilização grega se deu principalmente pelo desaparecimento do espírito
dionisíaco em seus homens, porém nos dias atuais poderíamos perceber o processo
inverso: o surgimento gradual desse espírito dionisíaco dentro da cultura alemã atual,
através da música desde os tempos de Bach a Beethoven e agora de Beethoven a
Wagner. E quanta esperança trouxe esse fato à civilização, agora a ópera não mais
triunfaria com seu divertimento hipócrita, e assim surgiria a mais verdadeira e
purificadora das artes. Com a música alemã, a filosofia, principalmente através de
Schopenhauer, caminhava juntamente na direção de glorificar essa verdadeira obra de
arte, expondo todas as limitações e incoerências do socratismo científico, essa crença
limitadora e enganadora da arte, e mostrando o caminho infinitamente mais profundo e
sério de tratar as questões éticas e artísticas. O retorno do espírito alemão à era trágica
significou o reencontro com sua própria essência, como se tivessem se libertado de
forças externas escravizantes e artificiais e retornado a seu próprio lar. E é nesse
momento que arte alemã deverá se voltar aos homens gregos, pois ao renascer da
tragédia, não sabe como ela surgiu e nem para onde irá.
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2. NIETZSCHE E A FILOSOFIA ALEMÃ DOS SÉCULOS XVIII E XIX
2.1.
Winckelmann: Nobre simplicidade e grandeza serena
Em seu livro “Reflexões sobre a arte antiga”, Winckelmann expõe sua visão do mundo
grego sob a perspectiva da arte. Para ele, essa arte se baseava na busca pelas
proporções perfeitas, encontradas apenas na natureza. A arte grega era o culto à
beleza ideal, por esse motivo qualquer forma desnecessária do corpo era repugnada,
assim os jovens gregos através de seus jogos e exercícios físicos mantinham o corpo
perfeito. Também esses jovens eram motivados ao desenho, estudavam os traços e a
anatomia dos corpos, pois dessa maneira, conhecendo as proporções ideais da
natureza, seriam capazes de julgar a beleza natural e também criar a beleza acima da
natureza, na qual sua imaginação juntava o que havia de mais perfeito na natureza em
apenas um corpo: dessa maneira era representada a beleza de suas divindades.
A nobre simplicidade e grandeza serena mencionadas por Winckelmann se devem à
naturalidade com que as obras dos gregos eram representadas. Por maior que fosse o
sofrimento e as tormentas da situação representada, quanto mais próximo ao repouso
e serenidade estivessem, melhor expressariam a grandeza serena da alma. Para
Winckelmann, a arte moderna deveria se voltar para os gregos, a fim de resgatar essa
beleza ideal e se contrapor à decadência em que a arte moderna se encontrava. A
imitação da arte grega resultaria assim na imitação daquilo que é mais perfeito na
natureza, todas as proporções e traços dos mais belos corpos agregados à uma obra,
tornando-a mais bela que a própria natureza.
Nietzsche apresenta uma visão bastante crítica a respeito do pensamento de
Winckelmann: para ele, as concepções winckelmannianas a respeito da arte grega são
uma ideia incompleta, no sentido de que apenas englobam seu aspecto apolíneo, as
proporções, os traços, a ordem, são elementos que fazem parte do universo onírico
apolíneo, daquilo que constrói. O elemento apolíneo que se faz presente na concepção
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da arte grega de Winckelmann será contraposto por Nietzsche ao conceito de
dionisíaco, o desconstrutor, responsável por tudo que se relaciona ao caos, à
embriaguez. Em seu livro “O Nascimento da Tragédia”, Nietzsche irá ressaltar quatro
momentos da antiguidade grega em que os elementos dionisíaco e apolíneo se
alternam e mais tarde se unem, respeitando suas linhas fronteiriças, a fim de criar a
tragédia.
Como veremos mais adiante, a arte grega, para Nietzsche, se dá na junção desses
dois elementos opostos: Dionísio, que primeiramente existia afirmando o caos, a
desordem, a desconstrução, colocava o homem no seu extremo, rompendo as
barreiras da moral, num estado de total embriaguez; e Apolo, que mais tarde
estabelecia a ordem e a moral com seu manto da razão, e construía, a partir do que
Dionísio havia deixado, a proporção dos belos traços gregos.
2.2. Schiller: as noções de ingênuo e de sentimental
Schiller nos apresenta o ingênuo como sendo a natureza em sua forma primitiva,
essa que tem uma capacidade única de comoção do ser humano, não por sua beleza
estética, ou perfeição, mas por sua inocência. Não é necessária uma razão para sua
existência: existe na total simplicidade de apenas existir, através de suas leis imutáveis.
Esse prazer e comoção que o ser humano vê na natureza ingênua se deve justamente
a esse fato: é um prazer moral, gerado pela inocência dos seres naturais, que um dia
nós possuímos, e mais tarde nos libertamos: tornamo-nos mutáveis, pensantes e nos
separamos da irracionalidade ingênua da natureza. Por esse motivo, o homem
moderno (sentimental) está constantemente em busca da natureza. Diferentemente
dos antigos (ingênuos), os modernos cultivam um sentimento melancólico em relação
ao que é natural, buscando reconectar-se a ele.
Dessa maneira Schiller classifica a poesia dos antigos como sendo ingênua, e a
poesia moderna como sentimental. Os gregos antigos eram parte do mundo natural,
não era para eles um esforço buscar uma beleza plástica para suas artes na natureza,
a beleza plástica era naturalmente parte de sua cultura artística: “Quando se recorda a
bela natureza que envolvia os gregos antigos; quando se reflete sobre quão
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intimamente esse povo podia viver com a natureza livre sob seu céu feliz; quão mais
próximos estavam da natureza simples seu modo de representar, sua maneira de
sentir, seus costumes, e que reprodução fiel dela são suas obras poéticas” (SCHILLER,
1991, p 54-55)
No entanto, é importante ressaltar que, para Schiller, seria absolutamente
absurdo se quiséssemos comparar esses dois tipos de poetas, pertencentes a épocas
tão distintas e longínquas entre si. Pois, o poeta antigo encontra sua força na limitação,
na sua reprodução totalmente fiel da natureza simples, é uma arte para os olhos,
voltada para a beleza plástica. Enquanto o poeta moderno é voltado para o ilimitado,
para a abstração dos sentimentos e das ideias, e é nessa infinitude da imaginação que
ele encontra sua força. (SCHILLER, 1991, p 63).
Schiller não desmerece o fato de que as belas artes estão diretamente ligadas
ao entretenimento, pois elas se voltam para a natureza, e o homem só pode encontrar
a felicidade na natureza, independente do modo com que este se relaciona com o
mundo natural, seja ele ingênuo, conectado à natureza, ou sentimental, buscando-a.
“Por isso, é com a natureza, ou melhor, com seu Autor, que as belas-artes têm o fim
comum de prodigalizar entretenimento e tornar felizes as pessoas. (...) Somente a arte
nos proporciona prazeres que não precisam antes ser merecidos” (SCHILLER, 1992, p
14).
Quando o homem tenta forçosamente impor um valor moral à arte, ela perde sua
função de livre entretenimento, perde sua naturalidade em função da moral imposta.
Porém, a arte quando atinge seu objetivo máximo de deleite do ser humano, ela
naturalmente cria um valor moral benéfico, e o entretenimento torna-se um meio para
que a moral verdadeira seja alcançada: “o entretenimento mesmo, que a arte
proporciona, torna-se, quanto à moral, um meio.” (SCHILLER, 1992, p 16).
O sentimento que nos proporciona aquilo que é sublime é de uma impotência
perante algo tão grandioso em idéia. Essa impotência gera, em primeira mão, o
desprazer. Porém, esse desprazer nos faz despertar a imaginação, assim nos
deleitamos diante do que é sublime, e sentimos ambiguamente prazer no que seria
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desprazeroso. É isso o que faz a tragédia, através de contradições morais nos
proporciona o máximo deleite. Sentimo-nos mais comovidos diante do sofrimento de
um homem bom do que o sofrimento de um homem ruim, pois assim é contrariado o
princípio moral de que a virtude traz felicidade.
Schiller ressalta que, como explanamos anteriormente, a tragédia não tem uma
forçosa finalidade moral, e é isso que a faz tão grandiosa em seu efeito sobre o ser
humano: “Não é só a obediência à lei moral que nos dá a representação de uma
adequação moral; também a dor ante a violação nos proporciona essa ideia. A tristeza
produzida pela consciência da imperfeição moral é adequada por opor-se à satisfação
que acompanha a perfeição moral” (SCHILLER, 1992, p 24). A tragédia nos eleva ao
sublime, e cumpre sua finalidade artística ao despertar, através deste, a consciência
moral que existe em todos os homens.
2.3.
Influências schopenhauerianas no pensamento de Nietzsche
Tal como irá ocorrer com o compositor alemão Richard Wagner, também Nietzsche foi
profundamente influenciado pela filosofia de Schopenhauer, sobretudo no início de sua
carreira. Isso se mostra de maneira evidente a partir de seus textos de juventude, de
modo que se faz necessário, para que possamos compreender corretamente seus
argumentos, que façamos um pequeno excurso, explicando os principais conceitos da
filosofia de Schopenhauer e que reaparecerão em Nietzsche:
2.3.1. A noção de “principium individuationis”
O principium individuationis é toda a condição que separa seres da mesma espécie
como seres individuais, é aquilo que diferencia cada ser em si do universo.
Schopenhauer, em seu livro “O Mundo como Vontade e Representação”, nos
apresenta o principium individuationis como sendo o espaço e o tempo, pois apenas
“por intermédio do espaço e do tempo que aquilo que é um só e semelhante na sua
essência e no seu conceito nos aparece como diferente” (SCHOPENHAUER, 1985,
§23).
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2.3.2. A noção de “Uno Primordial”
O Uno-Primordial, em contraposição ao princípium individuationis, é a unidade
primordial de todas as coisas, é o rompimento das barreiras que separam um ser de
outro e esses do universo. Ele é descrito por Nietzsche em “O Nascimento da
Tragédia” como um ser em eterna dor e contradição que encontra sua redenção na
contemplação da aparência da beleza. Essa contradição em que o Uno-Primordial se
encontra é caracterizada pela dor suprema junto ao prazer supremo, em que a dor
suprema encontra sua libertação na aparência, ou seja, na produção de formas no
mundo fenomênico. O processo de rompimento da dor primordial permite que essa se
junte ao espaço e ao tempo, assim sendo representada formalmente. Dessa maneira, o
conceito de Uno primordial se aproxima de maneira inegável do plano artístico, em que
o artista e a obra de arte são formas figuradas em que o ser originário expressa sua
eterna dor e contradição em imagem e beleza.
2.3.3. A noção de Vontade
A Vontade é descrita por Schopenhauer, em seu livro “O Mundo como Vontade e
Representação”, como diferente de seu fenômeno e formas fenomenais (as
objetivações da Vontade). Ela o é uma vez que não está sob o domínio da razão, está
fora do espaço e do tempo e, portanto, fora do princípio de individuação. Schopenhauer
nos diz que apenas através do estudo das formas fenomenais da Vontade é que
poderemos compreender o tempo, o espaço e a causalidade como formas do
conhecimento.
O querer do homem tem por obrigação uma necessidade prévia, é neste “querer” onde
mais claramente podemos ver se manifestar a vontade, e os atos gerados a partir dele
são uma forma de objetivação da Vontade. O homem não é a Vontade, mas sim sua
manifestação, o fenômeno da vontade, é por esse motivo que está submetido à razão,
e a Vontade é por ele conhecida no âmbito de sua consciência, e por isso, está ligada
ao conceito de liberdade.
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O indivíduo pode pensar que é livre, porém seus atos dependem de sua
necessidade, como numa relação de efeito e causa, assim como o fenômeno da
Vontade, por isso ele nunca é livre completamente, ele também está submetido ao
princípio de razão.
A Vontade não age apenas no âmbito da consciência do ser humano, ela age também
pelo instinto, tanto em nós como nos animais, sem nenhuma espécie de conhecimento
ser necessária, é uma atividade cega da vontade. Assim como uma aranha tece sua
teia sem ter o conhecimento de sua presa, nosso próprio corpo trabalha sem que
precisemos do conhecimento para isso, na digestão, crescimento, reprodução, etc. Por
esse motivo, nosso corpo inteiro é uma objetivação da Vontade, que nessa atividade
cega não é regida por motivos, mas sim excitações.
Para toda causa, existe uma ação proporcional a essa e conseqüentemente um efeito
proporcional, porém, Schopenhauer chama de excitação uma causa que não possui
um efeito proporcional, como as funções involuntárias do nosso organismo, sua causa
é a de manter-nos vivos, porém suas reações muitas vezes não são sentidas por nós,
ou ao contrário, uma ação muito pequena pode nos afetar de modo drástico. O autor
estende essa visão também às leis imutáveis da física, as quais independem de
qualquer motivo para existir, elas são, em sua essência, Vontade, enquanto suas
conseqüências, suas manifestações são fenômenos dessa Vontade.
O conceito de vontade é inseparável do princípio da representação, que se trata de
uma forma de visão do mundo onde este se compõe de duas metades: o sujeito e o
objeto, sendo que um não existe sem o outro, ou seja, são inseparáveis. O objeto tem
como sua característica o espaço e o tempo, e, portanto, a pluralidade, enquanto o
sujeito é indivisível, único: O mundo como representação se apresenta como o objeto
para o sujeito.
Schopenhauer afirma que a ciência é uma forma de representação do mundo
submetida ao princípio de razão, que através de sua visão sistemática, busca
compreender os padrões das leis naturais e imutáveis. Porém Schopenhauer nos
apresenta uma outra forma de conhecimento do mundo: “[...] a essência do mundo e o
verdadeiro substrato dos fenômenos, aquilo que está liberto de toda a mudança e, por
conseguinte, é conhecido com uma verdade igual para todos os tempos [...]. Este modo
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de conhecimento é a arte” (SCHOPENHAUER, §36,
p. 241). A arte tem a sua
origem no mundo ideal, e por isso oferece uma forma puramente contemplativa do
mundo, independente do princípio de razão, ela é livre, principalmente pelo fato de que
a idéia é a forma primordial de objetivação da Vontade, antes de ser dividida pelo
princípium individuationis.
A influência da Schopenhauer na filosofia de Nietzsche em “O Nascimento da
tragédia” se torna clara quando podemos comparar os conceitos apresentados por
Nietzsche de apolíneo e dionisíaco, com os conceitos schopenhauerianos de
representação e Vontade: Apolo, sendo o deus das aparências, aquele que constrói o
mundo das aparências, é o princípium individuacionis, aquele que impõe à realidade o
espaço e o tempo, podendo assim ser relacionado diretamente com a descrição do
mundo como representação apresentada por Schopenhauer. Assim, por outro lado,
temos o deus Dionísio, aquele que desconstrói proclamando o caos, a união de todas
as coisas – Uno-primordial – , que da mesma maneira se relaciona com a Vontade
schopenhaueriana.
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3. WAGNER – A ARTE E A REVOLUÇÃO
Em “A Arte e a Revolução”, o compositor Richard Wagner nos dá uma visão geral do
problema em que a arte se encontra na modernidade, pois, antes dos tempos
modernos, era comum a existência de artistas que eram muito bem pagos para entreter
a classe nobre da sociedade, e com isso tinham uma vida bem tranquila
financeiramente. Porém, na modernidade do autor, essa realidade era quase
impossível de ser vista, os artistas se encontravam numa situação precária
financeiramente e artisticamente, pois as oportunidades se tornaram poucas, e na
maior parte das vezes o pagamento que recebiam era de uma quantia muito pequena.
Isso o fez comparar a situação do artista moderno com a da própria arte: “trata-se tão
somente de procurar os fundamentos da arte enquanto resultado da vida social, de
conhecer a arte enquanto produção social” (WAGNER, 1990, p 35)
Para dar continuidade à crítica sobre a situação social da arte moderna, Wagner se
volta para as origens do desenvolvimento da arte: os gregos. Para ele, os gregos
encontraram na figura de Apolo, a expressão perfeita de sua fisionomia bela e forte.
Este, inspirado por Dionísio, dava vida ao drama grego: “ encontrava aí a mais perfeita
expressão; expressão em que os ouvidos e os olhos, a inteligência e o coração, tudo
captavam e percebiam como vida e realidade, tudo viam de facto, o físico e o espiritual,
que, desse modo, não eram apenas produto de um trabalho da imaginação”
(WAGNER, 1990, p 40). Era como se o poeta trágico fosse o instrumento direto do
deus, e este se manifestava na obra de arte. “(...) Ele exprimindo-se no todo, o todo
exprimindo-se nele; como uma fibra de entre os milhares que fazem uma planta
rebentar da terra, viver, elevar nos ares o seu recorte grácil e gerar aquela flor que
lança em redor o delicioso perfume da eternidade. Essa flor era a obra de arte e esse
perfume o espírito grego” (WAGNER, 1990, p 43).
A decadência da tragédia grega teve como motivo principal a repartição das artes nela
contidas, e coincidiu com a decadência do povo grego, não por motivos diferentes,
pois, assim como houve a individualização das artes, aconteceu o mesmo com a
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população, e durante muito tempo, a filosofia tomou o lugar da arte na civilização.
Essa muitas vezes colocava limites à arte, porém, a verdadeira arte deve ser
completamente livre “Porque arte verdadeira é a mais elevada liberdade e a arte não
pode anunciar outra coisa senão essa máxima liberdade” (WAGNER, 1990, p 45). Os
Romanos chamaram os pintores, escultores e arquitetos gregos para si, porém em
seus teatros não se podia ver as grandes manifestações artísticas antes cultivadas
pelos gregos, mas sim outro tipo de entretenimento, não aquele que eleva a alma, mas
aquele que vê intenso prazer no sofrimento humano, eram os gladiadores, escravos
treinados pelo exército que lutavam com bestas ferozes em batalhas sangrentas na
própria arena.
Toda essa valoração do sofrimento, do prazer na morte, é totalmente contrária à arte,
que, como na antiguidade grega, celebrava a vida: “toda essa miserável existência,
destituída de vida autêntica e criativa, só podia encontrar uma forma de expressão que,
embora geral, como geram era um tal estado de coisas, fosse contudo o oposto
absoluto da arte (...) A expressão deste estado de coisas não podia ser, portanto, a
arte. Tinha que ser o Cristianismo.” (WAGNER, 1990, p. 48). O Cristianismo
desvaloriza a vida terrena para se voltar a uma promessa de descanso e satisfação
eterna depois dela. Aquele que leva uma vida de sofrimento, tristezas, devoção e fé
será recompensado com felicidade eterna, e aquele que levar uma vida cheia de
alegria e criatividade queimará pela eternidade no inferno. “O homem grego, livre,
colocando-se a si mesmo no ponto culminante da natureza, pode criar a arte a partir da
sua alegria de ser homem. O cristão, rejeitando-se a si mesmo e à natureza, só podia
sacrificar ao seu deus sobre o altar da renúncia; não lhe podia apresentar a oferenda
da sua criatividade, dos seus atos; acreditava, pelo contrário, que só poderia obter a
graça divina abstendo-se da ousadia de qualquer produção pessoal” (WAGNER, 1990,
p.50).
Por esse motivo, nunca poderia ser feita uma verdadeira arte dentro dos
princípios cristãos, assim, no período do Renascimento, quando os homens sentiram
uma profunda necessidade da arte, da beleza sensível, estes se voltaram para os
gregos. Este ato de plena hipocrisia é aquilo que se manteve até a modernidade
referida pelo autor: “hipócrita era Luís XIV, que mandava que lhe recitassem no teatro
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do paço a maestria de versos gregos” (WAGNER, 1990, p 55). E dessa hipocrisia se
criou algo muito pior, que prevaleceria até os nossos tempos: a indústria.
Wagner vê o deus Romano Mercúrio, deus dos comerciantes e também o deus dos
ladrões e impostores, como o deus do mundo moderno, justamente pela relação
comercial entre tudo relacionado ao mundo moderno ser aquilo que é mais valorizado:
“Em carne e osso podeis vê-lo na figura de um mesquinho banqueiro inglês, que casou
a filha com um cavaleiro da ordem da jarreteira completamente arruinado, e põe a
cantar para si os primeiros cantores de uma ópera italiana, preferindo fazê-lo no seu
salão particular em vez do teatro público – embora, mesmo aí, de forma alguma no
santo dia de domingo – porque ganha assim a fama de ter que lhes pagar ainda mais
caro. Eis Mercúrio e sua solícita serva, a arte moderna” (WAGNER, 1990, p. 59). Nesse
trecho é muito clara a valoração do dinheiro em detrimento à arte, e que esta teria
apenas a função de entreter as pessoas entediadas e cansadas dos seus respectivos
trabalhos, e não o conhecimento e enobrecimento do espírito.
O simples fato da arte moderna estar subdividida em drama e ópera, torna essa arte
muito distante da verdadeira arte. O drama vê-se desvinculado da boa música,
enquanto a ópera é feita de uma série de ornamentos desnecessários, criados para
ostentar o ego de cantores virtuosos, ou apenas de belas melodias que agradam os
ouvidos do público preguiçoso e sem nenhum objetivo dramático. Aqui Wagner faz uma
grande comparação da arte moderna com a arte dos gregos “A arte pública dos Gregos
que atingiu o apogeu na tragédia era expressão do que havia de mais profundo e mais
nobre na consciência popular. O que há de mais profundo e de mais nobre na
consciência laica contemporânea é a pura contradição, a negatividade que atravessa a
nossa arte” (WAGNER, 1990, p.69). Nos teatros gregos, toda a população se fazia
presente, enquanto nos teatros modernos só se podia ver a classe alta da população.
Na educação, enquanto o homem grego era criado para servir à arte da melhor
maneira para o indivíduo, para cantar, dançar e atuar, podendo ser livre da maneira
que quisesse, o homem moderno é criado orgulhoso de sua inaptidão artística, e é
totalmente voltado para o lucro industrial.
16
Assim, Wagner irá defender que para haver uma mudança no cenário artístico
contemporâneo, uma Revolução se faz necessária: “Se a obra de arte grega sintetizava
o espírito de uma nação bela, a obra de arte do futuro tem que abarcar em si o espírito
da humanidade livre” (WAGNER, 1990, p.84). Conforme podemos depreender a partir
do trecho acima, é necessário que se crie uma nova arte, e não uma reprodução da
arte grega, não poderíamos ser gregos, pois sabemos coisas que os gregos não
sabiam, e, principalmente, sabemos os motivos de sua queda. Devemos nos identificar
com essa grande arte, e com isso, ela possa engrandecer o espírito do homem
moderno.
Onde devemos, portanto, buscar essa força, para que a Revolução se faça possível?
Devemos buscá-la na natureza “Se a cultura procedeu à negação do homem com base
na crença cristã na indignidade humana, criou ao mesmo tempo o inimigo que há de
aniquilar na exata medida em que ela não dispõe lugar para o homem. Esse inimigo é a
natureza, a única fonte perpétua de vida” (WAGNER, 1990, p. 87). A força, com que a
cultura reprime a natureza, fará com que essa a rebata com uma ainda maior, essa
será a força geradora do movimento revolucionário.
Ainda há a necessidade de um teatro que comporte todas as modalidades artísticas,
pois, nos teatros modernos, predomina justamente o conceito industrial de arte para o
entretenimento “Enquanto um teatro for considerado apenas como um meio de
aplicação de dinheiros capaz de proporcionar lucros ao capital investido (...) uma
direção verdadeiramente artística, uma direção consonante com os objetivos originários
da arte cênica, muito dificilmente poderia estar em condições de prosseguir os
objetivos do teatro moderno” (WAGNER, 1990, p 103). E como a humanidade poderá
ser livre sem sua liberdade na manifestação artística? Wagner faz um apelo a todas as
classes sociais, a todos os homens independente de sua ocupação, para se unirem
aos verdadeiros artistas na busca pela obra de arte do futuro, a verdadeira expressão
da humanidade moderna: “Assim, Jesus ter-nos-ia mostrado que os homens são todos
iguais e irmãos, e Apolo teria imprimido sobre esta grande irmandade o selo da beleza
e da força, libertando-a da descrença nas suas capacidades e despertando-a para a
consciência do seu poder divino. Levantemos então, na vida e na arte, o altar do futuro
17
em honra dos dois mestres mais sublimes dos homens: Jesus, que sofreu pela
humanidade, e Apolo, que a ergueu ao júbilo da dignidade” (WAGNER, 1990, p 110)
4. NIETZSCHE E A VISÃO DIONISÍACA DO MUNDO
Nietzsche escreveu “A Visão Dionisíaca do Mundo” entre junho-agosto de 1870, pouco
antes de “O Nascimento da Tragédia”. Nesse primeiro escrito, podemos ver claramente
a influencia de Schopenhauer e Wagner em sua obra. Nela são expostos os conceitos
de Dionisíaco e Apolíneo como dualidades da arte que se opõem uma a outra, até que
por um impulso da Vontade grega esses elementos se unem para o surgimento da
tragédia.
Através do sonho apolíneo e da embriaguez dionisíaca, o homem é capaz de sentir o
prazer de sua existência. Diante da imagem do sonho, tudo nos é perceptível, a
imagem fala por si mesma, porém nos desperta o sentimento da aparência: na medida
em que o sonho é um jogo com a realidade, não somente imagens agradáveis aos
olhos irão nos atrair, mas também o triste e o sombrio. “No momento em que traduz a
imagem para o mármore, ele (o escultor), joga com o sonho” (NIETZSCHE, 2005, p. 6).
Apolo é o deus da aparência, da representação onírica, “a ‘beleza’ é o seu elemento:
eterna juventude o acompanha. Mas também é o seu reino a bela aparência do mundo
do sonho: a verdade mais elevada, a perfeição desses estados, em contraposição à
realidade diurna lacunarmente inteligível, elevam-no a deus vaticinador, mas tão
certamente também a deus artístico.” (NIETZSCHE, 2005, p. 7).
Nietzsche (2005, p. 7) caracteriza o apolíneo como algo ligado à “delimitação
comedida”, “distante das agitações mais selvagens”, marcada por uma certa calma e
sabedoria. Por outro lado, sua concepção do dionisíaco é marcada pelo jogo com a
embriaguez e o arrebatamento. “São dois os poderes que principalmente elevam o
homem natural ingênuo até o esquecimento de si característico da embriaguez, a
pulsão da primavera” (NIETZSCHE, 2005, p. 8). Aqui é rompido o principium
individuationis, aquilo que nos torna seres individuais, e o homem se une novamente à
natureza: não é mais artista, se torna obra de arte. “Este homem, conformado pelo
18
artista Dioniso, está para a natureza assim como a estátua está para o artista
apolíneo” (NIETZSCHE, 2005, p.9). Ambas as forças (dionisíaca e apolínea) tiveram a
batalha vencida. Apolo pôs medida ao desmesurado Dionísio, e este, por sua vez, dava
à tragédia o enigma do mundo, a expressão direta da natureza.
O mundo olímpico dos deuses gregos não foi criado a partir de uma necessidade de
explicar a origem das coisas e do mundo, mas a partir das coisas já existentes, como
uma celebração da vida. “Elas não apresentam exigências: nelas o existente é
divinizado, seja ele bom ou mau” (NIETZSCHE, 2005, p. 15). A criação desses deuses
surgiu a partir da necessidade de viver: segundo a sabedoria do Sileno, a sabedoria
popular, explanada em “O Nascimento da Tragédia”: “O melhor, em primeiro lugar, é
não ser, em segundo lugar é morrer em breve” (NIETZSCHE, 2005, p.16). E sem o
mundo olímpico essa sabedoria seria posta em prática, porém o mundo olímpico atua
como um espelho transfigurador da realidade. “Ver sua existência, tal como ela é
inelutavelmente, em um espelho transfigurador e proteger-se com esse espelho contra
a medusa – essa foi a genial estratégia da ‘Vontade’ helênica para poder viver”
(NIETZSCHE, 2005, p.16). Pois, de que outra maneira o povo grego, com uma prédisposição tão forte para o sofrer, poderia viver se não vislumbrasse sua existência no
alto patamar de seu mundo olímpico? “A mesma pulsão (Trieb) que chama a arte à
vida, como o preenchimento e completude da existência seduzindo para o continuar
vivendo, deixou também que surgisse o mundo olímpico, um mundo da beleza, da
calma, do gozo” (NIETZSCHE, 2005, p.17). Nunca a Vontade se expressou tão
claramente como no povo grego, e é por esse motivo que o mundo moderno se volta
tanto a eles, nunca o homem e a arte estiveram tão intimamente unidos com a
natureza.
Como vimos acima, Nietzsche afirma que o domínio da arte apolínea é delimitado pela
visão, pelo belo e pela aparência: desse modo, ela se liga às artes plásticas (como, por
exemplo, a escultura, na qual o artista, por meio do mármore esculpido, nos guia ao
deus vivo visto por ele em sonho).
19
Na criação do mundo olímpico como um espelhamento da realidade, ao tornar a
manifestação da Vontade vencedora, o homem nega a verdade, e com essa fuga
diante da verdade existem dois caminhos: o do santo e o do artista trágico, ambos
veem na repugnância de viver, um meio de criação, seja ela santificadora ou artística:
“todo o real dilui-se em aparência, e atrás desta se manifesta a natureza unitária da
Vontade” (NIETZSCHE, 2005, p.30). A sabedoria e a verdade, formas apolíneas de
aparição da Vontade, são ofuscadas pela ilusão e pela alucinação, estas que são a
outra forma de aparição da Vontade: a Vontade dionisíaca. “A luta de ambas as formas
de aparição da Vontade tinha um fim extraordinário, criar uma possibilidade mais
elevada da existência (...). Não mais a arte da aparência, mas a arte trágica era a
forma de magnificação: nela, porém, aquela arte da aparência foi totalmente absorvida.
Apolo e Dionísio se uniram” (NIETZSCHE, 2005, p.31).
O prazer na contemplação de uma pintura ou escultura consiste no fato de que elas
representam um símbolo, e o entendimento desse símbolo nos proporciona tal prazer.
Já o ator apresenta o símbolo não somente na aparência, o prazer artístico não
consiste somente na contemplação, mas no entendimento da representação do
sentimento, da verossimilhança. Por esse motivo, agora não terá tanta importância a
bela aparência, mas nossa compreensão do “real aludido por ela” (NIETZSCHE, 2005,
p.34).
20
5. NIETZSCHE E O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA
O presente capítulo terá como objetivo realizar uma breve análise e comentário de
trechos selecionados do livro “O Nascimento da Tragédia”.
O livro propõe uma discussão estética a respeito do que seria a tragédia grega e
principalmente como ela surgiu: Nietzsche nos apresenta dois elementos, o apolíneo e
o dionisíaco, que opostos um ao outro reúnem aquilo que é necessário para a criação
da tragédia ática, em eterna contradição. O autor nos apresenta momentos de
dominação apolínea e dionisíaca na história da cultura grega, e através dessas
análises faz sua grande crítica à modernidade alemã, à concepção até então
predominante a respeito da arte grega, criando, assim, uma nova visão a respeito dos
rumos que a música e a arte em geral – principalmente aquela que reúne tantas outras
artes: a ópera – deveriam tomar.
Podemos observar o como o conflito entre razão x não-razão se reflete na história da
música: enquanto no séc. XVIII temos as formas bem definidas e concretas do
tonalismo, no séc. XIX temos uma transformação, o ápice do cromatismo tonal, o qual
atua como uma oposição, uma espécie de crítica à razão, passando a não mais vê-la
como solução, mas como um problema a ser resolvido. Nietzsche notou que na arte
dos gregos havia um equilíbrio entre a razão e a não-razão (Apolo e Dionísio), e viu em
Wagner uma nova forma de alcançar esse equilíbrio, de organizar problemas
estruturais da música, e ao mesmo tempo um novo meio de se fazer a música, como
no Leitmotiv que se transforma durante toda a música, de modo que seu isolamento se
torna quase impossível. Nietzsche tenta achar uma justificativa filosófica para aquilo
que Wagner estava fazendo na música e principalmente na Ópera.
Em seu prefácio dedicado a Richard Wagner, Nietzsche deixa clara sua devoção e
amizade pelo compositor, afirmando que tudo o que for dito no livro corresponderá com
a presença do músico. Com isso reconhece o seu débito intelectual para com Wagner,
que em seu livro “A Arte e a Revolução” expõe suas idéias a respeito dos rumos que
sua arte tomaria frente às idéias da modernidade alemã, e assim mostra Nietzsche que
de maneira alguma haveria uma contraposição de sua palavra para com a de Wagner.
21
O livro foi escrito durante a guerra franco-prussiana, por esse motivo, para muitos
soaria um tanto quanto fútil o problema estético do que se trata frente a uma guerra,
porém, para o autor, não existe esse contraste entre a seriedade da guerra e a
discussão estética a que se propõe: para Nietzsche, a arte é mais que mera diversão
dispensável ante a seriedade da existência. Para ele, “a arte é tarefa suprema e
atividade propriamente metafísica desta vida” (NIETZSCHE, 1992, p. 23).
No primeiro capítulo do livro, podemos ver pela primeira vez a formação dos conceitos
Dionisíaco e Apolíneo, que o autor liga, à primeira vista, ao contínuo desenvolvimento
da arte tendo como dependência a duplicidade desses dois elementos, assim como o
homem e a mulher, como elementos opostos, unem-se para criar uma nova vida.
Essa visão que os gregos tinham da arte, não pôde ser formada através de conceitos
estabelecidos pelos próprios. Porém, para Nietzsche, a oposição entre esses dois
elementos está presente de maneira clara nas figuras de seu mundo dos deuses,
bastando uma mente perspicaz para notar este fato.
Ele aponta que, dos seus deuses da arte, Apolo e Dionísio, existe um contraste muito
grande entre o escultor e o desconstrutor. Ambos caminham lado a lado em discórdia,
assim a arte é o elemento que faz uma ponte entre eles, e dessa junção nasce a
tragédia.(NIETZSCHE, 1992, p. 24)
Para Nietzsche, toda a arte plástica se constitui do mundo dos sonhos, onde cada
homem é um artista, o homem de propensão filosófica considera a sua realidade como
sendo onírica, enquanto o homem de propensão artística observa o sonho, e através
do sonho interpreta a vida, ou seja, a arte plástica é originária da imagem do sonho,
através dele, o artista gera a arte como se essa fosse uma interpretação, um
espelhamento da imagem. (NIETZSCHE, 1992, p. 25)
Essa experiência onírica é expressa pelos gregos em Apolo, que tem poderes
configuradores, escultores, é o deus da verdade e reina “sobre a bela aparência do
mundo interior da fantasia”. (NIETZSCHE, 1992, p. 26) Apolo pode ser considerado
deus do principium individuationis (cf. item 5.2.1) descrito por Schopenhauer em “O
mundo como vontade e representação”, que em meio aos tormentos mundanos o
homem se encontra em seu bote sozinho, calmo e confiante.
22
Um imenso terror se apodera do homem quando há a quebra do principium
individuationis, seguido do êxtase dado pela essência dionisíaca. Enquanto o apolíneo
está ligado ao sonho, o dionisíaco se liga a idéia da embriaguez. A natureza celebra a
reconciliação com o filho perdido: o homem. Aqui todos os seres são como um só, o
Uno-primordial. O homem torna-se a força artística da natureza, sente-se como um
deus, torna-se obra de arte.
Tanto no estado onírico apolíneo quanto no estado de êxtase dionisíaco, todo artista é
um imitador, ou seja, o impulso criador da arte pode vir da imagem do sonho apolíneo
como pode vir do êxtase de Dionísio, assim, a tragédia grega, sendo a junção de
ambos, depende da transformação do estado extático na imagem onírica pelo impulso
apolíneo, fazendo com que o mundo artístico se apresente como uma imitação, uma
imagem gerada a partir do sonho.
Até que ponto estavam presentes nos gregos esses dois impulsos artísticos da
natureza? Através dos sonhos, seremos capazes de compreender ainda mais a relação
dos gregos com sua arte. Apesar de não podermos falar a não ser em termos de
suposição a respeito dos sonhos gregos, tomando por base sua capacidade plástica,
precisão de linhas, contornos e cores na arte, não podemos deixar de supor que assim
eram também seus sonhos.
Em seguida, o autor expõe quatro momentos na história da antiguidade grega, que
serão aprofundados mais adiante no livro. No mundo antigo existiam as festas
dionisíacas, com sua sexualidade desenfreada ultrapassando os limites das
convenções familiares, onde as bestas titânicas reinavam livremente. Mais tarde e
durante algum tempo, os gregos permaneceram protegidos dessa loucura orgiástica do
mundo bárbaro, pela figura de Apolo, que até certo momento erguia suas armas para o
inimigo dionisíaco. Este, porém, restringiu-se depois a tirar de suas mão suas armas
destruidoras, para uma posterior reconciliação. “Essa reconciliação é o momento mais
importante da história do culto grego” (NIETZSCHE, 1992, p. 30).
No fundo, essa reconciliação não era exatamente uma união desses dois elementos
inimigos: era apenas a determinação e respeito às linhas fronteiriças. A ponte entre
eles – a tragédia – ainda não havia sido feita. Quando há o rompimento desse pacto de
23
paz por parte do dionisíaco, as festas gregas orgiásticas de transfiguração rompem o
principium individuationis, o fenômeno de júbilo artístico da natureza.
Os cânticos desses entusiastas dionisíacos era para o mundo Greco-homérico
totalmente nova. Se a música era conhecida como uma arte apolínea até então, era
apenas enquanto batida ondulante do ritmo: “A música de Apolo era arquitetura dórica
em sons” insinuados como os da cítara, e mantinha-se a distância a violência do som,
da melodia e harmonia (NIETZSCHE, 1992, p. 31).
Nesse contexto dionisíaco, as capacidades simbólicas do homem são intensificadas ao
máximo, de modo a expressar a essência da natureza por meio destes, “um novo
mundo de símbolos se faz necessário” (NIETZSCHE, 1992, p. 32), não apenas o
simbolismo dos lábios ou das palavras, mas de todo o conjunto, dos movimentos
rítmicos dos corpos bailantes que envolvem todos os membros. Junto a isso crescem
as forças simbólicas da música, na rítmica, na dinâmica e na harmonia. Para alcançar o
processo de desencadeamento de todas essas forças simbólicas o homem já deve a
essa altura ter atingido um nível de desprendimento de si mesmo que deseja exprimirse simbolicamente nelas, o que o torna apenas compreensível por seus iguais. Com
que assombro não o miraria o grego apolíneo, seu oposto. Porém nele crescia um
medo ainda maior de que afinal, aquilo não lhe era tão estranho, mas “sua consciência
apolínea apenas lhe cobria como um véu esse mundo dionisíaco” (NIETZSCHE, 1992,
p. 32).
Por que Apolo foi reputado como pai do mundo olímpico, sendo ele uma divindade
entre muitas outras? Qual foi o impulso necessário para que se criasse essa sociedade
de seres olímpicos? (NIETZSCHE, 1992, p. 32).
Quem busca nesses olímpicos, olhares de amor, acalanto espiritual e elevação moral,
sairá frustrado de sua jornada, pois este é um universo onde tudo é divinizado, não
importando se é bom ou mau. Nesse ponto, Nietzsche cita seus três conceitos
fundamentais, que estarão presentes em toda sua filosofia: bom, mau e vida.
Os conceitos de bom e mau mais tarde estarão presentes em seus livros “Humano,
demasiado humano” (§45) e “Para a genealogia da moral” (§2) e “Para além de bem e
mal” (§260). O conceito de vida é central em toda sua filosofia, pois é o que determina
a moral: aquilo que afirma a vida é moral, aquilo que a nega é amoral. Nesse contexto,
24
o cristianismo é a negação da vida, pois ele nega a vida presente, à espera de um
outro mundo idealizado, cheio de recompensas àquele que tanto sofreu em vida. Como
poderiam os gregos “suportar a existência, se esta, banhada em uma glória mais alta,
não lhe fosse mostrada em suas divindades?” (NIETZSCHE, 1992, p. 34). O mesmo
impulso que traz a arte à vida cria também o mundo olímpico: o impulso apolíneo da
beleza. Assim a vida torna-se digna de ser vivida e desejada, e a verdadeira dor
desses homens passa a ser a de separar-se dessa existência, invertendo-se a
sabedoria do Sileno: “a pior coisa de todas é para eles morrer logo; a segunda pior é
simplesmente morrer um dia” (NIETZSCHE, 1992, p. 34).
Nietzsche encerra o capítulo explorando alguns conceitos teóricos de F. Schiller. Uma
das características da poesia ingênua de Schiller é que era uma poesia essencialmente
plástica, enquanto a poesia dos modernos é uma poesia musical, o que poderia não
fazer sentido para os gregos. Porém a partir do ponto de vista exposto no parágrafo
acima, essa é uma visão errônea, Nietzsche critica essa visão da modernidade de
Schiller, especialmente o conceito de poesia ingênua (naïv), que era determinante,
juntamente com os escritos de Winckelmann, da imagem dominante dos gregos para
os alemães, a saber, como tendo sido a época dourada da humanidade, onde esta
estava unida à natureza, em oposição a uma modernidade que se encontra
internamente dilacerada.
A respeito do artista ingênuo, podemos perceber uma prazerosa contemplação
consciente do sonho, ou seja, ele, como sonhador, se põe a dizer: “Isto é um sonho,
mas quero continuar sonhando!” (NIETZSCHE, 1992, p. 36). A partir daí poderemos
interpretar que das duas metades da vida, a desperta e a sonhadora, a primeira é a
mais importante e digna de ser vivida, enquanto na outra somos apenas aparência, a
valoração oposta à vida.
Porém percebemos nos impulsos artísticos da natureza uma grande atração e
necessidade da aparência, pela redenção através da aparência prazerosa. Se essa
natureza verdadeiramente existente, se o Uno-primordial tem a necessidade da
aparência, isso faz a nossa própria realidade ser aparência, sendo o sonho uma
“aparência da aparência” (NIETZSCHE, 1992, p. 36), e desse mesmo modo, sendo
25
nossa realidade uma necessidade da natureza, do Uno-primordial de aparência,
sentimos um prazer indescritível pelo artista ingênuo e sua obra de arte.
Nesse capítulo nos deparamos com severos problemas de interpretação, no que diz
respeito aos conceitos de aparência e aparência da aparência. Assim, podemos nos
perguntar: se a realidade é aparência e o sonho a aparência da aparência, seria então
a obra de arte ingênua a “aparência da aparência da aparência”? Debatemos sobre a
questão e concluímos que não, do mesmo modo que o sonho é aparência da
aparência, a obra de arte também o é, ambos são interpretações da realidade, a
aparência, porém de formas e finalidades diferentes.
Nietzsche afirma que a “despotenciação da aparência na aparência é o processo
primordial do artista ingênuo e simultaneamente da cultura apolínea” (NIETZSCHE,
1992, p. 37), ou seja, o artista ingênuo ao criar sua obra de modo a expressar não o
sonho, mas a própria realidade tira a força da imagem prazerosa enfatizando a dor da
realidade, e essa característica é fundamental do artista apolíneo.
Nesse processo de criação da obra de arte ingênua, fica clara a dualidade criada entre
o mundo apolíneo da beleza e a terrível sabedoria do Sileno anteriormente citada:
enquanto temos um mundo onírico tão belo, por que continuar vivendo no mundo
desperto? Porém um mundo não poderia existir sem o outro.
Apolo, como o endeusamento do principium individuacionis, tem como principal
característica o indivíduo, ele observa e conhece suas fronteiras e medidas, ele exige o
autoconhecimento, e por isso está ao lado da beleza como necessidade estética. Por
outro lado, o desmesurado, a auto-exaltação, estavam na esfera não-apolínea, numa
época do passado grego pré-apolíneo, a época caótica dos bárbaros e dos titãs, como
se Apolo os tivesse salvo e trazido a ordem para o mundo.
Porém, Apolo não poderia existir sem o elemento bárbaro dionisíaco, esse era tanto
uma necessidade quanto o próprio elemento apolíneo. Até que ponto o domínio do
apolíneo perduraria? Um mundo construído no comedimento, represado no autoconhecimento, e agora a verdade era a embriaguez, a contradição e o desmedido, tudo
isso falava através da arte. Pouco a pouco Dionísio tomava força por toda parte, de
modo a devastar o mundo apolíneo.
26
Apolo declarou guerra a Dionísio, e se ergueu mais ameaçador do que nunca. O
último parágrafo do capítulo 4 é um balanço de tudo o que foi exposto no livro todo até
este momento. De que maneira interagiram entre si os elementos apolíneo e dionisíaco
de modo a criar e recriar o mundo grego? Primeiramente com o dominador dionisíaco
na era titânica, tendo Apolo vencido criando uma realidade de ordem e comedimento,
essa devastada por Dionísio e mais tarde dominado por Apolo novamente: ou seja,
temos quatro momentos na história grega, dois de dominação apolínea e dois de
dominação dionisíaca. O que propusemos nesse momento do livro é que voltássemos
aos capítulos anteriores para buscar esses momentos, pois aqui ele encerra uma etapa
importante de apresentação do problema, para que no próximo capítulo seja
apresentada a verdadeira investigação a ser levada a cabo no livro.
Pudemos encontrar esses quatro momentos descritos no segundo capítulo
(NIETZSCHE, 1992, p. 30-31): “De outra parte, não precisamos falar apenas em
termos conjeturais para desvelar o enorme abismo que separa os gregos dionisíacos
dos bárbaros dionisíacos. De todos os confins do mundo antigo – para deixar de lado o
moderno –, de Roma até a Babilônia, podemos demonstrar a existência de festas
dionisíacas (1- primeiro momento dionisíaco), cujo tipo, na melhor das hipóteses, se
apresenta em relação ao tipo da festa grega como o barbudo sátiro, cujo nome e
atributos derivam do bode, em relação ao próprio Dionísio. Quase por toda parte, o
centro dessas celebrações consistia numa desenfreada licença sexual, cujas ondas
sobrepassavam toda vida familiar e suas veneradas convenções; precisamente as
bestas mais selvagens da natureza eram aqui desaçaimadas, até alcançarem aquela
horrível mistura de volúpia e crueldade que a verdadeira “beberagem das bruxas”
sempre se me afigurou ser. Contra as excitações febris dessas orgias cujo
conhecimento penetrou até os gregos por todos os caminhos da terra e do mar, eles
permaneceram, ao que parece, inteiramente assegurados e protegidos durante algum
tempo pela figura, a erguer-se aqui em toda a sua altivez, de Apolo (2- primeiro
momento apolíneo), o qual não podia opor a cabeça da medusa a nenhum poder mais
ameaçador do que esse elemento dionisíaco brutalmente grotesco. É na arte dórica
que se imortalizou essa majestosa e rejeitadora atitude de Apolo. Mais perigosa e até
impossível tornou-se a resistência, quando, por fim, das raízes mais profundas do
27
helenismo começaram a irromper impulsos parecidos: agora a ação do deus délfico
restringiu-se a tirar das mãos do poderoso oponente as armas destruidoras, mediante
uma reconciliação concluída no devido tempo. Essa reconciliação é o momento mais
importante na história do culto grego: para onde quer que se olhe, são visíveis as
revoluções causadas por este acontecimento. Era a reconciliação de dois adversários,
com a rigorosa determinação de respeitar doravante as respectivas linhas fronteiriças e
com o periódico envio mútuo de presentes honoríficos: no fundo, o abismo não fora
transposto por ponte nenhuma.
Quando vemos porém como, sob a pressão deste pacto de paz, a potencia dionisíaca
se manifestou (3- Segundo momento dionisíaco), reconhecemos agora nas orgias
dionisíacas dos gregos, em comparação às sáceas babilônicas e sua retrogradação do
homem ao tigre e ao macaco, o significado das festas de redenção universal e dos dias
de transfiguração. Só com elas alcançam a natureza o júbilo artístico, só com elas
torna-se o rompimento do principium individuacionis um fenômeno artístico. Aquela
repugnante beberagem mágica de volúpia e crueldade viu-se aqui impotente (4Segundo momento apolíneo): somente a maravilhosa mistura e duplicidade dos
afetos do entusiasta dionisíaco lembram – como um remédio lembra remédios letais –
aquele fenômeno, segundo o qual os sofrimentos despertam o prazer e o júbilo arranca
do coração sonidos dolorosos. Da mais elevada alegria soa o grito de horror ou o
lamento anelante por uma perda irreparável. Naqueles festivais gregos prorrompia
como que um traço sentimental da natureza, como se ela soluçasse por seu
despedaçamento em indivíduos. O cântico e a mímica desses entusiastas de tão
dúplice disposição eram, para o mundo grego homérico, algo de novo e inaudito: a
música dionisíaca, em particular, e citava nele espantos e pavores. Se a música
aparentemente já era conhecida como uma arte apolínea, ela o era apenas, a rigor,
enquanto batida ondulante do ritmo, cuja força figuradora foi desenvolvida para a
representação de estados apolíneos. A música de Apolo era arquitetura dórica em
sons, mas apenas em sons insinuados, como os que são próprios da cítara. Mantinhase cautelosamente à distância aquele preciso elemento que, não sendo apolíneo,
constitui o caráter da música dionisíaca e, portanto, da música em geral: a comovedora
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violência do som, a torrente unitária da melodia e o mundo absolutamente
incomparável da harmonia.” (NIETZSCHE, 1992, p. 30 e 31, grifos nossos).
Depois de toda essa grande introdução, chegamos finalmente ao problema que
originalmente deu início ao livro, que é a obra de arte grega criada a partir da junção do
apolíneo e do dionisíaco, a busca da compreensão dessa união. Para isso, portanto se
faz necessário perguntar: onde, pela primeira vez se pode ver esses dois elementos
unidos na história grega? A partir desse momento, como se desenvolveu até chegar à
tragédia? A descoberta dessas origens nos leva à poesia de Homero e Arquíloco, que
são postas lado a lado como as raízes da posterior cultura poética grega.
Completamente opostas uma à outra, Homero como poeta objetivo, sonhador, ingênuo
e apolíneo, sua poesia é a imagem das coisas mundanas, e Arquíloco, poeta subjetivo,
apaixonado, lírico e selvagem, sua poesia se volta a seu próprio “eu” com seus
intensos sentimentos interiores. A respeito desse artista subjetivo, nós apenas o
conhecemos como um mau artista, pois a modernidade faz-nos submeter a
subjetividade, a individualidade à objetividade, pois, sem esta, a credibilidade da obra
de arte é comprometida. Essa visão errônea da modernidade a respeito do poeta lírico,
segundo Nietzsche é um dos problemas estéticos a serem resolvidos, precisa-se criar a
visão do poeta subjetivo enquanto artista, com toda sua intensidade de paixões e
desejos internos, o mérito da arte de sua poesia não se deve retirar. Toda essa
discussão ao redor do poeta subjetivo nos faz chegar ao seguinte questionamento: Se
Arquíloco se coloca ao lado de Homero em esculturas e pedras gravadas na
antiguidade grega como as origens do que viria a ser toda a literatura helênica, de onde
vem então, a afirmação que coloca a antiguidade grega como lar da arte objetiva
apenas?
Schiller nos explica psicologicamente seu processo de criação poética, o que nos faz
refletir sobre a verdadeira origem da poesia, pois nessa criação, ele diz que
primeiramente não lhe vem à cabeça nenhuma imagem ou idéia concreta, porém
apenas um impulso musical interior, que posteriormente dará origem à imagem da
poesia definida. Se aplicarmos essa afirmação de Schiller à história da poesia lírica
antiga, poderemos fazer a junção do elemento lírico com o musical, sendo esse o início
de todo o processo poético, e assim, quando Nietzsche afirma: “nossa lírica moderna
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parece a estátua de um deus sem cabeça” (NIETZSCHE, 1992, p.41), quer dizer que
a concepção de poesia lírica moderna é incompleta, e lhe falta a peça mais importante:
sua origem, de onde vêm todos os impulsos para a criação de suas intenções e
imagens concretas. Agora acerca do poeta lírico, podemos identificar seus processos
de criação a partir do que foi concluído acima: em um primeiro momento, enquanto
artista dionisíaco, como Uno primordial, um impulso musical (réplica desse Unoprimordial, do que vem profundamente do interior do artista) se inicia, e é transformado
em imagem a partir da influencia apolínea, como se a música se transformasse em
imagem e a partir dessa imagem, uma cena de sonho fosse espelhada, e todo esse
processo se originou no impulso do “eu”, da subjetividade do artista.
Esse mesmo fenômeno acontece com o primeiro poeta lírico grego, Arquíloco, que ao
manifestar todo o seu amor e ao mesmo tempo ódio pelas filhas de Licambes, o autor
nos diz que podemos vê-lo em sono profundo, e que a partir da influência de Apolo,
são laçadas as imagens e poemas líricos concretos que “se chamam tragédias e
ditirambos dramáticos” (NIETZSCHE. 1992, p.41).
Fazendo uma comparação entre o artista subjetivo e objetivo, podemos concluir então
que, o artista plástico, assim como o épico em sua arte objetiva, busca puramente
contemplar as imagens mundanas e oníricas, enquanto o músico, o poeta lírico é isento
de imagens pré-concebidas, ele as cria diretamente da dor e contradição primordiais.
Ou seja, o artista plástico pode contemplar sua obra, cada um de seus menores traços
com seu imenso prazer na aparência, “as imagens do poeta lírico nada são exceto ele
mesmo e como que tão-somente objetivações diversas de si próprio” (NIETZSCHE.
1992, p.42), por esse motivo a arte lírica penetra com profundidade extrema no ser
humano, pois é a mais profunda verdade do “eu”.
Aqui encontramos um problema: se a arte subjetiva exprime o que há de mais íntimo e
profundo no artista singular, como poderia essa arte afetar o resto dos homens? Agora,
o autor nos dá a explicação: o artista vê a si mesmo, como sujeito, ou seja, como se
fosse uma terceira pessoa, todos os seus sentimentos e dores terão de se transformar
em algo concreto, para isso, é preciso transportá-las ao que ele chama de não-gênio.
Ele nos dá como exemplo, Arquíloco, que em toda sua intensidade sentimental por si
próprio, jamais poderia ser poeta, pois não poderia submeter-se a tal processo de
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criação tão racional, porém quando já não é mais Arquíloco, se põe como um gênio
universal, o processo pode ser alcançado e junto a isso, a poesia lírica que tanto afeta
a humanidade.
Em seguida, Nietzsche se volta para a concepção schopenhaueriana do que julgou ser
o problema do poeta lírico, que acabamos de solucionar. Schopenhauer nos apresenta
uma outra solução (com a qual Nietzsche deixa bem claro que não concorda): para
Schopenhauer é a Vontade que se manifesta no ser que canta, tanto com um
sentimento de alegria ou luto porém sempre intensamente, e essa intensidade, ou
impulsão contrasta com a calma desse mesmo ser ao tomar consciência de que é
desprovido de querer. É nesse contraste entre a calma e o ímpeto que se faz a
condição lírica da canção.
Logo após apresentar o texto de Schopenhauer, Nietzsche se opõe dizendo que dessa
maneira, a lírica jamais poderia ser realizada, como se fosse um ciclo vicioso de
alternância entre o estado de pura contemplação e o querer, nunca atingindo seu
objetivo concreto, assim sendo uma semi-arte. Vai além dizendo que o indivíduo com
suas vontades egoísticas só poderia ser inimigo da arte, e não criador. O sujeito artista
é desprovido de vontade individual, ele é o gênio universal, se torna “um médium
através do qual o único Sujeito verdadeiramente existente celebra sua redenção na
aparência.” (NIETZSCHE, 1992, p. 44). Nós não podemos nos considerar criadores do
mundo da arte, nem que a arte é feita para nós mesmos, pois nós já somos aparência
artística para o verdadeiro criador desse mundo, porém toda a nossa dignidade é
expressa através de nosso mundo artístico “pois só como fenômeno estético podem a
existência e o mundo justificar-se eternamente” (NIETZSCHE, 1992, p.44). Nietzsche
faz agora, uma bela comparação entre nós seres humanos e soldados pintados em tela
representando uma batalha: nós temos tanta consciência a respeito do significado da
nossa existência, quanto esses soldados têm consciência da batalha representada,
todo nosso saber a respeito do mundo e da arte é totalmente ilusório. Apenas quando o
gênio criador da obra de arte se funde com o artista primordial de todas as coisas é que
ele toma levemente uma consciência do que é a essência da arte e do mundo.
(NIETZSCHE, 1992, p. 45)
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O motivo pelo qual Arquíloco estaria ao lado de Homero na história da poesia grega,
era simplesmente porque foi através dele que a canção popular fora introduzida nessa
cultura. Essa canção popular seria a reunião dos elementos dionisíaco e apolíneo.
Nietzsche, porém, deixa claro que quem antes inicia as agitações para que seja criada
essa canção popular são correntes dionisíacas, e assim essas são seu “substrato e
pressuposto” (NIETZSCHE, 1992, p. 45). O que foi posto em discussão nesse
momento é o que ele quer dizer com canção popular, se estaria falando da melodia e
letra que conhecemos agora ou simplesmente dos poemas líricos melodiosos não por
possuírem notas musicais, mas por soarem melodiosamente.
Esse problema só poderá ser resolvido mais adiante, quando abordarmos mais
pormenorizadamente o conceito nietzscheano de canção popular. Em seguida,
Nietzsche (1992, p. 45) afirma que a canção popular é o espelho musical do mundo, e
a melodia é o que há de mais primordial no universo, ela que procura e dá origem a
uma aparência e assim se exprime na poesia, e a forma estrófica da canção popular se
dá ao fato desse processo se repetir sempre de novo. Por esse motivo, pode-se
encontrar um grande ímpeto irregular nessas poesias estróficas, devido ao grande
número de imagens geradas de novo e de novo, misturadas entre si, pela melodia
primordial. Essa característica abrupta e irregular da poesia lírica é condenada pelo
gênero épico, ele sendo, a partir desse ponto de vista, totalmente oposto, calmo e
regular, o reflexo do impulso apolíneo.
Podemos observar então que, na canção popular, a palavra é imitação da música, ou
seja, é a música transformada em imagem concreta. A partir desta análise podemos
observar duas correntes distintas na história da linguagem grega: quando a palavra
reflete o mundo da imagem e da aparência, e quando reflete a música. Um fenômeno
muito interessante que Nietzsche cita a respeito disso é o caso das sinfonias de
Beethoven, de como, ao ouvi-las, podemos perceber de imediato seu discurso
imagístico.
Agora o autor sugere que transportemos esse processo de criação musical ao povo
grego, à sua massa popular, a fim de investigarmos como é formada a canção estrófica
popular, e como, a partir desse princípio, a palavra e a linguagem procuram imitar
incessantemente a música. Ele faz então o seguinte questionamento: Sendo a poesia
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lírica a imitação da música em imagens e conceitos, “como é que aparece a música
no espelho da imagística e do conceito?” Sua resposta: “Ela aparece como vontade”
(NIETZSCHE, 1992, p. 47). Este termo, de origem schopenhaueriana, quer aqui dizer,
em suma, o impulso originário, contrário ao estado puramente contemplativo e estético
da aparência. Portanto, é preciso distinguir se essa afirmação se dá no âmbito da
essência ou da aparência, pois sendo a música vontade em sua essência, tudo seria
uma contradição (pois a vontade é, em si, o inestético, não palpável e por fim não
poderia ser uma forma de arte). Por outro lado, sendo vontade no âmbito da aparência,
ela passa a não ser contemplativa em sua origem, mas sim no que irá se transformar
seu impulso essencial, suas imagens.
Ao interpretar a música em imagens, o poeta lírico vê-se impotente diante da natureza,
como indivíduo solitário em seu seio. Assim passa a compreendê-la como se esse
fenômeno fosse um reflexo do elemento apolíneo se manifestando para a criação
dessas imagens. Ele se vê também impotente diante dessa transformação, as imagens
que lhe aparecem vindas do impulso musical, estão completamente fora de seu
controle e influência: o lírico está agora no estado apolíneo de contemplação. Quando
é feita essa divisão do lírico, entre o impulso musical e a contemplação apolínea – ou
seja, essência e imagem – ele se mostra insatisfeito com seu resultante, pois a música
não precisa de símbolos, linguagem concreta e conceitos em sua essência. Pelo
contrário: ela apenas os tolera, pois é em si ilimitada. O fenômeno da lírica é que a
obriga a se fazer em imagens. Por isso é impossível conseguir alcançar com palavras a
essência completa da música. Já que ela é um símbolo da dor e contradição do Unoprimordial, a linguagem se limita a imitá-la: “em contato externo com ela (a música),
enquanto o sentido mais profundo da música não pode, mesmo com maior eloqüência
lírica, ser aproximado de nós um passo sequer” (NIETZSCHE, 1992, p. 48).
Para Nietzsche, até aquele momento, a questão da origem da tragédia grega nunca
havia sido posta em discussão de maneira suficientemente séria, para que fosse
encarada como um problema. Por esse mesmo motivo, nunca havia se chegado nem
perto de ser resolvido. Neste capítulo Nietzsche expõe a primeira concepção da idéia
que seus contemporâneos fazem da tragédia grega, à qual ele se opõe radicalmente, a
saber: a de que “a tragédia surgiu do coro trágico” (NIETZSCHE, 1992, p. 49), e antes
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não havia nada além do coro – que era uma representação da classe popular, uma
idéia um tanto quanto democrática, como se o coro representasse a moral da
democracia criticando o “os excessos e desregramentos dos reis” (NIETZSCHE, 1992,
p. 49). Para Nietzsche, essa explicação “política” do coro trágico, por mais conveniente
que seja para a modernidade, não possui nenhuma ligação sequer com a origem da
tragédia grega: a política que era feita na antiguidade ainda não sabia da possibilidade
de uma representação popular constitucional, poderiam então menos ainda colocar
essa idéia em suas tragédias.
Em seguida, Nietzsche se põe a criticar ironicamente outra concepção relativa ao coro
trágico, proposta por A. W. Schlegel: a de que o coro seria o expectador ideal da
tragédia. Ele faz uma comparação desse coro trágico, o “expectador ideal”, com o
público moderno. Tem-se em mente que o público adequado deve sempre estar
consciente de que o que vê é uma obra de arte, enquanto o coro trágico deve ver
diante de si a obra de arte como realidade viva. Até aquela tradição comentada
anteriormente, que dizia que antes da tragédia apenas havia o coro trágico, se põe
contra a concepção de Schlegel: O coro, sendo expectador, existiria sozinho?
Responde Nietzsche: “O expectador sem espetáculo é um conceito absurdo”
(NIETZSCHE, 1992, p. 50). Já a concepção proposta por Schiller parece satisfazer
mais plenamente a Nietzsche. Segundo ele, a concepção schilleriana nos daria uma
definição do coro trágico muito mais profunda que todas as anteriores: ele “é visto
como uma muralha viva que a tragédia estende à sua volta a fim de isolar-se do mundo
real e de salvaguardar para si seu chão ideal e sua liberdade poética” (NIETZSCHE,
1992, p. 51). Em suma, é aquilo que separa o expectador da obra de arte, e faz com
que essa tenha total liberdade de criação e total credibilidade.
Essa visão do coro como algo central se opõe ao naturalismo na arte, ao romance
naturalista de seus contemporâneos, a essa obsessiva crença de que quanto mais real
for a obra de arte, mais arte ela se torna, mais verdadeira é. Essa oposição se dá
justamente pelo fato do coro ser o véu que separa a arte da realidade, é o que dá
liberdade de criação do irreal ao artista. “O grego construiu para esse coro a armação
suspensa de um fingido estado natural e colocou nela fingidos seres naturais”
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(NIETZSCHE, 1992, p. 51), desde o começo foi uma criação desvinculada da
realidade, e por isso, não há a necessidade de sua imitação obrigatória. Contudo, essa
criação deve ter tanta credibilidade quanto o Olimpo, e deve também estar em sua
mesma realidade. Nietzsche afirma que o sátiro está para o homem civilizado assim
como a música dionisíaca está para a civilização, ou seja, segundo Wagner, a
civilização é ofuscada pela música, assim como o homem civilizado, na visão do autor,
se sente ofuscado na presença do coro satírico.
O êxtase dionisíaco proporcionado pelo coro satírico ofusca a realidade cotidiana, essa
maneira o expectador mergulha profundamente na suposta realidade dionisíaca e se
esquece da vida real: esse é um fenômeno temporário, apesar de que, quando volta à
realidade, o indivíduo tem a desagradável sensação de se deparar novamente com sua
realidade cotidiana, nada parecida com o êxtase dionisíaco. E o mesmo acontece com
o ator dionisíaco, causando um sentimento de revolta, pois no fundo sabe que sua
ação de atuar, não mudará em nada a realidade cotidiana, a qual terá de retornar mais
cedo ou mais tarde. Por esse motivo, Nietzsche cita o ensinamento de Hamlet: “O
conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão”
(NIETZSCHE, 1992, p. 53). O homem precisa se livrar de todo e qualquer
conhecimento prévio, e estar em seguida velado pela ilusão, assim, essa se torna sua
verdadeira realidade. A arte é a única forma de cura para essa realidade desagradável
e dolorosa para qual o homem se depara após o êxtase dionisíaco, transformando
assim, seus sentimentos mais horríveis para com esta em outros com os quais é
possível conviver: através da arte, o horrível se transforma em sublime e o absurdo se
transforma em cômico.
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pudemos observar que a música tem um papel central na filosofia de Nietzsche.
Para o autor, há um substrato musical-dionisíaco na tragédia, de modo que a própria
essência da tragédia é de ordem musical: tal essência deve ser interpretada
“unicamente como manifestação e configuração de estados dionisíacos, como
simbolização visível da música, como o mundo onírico de uma embriaguez dionisíaca”
(NIETZSCHE, 1992, p. 90). As influências de Schopenhauer e Wagner estão bastante
presentes no livro. Do primeiro, Nietzsche (1992, p. 97) irá assumir a visão segundo a
qual a música possuiria um caráter e origem diversos das demais artes, “porque ela
não é, como as demais, reflexo do fenômeno, porém, reflexo da vontade mesma”.
Como lemos no célebre § 52 de O mundo como vontade e como representação:
[A música] se encontra por inteiro separada de todas as demais artes.
Conhecemos nela não a cópia, a repetição no mundo de alguma Ideia
dos seres [...]. Do nosso ponto de vista, ao considerarmos o efeito
estético da música, temos de reconhecer-lhe uma significação muito
mais séria e profunda, referida à essência do mundo e de nós mesmos
[...]. A música, visto que ultrapassa as Ideias e também é
completamente independente do mundo fenomênico, ignorando-o por
inteiro, poderia em certa medida existir ainda que não houvesse mundo
– algo que não pode ser dito acerca das demais artes. De fato, a música
é uma tão IMEDIATA objetivação e cópia de toda a VONTADE, como o
mundo mesmo o é [...]. A música, portanto, de modo algum é
semelhante às outras artes, ou seja, cópia de Ideias, mas CÓPIA DA
VONTADE MESMA, cuja objetidade também são as Ideias. Justamente
por isso o efeito da música é tão mais poderoso e penetrante que o das
outras artes, já que estas falam apenas de sombras, enquanto aquela
fala da essência (SCHOPENHAUER, 2005, p. 336-39).
De Wagner, temos a ideia de que a música deve ser medida segundo princípios
estéticos completamente diferentes daqueles das artes figurativas (NIETZSCHE, 1992,
p. 98). Além disso, no livro A arte e a revolução, publicado em 1849, Wagner (1990, p.
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concebível, ao passo que a ópera de seu tempo era duramente criticada como um
mero simulacro daquele:
Estamos de fato longe de poder reconhecer na arte dos nossos teatros
públicos a verdadeira arte dramática, a obra única, indivisível e
grandiosa do espírito humano. O nosso teatro limita-se a fornecer um
espaço complicado para uma apresentação atraente de fatos cênicos
isolados, superficialmente interligados, defeituosamente artísticos ou,
para ser mais exato, artificiosos. A própria separação em dois gêneros,
o dramático e a ópera, que subtrai ao drama a expressão idealizante da
música e retira em absoluto à ópera o núcleo verdadeiramente
dramático e intencional, mostra bem a incapacidade em que se
encontra a arte cênica dos nossos dias para efetuar a unificação dos
diversos ramos estéticos numa expressão mais elevada e mais perfeita,
ou seja, na verdadeira arte dramática” (WAGNER, 1990, p. 61).
É justamente na “obra de arte total” wagneriana que Nietzsche (1992, p. 120) irá
encontrar os primeiros indícios de um renascimento da tragédia no âmbito da cultura
alemã. Diferentemente do que ocorria na ópera tradicional, em que a música era vista
como serva da palavra, em Wagner a música se via restituída de sua verdadeira
dignidade, a saber, a de ser “o espelho dionisíaco do mundo”. Assim, o livro “O
Nascimento da Tragédia” pode ser lido também como uma refinada justificativa teórica
para a nova forma de fazer arte proposta por Richard Wagner.
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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HANSLICK, E. Do Belo Musical. Trad. A. Morão. Lisboa: Ed. 70, 1994.
MACHADO, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2006.
NIETZSCHE, F. A Visão Dionisíaca do Mundo. Trad. M. S. Pereira Fernandes e M. C.
dos Santos de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. O Nascimento da Tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
SCHILLER, F. Poesia ingênua e sentimental. Trad. M. Suzuki. São Paulo: Iluminuras,
1991.
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação. Trad. J.
Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.
WAGNER, R. A Arte e a Revolução. Trad. J. M. Justo. Lisboa: Antígona, 1990.
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