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A construção do instrumento de coleta de dados de
processos judiciais em pesquisa que discute as razões da
“judicialização da saúde”
Paulo Gilberto Cogo Leivas
Ida Vanessa Doederlein Schwartz
RESUMO
O presente artigo discute o processo de elaboração do instrumento de coleto de dados para fins de
avaliação de processos judiciais pesquisa que tem como objetivo principal a caracterização de aspectos
sociais e econômicos associados ao fenômeno da “judicialização da saúde” no Rio Grande do Sul
(RS), tomando como modelo uma doença genética denominada Fenilcetonúria (PKU).
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo narra e discute o processo de elaboração de instrumento de coleta da
dados para fim de análise da argumentação utilizada em processos judiciais que pleiteiam a
concessão de medicamentos para uma doença genética rara chamada Fenilcetonúria. Essa
análise da argumentação constitui uma etapa de um projeto de pesquisa multidiciplinar
que avalia as causas da judicialização e seu impacto para os pacientes e suas família e para
o Sistema Único de Saúde.
2 O PROJETO DE PESQUISA
O título do projeto de pesquisa em execução denomina-se “ACESSO E ADESÃO AO TRATAMENTO DA FENILCETONÚRIA: AVALIAÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO E DO IMPACTO SOCIAL
PARA OS PACIENTES E SUAS FAMÍLIAS E PARA O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE”. Esse projeto é uma parceria entre a Universidade UniRitter, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre
(HCPA) e o Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV), e conta com a colaboração
de pesquisadores das Universidades da Pennsylvania e de Princenton, USA. O seu objetivo
principal é a caracterização de aspectos sociais e econômicos associados ao fenômeno da
“judicialização da saúde” no Rio Grande do Sul (RS), tomando como modelo uma doença
genética denominada Fenilcetonúria (PKU), e valendo-se, de forma inovadora, de uma avaliação sob a perspectiva dos pacientes/familiares.
A PKU é uma das doenças inseridas no Programa Brasileiro de Triagem Neonatal e seu
tratamento com fórmula metabólica específica de alto custo é normatizado por portaria
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específica e faz parte do componente especializado de assistência farmacêutica do Ministério
da Saúde (MS), sendo seu fornecimento realizado pelos Estados. Sendo assim, seria esperado, em nosso meio, que os pacientes com PKU apresentassem uma adesão satisfatória ao
seu tratamento e que não se valessem da via judicial para terem acesso ao mesmo. Dados
preliminares da equipe proponente, entretanto, indicam que esta não é a realidade. Duas
das principais hipóteses que podem explicar estes achados, e que estão sendo verificadas no
presente estudo, são: 1) as razões que levam os pacientes/famílias com PKU a procurarem o
auxílio do judiciário estão relacionadas aos fatores sociais e econômicos que influenciam a
adesão ao seu tratamento; 2) a implementação do Centro de Referência para PKU no HCPA
associou-se a uma menor busca do judiciário pelos pacientes/familiares com PKU.
O projeto está sendo desenvolvido, basicamente, em três etapas principais: a) Etapa 1
(centrada na visão do paciente/família) – Uma entrevista inicial, semi-estruturada, focalizada
na judicialização, no seu impacto e nos seus determinantes. b) Etapa 2 (centrada na visão dos
gestores e do judiciário) – Todos os processos administrativos/judiciais envolvendo pacientes
com PKU do RS instaurados nos anos de 2001 a 2009 estão sendo identificados e avaliados,
dos pontos de vista quantitativo e qualitativo. c) Etapa 3 (centrada na visão da equipe de
saúde) – por meio da aplicação de instrumentos específicos e de revisão do prontuário, os
pacientes do HCPA serão avaliados quanto ao seu nível de adesão de tratamento, aos fatores
sociais/econômicos que potencialmente interferem nesta adesão, e ao efeito da implementação
do Centro de Referência no mesmo.
Interessa para a realização desse artigo a etapa 2, que envolve a avaliação quantitativa e
qualitativa dos processos. A avaliação quantitativa envolve o número de processos, resultado
do processo (deferimento ou não), realização ou não de perícia médica, bloqueio de valores
das contas dos réus, etc.
Em relação à análise qualitativa, o objeto é o de analisar e comparar os argumentos
apresentados por todos os participantes dos processos: advogados dos autores, dos réus,
Ministério Público e magistrados, nos termos a seguir referidos.
3 ANÁLISE DA ARGUMENTAÇÃO
Para Robert Alexy (1997), uma argumentação jurídica constitui-se de argumentos contrários
e favoráveis a uma determinada proposição jurídica. Não há, contudo, uma argumentação
livre, pois somente os argumentos que seguem as regras e formas da argumentação ou
metodologia jurídica são válidos. São considerados válidos os seguintes tipos de argumentos
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pesquisa que discute as razões da “judicialização da saúde”
jurídicos: argumentos que se utilizam dos cânones de interpretação (linguístico, genético,
teleológico, etc), da doutrina e da jurisprudência (LEIVAS, 2009).
Entretanto, a argumentação jurídica admite e necessita de outros tipos de argumentos que
não são argumentos propriamente jurídicos. Esse é o caso da argumentação empírica, que
tem por finalidade a justificação da veracidade de fatos afirmados pelas partes, e da argumentação prático-geral, em que argumentos morais e éticos são enunciados para justificar
uma determinação proposição (LEIVAS, 2009).
A argumentação empírica tem uma especial importância nesses processos, uma vez que
a jurisprudência tem entendido que a necessidade dos medicamentos deve ser comprovada
mediante laudo pericial produzido que siga os cânones da Medicina Baseada em Evidências
(MBE) (LEIVAS, 2011). A MBE propugna que a comprovação da eficácia e segurança de
um medicamentos deve ser comprovada principalmente com base na literatura científica mais
atualizada e não exclusivamente na experiência ou intuição do médico prescritor (SARTORI Jr.).
4 A CONSTRUÇÃO DO INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO DA ARGUMENTAÇÃO
Com base nesse arcabouço teórico, foi criado e desenvolvido um instrumento de coleta de
dados para uma pesquisa anterior executada pela mesma equipe, que tinha por objetivo avaliar
as razões da judicialização envolvendo outra doença rara: a Doença de Fabry.
Esse instrumento dividia-se em itens, tais como dados do demandante/prescrição (dados
pessoais dos autores, tais como renda, idade, e da prescrição médica); argumentos e pedidos
da petição inicial, da contestação, do parecer do Ministério Público, das decisões judiciais (em
todos as instâncias judiciais) e da perícia médica. Em cada item havia um tópico referente à
“argumentação utilizada”, por sua vez dividido em “discutiu aspectos médicos e de pesquisa”,
discutiu aspectos econômicos” e “discutiu aspectos legais e constitucionais”.
No item “discutiu aspectos médicos e de pesquisa” eram indicados os seguintes aspectos:
laudos, protocolos do Ministério da Saúde, participação em protocolos de pesquisa envolvendo
medicamentos solicitados e outros. No item “discutiu aspectos econômicos”: previsão e impacto
no orçamento público, ética dos recursos escassos, custo-efetividade, outros. E no item “discutiu
aspectos legais e constitucionais”, eram indicados: direito à saúde, dignidade humana, reserva
do possível/princípio da proporcionalidade, discricionariedade da administração pública/princípio da separação dos poderes, princípio da igualdade, outros.
O item “discutiu aspectos médicos e de pesquisa” corresponde à argumentação empírica e
tem por objetivo principal avaliar se os julgadores entendem como suficiente a prescrição médica
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como prova da necessidade do medicamento ou se, atentos à jurisprudência atual, consideram
necessária a realização de perícia médica realizada segundo a Medicina Baseada em Evidências.
No item “discutiu aspectos legais e constitucionais” eram elencados tipos de argumentos
baseados diretamente no direito positivo (dignidade humana, igualdade) ou com base em teorias doutrinárias relacionadas à eficácia dos direitos fundamentais sociais (reserva do possível,
proporcionalidade, etc).
Já no item “discutiu aspectos econômicos” eram incluídos argumentos do âmbito da economia
da saúde (custo-efetividade) ou no âmbito da bioética (ética dos recursos escassos). Embora
não sejam argumentos de direito positivo e, portanto, não são juridicamente obrigatórios, esses
argumentos podem ser incluídos no grupo dos argumentos prático-gerais11.
O instrumento utilizado na pesquisa referente à Doença de Fabry foi testado e discutido
pela equipe do atual projeto, que promoveu as seguintes alterações para a coleta dos dados da
presente pesquisa.
O tratamento da PKU é garantido pelo Sistema único de Saúde, enquanto que no caso da
Doença de Fabry o medicamento pretendido pelo pacientes não o era. Essa situação da PKU
coloca como questão de pesquisa um aprofundamento das razões pelas quais as pessoas buscam
o Poder Judiciário mesmo quando o medicamento é fornecido ou deveria ser fornecido administrativamente. Com isso, alterou-se o instrumento de pesquisa para incluírem-se informações
mais exatas do procedimento administrativo, por ex., se houve pedido administrativo previamente ao ajuizamento da ação judicial, as razões do indeferimento/deferimento do pedido e
se houve reconhecimento judicial de problemas de gestão, tais como problemas no controle de
estoques e problemas na licitação. Uma hipótese que está sendo investigada é que problemas
de gestão da política farmacêutica geram situações em que o Estado muitas vezes não possui
o medicamento para fornecer aos pacientes.
Além disso, pelo fato do PKU ser detectado no Exame de Triagem Neonatal disponível na
rede pública desde 2001, a necessidade do uso da fórmula metabólico por paciente com PKU faz
com os autores dessas ações judiciais sejam em geral crianças. Em razão disso, faz-se necessário
que argumentos jurídicos relativos aos direitos das crianças sejam previstos no instrumento.
5 CONCLUSÃO
Embora houvesse uma intenção inicial de utilização de um instrumento que poderia ser
utilizado para pesquisa da judicialização de todos os medicamentos solicitados, isso não
1
Destacamos que a análise de custo-efetividade somente muito recentemente foi positivada como critério de incorporação de tecnologias
de saúde (Lei nº 12.401, de 2011) pela Administração Pública, sendo discutível que vincule o Poder Judiciário.
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pesquisa que discute as razões da “judicialização da saúde”
se tem demonstrado possível, uma vez que a especificidade de cada doença produz a necessidade de uma adaptação do instrumento.
De qualquer modo, a classificação dos argumentos em “aspectos legais e constitucionais”,
“aspectos médicos e de pesquisa” e “aspectos econômicos” não distoa da classificação dos
argumentos realizada com base na teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy e das
discussões existentes no campo da Medicina Baseada em Evidências e da Economia da Saúde,
o que sugere que essa classificação pode ser usada em outros instrumentos para pesquisas
no campo da judicialização da saúde.
REFERÊNCIAS
ALEXY, R. Teoría de la argumentación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1997.
LEIVAS, P. G. C. A correção e a fundamentação, em bases pragmático-universais, na aplicação
do direito de igualdade geral. 290 f. 2009. Tese (Doutorado em Direito). Programa de PósGraduação em Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2009.
LEIVAS, P. G. C. . O direito fundamental à saúde segundo o Supremo Tribunal Federal.
In: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais no Supremo
Tribunal Federal: balanço e crítica. Direitos fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balanço
e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. , p. 635-648.
SARTORI Júnior, D. et al. Judicialização do acesso ao tratamento de doenças genéticas raras:
a doença de Fabry no Rio Grande do Sul. Revista Ciência & Saúde Coletiva. No prelo.
PAULO GILBERTO COGO LEIVAS
Mestre e Doutor em Direito pela UFRGS
Professor do Curso de Graduação e do Mestrado em Direitos Humanos da UNIRITTER/Porto
Alegre.
[email protected]
IDA VANESSA DOEDERLEIN SCHWARTZ
Doutora em Ciências: Genética/UFRGS
Professora do Departamento de Genética/Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
[email protected]
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