"Tudo quanto na cidade havia destruíram totalmente a fio de espada, tanto homens como mulheres, tanto meninos como velhos, também bois, ovelhas e jumentos." (Josué 6.21) A conquista e a questão ética da guerra Muitos leitores de Josué (e de outros livros do Antigo Testamento) ficam profundamente perturbados com o papel que a guerra desempenha, segundo os relatos bíblicos, no modo de Deus lidar com o seu povo. Muitos amenizam a perplexidade ética atribuindo a perspectiva do autor a uma etapa pré-cristã (e subcristã) de desenvolvimento moral que o cristão, à luz dos ensinos de Cristo, deve repudiar e transcender. Por isso, para eles o fio da meada da narrativa de Josué lhes causa desconforto. Devemos lembrar, porém, que o livro de Josué não lida com a questão ética, abstrata, da guerra como meio de conseguir propósitos humanos. Antes, ele só pode ser compreendido na perspectiva da história da redenção revelada no Pentateuco, com uma interação de graça e juízo divino. Aqui temos a continuação imediata dessa história. O livro de Josué não é uma epopéia da geração heroica de Israel, nem a história da conquista de Canaã por Israel com a ajuda de sua deidade nacional. É, pelo contrário, a história de como Deus, a quem pertence o mundo inteiro, em certa etapa da história da redenção reconquistou uma porção de terra das potências deste mundo que a tinham reivindicado para si, defendendo essa reivindicação por força de armas e pela confiança em deuses falsos. Conta como Deus comissionou seu povo, sob o comando do servo Josué, a agir em seu nome para tirar Canaã das mãos dos cananeus idólatras e dissolutos (cuja medida de pecado agora estava cheia; ver Gn 15.16). Relata como Deus os ajudou nesse empreendimento e lhes deu o direito condicional de ocupar a terra em cumprimento da antiga promessa. Josué é a história do reino de Deus irrompendo no mundo num período em que as entidades nacionais e políticas eram consideradas criações dos deuses e prova viva do poder destes. Portanto, o triunfo do Senhor sobre os cananeus dava testemunho ao mundo de que o Deus de Israel é o único Deus vivo e verdadeiro, cujos direitos sobre o mundo são absolutos. Servia também de advertência às nações de que o avanço irresistível do reino de Deus acabaria deserdando todos os que se opusessem a ele, cedendo lugar na terra somente aos que reconhecessem o Senhor e a ele servissem. Sendo ato de redenção e de juízo ao mesmo tempo, deixava prever o desenlace da história e antevia o destino escatológico da humanidade e da criação. As batalhas na conquista de Canaã, portanto, eram guerra santa do Senhor, travadas numa data específica do programa de redenção. Deus não deu ao povo comandado por Josué comissão ou autorização para conquistar o mundo a espada, mas uma missão específica e limitada. A própria terra conquistada não se tornaria possessão nacional de Israel por direito de conquista, mas pertencia ao Senhor. Por isso, tinha de ser purificada de todos os vestígios do paganismo. Seu povo e suas riquezas não seriam despojos de guerra para proveito de Israel (foi o que Acã tentou fazer em Js 7), mas, sim, consagrados ao Senhor, para Deus dispor deles como desejasse. Naquela terra, Israel devia estabelecer uma nação fiel ao justo governo de Deus e, assim, ser testemunha (e bênção) às nações. Caso o próprio Israel se tornasse infiel e se ajustasse à cultura e às práticas dos cananeus, perderia o lugar na terra do Senhor - como quase aconteceu nos dias dos juízes e como acabou acontecendo no exílio. A guerra é uma maldição terrível que a raça humana traz sobre si ao tentar tomar posse da terra por métodos iníquos. Mas essa maldição nada se compara à que aguarda os indiferentes diante do testemunho que Deus dá a respeito de si e diante de suas advertências - aqueles que se opõem ao governo do Senhor e rejeitam a oferta da graça. O Deus do segundo Josué (Jesus) é o mesmo do primeiro. Embora Deus agora e ainda por algum tempo estenda a mão ao mundo inteiro oferecendo o evangelho (e comissione seu povo com urgência a levar a todas as nações uma oferta de paz), a espada do seu juízo aguarda nos bastidores - e o seu segundo Josué a brandirá (Ap 19.11-16).