APRENDENDO A ESCREVER, ENSINANDO A FILOSOFAR: UMA EXPERIÊNCIA DE ALFABETIZAÇÃO FILOSÓFICA COM JOVENS E ADULTOS DA EJA EM ANGRA DOS REIS Angélica Lino Pacheco Paiva Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Filosofia e Ensino. Orientador: Prof. Dr. Filipe Ceppas de Carvalho e Faria Rio de Janeiro Outubro de 2016 APRENDENDO A ESCREVER, ENSINANDO A FILOSOFAR: UMA EXPERIÊNCIA DE ALFABETIZAÇÃO FILOSÓFICA COM JOVENS E ADULTOS DA EJA EM ANGRA DOS REIS Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Filosofia e Ensino. Angélica Lino Pacheco Paiva Banca Examinadora: ____________________________________________________________ Presidente, Prof. Dr. Filipe Ceppas de Carvalho e Faria – UFRJ / CEFET/RJ (orientador) ______________________________________________ Prof.ª. Dra. Maria Cristina Giorgi - CEFET/RJ ______________________________________________ Prof.ª. Dra. Eliane Ribeiro Andrade - UNIRIO SUPLENTES ______________________________________________ Prof. Dr. Rafael Mello Barbosa – CEFET/RJ _____________________________________________ Prof.ª. Dra. Rosana Rodrigues Heringer - UFRJ Rio de Janeiro Outubro de 2016 Ao meu pai Jorge Pacheco. Nem a morte foi capaz de apagar meu amor e orgulho. AGRADECIMENTOS Não foi fácil chegar até aqui. Por vezes o medo, a ansiedade e as frustrações estiveram entre meus companheiros inseparáveis. Por isso, essa conquista representa bem mais do que um título em minha carreira profissional, acima de tudo é o resultado de uma conquista pessoal. Durante essa difícil jornada a fé em Deus me deu a força que necessitei para não desistir de mim mesma. Portanto, se você está lendo essa dissertação é porque em nenhum momento Deus me abandonou. Em meio a essa caminhada algumas pessoas acreditaram em mim - as quais gostaria de agradecer e dedicar esse estudo: primeiramente aos meus pais por me trazerem ao mundo e me proporcionarem a alegria de ser amada. Agradeço também ao meu esposo pelo apoio incondicional na realização desse sonho. Meu sincero obrigada a minha sogra pelas vezes em que acordou de madrugada para me levar até a rodoviária. Não poderia deixar de agradecer minha irmã Daiana pela ajuda nos momentos em que estive desanimada e a minha amiga de faculdade Simone Cristina de Souza, que faleceu durante a produção desse estudo. Um especial obrigado ao meu orientador Filipe Ceppas pela atenção nas correções e dedicação em tudo. Ao professor Castanheira pelos conselhos e aos amigos e demais docentes do programa de pós-graduação em Filosofia e Ensino do CEFET-RJ, bem como a professora Eliane Ribeiro - Unirio - que tanto me ensinou sobre EJA em seus textos e sugestões e a professora Cristina Giorgi com a qual tantas coisas aprendi. Agradeço também a direção da Escola Raul Pompéia, por permitir a realização desse estudo, as professoras Ivete e Tati - regentes das turmas de EJA onde o estudo se desenvolveu - e aos alunos envolvidos no projeto. Agradeço também minha querida amiga Ivanilma pela ajuda mais que importante e a Liz Borges pelo carinho. Por fim, agradeço todos que de alguma forma me auxiliaram nessa conquista. Em especial, aqueles que duvidaram do meu sucesso, ou que por horas me orientaram a desistir desse sonho em virtude do cansaço aparente em minha fisionomia. A esses últimos meu muito obrigado. Vocês me impulsionaram a acreditar ainda mais em mim. Felicidade foi-se embora E a saudade no meu peito ainda mora E é por isso que eu gosto lá de fora Porque eu sei que a falsidade não vigora A minha casa fica lá detrás do mundo Onde eu vou num segundo quando começo a cantar O pensamento parece uma coisa à toa Mas como é que a gente voa quando começa a pensar Felicidade foi-se embora E a saudade no meu peito ainda mora E é por isso que eu gosto lá de fora Porque eu sei que a falsidade não vigora Na minha casa tem um cavalo tordilho Que é irmão do que é filho daquele que o Juca tem E quando pego o meu cavalo e o encilho Sou pior que limpa trilho e corro na frente do trem. (Lupicínio Rodrigues) RESUMO APRENDENDO A ESCREVER, ENSINANDO A FILOSOFAR: UMA EXPERIÊNCIA DE ALFABETIZAÇÃO FILOSÓFICA COM JOVENS E ADULTOS DA EJA EM ANGRA DOS REIS Angélica Lino Pacheco Paiva Orientador: Prof.: Filipe Ceppas de Carvalho e Faria, Doutor Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Filosofia e Ensino. A presente Dissertação de Mestrado pretende discutir a relevância da introdução do Ensino de Filosofia em turmas de alfabetização da Educação de Jovens e Adultos como possibilidade para criação de um espaço alfabetizador mais dinâmico e dialógico. Partese do pressuposto de que assim como o próprio discurso da EJA, fortemente ancorado numa perspectiva filosófica, a prática escolar voltada à Educação de Jovens e Adultos poderá valer-se da Filosofia como um dos caminhos para uma educação mais crítica, reflexiva e criativa. A solução apresentada nesse estudo, para uma primeira inserção da Filosofia em turmas de alfabetização em EJA, é a promoção de oficinas filosóficas com os referidos sujeitos, que foram pensadas e aplicadas levando-se em conta as especificidades do grupo em questão e que podem servir como um norteamento aos educadores que desejarem realizar um projeto de alfabetização filosófica. Para tanto, nas oficinas parte-se do conceito felicidade, valendo-se das perspectivas de Theodor Adorno e Freud, visando refletir sobre suas múltiplas perspectivas, experiências e possibilidades. Afinal, quando se trata da felicidade, parece unânime o desejo de possuíla. Nesse sentido, discutir felicidade com os alunos da EJA é abrir as portas da sala de aula para um educar comprometido com a reflexão filosófica e, pretende-se argumentar, com a oferta de um ensino mais humanizado. Sendo assim, esse estudo nasce da necessidade de pensar a EJA filosoficamente e descobrir as possibilidades da Filosofia nessa modalidade. Não se pretende que a Filosofia redefina os rumos da EJA. No entanto, tentou-se demonstrar sua potência no que diz respeito à superação de concepções e práticas problemáticas da Educação de Jovens e Adultos. Como resultados, algumas considerações e observações das repostas dos alunos às oficinas filosóficas foram apresentadas. Ao final da dissertação também disponibilizamos uma proposta de material didático embasada nesse projeto que tenta auxiliar professores no processo de inserção filosófica em turmas de alfabetização. Palavras chaves: Ensino de Filosofia, Felicidade, Educação de Jovens e Adultos. ABSTRACT LEARNING TO WRITE, TEACHING PHILOSOPHIZING: A LITERACY EXPERIENCE WITH PHILOSOPHICAL AND YOUNG ADULTS IN THE YAE ANGRA DOS REIS Angélica Lino Pacheco Paiva Advisor: Teacher: Filipe Ceppas de Carvalho e Faria, Doctor Master's dissertation presented to the Post-Graduate in Philosophy and Education, Federal Center of Technological Education Celso Suckow da Fonseca, CEFET / RJ, as requirements for obtaining a master's degree in Philosophy and Education. This Master's dissertation discusses the relevance of the introduction of Philosophy in Youth and Adult Education (YAE) literacy classes as a possibility for creating a literacy space more dynamic and dialogical. It was assumed that as the discourse of YAE, strongly based in a philosophical perspective, the school practice focused on Youth and Adults could make use of Philosophy as one of the ways for a more critical education, reflective and creative. The solution presented in this study for a first insertion of Philosophy in literacy classes in YAE is philosophical workshops with those subjects, which were created and implemented taking into account the group's characteristics and can serve as a direction to the educators who would like to conduct a philosophical literacy project. Therefore, this study comes from the philosophical concept of happiness, considering the perspectives of Theodor Adorno and Freud, in order to reflect its multiple perspectives, experiences and possibilities. After all, when it comes to happiness, it seems unanimous the desire to possess it. In this sense, to discuss happiness with students of the YAE is to open the classroom doors to a school committed to a philosophical reflection and to the offer of a more human teaching. Therefore, this study comes from the need to think YAE philosophically and to find out the possibilities of Philosophy in this modality. There is no intention to redefine the directions of YAE by the Philosophy. However, this dissertation tried to demonstrate the power of Philosophy in relation to overcoming the conceptions and problematics practices of YAE. As a result, some considerations and observations of the students’ responses during the philosophical workshops were presented. At the end of the dissertation it was offered a proposal of teaching materials grounded in the project trying to assist educators in philosophical insertion process in literacy classes. Key words: Teaching Philosophy, Happiness, Youth and Adult Education. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Número de Matriculados da EJA por etapa de ensino 2007/2015 Gráfico1 - Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais 2007/2014 Figura 2 - Fachada da Escola Municipal Raul Pompéia Figura 3 - Vista aérea da Localização do Colégio Municipal Raul Pompéia Figura 4 - Alunos do projeto “Ensinando a escrever, aprendendo a Filosofar Figura 5 - Transcrição no quadro - palavras trabalhadas na 1° oficina. Figura 6 - Transcrição no quadro - palavras trabalhadas na 2° oficina. Figura 7 - Alunos escutando a música “Felicidade Foi-se embora” Figura 8 - Aluna realizando atividade proposta na oficina Figura 9 - Proposta para confecção das cartelas de bingo Figura 10 - Aluna lendo palavras da cartela de bingo Figura 11 - Oficina de exibição dos curtas Figura 12 - Alunos assistem ao Filme “A procura da Felicidade” Figura 13 - Releitura e resgate do filme “A procura da Felicidade” por meio de suas imagens mais marcantes. Figura 14 - Disposição das imagens do filme no quadro (abaixo das imagens estão escritas as palavras que para os alunos melhor definem aquela cena) Figura 15 - “Varal do Bem” - Motivação introdutória ao pensamento aristotélico sobre a felicidade Figura 16 - Construção do Varal do Bem Figura 17 - Aluno participando de atividade sobre o consumismo Figura 18 - Alunos lendo fichas sobre consumismo e analisando as figuras Figura 19 - Disposição das fichas no quadro após dinâmica. 17 17 92 93 94 100 101 103 104 106 106 107 109 109 110 111 112 112 113 113 LISTA DE SIGLAS CEB Câmara de Educação Básica CNE Conselho Nacional de Educação EJA Educação de Jovens e Adultos IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística MEC Ministério da Educação LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional SUMÁRIO Apresentação 12 Justificativas 16 1. 1.1. 1.2. 1.3. A busca pela felicidade: um conceito filosófico para se trabalhar com a Educação de Jovens e Adultos Felicidade, indústria cultural e Educação de Jovens e Adultos: o que há de comum? Felicidade em Freud Ensinando Filosofia para jovens e adultos em fase de alfabetização: desafios e possibilidades 1.3.1. O Ensino de Filosofia no cenário atual: repensando práticas de ensino na EJA 1.3.2. Por uma educação Emancipadora 1.3.3. Por uma Emancipação contundente: reflexão e ação 1.4. Pensando o Ensino de Filosofia na EJA como problema filosófico 2. Um olhar filosófico sobra a produção de Materiais Didáticos para EJA 2.1 EJA e Filosofia: estabelecendo um novo olhar sobre a produção de Materiais Didáticos 2.2 Alfabetizar a partir do conceito felicidade: um sentido mais humano ao ato de aprender a ler e escrever 3. Metodologia da Pesquisa: Uma classe de alfabetização da EJA como lugar de experiências filosóficas 3.1 Repensando os espaços de alfabetização para jovens e adultos 3.2. Caminho percorrido na pesquisa 4. Conhecendo o lugar da pesquisa e as oficinas oferecidas 4.1. O local da pesquisa 4.1.1. Sujeitos da Pesquisa 4.1.2. O início da Pesquisa 4.2. Iniciando as Oficinas Filosóficas 4.2.1. Primeira Oficina: “ Felicidade foi-se embora” 4.2.2. Segunda Oficina: “Tristeza não tem fim felicidade sim” 4.2.3. Terceira Oficina: “A Felicidade na vida real” 4.2.4. Quarta Oficina: “Em busca da Felicidade” 4.2.5. Quinta Oficina: “A felicidade consiste em fazer o bem” 4.2.6. Sexta Oficina: “A felicidade e o Consumo Material” 4.2.7 O encontro entre teroria e prática escolar: algumas considerações Considerações Finais Referências Bibliográficas Apêndice A: Planejamento das oficinas filosóficas Apêndice B: Imagens utilizadas nas reflexões das oficinas filosóficas Apêndice C: Autorização de uso da imagem utilizada na pesquisa Apêndice D: Material Didático produzido a partir das oficinas filosóficas 21 27 37 44 47 51 53 61 65 69 74 78 83 87 89 92 94 98 101 102 105 107 108 110 112 114 117 125 132 139 142 143 12 APRESENTAÇÃO “Concepções de alfabetização são desafio, ainda, a enfrentar, pela forma como educadores se formaram, crendo que, porque ensinam, os sujeitos aprendem.” Jane Paiva Quando o assunto é educação, constantemente somos colocados em meio a questões de grande complexidade. Algumas nos penetram de tal forma que torna-se necessário, visando significar nossa trajetória acadêmica, colocar-se num movimento constante de busca por caminhos que vislumbrem um processo educacional mais coerente com o que acreditamos ser uma educação de qualidade. No meu caso, a problemática que me atravessa já há alguns anos tem sido a Educação de Jovens e Adultos e é na tentativa de produzir reflexões sobre essa modalidade que me coloco na difícil, mas compensadora tarefa, de dissertar sobre EJA. Temática que se faz presente não só em minha trajetória acadêmica, como também pessoal. Filha de pais analfabetos e oriunda de uma família onde ninguém possuía ensino superior decidi, ainda no Ensino Fundamental, que queria ser professora, mas foi somente na disciplina de alfabetização, durante o curso de Pedagogia, que descobri o verdadeiro sentido de ensinar alguém a ler e escrever. Assim como a minha, a mãe do meu professor da disciplina de alfabetização doutor em Educação - era analfabeta. E de certo modo, tal como eu, ele carregava consigo a marca do fracasso ao não conseguir alfabetizar sua própria mãe. Apesar de todos os artigos publicados, de toda teoria estudada, no que dizia respeito a sua própria mãe, tal qual como comigo, a realidade era outra. De maneira que se fez muito difícil a compreensão de que a questão não estava no melhor método ou material utilizado nas tentativas de alfabetização, mas no sentido que a leitura e a escrita poderiam representar na vida daquelas senhoras. Fato é que embora doutor em Educação, meu professor não sentia vergonha em dizer que sua mãe não sabia ler e escrever, muito pelo contrário, aquele era um de seus maiores orgulhos, pois mesmo analfabeta viu na educação a oportunidade de mudar o destino de seus filhos. E de uma forma ou de outra, foi sua mãe que lhe ensinou o verdadeiro intuito da alfabetização. Se não existe sentido naquela aprendizagem então nem o melhor professor alfabetizador conseguirá alfabetizar. 13 Naquele momento eu compreendi que ser alfabetizador é muito mais do que ensinar a escrever e ler palavras. É dar sentido ao que se ensina, ainda quando o sentido nos parece evidente. Dessa forma, ser professor alfabetizador é despertar a vontade de aprender, é produzir e / ou encontrar significações. Nossas mães não possuíam essa vontade, não reconheciam esses sentidos, suas vidas já as completavam sem que pra isso precisassem ser alfabetizadas. Ainda que reconhecessem a importância da leitura e da escrita e que tivessem consciência do quanto suas vidas poderiam ser diferentes com essa aprendizagem, o sentido, ou seja, o significado dessa conquista não existia. Talvez pela idade avançada, pela falta de perspectiva, ou por razões não reveladas, o sentido, a qual faz referência esse estudo, não se fez presente nas nossas frustrantes tentativas de alfabetizá-las. No entanto, é preciso despertar esses sentidos naqueles, que diferentemente de nossas mães, sonham com a possibilidade de aprender a ler e escrever. É necessário fazer pelos outros, o que não conseguimos fazer por elas. E quando digo isso, me refiro à educação como um todo, no entanto mais precisamente, aquela destinada às classes de alfabetização de jovens e adultos, haja vista a luta ainda travada pela conquista de uma identidade educacional. Embora possamos observar atualmente, após anos de completo descaso, certo avanço envolvendo a EJA no plano legal, ainda é pouco notório esse progresso na prática. Parece que o aflorar das pesquisas científicas que sinalizam a importância de repensar o ensino ministrado na Educação de Jovens e Adultos, embora sendo de importância inegável, não conseguem ultrapassar os muros da academia e se fazerem concretas nas práticas docentes, ao passo que as legislações destinadas a essa modalidade, revertidas de um aparente viés humanitário e revolucionário, ficam trancadas à chave nas gavetas. Em suma em se tratando de EJA, tal como na educação como um todo, o discurso apresenta-se perfeito enquanto a realidade está longe de ser. Obviamente não conseguiremos mudar a realidade da EJA com essa dissertação, e duvido daqueles que acreditam ser possível alterar essa situação por meio puramente de palavras, mas penso que o despertar para uma reflexão que vise propor novas metodologias voltadas à Educação de Jovens e Adultos possa ressuscitar uma discussão que, embora iniciada, não atingiu a magnitude que deveria: a saber, aquelas sobre a melhor forma de realizar um ensino o mais significativo possível para esses sujeitos; ou seja, a melhor maneira de despertar sentidos. 14 Esse é o intuito do trabalho aqui exposto. E para tanto proporemos uma metodologia pautada num projeto experimental de iniciação filosófica na alfabetização por meio de oficinas. A ideia é utilizar conceitos filosóficos como norteadores do processo de alfabetização. Nesse caso o conceito escolhido é a felicidade, com o qual tentaremos promover reflexões sobre um ensino mais significativo, repleto de práticas do pensar e agir. Dessa forma, acreditamos ser necessário atribuir uma experiência legítima ao ato de ensinar na EJA e nessa caminhada cremos que a Filosofia possa ser de grande utilidade. Partimos do pressuposto de que essa área do conhecimento - por seu potencial reflexivo, capaz de despertar novas formas de pensar sobre si e sobre o mundo, poderá constituir-se numa ferramenta para a construção de um processo de alfabetização envolto em perspectivas reflexivas e dialógicas. Como dito acima o conceito filosófico escolhido para trilhar esse caminho de alfabetização significativa foi o da felicidade. Optamos por ele pela própria importância que lhe é atribuída. Desde a antiguidade é dito como a finalidade da vida. “A busca da felicidade é da essência do ser humano e vem testemunhada em todas as culturas.” (BOFF, 2016, p.41). Dessa forma, nada mais lógico do que valer-se de uma palavra tão significativa para promover sentidos no ato alfabetizador. Segundo dados do censo escolar 2015, cerca de 688.155 pessoas estão matriculadas em classes dos anos iniciais da EJA, muitas das quais ainda expostas a metodologias infantilizadas, que não desenvolvem possibilidades de pensamento crítico e criativo, embora, seja importante acrescentar o inegável progresso das últimas décadas no que diz respeito a produção de materiais didáticos direcionados à Educação de Jovens e Adultos, que, contudo, muitas vezes não conseguem chegar, na prática, às salas de aula. Essa realidade da EJA se coloca enquanto justificativa para a busca de novas formas de ensinar a ler e escrever que não estejam presas a metodologias tradicionais, que embora funcionais, não são as mais adequadas para um público não infantil. Estamos falando de jovens e adultos trabalhadores, pais e mães pertencentes a uma sociedade capitalista, sujeitos à marginalização social. É inegável também que o sujeito da Educação de Jovens e Adultos de hoje não é o mesmo de ontem. Atualmente presenciamos uma heterogeneidade, outrora não tão marcante, conhecida pelos especialistas da área por “juvenilização da EJA”, que 15 significa a entrada de jovens cada vez mais novos nessas classes. Esses jovens ingressam na EJA, na grande maioria dos casos, porque são “convidados” a matricularem-se nessa modalidade após inúmeras reprovações no Ensino Regular, passando a conviver com alunos mais velhos, muitas das vezes com interesses e necessidades diversas das suas. Outros recorrem à Educação de Jovens e Adultos, pois abandonaram suas escolas muito cedo, sendo a busca por trabalho uma das causas principais, no entanto, sem a efetiva inserção no mercado, pela baixa escolaridade, decidem voltar à escola para terminar seus estudos e conseguir um emprego com maior remuneração. “Essa presença marcante de jovens na EJA [...], vem desafiando os educadores do ponto de vista das metodologias e das intervenções pedagógicas, obrigando-os a refletir sobre os sentidos das juventudes [..].” (PAIVA, 2009 p. 32). Nesse contexto, alfabetizar por meio de palavras como lata e bala pode até ser funcional, mas será o mais apropriado? Esta pesquisa faz parte do universo de trabalhos que promovem reflexões acerca das práticas alfabetizadoras destinadas à EJA e que se vale da Filosofia como meio para repensar a atual realidade desse ensino. Para tanto, como referencial teórico, foram utilizados os estudos de Theodor Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural em Dialética do Esclarecimento, de Sigmund Freud em O Mal-Estar na Civilização e de Paulo Freire no que diz respeito a uma educação libertadora, como em Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da Autonomia, dentre outros textos que julgamos pertinentes. Nesse caminho de reflexão sobre a EJA muitos questionamentos estiveram presentes e serviram como ponto de partida para pensar essa realidade filosoficamente, a saber: Qual o cenário atual no que diz respeito às metodologias utilizadas para alfabetizar jovens e adultos? Como as metodologias atualmente utilizadas auxiliam os alunos a desenvolver seu senso crítico? Qual sentido da Filosofia nas práticas alfabetizadoras para jovens e adultos? Qual o espaço assumido pela Filosofia nas classes de alfabetização da EJA? Quais os pontos positivos da inserção de conceitos filosóficos como norteadores das práticas alfabetizadoras? Responder esses questionamentos não é tarefa fácil. Por tal razão, nos colocamos no caminho de investigar os sentidos que a Filosofia poderá assumir nas 16 práticas didáticas de alfabetização da EJA. Nessa perspectiva, nossa pesquisa fundamenta-se nos objetivos específicos abaixo: Investigar como a introdução do conceito filosófico felicidade no processo alfabetizador poderá auxiliar professor e alunos da EJA a tornarem esse momento mais dinâmico; Verificar os ganhos e/ ou prejuízos da inserção filosófica em práticas alfabetizadoras direcionadas aos alunos de uma turma específica da Educação de Jovens e Adultos na cidade de Angra dos Reis; Interpretar a resposta ao contato com perspectivas filosóficas como práticas motivacionais de alfabetização de alunos e professor de uma turma de alfabetização de EJA. Justificativas: “Frequentemente, a formulação de um problema é mais essencial que sua solução.” Einstein Analisando as legislações pertinentes à EJA, observamos discursos engajados na preparação de um cidadão pleno, crítico e criativo, capaz de pensar conscientemente o mundo a sua volta. No entanto, na prática observada nas salas de aula o sentido está em alfabetizar o mais rápido possível o adulto, sobre o discurso de que ele já ficou muitos anos fora da escola para perder tempo com assuntos que não sejam a repetição excessiva de letras e fonemas. Nessa perspectiva, apenas a língua portuguesa e, em poucas atividades, a Matemática conquistam espaço nas salas de aula da EJA. Contudo, torna-se impossível promover um ensino crítico e reflexivo valendo-se apenas da repetição de fonemas e letras, ainda mais quando essa repetição se dá de forma mecanizada e infantil. Como formar alunos conscientes em meio a um ensino que não se abre às reflexões e discussões sobre assuntos pertinentes à vida dos sujeitos ali presentes? Como a prática alfabetizadora poderá ser portadora de criticidade quando o que mais lhe importa é a pura junção de sílabas e palavras desconectadas da prática social? Nesse cenário, o resultado de um ensino totalmente descontextualizado será a evasão. Realidade essa que tem se mostrado constante na EJA. 17 Dados do Censo escolar mostram uma significativa redução nas matrículas da EJA de 2015 em relação a 2014. Redução essa de aproximadamente 4,5%, que pode ser observada em todo o país e em grande parte das etapas de ensino, porém que não surgiu de agora, pelo contrário. Há cerca de uma década as quedas nas matrículas da EJA têm se mostrado sintomáticas, sinalizando a importância de repensar esse tipo de ensino. Figura 1 – Número de Matriculados da EJA por etapa de ensino 2007/2015 A demanda por essa modalidade ainda é grande, pois, segundo o PNAD/IBGE 2014 aproximadamente 13 milhões de brasileiros não sabem ler e escrever representando 8,5% da população com mais de 15 anos. Dessa forma, não é por falta de potenciais alunos que as matrículas diminuem, o problema possui outra causa. E dentre as possibilidades, uma delas pode ser a falta de sentido encontrado na aprendizagem. Gráfico 1 - Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais 2007/2014 Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2007/2014 18 No que concerne a porcentagem de analfabetismo por sexo os homens aparecem como o público com maior taxa de analfabetismo, como podemos observar pelo gráfico acima. Isso é uma amostra de que na atualidade a mulher tem se destacado na busca por melhores oportunidades de qualificação, inclusive apresentando maior média em tempo de escolaridade que os homens, dados do IBGE (2014) mostraram que em média as mulheres estudam 8 anos e os homens 7,5, embora continuem ganhando menos que eles. Esse é um dado importante para pensarmos quem são os potenciais públicos alvos da modalidade EJA e definirmos metas mais coerentes com a realidade dos sujeitos desse ensino. Afinal, enquanto essa modalidade de educação for considerada uma etapa secundarizada, destinada à poucos, presenciaremos um aumento nas quedas das matrículas ainda mais significativo. Nesse sentido, a EJA se coloca como um direito e não enquanto suplência. Não é uma modalidade criada para atender àqueles que por ventura desejarem, após a velhice, estudar. Muito pelo contrário, sua realidade atual absorve cidadãos dos 15 anos em diante. Um público que cada vez mais se renova e que clama por propostas pedagógicas que de fato os reconheça como sujeitos sociais com pensamentos e ações próprias. Nessa perspectiva, campanhas emergenciais ou mesmo programas experimentais não podem mais abranger a complexidade assumida por essa modalidade nas últimas décadas. O direito de aprender a ler e escrever vai cada dia mais se constituindo como algo indispensável à própria sobrevivência humana. Portanto, não se trata de uma simples necessidade assistida, mas de um respeito constitucional à educação. Assim, se faz mais que urgente pensar a Educação de Jovens e Adultos, discutir EJA, produzir sobre e para EJA. E de forma semelhante se faz urgente repensar as práticas alfabetizadoras destinadas a esse público a fim de discutir e rediscutir as possíveis formas pelas quais nossos jovens e adultos aprendem atualmente e dessa maneira identificar as principais razões que lhes fazem novamente abandonar a escola. Nesse sentido, pensamos que a Filosofia possa auxiliar o educador na difícil tarefa de promover um ensino dialógico1. Não é porque estamos diante de uma classe de alfabetização que devemos abandonar o pensar crítico e dedicarmo-nos a uma 1 Entendemos por ensino dialógico todo momento de aprendizagem que “abre espaço” para o outro, ou seja, que envolve todos os atores na situação vivenciada, de maneira que professor e aluno encontramse concomitantemente em processo de construção do conhecimento. Os dois são sujeito do pensar e caminham juntos na descoberta de que são “seres inacabados” que aprendem um com o outro por meio da partilha do saber. 19 repetição mecanizada. E, se um ensino atual deve-se fazer de forma crítica porque não por meio da Filosofia? Muitos hão de dizer que não é possível realizar tal proeza: ensinar um analfabeto a filosofar. Prefiro a defesa de que, se optarmos por um ensino mais humano, crítico e criativo, apesar de outros caminhos, a Filosofia coloca-se como algo a ser considerado. Portanto a Filosofia será tratada aqui como um caminho em meio as inúmeras áreas do conhecimento que podem vir a auxiliar no processo de uma alfabetização crítica. Não a entendemos como a única solução possível, mas como um saber signicativo a ser considerado nessa empreitada. E foi na tentativa de levantar uma reflexão sobre um possível diálogo entre Alfabetização e Filosofia que procuramos direcionar os capítulos dessa dissertação para um pensar crítico embasado na pesquisa ação. O primeiro capítulo traz uma discussão sobre a relevância da introdução do ensino de Filosofia nas classes de alfabetização da EJA. Destina-se também a apresentar a temática escolhida enquanto conceito filosófico norteador dos processos de alfabetização, a saber: a felicidade. Para tanto, nos pautamos nas discussões de Theodor Adorno e Horkheimer sobre a Indústria Cultural e sua relação com as diferentes formas como concebemos a felicidade em uma sociedade altamente consumista. Sigmund Freud também contribui nesse capítulo, onde procuramos explanar suas ideias acerca da conquista da felicidade enquanto algo inalcançável na vida em sociedade. Posteriormente um debate entre Paulo Freire e Theodor Adorno é colocado como meio de dialogar uma possível forma de promover um ensino mais dialógico e criativo entre os alunos da EJA. O segundo capítulo é destinado a uma discussão sobre a produção de materiais didáticos voltados à EJA salientando como se faz urgente, apesar da melhoria observada, pensar um material didático que se constitua enquanto recurso para um ensino mais humano e diferenciado e nesse cenário um recurso didático de fundamentação filosófica poderá ser de grande valia. No terceiro capítulo, dissertamos sobre o viés de pesquisa a qual pertence esse estudo procurando deixar explícito ao leitor quais são as perspectivas que embasam esse trabalho. Nessa caminhada, será empregada uma pesquisa que se faz predominantemente qualitativa, por ser a que melhor se aproxima dos nossos objetivos, uma vez que esse tipo de pesquisa, pautada em métodos de geração de dados, praticamente impõe ao pesquisador a necessidade de um contato direto com o vivido e com as representações de seus sujeitos. Os pesquisadores qualitativos dão destaque à 20 natureza social da realidade e a relação pesquisador e objeto de estudo, buscando respostas para os questionamentos que evidenciam o modo como a experiência social é construída e vai adquirindo significado. Portanto, partimos da inserção no campo como objeto de estudo, salientando qual a importância dos sujeitos no cenário estudado e da pesquisa participativa, por meio da oferta de oficinas filosóficas com temáticas derivadas do conceito filosófico Felicidade. O quarto capítulo dedica-se a relatar como se deu a inserção no campo de estudo e as respostas da turma as ofertas das oficinas. Como proposta de material didático direcionado a essa modalidade, apresentamos nos apêndices o planejamento das oficinas que se transformaram em um caderno de oficinas filosóficas para turmas de Educação de Jovens e Adultos em fase de alfabetização, o referido caderno também se encontra em anexo. Nesse sentido, tal material se destina aos educadores simpatizados com a proposta de alfabetização filosófica aqui apresentada e que queiram ter sugestões de atividades a serem desenvolvidas em sala. Para tanto, serão apresentadas orientações de como procederse nas oficinas e sugestões de como mediar atividades alfabetizadoras derivadas das oficinas com jovens e adultos da EJA em Angra dos Reis. Nosso intuito não é levantar pressupostos filosóficos de alfabetização, muito menos defender a qualquer custo a contundente introdução dessa área do conhecimento nas classes de alfabetização de EJA. Bem menos que isso, nossa pesquisa pretende relatar as experiências vividas em um estudo de caso que procurou levar a Filosofia, ainda que de maneira introdutória, aos analfabetos. Sabemos que “o papel do pesquisador é justamente o de servir como veículo inteligente e ativo entre os conhecimentos construídos na área e as novas evidências que serão estabelecidas a partir da pesquisa.” (LÜDKE; ANDRÉ, 2014, p.05). Portanto, apresentamos mais um ponto de partida do que um caminho nas questões de alfabetização na EJA. Trata-se de um percurso longo que tem nessa pesquisa um dos seus primeiros passos. “Tanto pode ser confirmado como negado pela pesquisa o que se construiu a respeito desse assunto, mas o que não pode é ser ignorado.” (LÜDKE; ANDRÉ, 2014, p.02). 21 Capítulo 1 - A busca pela felicidade: um conceito filosófico para se trabalhar com a Educação de Jovens e Adultos “O professor autoritário, o professor licencioso, o professor competente, sério, o professor incompetente, irresponsável, o professor amoroso da vida e das gentes, o professor mal-amado, sempre com raiva do mundo e das pessoas, frio, burocrático, racionalista, nenhum deles passa pelos alunos sem deixar sua marca.” Paulo Freire Discutir Educação de Jovens e Adultos no momento atual é tarefa de poucos, mas que deveria ser de muitos. Embora haja uma quantidade considerável de obras que abordam temáticas da EJA, se levarmos em consideração a relevância do tema, veremos que as pesquisas realizadas nessa área ainda estão muito aquém do que a temática necessita. Negligenciada por anos no que diz respeito às políticas públicas educacionais, a Educação de Jovens e Adultos no Brasil esteve restrita a programas descontínuos que pouco enfatizavam a elevação da escolaridade ou mesmo a formação profissional. Notório é que muitos desses programas só surgiram por determinações internacionais que pressionavam e ainda pressionam as nações em desenvolvimento a investirem na educação, exemplo disso é a Campanha Nacional de Alfabetização de 1950, lançada por pressões advindas do nascimento da Organização das Nações Unidas – ONU. A maior parte desses programas caracterizaram-se como de governo sendo interrompidos, mesmo quando os resultados “caminhavam” para melhorias, por determinação de um novo governo, como quando ocorreu a interrupção ao projeto de Paulo Freire para elaboração do Plano Nacional de Alfabetização (STRELHOW, 2010). Dessa forma, por muitos anos os sujeitos da EJA não fizeram parte do cenário educacional do país, sendo atendidos em sua grande maioria por projetos não governamentais oriundos de ONG`s, igrejas e movimentos sociais, como o Movimento de Educação de Base (1961- CNBB), o que acabou por eximir ainda mais a responsabilidade do Estado para com esse público seja pela falta de investimento, seja pela falta de planejamentos visando melhorias, colocando no próprio sujeito analfabeto a culpa de seu suposto “fracasso”. Em geral, as políticas para esse público estavam restritas a propostas de alfabetização, como o Movimento Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL 1967 da Ditadura Militar) acríticas e empobrecidas, preocupando-se muito pouco com um viés, hoje amplamente defendido, que é o da educação emancipadora e continuada. Seu público alvo constitui-se de pessoas que interromperam seus estudos 22 ou que nunca chegaram a iniciá-los. Pessoas, em geral, desprovidas de oportunidades sociais em função do baixo nível de escolaridade que, vivendo a margem da sociedade, enxergavam na EJA melhores condições de sobrevivência. Nesse cenário, os professores recrutados para a missão de alfabetizar jovens e adultos muitas das vezes não possuíam formação de docente, bastava dominar a leitura e escrita. Realidade vista ainda hoje nos locais mais afastados das grandes metrópoles brasileiras. Assim, desconsiderada enquanto um direito, essa modalidade muitas vezes foi vista como um favor prestado pelo sistema público à população humilde. Por tal razão, sua voz foi calada em meio às políticas públicas de educação sob a alegação de que não havia demanda por tal modalidade ou de que a urgência se encontrava no ensino regular. É pensando nesse sujeito da Educação de Jovens e Adultos que defendemos uma articulação precisa entre Filosofia e EJA nos segmentos educacionais para pessoas que não tiveram oportunidade de escolarização no tempo “destinado” pela sociedade. Articulação essa capaz de trazer benefícios tanto pessoais quanto sociais, pois promoverá uma política de educação com a possibilidade de unificar áreas desconectadas por muitos anos, mas com poder de articulação formidável, principalmente se levamos em consideração que uma educação destinada a esse público deve ter a criticidade como elemento norteador. Nessa perspectiva, trazer para sala de aula conceitos filosóficos como a felicidade poderá ser uma forma de contextualizar um ensino que até o momento tem se destacado mais pelo caráter conteudista do que pelo viés crítico. Muitos hão de se perguntar: por que justamente o conceito felicidade? Por que não outros: como cidadania, trabalho, etc.? Primeiramente porque discutir felicidade com alunos da EJA é acima de tudo sair da “zona de conforto” dos “conceitos concretos”, comumente utilizados na EJA – tais como: trabalho, desemprego, sociedade, dentre outros – e lançar-se nos “conceitos abstratos”, repletos de significações. Não que seja irrelevante dialogar sobre “conceitos concretos”, pelo contrário, muitos são de extrema importância social e pessoal, porém dar espaço para pensar e dialogar sobre o “abstrato”, o que efetivamente não se pode palpar, é abrir caminhos para um ensino cada vez mais pensante. E também porque o conceito felicidade possui forte influência na vida das pessoas. Qualquer ser humano, seja ele pobre ou rico, quer ser feliz, pelo menos as 23 evidências nos levam a crer nesse fato. Trabalhamos, estudamos, enfim, nos esforçamos para termos uma vida mais tranquila e consequentemente para que, mesmo que no futuro, desfrutemos de momentos felizes. Assim, de maneira geral a felicidade nos atravessa a cada momento, chegando muitas vezes a ser o verdadeiro sentido de nossas vidas. Fato que não vem de hoje, a busca pela felicidade é uma temática que permeia a Filosofia há séculos. Já na Grécia Antiga, pensadores debruçaram-se sobre esse assunto colocando em dúvida sua existência. Cada época produziu respostas sobre a possibilidade de alcançar à felicidade, fundamentando, quando em defesa dessa possibilidade, quais caminhos levavam ou levarão até ela. Nos arriscamos a dizer que enquanto questão existencial a felicidade é o maior desejo dos homens, afinal somos movidos pelos prazeres e alegrias que nos atravessam. Em alguns momentos nos sentimos a “pessoa mais feliz do mundo”, em outros “a mais infeliz”. Mas afinal, quando podemos dizer que somos realmente felizes? Existe felicidade duradoura? Qual seria sua fonte? No filme Hector e a busca pela felicidade (2014), um psicanalista, inconformado com a monotonia que sua vida adquiriu com o passar dos anos, resolve abandonar sua carreira e sua noiva para, em viagem pelo mundo, descobrir os sentidos da felicidade. Nessa trama, presenciamos o protagonista viver momentos tensos e alegres em situações variadas, que terminam por lhe transmitir ensinamentos sobre como a felicidade é enxergada em meio a perspectivas variadas. Se ele consegue alcançar a felicidade ao final da história? Digamos que Hector descobriu as razões que o deixavam mais perto dela. Nesse sentido, a dinâmica atual da sociedade leva-nos a concluir que os motivos que hoje nos fazem perguntar sobre a felicidade são distintos dos que levaram outros pensadores séculos atrás. Demócrito de Abdera (460 – 370 a. C.), por exemplo, nos diria que não é pelo corpo nem pela riqueza que os homens serão felizes, mas pela retidão e pela sabedoria. Há quem pense que a felicidade está na possibilidade de poder comprar tudo o que desejar, pois é comum sentir-se feliz quando adquirimos algo que tanto desejávamos. Mas afinal por que somos atravessados por esse sentimento de satisfação que coloca no poder da compra sensações de prazer temporárias? Quais contradições existem entre o ditado popular “dinheiro não traz felicidade” e a alegria que sentimos ao poder adquirir através do dinheiro algo que tanto queríamos? 24 A resposta para essas perguntas talvez esteja na constante vontade que possuímos de pertencer a um determinado grupo. Vontade essa que nasce permeada pelas escolhas de vida que esse grupo adota e que por sua vez, exigirá de seus membros. Nessa perspectiva, o querer pertencer e ser aceito por um grupo, faz com que desenvolvamos gostos e desejos que ao serem contemplados despertam sensações de satisfação e alegria. Dessa forma, uma parcela da felicidade passa a ser encontrada em desejos coletivos que variam de acordo com o grupo ao qual pertencemos e que por isso mesmo são passíveis de mudanças, já que durante nossa existência nos situaremos em grupos distintos por várias vezes, ou até concomitantemente. Portanto, o que me faz feliz hoje pode não ser o que me fará amanhã. Marcos Ferreira de Paula, autor do livro: Sobre a Felicidade, lançado em 2014, relata em uma de suas passagens o quanto a alegria nas sociedades atuais é buscada antes de tudo no consumo, que poderá manifestar-se das mais variadas formas. Consome-se não apenas coisas materiais – carros, casas, objetos eletrônicos, etc. –, mas também corpos (como no caso da prostituição), imagens (televisão, internet, etc.) e drogas (em uma busca, muitas vezes, de outros estados de consciência e percepção que escapem ou evitem a realidade, quando ela é considerada chata, rotineira ou artificial). (PAULA, 2014, p. 16) Assim, quando pensamos em felicidade nos remetemos à noção de prazer, que por sua vez, ao nos transmitirem alegrias, acabam direcionando nossa existência. E como vimos o que transmite prazer ao indivíduo varia de pessoa para pessoa. Porém, ao nos atermos ao consumismo como sendo uma das fontes da felicidade, notamos o quão falho o mesmo se faz nessa busca. Podemos até nos alegrar ao comprar um celular moderno ou um tênis de marca famosa, porém poucos meses depois esses objetos já estarão ultrapassados e para nutrir aquela alegria passageira novamente teremos que nos render aos ditames do capital, como num ciclo permanente. Nesse sentido, não há igualdade entre a quantidade de materiais produzidos e a felicidade proporcionada pelos que são adquiridos. Haverá sempre falta de felicidade pela perspectiva do consumo. Mas por que mesmo diante da constante insatisfação muitos de nós sentem-se mais completos ao consumir? Quais são os mecanismos que nos fazem acreditar que a alegria que o consumo nos proporciona é legitima e consequentemente agradável? A busca por essas respostas repousa na própria maneira com que percebemos nossa existência e nos sentidos que procuramos atribuir 25 a ela. Dessa forma, cabe considerar o grau de autonomia que possuímos na busca pela felicidade, ou seja, em que sentido essa busca é permeada pela subordinação e aceitação do que nos é exterior. O homem necessita de algum tipo de conteúdo em sua vida, porque é devido a este que o significado surge em sua consciência. A experiência do tédio avisa sobre um desconforto referente uma carência de sentido. Sob essa carência, o indivíduo tem seu mundo abruptamente roubado, de modo que o “eu” e as coisas ao seu redor se diluem num todo idêntico. (SILVA, F., 2013, p.17). Assim, ao refletir sobre a lógica do hiperconsumo notamos que a infelicidade não atinge apenas os ditos “marginais”, mas também os que possuem boas condições econômicas – tendo a insatisfação como marca registrada. Paula (2014) ainda salientará sobre as falsas promessas do mundo publicitário que não nos trazem a felicidade prometida nos anúncios. O hambúrguer do catálogo parece sempre mais gostoso, o produto eletrônico nos comerciais dá a ideia de durar para sempre, e nesse sentido as insatisfações tornam-se maiores que as felicidades prometidas. Consome-se mais, mas vive-se menos; quanto mais explodem os apetites de aquisição, mais se aprofundam os descontentamentos individuais. Desorientação, desapontamentos, desilusão, desencanto, tédio, nova pobreza: o universo mercantilizado agrava metodicamente o mal humano deixando-o em estado de insatisfação irredutível. (LIPOVETSKY, 2007, p. 158 apud PAULA, 2014, p. 17). Nessa direção, as perguntas que poderíamos impor são: se as coisas efêmeras, e por isso passageiras, como os produtos que podemos comprar, o poder, a paixão, a fortuna e até nós mesmos; justamente por terem “data de validade”, não podem nos transmitir uma felicidade duradoura, o que será capaz de trazer essa felicidade? Quais sentidos atribuímos aos fatos que nos proporcionam momentos alegres? E em que medida os estímulos e respostas advindos dos meios aos quais pertencemos, bem como dos meios de comunicação de massa, influenciam nossas formas de perceber a felicidade? Uma resposta talvez seja considerar que durante nossa existência somos a todo instante atravessados por maneiras diferentes de enxergar a vida e a felicidade e que muitos desses olhares nos levam acreditar que somente seremos completos se adquirirmos o que não possuímos. Tal sentimento direciona nossa existência em busca justamente do que não temos o que muitas vezes nos parecerá inalcançável, provocando extrema insatisfação, angústia e infelicidade. 26 Para preencher o vazio causado pelo que não podemos possuir, buscamos no consumo a satisfação momentânea que tornará nossos desejos latentes e inalcançáveis mais próximos. O sentimento de poder advindo da aquisição imediata de um produto, que nem sempre desejávamos de antemão, serve assim como consolo e ânimo na busca por esse “algo” que nos “completará”. Curioso é que se por ventura alcançamos o que outrora nos parecia inalcançável, poucos serão aqueles que se contentarão. A maioria de nós, por outro lado, se sentirá completo por um curto tempo, almejando logo em seguida um “outro fato inalcançável”. Fatos esses que de certa forma terminam por dar sentido a nossa existência, e cuja realização produz extrema alegria, pois sua concretização foi permeada por “altos e baixos” que nos fizeram desejá-lo ainda mais. Dessa forma, nossa existência é feita da busca de sentidos que ao serem alcançados nos aproximam do que naquele momento entendemos por felicidade. Mas o que entendemos por felicidade pode realmente ser considerado felicidade? Em que medida os sentidos que atribuímos a nossa existência aproximamna de uma vida feliz? Como podemos ver pelas postulações feitas até aqui, a felicidade é uma temática extremamente rica, portanto capaz de promover inúmeras significações, ou seja, é um tema capaz de suscitar relevantes debates e reflexões em aula, exatamente o que defendemos para uma aula feita para a EJA, que pensa e dialoga com os sujeitos dessa modalidade. Partindo dessas postulações, tentou-se responder à questão central desse estudo, a saber: se a inserção da Filosofia nas aulas de alfabetização da EJA poderá torná-las mais significativas. Veremos que as colocações aqui presentes produzem indagações acerca dos conceitos naturalizados sobre a Educação de Jovens e Adultos, bem como, sobre a própria felicidade, levando-nos a pensar qual o significado da Filosofia na EJA a partir da utilização do referido conceito. 27 1.1. Felicidades, indústria cultura e Educação de Jovens e Adultos: o que há de comum? “Para a felicidade se aplica o mesmo que para verdade. Alguém não a tem, está nela.” Theodor Adorno Quantas coisas diferentes passam pela nossa mente enquanto assistimos a um simples programa de televisão? Quantas noções e maneiras de enxergar o mundo nos atravessam nos minutos que estamos sentados em frente à TV? Parece exagero, mas as “inocentes” cenas de uma novela são capazes de nos envolver de tal maneira que ficamos horas e horas assistindo a mesma coisa sem nos darmos conta de que já sabemos tudo o que acontecerá no final da trama. Assim, gastamos o nosso tempo livre... Isso acontece justamente porque estamos a todo instante envolvidos pelo que Theodor Adorno e Horkheimer (1947) chamaram de indústria cultural – Kulturindustrie2. Com o advento do capitalismo, os produtos culturais chegaram mais facilmente à classe trabalhadora, o que por outro lado gerou sua mercantilização. Padronizados, esses produtos passaram a buscar o apelo popular e a determinar os gostos da população, transferindo a cultura para a esfera do consumo. A novidade é que a própria cultura, de um modo inédito na história humana, define a si mesma como uma indústria, sendo que a publicação de seus balancetes revelam-na, de fato, como uma próspera atividade econômica. Isso aponta para um fato que os apologistas da indústria cultural não cansam de se lembrar: há de fato uma enorme demanda para os seus produtos e isso legitimaria sua existência. (DUARTE, 2002, p. 38). Observou-se um enorme empenho da sociedade capitalista em produzir mecanismos de desencantamento do mundo que retiraram aos poucos do homem os sentidos “próprios e individuais” de sua existência. Fato que culminou com o deslocamento da cultura, do trabalho e do tempo livre de seu viés emancipador e, consequentemente, com as mudanças de perspectivas sobre a felicidade. Nesse sentido, o que servia para promover a reflexão passa a gerar o consumismo desenfreado provocando a decadência do ser humano, no sentido em que deturpa sua formação. Termo criado por Theodor Adorno (1903 – 1969) e Max Horkheimer (1895 – 1969) para tratar da arte na sociedade capitalista. A arte enquanto mercadoria, regida pelas leis do mercado. 2 28 É nesse cenário que a indústria cultural nos apresentará múltiplas e distorcidas concepções de felicidade. Somos movidos a acreditar que seremos felizes quando encontrarmos o príncipe ou princesa dos contos de fada, ou quando tornamo-nos ricos como a mocinha da novela. O que temos torna-se pouco se comparado ao que poderíamos ter e ao que os outros têm, e isso provoca extrema inconformidade, vazio e tédio. Falar de tédio, em nosso tempo, é discursar sobre uma forma de alienação responsável por abastecer de maneira considerável o capitalismo. O capital abusa ideologicamente do tédio com a pretensão de “satisfazer” a sua sede interminável de crescimento. A crescente difusão de mercadorias destinadas a “matar” o tédio já o põe como uma das normas da vida moderna – e isso é suficiente para afirmar que assim como a violência e o mal, ele está banalizado. (SILVA, F., 2013, p.11). Tudo o que queremos quando saímos do trabalho depois de um dia cansativo é um pouco de prazer e diversão, e a indústria cultural sabe disso. Mas o prazer que passa a seus telespectadores é um prazer desprovido de reflexão, pois o ato de refletir gera esforço, tudo o que o trabalhador foi ensinado a evitar em seu tempo livre. A felicidade estaria em aproveitar o tempo livre com coisas que não remetem ao trabalho diário, que precisa ser esquecido nos dias de folga. Atividades reflexivas cansam a mente e esgotam o trabalhador. Pelo menos é essa a ideia que a indústria cultural quer passar ao oferecer ao seu público programações que impedem sua capacidade criativa. Essas programações são exibidas sobre o pretexto de estarem proporcionando momentos de lazer para seus telespectadores, mas no fundo terminam por promover momentos entediantes que não lhe dão direito de escolha, pelo contrário retiram-lhe a autonomia e liberdade que sustentam sua capacidade criativa. “O tédio existe em função da vida sobre a coação do trabalho e sob a rigorosa divisão do trabalho. Não teria que existir [...].” (ADORNO, 1995b, p 76). Ao invés de usar seu tempo livre para repor suas energias com atividades enriquecedoras de espírito que sejam de seu interesse, pela falta de liberdade em fazer uso de suas escolhas, o trabalhador entrega seu tempo livre, e consequentemente os momentos que desejava ser feliz, nas mãos da indústria cultural, que por sua vez vende diversão em forma de controle, eliminado dele todo seu potencial reflexivo e criativo. As imagens introduzidas na mente do telespectador o predem de tal maneira que o impedem de refletir sobre aquilo que está assistindo. Não são raras as vezes em que 29 ao trocar de canal na TV, mesmo não encontrando nada que nos agrade, continuamos assistindo aquelas cenas entediante, pela impressão de que mesmo aquilo é o melhor a fazer naquele momento. Isso prova que cada vez mais dedicamos um tempo considerável de nossas vidas com imagens que obstruem nossa capacidade imaginativa. Ao identificarmo-nos com uma personagem de um filme transportamos seus anseios para nossa vida, como se eles fossem a própria realidade. Muitas vezes chegamos a alimentar sentimentos por essas personagens, indignando-nos mais com os males que acontecem a ela do que com os que atravessam nossa existência. E é natural que seja dessa forma, já que desde a infância somos adestrados a pensarmos assim. A criança vive o anseio de um dia ser igual ao seu herói, de maneira que sua felicidade passa a ser vivida embasada pelo personagem que admira. Ela deixa muitas vezes de ler, brincar, fazer amigos, estudar, passear e de realizar outras atividades para assistir todos os dias aquele mesmo seriado naquele mesmo horário, pois naquele instante é como se ela mesma estivesse representada naquela personagem. Por que isso acontece, bem como quais sentidos tal experiência representa na vida desses sujeitos é uma das questões a se impor na tentativa de desvendar os mecanismos utilizados pela indústria cultural que terminam por permear variadas concepções de felicidade. O menino que assiste ao desenho animado na televisão sente-se tão feliz quanto o que corre pelo quintal, a menina que dedica parte de seu tempo assistindo repetidas vezes o mesmo filme ou jogando o mesmo jogo no computador pode ser até mais feliz do que a que brinca de boneca com suas colegas, tudo dependerá da concepção de felicidade que fará sentido ao indivíduo, ou seja, o que mais lhe proporciona prazer. E mesmo que a atividade pareça aos nossos olhos improdutiva, a indústria cultural fará com que seu consumidor a perceba como prazerosa, atraente e relativamente acessível já que não exige capacidade criativa nenhuma, diminui esforços e evita cansaço, o que afazeres como brincar de boneca, jogar bola, desenhar ou escrever exigiriam. O realismo ganha força graças à riqueza de detalhes; as imagens e o som prendem toda a atenção que o telespectador possa ter naquele momento Quando o homem faz uso de sua capacidade autônoma o tédio não se favorece o que detona com sua capacidade intelectual e imaginativa. Quando perde a sequência de uma cena, mesmo que possa deduzi-la, isso lhe causa frustração, pois naquele momento todo 30 restante torna-se secundário. Nessa perspectiva, seus anseios e as coisas que supostamente nos aproximam de momentos alegres, como estar em família, sair para passear, dentre outras, são adormecidas. Sua atenção permanece voltada à felicidade ou tristeza alheia. Por que isso acontece? Justamente porque no momento em que estamos assistindo a um filme ou novela o utilizamos como uma “válvula de escape” para esquecer os problemas do cotidiano. Tudo o que desejamos é que naquele momento as lembranças de um dia cansativo de trabalho sejam apagadas. Ao mergulhar na vida dos personagens da dramaturgia nos esquecemos da nossa vida – estacionamos nossa autonomia e criatividade para viver no outro a vida que não temos. As reações do público passam assim, a serem condicionadas por padrões criados pelos sistemas da indústria cultural. O gosto autêntico é suprimido pelo gosto coletivo imposto pelos meios de comunicação. O homem torna-se dependente dessa indústria, de seus produtos e de sua ideologia. Os produtos [...] são feitos de tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos. [...] A violência da sociedade industrial instalou-se nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los alertamente. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 119). Dessa forma, a indústria cultural controla a vida e a concepção de felicidade das pessoas, impondo-lhes as regras do mundo, como devem ser e como devem agir. Nega aos homens a possibilidade de ampliar sua formação, sua capacidade crítica, de julgar e realizar suas próprias escolhas (ADORNO, 1995b). O que a felicidade tem a ver com isso? Podemos pensar da seguinte forma: a busca pela felicidade dá sentido ao nosso viver. Na medida em que o prazer humano passa a ser encontrado em atividades tão pouco produtivas, sua própria percepção de felicidade é obstruída, muitos chegam até mesmo a duvidar da sua existência –tamanha é a falta de alegrias em sua vida. “A simples possibilidade de perceber algo independente da qualidade substitui a felicidade, porque a quantificação onipotente sonegou a possibilidade mesma de percepção.” (ADORNO, 2008, p. 233). A felicidade passa a ser enxergada apenas na vida das personagens principais dos filmes e novelas, que sempre terminam com um final feliz, e isso nos força a pensar que a mesma só existe na ficção. Como não serei feliz mesmo, é melhor ter uma vida 31 menos sacrificada e pensar no aqui e no agora – mas quando, com o passar do tempo, a felicidade é vista no sucesso alheio, o arrependimento de ter tido uma vida monótona e sem perspectivas vem à tona, e ao invés de provocar um sentimento de mudança, acaba refletindo-se num “agora é tarde demais para ser feliz”. Ficamos assim, à mercê de pseudo felicidades que são tão efêmeras como os produtos que somos levados a consumir pela indústria cultural. Nosso tempo livre é gasto com o que a mesma nos proporciona ou com o que as outras pessoas consideram bom para nós. Não temos a possibilidade de escolher o que realmente desejamos fazer em nossos dias de folga. Se estamos de férias são tantas as tarefas que precisamos fazer pelos outros que ao retornarmos ao trabalho muitas das vezes encontramo-nos mais exaustos do que quando entramos de férias. “Insaciáveis são [...] as sátiras sobre as maravilhas que as pessoas esperam das viagens de férias [...] enquanto tampouco [...] conseguem escapar do sempre igual.” (ADORNO, 1995b, p. 75). Sob as condições vigentes, seria inoportuno e insensato esperar ou exigir das pessoas que realizem algo produtivo em seu tempo livre, uma vez que se destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade criativa. Aquilo que produzem no tempo livre, na melhor das hipóteses, nem é muito melhor que o ominoso ‘hobby’: imitações de poesias ou pinturas, as quais, sob a divisão do trabalho, dificilmente revogável, outros fazem bem melhor que os artistas das horas vagas [Freizeitler]. O que produzem tem algo de supérfluo Essa superfluidade comunica-se à qualidade inferior da produção, ficando, com isso, estragada a alegria do trabalho. (ADORNO, 1995b, p. 70 82). O que esperar dos dias a serem desfrutados, se não a felicidade em sua plenitude, momentos alegres que reflitam esse bem? O que esperar do tempo livre do homem trabalhador? Certamente, não poderemos esperar muita coisa, suas escolhas já foram realizadas pela indústria cultural. Sua capacidade de decidir já lhe foi roubada. O tédio já tomou por completo sua vida pela falta de autonomia na conduta do tempo livre. “Sempre que a conduta no tempo livre é verdadeiramente autônoma, “[...] é difícil que se instale o tédio; tampouco ali onde elas perseguem seu anseio de felicidade, ou onde sua atividade no tempo livre é racional.” (ADORNO,1995b, p. 76). A falta de fantasia, implantada e insistentemente recomendada pela sociedade, deixa as pessoas desamparadas em seu tempo livre. A pergunta descarada sobre o que o povo fará com todo o tempo livre de que hoje dispõe — como se este fosse uma esmola e não um direito humano — baseia-se nisso. Que efetivamente as pessoas só consigam fazer tão pouco de seu tempo livre se deve a que, de antemão, já lhes foi amputado o que poderia tornar prazeroso o tempo livre [...] (ADORNO, 1995b, p. 70 -82). 32 Nessa perspectiva, desfrutamos de nosso tempo livre apenas no plano das ideias, planejamos diversas atividades, algumas até mesmo criativas, mas no fundo por comodismo, acabamos novamente, captados pela indústria cultural. A sensação de liberdade que sentimos é dessa forma, uma falsa sensação – já não há liberdade, cada vez mais somos cooptados pela lógica do mercado. As pessoas não percebem que nos momentos em que pensam estarem sendo livres continuam sem liberdade de escolhas. A vida sob a pressão constante do trabalho alienado não é mais vida, é prisão na qual a tentativa de fuga conduz a lugar nenhum. Dificultada a possibilidade de liberdade e de produção criativa no “tempo livre” resta, por consequência, a atitude passiva através do consumo fetichizado no qual impera o prazer em migalhas. (SILVA, F., 2013, p. 122-123). Os mecanismos da indústria cultural são tão audaciosos que transmitem a ideia de que a felicidade também pode ser comprada, como os produtos que anuncia. É feliz quem pode viajar morar no melhor condomínio, desfrutar de roupas caras e carros modernos. Os trabalhadores se quiserem ter momentos de alegria, terão que dedicar seu tempo livre às programações da televisão, essa sim “empenhou-se” em tornar suas noites de domingo “fantásticas”. [...] o que a “indústria cultural” oferece por trás de toda essa faixada, como estamos vendo até agora, é exatamente o que se procura evitar. Testemunhamos o fenecimento dos sentidos através do vício em estímulos, da inexorável necessidade de preencher o silêncio do mundo seja pelo barulho do rádio, da TV, do tocador MP3. (SILVA, F., 2013, p.134). Ansiamos pelo tempo livre – nele acreditamos viver os momentos mais prazerosos da semana. E quando ele chega passa tão depressa que no final percebemos que não fizemos nada de produtivo. Porém essa frustração é momentânea, afinal no próximo tempo livre faremos exatamente a mesma coisa. Vemos nosso tempo livre como uma oportunidade de passar o tempo, ironia de quem quer justamente que o tempo livre não se acabe. Nesse sentido ter um hobby é um passatempo perfeito, todo indivíduo deve ter um para não ser coagido pelo social. Se você não tem um hobby é visto como um neurótico pelo trabalho, afinal o tempo livre deve ser gasto com atividades que em nada remetam ao trabalho, ao esforço e a reflexão. Reforçamos assim o caráter de inutilidade desse tempo — que foi tão esperado — visto que não o utilizamos para melhorar nosso potencial de formação, isso causa esforço físico e mental — justamente o que se pretende evitar (ADORNO, 1995b). 33 Se pensamos assim, é porque a lógica capitalista nos conduz a tal pensamento. Devemos descansar a mente para quando voltarmos ao trabalho sermos produtivos. Atividades reflexivas roubam nosso potencial produtivo que deve ser guardado para a “segunda-feira”. Por isso essa separação total entre o tempo de trabalho e o tempo livre, um não deve lembrar o outro, pois isso prejudica a lucratividade do capitalismo. A dificuldade de se auto-realizar no trabalho está marcada de modo tão profundo nos sujeitos que o sentimento neurótico de insatisfação perdura mesmo após o término da atividade. Isso explica porque a expressão “tempo livre” traz consigo uma determinação semântica calcada em seu oposto: o “trabalho alienado”. Não bastasse esse caráter problemático, a lógica comportamental do ‘tempo livre’ produz tanta alienação quanto no trabalho – falta autossatisfação no ‘tempo livre’. Não é por acaso que Adorno acusa de sê-lo, por consequência, uma paródia de si mesmo nas condições atuais. (SILVA, F., 2013, p. 118). Só é possível escapar da monotonia no lazer, adquirir nele experiências novas por meio do esforço, da concentração. Mas oras, é exatamente essa a que as pessoas evitam! Daí a reprodução exata daquela atitude de que se procura escapar. (SILVA, F., 2013). Enquanto isso somos obrigados a rir do fato de que não há nada do que se rir. Rimos de sermos roubados em nosso tempo, dinheiro, lazer. Rimos até do produto que compramos e que em nada lembra o do anúncio da TV. Rimos da nossa falta de produtividade, de crítica, de sonhos e de felicidade. Os momentos em que fomos felizes ficam guardados na memória, preferimos rir das sátiras e comédias da TV do que desfrutar de nossa própria alegria. Rimos de outrora, quando num final de semana tínhamos tempo de brincar e passear. Relembramos nossa infância como se a felicidade tivesse ficado no passado. E encontramos na mídia um pouco de nós mesmo, pois deixamos de viver por nós para viver por ela. “Consumimos informações pelo fato delas proporcionarem estímulos, e quanto mais chocante ou inusitada ela for, mais nos atrai.” (SILVA, F., 2013, p.27). A obscuridade do cinema oferece à dona-de-casa, apesar dos filmes destinados a integrá-la, um refúgio onde ela pode passar algumas horas sem controle, assim como outrora, quando ainda havia lares e folgas vespertinas, ela podia se pôr à janela para ficar olhando a rua. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 130,). As informações já nascem efêmeras e enquanto durar o sensacionalismo elas nos permearão a todo instante, ditarão os assuntos das rodas de conversa e atravessarão nossos pensamentos, porém rapidamente entrarão em esquecimento sendo substituídas por outra. “O novo se transforma rapidamente em rotina, e, então 34 também o novo entedia, pois é sempre o mesmo.” (SUENDSEN, 2006, p. 48, apud SILVA, F., 2013). Vimos assim que a indústria cultural acaba influenciando nossa percepção de felicidade, e que isso não é notado tão facilmente pelo grande público. A mídia cumpre muito bem seu papel – mantendo-nos seus “clientes fiéis”. Dessa forma, apesar de Adorno não aprofundar seus pensamentos sobre a temática da felicidade, suas postulações nos auxiliam na verificação do quanto as potencialidades humanas são estagnadas pela indústria cultural e são justamente essas que impulsionam os homens na busca por momentos felizes. Levar esse assunto para debate em aula é uma oportunidade de colocar em discussão uma temática global que acaba sendo silenciada ao ser naturalizada pelos meios de comunicação. Mais do que discutir a existência da felicidade, o ideal é problematizar nossas próprias concepções sobre ser feliz, rever os sentidos existenciais que alimentam nossa vida em sociedade e nos aproximar dos fatos que nos tornam felizes. Afinal a felicidade está nas coisas que nos proporcionam momentos de alegria e satisfação. Nesse sentido, há de se convir que se trabalhar Filosofia com crianças e adolescentes já é uma tarefa difícil, o que dizer então de trabalhar Filosofia com jovens e adultos na modalidade EJA em fase de alfabetização? Poucos serão os profissionais que se arriscarão nessa tarefa, ainda mais se o currículo de Filosofia não for obrigatório nos anos em que lecionam. Algo lamentável se pensarmos que muitos desses sujeitos passaram pela escola sem ter qualquer contato com o saber filosófico. Saber esse que não se basta na simples narração histórica da Filosofia, que embora seja importante não consegue, por si só, contextualizar tudo o que poderia. Cremos ser necessário levar a reflexão filosófica até os alunos da EJA, e isso deve começar antes mesmo que seja obrigatório na grade curricular. Assim, discutir com esses alunos temáticas como a que tratamos aqui é de suma relevância, sendo capazes de suscitar significações na prática pedagógica necessárias a uma sólida formação. Não estamos querendo dizer que tais aulas revolucionarão o ensino alfabetizador da EJA, temos consciência que muito há que ser feito para que realmente possamos ofertar um ensino de base emancipatória aos jovens e adultos trabalhadores. Mas, acreditamos que a Filosofia possa ajudar a tornar as aulas de alfabetização da 35 EJA mais contextualizadas, uma vez que algo inerente a sua prática é a criticidade e o dialogismo. Mas como a alfabetização de jovens e adultos poderá ser beneficiada pela inserção da Filosofia? Partindo principalmente da perspectiva freiriana de alfabetização, que considera a realidade dos alunos ao trabalhar com palavras geradoras. Atualmente, em muitos contextos escolares, utilizam-se palavras “soltas”, fora de um contexto, para alfabetizar partindo-se puramente da sonoridade. Não é posto aos alunos uma discussão que envolva aquilo que estão aprendendo naquela aula. Pelo contrário, a memorização do som acaba sendo o mais importante. De forma lamentável, para grande parte das turmas de EJA, só o que vem importando nas aulas de alfabetização é a conjugação das famílias silábicas, no entanto, quando o próprio conceito do que se trabalha, a essência da palavra que se aprende a escrever, fica esquecida, a significação da aprendizagem também se perde. Você pode estar se perguntando: Como fazer isso justamente na EJA, onde as aulas possuem cargas horárias reduzidas, em que os alunos já chegam cansados esperando a hora do intervalo para irem embora, onde os problemas familiares, financeiros e profissionais tomam a mente dos discentes em meio à infinidade de informações que os atravessam em uma aula e onde a própria noção de aprendizagem acaba sendo distorcida em função do tempo que se pretende recuperar, um tempo que não voltará mais. Não será raro, nesse contexto, vermos discentes que apenas estão ali para conquistar um diploma e qualificarem-se para o mercado de trabalho, também não será raro vermos professores que fingem dar aula e alunos que fingem aprender. Raro mesmo será ver um profissional da educação valer-se da Filosofia para alfabetizar trabalhadores. Raro será presenciar um debate, uma reflexão sobre a própria vida que tenham temas filosóficos norteando a aprendizagem. E mais raro ainda será ver jovens e adultos aprenderem a ler e escrever enquanto filosofam. Raro, mas não impossível, e acrescentamos extremamente necessário se quisermos ofertar uma educação comprometida com seu objetivo principal: o de formar seres autônomos e acima de tudo políticos. Análoga à proposta do educador Paulo Freire – que alfabetizava partindo de temáticas geradoras retirados do contexto de seus alunos – a proposta dessa pesquisa é sinalizar aos docentes que também é possível fazer isso com temas filosóficos, como a felicidade, refletindo seu conceito e a possibilidade de alcançá-la. 36 Boa parte dos alunos presentes em uma turma de alfabetização da EJA, presumimos, estão desacreditados da felicidade e muitas vezes é a falta de perspectiva em suas vidas que os faz abandonar o curso, interrompendo a chance de aprender a ler e escrever. Ao trazer a temática da felicidade para dentro das aulas o professor poderá compartilhar com seus alunos os assuntos que debatemos até aqui e aprender com a própria maneira de enxergar esse tema pela perspectiva dos discentes. Os alunos por sua vez, terão a oportunidade de conhecer um pouquinho do que pensavam alguns filósofos sobre o assunto, escolher qual definição de felicidade mais lhe agrada e retirar ensinamentos para suas próprias vidas. O objetivo não será que memorizem nomes e datas, ou que se alfabetizem por meio unicamente da Filosofia, mas que saibam que tão importante quando aprender a escrever felicidade é pensar seu significado. É nessa perspectiva, que propomos a utilização de temas geradores de fundamentação filosófica na alfabetização e séries iniciais da EJA, pois acreditamos que estaremos tornando as simples aulas de alfabetização, que na grande maioria das vezes reduzem-se a metodologias infantilizadas, em espaços de discussão e diálogo. Não devemos chamar o povo à escola para receber instruções, postulados, receitas, ameaças, repreensões e punições, mas para participar coletivamente da construção de um saber, que vai além do saber de pura experiência feita, que leve em conta as suas necessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando-lhe ser sujeito de sua própria história. (FREIRE, 2001, p.16). Considerando a natureza específica do sujeito da EJA — jovens e adultos trabalhadores, em distorção série-idade, com sérios problemas de aprendizagem — pensar um ensino que traga algo de “diferencial” é uma obrigação ao educador que se compromete em ensinar seus alunos de maneira crítica. Mas para tanto, é necessário que ele — enquanto mediador da aprendizagem — acredite que é possível alfabetizar de uma maneira inovadora, que é possível ofertar Filosofia ao cidadão que ainda não sabe ler e escrever e principalmente que não deve privar seus alunos de momentos significativos de aprendizagem. Mais do que ser amante de conteúdos o educador deve ser um apaixonado pelo conhecimento. Alguém que pensa no sujeito com o qual compartilha seus saberes. Discutir felicidade, bem como outros temas filosóficos, é ampliar horizontes, formar opiniões, mas acima de tudo filosofar. Dessa forma, a felicidade pode ser concebida de diferentes maneiras, algumas vão ao encontro de nossas concepções, outras fogem às nossas aspirações, mas todos 37 concordam em algo: a felicidade é um bem que todo homem gostaria de desfrutar. Se é possível alcançá-la? Isso é uma pergunta que cabe a cada um de nós individualmente. Procuramos argumentar no sentido de que inserir temáticas filosóficas nas aulas da EJA poderá auxiliar o professor na oferta de uma educação mais significativa, que coloque em debate assuntos que fazem parte do cotidiano do aluno. Assim diante do questionamento central desse trabalho: “se a inserção da Filosofia nas aulas da EJA será capaz de torná-las mais significativas?”, arriscamo-nos a responder que poderão, além de torná-las mais significativas, oferecer aos alunos dessa modalidade acesso a um saber do qual a escola os apartou: o saber filosófico, tão importante para a construção de um pensar engajado. Assim, o professor poderá valer-se da felicidade não somente como mais uma palavra na lista de vocabulários aprendidos e cuja escrita fora interiorizada, mais do que ensinar a família “FA, FE, FI, FO, FU” ou continuar a escrever no quadro sentenças como “O Ivo viu a uva do vovô”, o que defendemos é um ensino aberto ao diálogo e ao ato de filosofar. 1. 2. Felicidade em Freud "A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz." Freud A felicidade direciona todas as nossas ações. Uma afirmação como essa pode até soar generalista demais, no entanto, são as próprias atitudes e pensamentos humanos que nos levam a crer que ser feliz está entre os maiores objetivos de uma vida, ainda que o mesmo revele-se impossível de ser alcançado. Assim, não é por acaso que a todo instante recebemos pelas redes sociais mensagens desejando momentos alegres e dias maravilhosos, tudo conspirando, ao menos no plano das ideias, para que a tenhamos à nossa volta. Para Freud, o homem anseia pela felicidade advinda da satisfação dos desejos. Satisfação essa que não tem a capacidade de se fazer eterna, se desviando dos seus focos com o tempo. "Aquilo a que chamamos ‘felicidade’, no sentido mais estrito, vem da satisfação repentina de necessidades altamente represadas, e por sua natureza é passível apenas como fenômeno episódico." (FREUD, 2011, p. 20). Então passaremos à questão menos ambiciosa: o que revela a própria conduta dos homens acerca da finalidade e intenção de sua vida, o que podem eles da vida e desejam nela alcançar: É difícil não acertar a 38 resposta; eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes. Essa busca tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de fortes prazeres. No sentido mais estrito da palavra, “felicidade” se refere apenas à segunda. Correspondendo a essa divisão das metas, a atividade dos homens se desdobra em duas direções, segundo procure realizar uma ou outra dessas metas – predominantemente ou mesmo exclusivamente. (FREUD, 2011, p. 19). Por vezes a realidade nos leva a crer que a felicidade não é facilmente alcançada, pelo contrário, sua conquista aparenta-se como obra de uma vida de labuta e dedicação. Chegamos muitas vezes a acreditar estarmos em meio a um ouroboros quando o assunto é ser feliz, são tantos altos e baixos que nos cercam nesse percurso que defendê-la como uma esfera inatingível em vida terrena não será escolha de poucos, o que resulta em um conformismo exacerbado com a infelicidade. Outros, por sua vez, atribuirão ao gesto da bondade a conquista de uma vida feliz. Assim, quem faz ações generosas pelo próximo, por exemplo, estaria mais próximo da felicidade eterna vinda de Deus. Fato é que ao longo dos anos os homens passaram a moldar sua felicidade, parafraseando Freud (2011): o princípio do prazer influenciado pelo mundo externo transforma-se no mais modesto princípio de realidade. Assim, vivemos um estado de constante prazer e desprazer carregado de frustrações e alegrias. De maneira que não se torna exagero uma pessoa, aparentemente, ter de tudo e sentir-se infeliz, repleta de um vazio existencial que remete a um constante desejo seguido de outro. Por tal razão, a célebre frase de Lacan sobre o desejo nos é de extrema relevância, a saber: “O desejo é sempre o desejo de outro desejo”. Ou seja, a essência do próprio desejo seria uma constante insatisfação, como se restassem vazios não passíveis de preenchimento no ser humano, impulsionando-o à realização de seus desejos sempre como satisfação parcial. O sentido que imprimo à minha existência será regado, em certa medida, pelo que Aristóteles promulgou na Ética a Nicômaco: todos os outros bens são meios para se atingir um bem maior — a felicidade. Também as considerações de Santo Tomás de Aquino — ao relatar que tudo o que fazemos tem por objetivo a conquista de nossa própria felicidade, até mesmo quando na prática do mal — parecem ir ao encontro dos pensamentos freudianos, quando esses colocam uma vida feliz como expressão da realização de prazeres intensos. Parafraseando Freud: derivamos prazeres intensos do contraste inconcluso 39 de determinados estados de coisas. Para ele, o que os seres humanos almejam conquistar na vida é a felicidade contínua. Assim sendo, para melhor fundamentar nossa explanação acerca da qualidade de ser feliz, torna-se preciso distinguir felicidade, alegria e prazer. Frei Betto (2016, p. 15-16), no “Livro Felicidade foi-se embora?”, afirma: Prazer é agradar os cinco sentidos: degustar um bom vinho, contemplar uma pintura, ouvir uma boa música etc. Os prazeres são momentâneos, epidérmicos. Não duram. E quem os confunde com felicidade fica sempre em busca de novas sensações no intuito de se sentir feliz. A alegria também é momentânea. Sentimos alegria ao rever a pessoa amada, ao receber uma homenagem, ao assistir a um bom filme, ao comemorar a vitória do time de nossa preferência, ao celebrar uma data importante com a família e os amigos; ou ao vencer um desafio profissional. No entanto, ninguém sente prazer ou alegria acometido por uma doença, diante de uma catástrofe natural ou sofrendo perseguições. Porém, ainda assim pode se sentir feliz. Eis a diferença. Mesmo sob a dor e o sofrimento uma pessoa pode ser feliz, desde que saiba integrar as adversidades no sentido que imprimiu à sua existência. Ao que parece, nossas vidas estão repletas de felicidades momentâneas e, segundo Freud, só podemos gozar o “contraste”, sendo a felicidade contínua inalcançável. Nessa direção, a “felicidade” remete à satisfação instantânea das necessidades reprimidas, que, pela sua essência, é possível apenas como um fenômeno episódico (FREUD, 2011). Freud também coloca que o propósito do homem ser feliz não está contido no plano da criação. Para chegar a essa conclusão, ele estabelece o funcionamento de um princípio, o princípio de prazer, baseado na busca de prazer entendido como restrição do sofrimento. No entanto, esse panorama se traduz como insustentável, não é possível viver somente de prazeres. Como resultado o autor coloca esse anseio como inalcançável. Em psicanálise relacionamos prazer e desprazer com a quantidade de excitação presente na vida psíquica – quantidade que de alguma maneira não está presa –, de modo que nessa relação o desprazer corresponderia a um aumento, e o prazer, a uma diminuição dessa quantidade. (FREUD, 2011). Uma vida de prazer sem desprazeres numa perspectiva freudiana é algo irrealizável. Tal postura, no entanto pode reforçar a alegação de que a felicidade plena somente é possível em estado de total tranquilidade, situação essa que segundo as próprias colocações de Freud somente torna-se concreta em estado de morte. Em vida, pelo contrário, a vivência de infelicidades é muito mais constante, de maneira que o 40 psiquismo humano é regulado pelo princípio de prazer despertado quando da descoberta do princípio da realidade. A ausência total de tensão significa, em termos freudianos, a realização da pulsão de morte, ou seja, o retorno ao inanimado. Nesse sentido, o que mantém o ser vivo seria a tensão residual. O sofrimento, portanto, consistiria num “efeito colateral” da vida, que é uma ordem sustentada por Eros – na medida em que essa pulsão introduz estímulos – atuando de forma contrária à tendência original do organismo. A vida, assim, provocaria sofrimento e quando aniquilada, proporcionaria prazer ao organismo. (INADA, 2011, p. 5). De um ser meramente biológico, que busca a satisfação das necessidades ligadas somente à sobrevivência, o homem tornar-se, então, social, animado por desejos e necessidades que ultrapassam àqueles exigidos para se manter a vida, pois passam a ser organizados doravante pela “sociedade”, na medida em que, de acordo com a moralidade estabelecida, são satisfeitos, reprimidos/recalcados, postergados ou desviados de sua finalidade original. (INADA, 2011, p. 4). Em vista disso o desprazer é entendido como um aumento de tensão e o prazer como um alívio das mesmas. Dessa forma, não existe felicidade sem a subtração das frustrações, ser humano pressupõe o convívio constante com elas. Assim, no limite, a eliminação de todas as frustrações seria a morte: “Objetivo de toda a vida é a morte, e remontando ao passado: O inanimado já existe antes do vivo.” (FREUD, 2011). Talvez por isso, ao analisar a conduta humana, expondo os entraves de uma vida em sociedade, Freud saliente que o desprazer acaba sendo tolerado, mas não desejado. A felicidade é colocada como realização do princípio do prazer, ou seja, aparenta não com a finalidade do universo, visto que as infelicidades sobressaem-se prontamente. Posto isso, Freud caracteriza como sendo três as principais causas da infelicidade, a saber: o sofrimento físico, corporal; os perigos que o mundo externo nos oferece e os distúrbios advindos das relações com outros seres humanos. Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes (FREUD, 2011, p. 19). 41 Em O mal-estar na civilização, além de analisar o quanto o alcance da felicidade se coloca como inexequível, Freud explora a relação entre felicidade e sociedade valendo-se da máxima de que “o homem não pode ser feliz em sociedade”. Se a finalidade última da vida não é a felicidade pelo prazer, mas sim pelo afastamento do desprazer, só é possível ser feliz mantendo-se distância dos desprazeres da vida. Portanto, ser feliz em sociedade é quase impossível numa perspectiva freudiana. A “quase impossibilidade” da felicidade na sociedade advém do fato de que esta nos faz muitas demandas que implicam renúncia ao prazer. Esta grande demanda implica em si mesmo aumento de desprazer. A sociedade, assim, nos obriga a nos conformamos à convivência com o desprazer. Também em Freud encontraremos uma forte discussão sobre sexualidade considerada o cerne de suas reflexões. Essa temática em suas obras é colocada como uma das principais causas geradoras da civilização, no sentido de que tem por particularidade a capacidade de provocar uma tensão psíquica que limita o esforço em busca da realização dos prazeres, principalmente devido ao homem necessitar reprimir seu impulso de agressividade. Aqui encontramos um ponto forte de aproximação com Theodor Adorno, como ele, Freud acredita que o homem possui um instinto de agressividade e assim a sociedade o impõe uma conduta de gentileza que não faz parte de sua natureza. Quando se fala na inata inclinação humana para a “ruindade”, a agressividade, a destrutividade, e também para a crueldade (...). Recordo minha própria atitude defensiva quando a ideia de uma pulsão de destruição surgiu pela primeira vez na literatura psicanalítica, e quanto tempo levou até que eu me tornasse receptivo a ela. (FREUD, 1915, p.142 apud PORTAS, 2002, p. 27). Por isso, a própria constituição do psiquismo e a sociedade — com suas inúmeras exigências culturais — colocam a felicidade em um patamar inalcançável. É necessário acrescentar que haverá os que acreditam que encontrarão a felicidade em meio ao amor: a chegada de um príncipe encantado, de um filho, ou a conquista de bons amigos exprimem a importância dada a esse sentimento como requisito para se alcançar a felicidade plena. Embora muitas sejam as desilusões advindas do amor, “isso, porém, não liquida com a técnica de viver baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade.” (FREUD, 2011, p. 12). Estou falando, claro, daquela orientação de vida que tem o amor como centro, que espera toda satisfação do amar e ser amado. Essa atitude psíquica é familiar a todos nós; uma das formas de manifestação do 42 amor, o amor sexual, nos proporcionou a mais forte experiência de uma sensação de prazer avassaladora, dando-nos assim o modelo para nossa busca da felicidade. [...] O lado frágil dessa técnica de vida é patente; senão a ninguém ocorreria abandonar esse caminho por outro. Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor. Mas com isso não encerramos o tema da técnica de vida baseada no valor de felicidade, haverá muito mais a dizer sobre isso. (FREUD, 2011, p. 26-27). De maneira idêntica, a beleza é outra qualidade que muitos acreditam impulsionar a busca pela felicidade. Algumas pessoas defendem, veementes, que, quando estão satisfeitas com seu corpo, ou em meio a um lugar encantador, estão por consequência mais perto da felicidade. Freud comenta: Aqui podemos transitar para o caso interessante em que a felicidade na vida é buscada sobretudo no gozo da beleza, onde quer que ela se mostre a nossos sentidos e nosso julgamento, a beleza das formas e dos gestos humanos, de objetos naturais e de paisagens, de criações artísticas e mesmo científicas. Essa atitude estética para com o objetivo da vida não oferece muita proteção contra a ameaça do sofrer, mas compensa muitas coisas. A fruição da beleza tem uma qualidade sensorial peculiar, suavemente inebriante. Não há utilidade evidente na beleza, nem se nota uma clara necessidade cultural para ela; no entanto, a civilização não poderia dispensá-la. (FREUD, 2011, p. 27). Com efeito, no desenrolar das discussões freudianas, vamos percebendo que o sentido da vida talvez não seja propriamente a conquista da felicidade, já que a mesma se coloca como impossível, mas a abertura a uma vida de mais prazeres, de afastamento do desprazer — o que de certa forma, já coloca o ser humano numa posição de descoberta do próprio sentido da felicidade. Inegavelmente, dialogamos com Freud sobre o propósito da vida permeada pelo princípio do prazer, que acaba por dominar o nosso psíquico e nossas pulsões. Prazeres esses que não se prolongam, pelo contrário, são em sua essência tênues, produtores de uma satisfação instantânea, ou seja, derivam de um contraste e não de um estado de coisas por inteiro. Nesse sentido, a felicidade plena não poderá ser alcançada por nenhum ser humano. Analogamente somos como “pescadores de felicidades” que em meio a um mar de possibilidades se colocam sempre a “lançar suas redes por um novo peixe”. Como se vê, é simplesmente o programa do princípio do prazer que estabelece a finalidade da vida. Este princípio domina o desempenho do aparelho psíquico desde o começo; não há dúvidas quanto a sua adequação, mas seu programa está em desacordo com o mundo inteiro, tanto o macrocosmo como o microcosmo. É absolutamente inexequível, todo o arranjo do Universo o contraria; podemos dizer que 43 a intenção de que o homem seja “feliz” não se acha no plano da “criação. (FREUD, 2011, p. 19). Dessa forma, a felicidade está centrada na ausência da dor e consequente elevação dos prazeres. Parafraseando Freud: a felicidade no sentido mais estrito resulta da satisfação súbita das necessidades postas em êxtase, estado que por essência não seria alcançado em sociedade. Apesar de não se colocar entre os objetivos desse texto trazer pontuações sobre a cultura em Freud, podemos pressupor que a vertente cultural numa perspectiva freudiana não contribui para o alcance da felicidade, a vida em sociedade, em suas obras, é tida como limitadora dos prazeres pessoais. Portanto, tal qual Theodor Adorno, que critica a cultura de massa — mais precisamente a indústria cultural como modeladora das atitudes humanas — Freud impõe os limites da cultura ao despertar da felicidade, no sentido de que a vida social, por si só, já impõe repressão às pulsões humanas. Nesse panorama, as exigências colocadas pela civilização, no que diz respeito aos aspectos culturais, são geradoras de infelicidades, tornando inviável a possibilidade de conquista da felicidade plena. Nas palavras de Freud a liberdade individual do homem não pode ser considerada patrimônio da cultura. Nesse sentido, não poderá haver obtenção de prazer por meio dos impulsos reprimidos, o que por sua vez se contrapõe à constituição psíquica voltada para o alcance do anulamento da tensão. Digo isso porque, como vimos, na visão freudiana, a felicidade se traduz em obtenção de prazer em detrimento do desprazer. Devido à fonte de excitação externa, o princípio de inércia precisa ser adaptado para que possa apaziguar a tensão por meio de alguma ação, a qual não poderia realizar caso o organismo estivesse em um estado zero de excitação. Assim, precisa manter um nível constante de tensão; a maior possível para que seja possível um desempenho eficiente do aparelho psíquico. Tal princípio é denominado de princípio de constância. Para Freud, é dele que o princípio de prazer deriva. O princípio de prazer constitui um dos princípios que regulam o aparelho mental, o qual domina o aparelho psíquico desde o início da vida. Seu objetivo é evitar desprazer e obter prazer. É por isso que Freud, inicialmente, usou a denominação princípio de prazer-desprazer. (INADA, 2009, p.61). Como exposto acima, em Freud, prazer e desprazer referem-se à quantidade de excitação no aparelho psíquico. Assim, o prazer seria o aumento de uma excitação enquanto o desprazer sua redução. 44 [...] relacionamos prazer e desprazer com a quantidade de excitação presente na vida psíquica – quantidade que de alguma maneira não está presa [energia que flui livremente, que não está aprisionada a uma representação] – de modo que nessa relação o desprazer corresponderia a um aumento, e o prazer, a uma diminuição dessa quantidade. (FREUD, 2006, p. 135-136 apud INADA, 2009, p. 62). Quando uma tensão é acumulada no organismo, diversos processos psíquicos são ativados, tomando determinado curso, o qual tem por fim sua diminuição, ou evitando o desprazer ou proporcionando prazer. Entretanto, parece haver no organismo uma grande defasagem entre produção de excitação (que é maior) e possibilidade de escoá-la. Freud aborda este tema em “Moral sexual civilizada” e doença nervosa moderna”. Neste texto, a referência é estritamente às pulsões sexuais. (INADA, 2009, p. 62). Resumindo, a felicidade em Freud não é possível, senão muito incompletamente, o homem é movido por desejos insaciáveis que somente poderiam ser realizáveis em uma sociedade sem repressões às pulsões, ainda que maléficas. Nossas considerações sobre a felicidade em Freud tiveram o propósito de apresentar uma concepção que nos será útil ao trabalhar o conceito de felicidade na prática da EJA, e que pode servir, ainda, de horizonte ou contraponto crítico para repensarmos os objetivos da alfabetização desde uma perspectiva filosófica, questão que iremos continuar a desenvolver nas próximas seções. 1.3. Ensinando Filosofia para jovens e adultos em fase de alfabetização: desafios e possibilidades. “Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nós achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se eternizam.” Paulo Freire Se nunca estaremos prontos quando o assunto é pensar, haja vista que tal tarefa se faz constantemente, como se propor a ensinar ao outro a realização de tal proeza? Qual a razão de tomar conhecimento de saberes que nos provocam perturbações, desconfortos e ansiedades, mas que em contrapartida nos fazem sentir mais vivos? Se existissem respostas para esses questionamentos a relevância do pensar morreria. Assim, a Filosofia é antes de tudo uma relação com o conhecimento; sua 45 funcionalidade não necessita ser discutida. O que devemos nos colocar não é a questão do “para que serve a Filosofia” e sim o como essa ciência poderá nos auxiliar a pensar as urgências que cada vez mais se tornam presentes na sociedade. Portanto, o filosofar pode parecer para poucos, mas precisa ser de muitos. “A partir disso, e em um sentido geral, considero que o que move o filosofar é o desafio de ter que dar conta, permanentemente, de uma distância ou um vazio que não acaba de se encher.” (CERLETTI, 2008, p. 24). Portanto, a Filosofia nunca será evidente, o ato de refletir não tem fim — e podese dizer que se assim não o fosse, perderia seu sentido principal: o de se constituir como um eterno aprendizado. Por isso, para um educador comprometido com o humano no processo de ensino-aprendizagem, filosofar e ensinar Filosofia não são apenas importantes, eles podem ser a base para um aprendizado eficaz. Dessa forma, o professor que de fato se propõe a fazer seus alunos filosofarem deve ser antes de tudo um eterno filósofo. Seu comprometimento com o pensar deve ser algo inerente ao fazer pedagógico, mas acima de tudo uma razão para sua prática diária. E foi justamente por sua tamanha complexidade que a Filosofia foi por vezes reservada aos acadêmicos, apartada da massa popular — “uma riqueza escondida daqueles que mais tinham a necessidade de usufruí-la”. Sua reentrada nos currículos do Ensino Médio, em 2008 — mesmo que por 50 minutos semanais, trouxe consigo a esperança de se discutir Filosofia nas escolas. Todavia sua inserção no Ensino Fundamental ainda encontra barreiras, salvo pouquíssimas experiências — que embora apresentando sucesso não tiveram a força necessária para se fazer valer nos currículos escolares como disciplina obrigatória. Se no Ensino Fundamental a inclusão da Filosofia na grade curricular apresentase como uma possibilidade remota, o que dizer sobre a inclusão da mesma em turmas de alfabetização? E em turmas de alfabetização da EJA? Parece mesmo uma tarefa quase impossível. Em uma sociedade onde há pouco espaço para a crítica e criação, a Filosofia é sem dúvida um bom instrumento para se começar a desbravar esse mundo. Sua inserção na Educação de Jovens e Adultos pode auxiliar na busca por um ensino que transforme e informe ao mesmo tempo em que questiona, debate, polemiza, dialoga e ensina. Em seu ensaio Educação após Auschwitz (2000 a), Adorno luta por uma educação dirigida à reflexão crítica e concentrada na primeira 46 infância. Mas, na verdade, tal empobrecimento não abrange apenas crianças. Todos nós estamos a ele submetidos. Este é um fato que merece toda a nossa atenção. Numa sociedade que estimula o pensamento estereotipado e que segue a lógica instrumental, não há espaço para a crítica e a criação. Naturalmente, temos um contexto altamente complexo para a prática da filosofia em salas de aula, mas partimos do princípio de que a filosofia pode cooperar para um alargamento da expressão e construir uma autorreflexão crítica do mundo. Porém, esse processo não pode ser algo coercitivo. (OLIVEIRA, 2009, p. 43). Portanto, nada mais audacioso para um professor de Filosofia do que afirmar-se enquanto filósofo, quem se propõe ensinar a filosofar deve ser antes de tudo alguém declaradamente apaixonado pelo saber. Da mesma forma, nada mais desafiador para um professor alfabetizador do que valer-se da Filosofia para, no processo de ensinoaprendizagem de seus alunos, promover reflexões e ao mesmo tempo significações na vida desses sujeitos. Afinal, a Filosofia e a alfabetização não apenas se combinam como almejam o mesmo objetivo: promover uma mente aberta ao mundo, ao pensar autônomo e a aprendizagem. A Educação de Jovens e Adultos possui sujeitos com experiências e histórias de vida capazes de despertar profundas reflexões — que associadas à mediação filosófica correta podem servir como temática geradora, não somente nas aulas de alfabetização, como em qualquer momento de aprendizagem. Portanto, privar esses sujeitos de experiências enriquecedoras advindas de reflexões filosóficas é ocultar suas potencialidades para o pensar, “cada nível da educação tem certas peculiaridades e também potencialidades que merecem toda nossa atenção.” (OLIVEIRA, 2009, p. 45). Nessa perspectiva, ao menos no que diz respeito à Filosofia para crianças os primeiros passos foram dados, haja vista as experiências e estudos na área que cada vez mais despontam de forma valiosa. Essas novas experiências nos trazem a evidência de que a Filosofia não é apenas para o Ensino Médio, mas para todo e qualquer espaço que se põe a pensar. Portanto, façamos o mesmo por nossos jovens e adultos que após anos fora da escola decidem recomeçar a aprender. 47 1.3.1. O Ensino de Filosofia no cenário atual: repensando práticas de ensino na EJA “A filosofia só faz jus a si mesma quando é mais do que uma disciplina específica.” Theodor Adorno É necessário concordarmos que a inclusão da Filosofia na Educação de Jovens e Adultos não é tão irrelevante como possa vir a parecer para uma considerável massa crítica acadêmica. Pelo contrário, constitui-se em uma possibilidade de engajamento e aprendizado crítico, o questionamento é pré-condição a quaisquer atividades de ensino que se diga dialógica e reflexiva. Privar o aluno da EJA de experiências que o coloquem em contato direto com o fazer filosófico é tirar a oportunidade do mesmo se descobrir enquanto um ser que pensa e, portanto, tem vez e voz. Dessa maneira, o que se faz necessário nas escolas brasileiras são espaços onde o saber filosófico possa frutificar e conquistar novos horizontes, pois para filosofar não é preciso ser um filosofo profissional. A história nos mostra que os primeiros filósofos viveram em uma sociedade eminentemente oral durante séculos, nessa perspectiva, negar a Filosofia a um sujeito somente porque ele não aprendeu a ler e escrever fluentemente é subestimar ao máximo sua capacidade de pensar. Os limites da significação da reflexão filosófica na escola e na sociedade não se superam com mais e melhores “filósofos profissionais”, mas com a perspectiva mais modesta de potenciação de espaços onde o questionamento filosófico, qualquer que seja, possa frutificar. (CEPPAS, 2008, p. 35). Assim, a introdução espontânea de vivências filosóficas durante as aulas de alfabetização, ainda que de natureza introdutória, deve ser vista como algo extremamente valioso, o filosofar se torna muito mais profundo se adquirido de modo espontâneo e não de maneira puramente dirigida. Afinal, “a capacidade de pensar criticamente o mundo não pode ser algo imposto.” (OLIVEIRA, 2009, p. 50). Nesse ponto uma ressalva se faz de extrema importância, estamos propondo aqui experiências filosóficas e não uma imersão na Filosofia em sua dimensão mais acadêmica, abrangendo, por exemplo, conteúdos como sua história e correntes — o que certamente exige uma escrita e leitura mais amadurecida, além do conhecimento prévio de outros conteúdos disciplinares de escolaridade mais avançada. 48 O que propomos são momentos do pensar, do refletir sobre o mundo. Somente nessa perspectiva estaremos contribuindo para a produção de consciências verdadeiras entre os sujeitos da EJA em fase de alfabetização, mas para tanto, o diálogo deve ser o princípio de toda e qualquer ação pedagógica. Nesse sentido, talvez seja necessário pensar o espaço que o diálogo e a Filosofia ocupam nas turmas de Educação de Jovens e Adultos em fase de alfabetização. E nessa procura é muito provável que não encontremos um espaço demarcado e perceptível, isso se ele existir. Portanto, uma educação que se diz empenhada em promover a emancipação, encontrará possíveis obstáculos caso não esteja ancorada em uma perspectiva dialógica e reflexiva e, portando, envolta na Filosofia. Se pretendemos levar nossos alunos à emancipação, talvez seja preciso, antes, compreender que a mesma não se constrói em meio a aulas de “cuspe e giz”, mas em meio à reflexão. “O pensar não deve reduzir-se ao método, a verdade não é o resto que permanece após a eliminação do sujeito. Pelo contrário, este deve levar consigo toda a sua inovação e experiência na observação da coisa para, segundo o ideal, perde-se nela.” (ADORNO, 1995a, p.19). O pensar filosófico satisfatório é crítico, não só frente ao existente e a sua moldagem coisal na consciência, mas também, na mesma medida, frente a si mesma. Ele não faz justiça à experiência que o anima mediante uma codificação complacente, mas sim mediante uma objetivação. (ADORNO, 1995a, p. 23). Por tal razão, torna-se preciso levar nossos alunos a um pensar com base na realidade. Contudo, não é desejável construir uma motivação ativista, pouco fundamentada — oriunda de uma crítica ingênua. Talvez, para um ensino significativo e engajado, seja necessário que a Filosofia esteja presente em todo e qualquer ano escolar, em um espaço por excelência do pensamento, de formação do espírito crítico. Por isso, como dito anteriormente, passa a ser necessário repensar o próprio lugar da Filosofia na sociedade, que não se deve limitar apenas as salas de aula do Ensino Médio e das universidades, é preciso pensar “filosoficamente” práticas filosóficas diversas a serem produzidas em variados contextos escolares. Contudo, o que defendemos são práticas filosóficas fundamentadas, não simples introduções que se intitulam filosóficas sem de fato desencadear reflexões críticas aprofundadas. “A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma autorreflexão.” (ADORNO, 1995a, 121). 49 Vale dizer, o que está em questão é o próprio propósito em nome do qual se mobiliza a filosofia no cotidiano. Sem uma prévia reflexão, a filosofia corre o risco nada trivial de transformar-se em mais uma mera distração do cotidiano, para além das boas ou más intenções. (CEPPAS, 2008, p. 161). Nessa perspectiva, um ensino que se diga emancipatório necessita incluir a Filosofia em seu afazer didático como motivação para refleti-lo. “A partir disso a possibilidade de levar cada um a “aprender por intermédio da motivação” converte-se numa forma particular do desenvolvimento.” (BECKER, in: ADORNO, 1995, 170). Evidentemente a isto corresponde uma instituição escolar cuja estruturação não se perpetuem as desigualdades específicas das classes, mas que, partindo cedo de uma superação das barreiras classistas das crianças, torna praticamente possível o desenvolvimento em direção à emancipação mediante uma motivação do aprendizado baseada numa oferta diversificada ao extremo. (BECKER, in: ADORNO, 1995, p. 170). Tal como nos salienta Adorno, devemos traçar esforços para difundir uma educação política que leve à emancipação. E nessa direção, os fatos nos direcionam a defesa de que sem a Filosofia esse caminho se torna mais difícil. Dessa forma, se faz necessário uma crítica permanente, porém acima de tudo fundamentada, sobre a realidade, a fim de se evitar com todas as forças a barbárie e a repetição de Auschwitz. “Parafraseando Adorno no último parágrafo da Mínima Morália, quanto mais a educação procura se fechar ao seu condicionamento social, tanto mais ela se converte em mera presa da situação social existente.” (MAAR, 1995, p.11). O essencial é pensar a sociedade e a educação em seu devir. Só assim seria possível fixar alternativas históricas tendo como base a emancipação de todos no sentido de se tornarem sujeitos refletidos da história, aptos a interromper a barbárie e realizar o conteúdo positivo, emancipatório, do movimento de ilustração da razão. Esta, porém, seria uma tarefa que diz respeito a características do objeto, da formação social em seu movimento, que são travadas pelo seu encantamento, pelo seu feitiço. Por isto a educação, necessária para produzir a situação vigente, parece impotente para transformá-la. (MAAR, 1995, p.12). Munido da defesa de uma educação política, Adorno combate a “falsa cultura” propondo uma teoria social enquanto abordagem formativa. E nessa direção sinaliza que a reflexão educacional deve antes de tudo constituir-se em uma focalização política e social. Para o filósofo, o homem deve buscar o esclarecimento e não se julgar esclarecido sem sê-lo, isso é ocultar uma condição que deve ser superada. É nesse sentido, que a formação cultural pode conduzir à barbárie ao invés da emancipação, tal como ocorreu com a Alemanha de Goethe em meio ao nazismo de Hitler. 50 Portanto, a concepção adorniana de educação gira em torno de uma educação para o esclarecimento. Meta assumida como combate à crise do processo formativo e educacional, resultado da dinâmica econômica atual que constantemente controla nossos desejos e atitudes. “A vida no capitalismo tardio é um contínuo rito de iniciação. Todos têm de mostrar que se identificam integralmente com o poder de quem não cessam de receber pancadas.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 127). Parafraseando Maar (1995, p. 21), o que Adorno nos salienta por fim é que a indústria cultural é o reflexo da irracionalidade objetiva da sociedade capitalista tardia, como racionalidade da manipulação das massas. Assim, a crise da educação tem suas raízes na indústria cultural que reprime a formação subjetiva interiorizando a dominação. A indústria cultural expressa a forma repressiva da formação da identidade da subjetividade social contemporânea. Marx já assinalara como pela educação os trabalhadores “aceitam” ser classe proletária, interiorizando a dominação, por exemplo, nos seus hábitos. Agora vemos como esta “aceitação” se dá objetivamente no capitalismo tardio. Em primeiro lugar, há uma transformação básica na chamada superestrutura, confundindo-se os planos da economia e da cultura. A indústria Cultural determina toda a estrutura de sentido da vida cultural pela racionalidade estratégica da produção econômica, que se inoculta nos bens culturais enquanto se convertem estritamente em mercadorias; a própria organização da cultura, portanto, é manipulatória dos sentidos dos objetos culturais, subordinando-os aos sentidos econômicos e políticos e, logo, à situação vigente. (MAAR, 1995, p. 21). Quando Adorno fala de indústria cultural, ele está se referindo à cultura transformada em mercadoria. “No plano da totalização da estrutura da mercadoria na formação social, inclusive no plano das próprias necessidades sensíveis a que correspondem aos valores de uso dos bens na sociedade de consumo.” (MAAR, 1995, p.23). Dessa forma, a indústria cultural impõe a regra do mercado rompendo com a lógica de uma cultura para a formação social. Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-los, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 100). 51 Nessa conjuntura, a problemática sobre o ensino de Filosofia, enquanto caminho para a emancipação, passa a constituir-se como um problema filosófico, essa possibilidade se coloca em constante questionamento. Muitos são os questionamentos que se colocam diante de um educador que pretende se valer da Filosofia em suas aulas, ainda mais quando sua tarefa se traduz em propiciar o primeiro contato do outro com o filosofar. Em se tratando de um público em fase de consolidação da leitura e escrita, as inseguranças são ainda maiores. Estaríamos preparados para introduzir o filosofar emancipador? Tudo nos leva a crer que nunca estaremos prontos, porém o primeiro passo precisa ser dado. O filosofar se dá no contato com a instabilidade, com o novo que se revela, “a incerteza, o incômodo, a insatisfação ou a impossibilidade de dar conta cabalmente do mais básico de nossa atividade, longe de ser um obstáculo — ou, talvez, precisamente por sê-lo — constitui o motor do Filosofar.” (CERLETTI, 2008, p.23). Todos nós professores de filosofia enfrentamos, ano após ano, a tarefa de começar nossas aulas de filosofia. Se nossa audiência já cursou alguma disciplina filosófica, ou é de estudantes de filosofia, estamos mais ou mesmos tranquilos: todo mundo já sabe do que se trata a filosofia e a questão será só ir ampliando o aprofundando alguns aspectos específicos. Porém, quando temos que começar do zero (por exemplo, em um primeiro curso de filosofia de ensino médio ou ante um grupo cuja formação não é filosófica ou simplesmente quando alguém se interessa em saber, de maneira inocente, a que nos dedicamos), então a coisa complica. E complica porque sabemos que devemos estar preparados para enfrentar algumas perguntas que inexoravelmente chegarão: “o que é filosofia?”, “para que serve”? “o que fazem os filósofos? (CERLETTI, 2008, p. 22). 1.3.2. Por uma educação Emancipadora “O desejo de libertar-se do passado justifica-se: não é possível viver à sua sombra e o terror não tem fim quando culpa e violência precisam ser pagas com culpa e violência; e não se justifica porque o passado de que se quer escapar ainda permanece vivo.” Theodor Adorno Vimos que para Theodor Adorno a educação deve empenhar-se constantemente em evitar a barbárie buscando promover a emancipação. Mas o que é essa barbárie à qual Adorno constantemente se refere? É justamente o que leva o homem à destruição, seu impulso destruidor que vem à tona nas mais diversas maneiras de tortura e 52 agressividade presenciadas pelo mundo afora e que podem novamente chegar ao extremismo do nazismo, de maneira que barrá-la é um dos compromissos mais importantes que a educação precisa assumir. A educação atual, no entanto, não tem conseguido conter o impulso dominador do homem, servindo muitas das vezes como incentivo ao desabrochar do seu lado mais perverso. O que Adorno sinaliza é justamente a necessidade do contrário. A educação deve buscar o bem, a emancipação por meio do combate à repressão. Suspeito que a barbárie existe em toda a parte em que há uma regressão à violência física primitiva, sem que haja uma vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade, onde exista, portanto a identificação com a erupção da violência física. Por outro lado, em circunstâncias em que a violência conduz inclusive a situações bem constrangedoras em contextos transparentes para a geração de condições humanas mais dignas, a violência não pode sem mais nem menos ser condenada como barbárie. (ADORNO, 1995a, p. 159-160). Portanto, o ato de educar precisa ter como foco o humano e o social enfrentando o que vem a ser a indústria cultural — que coopta o potencial criativo e humano do indivíduo. Assim, em Adorno chegamos à conclusão que o processo educacional deve ser humano, social, voltado à formação crítica e reflexiva que reprima o impulso repressivo e destrutivo que faz parte do homem. Somente assim, será Emancipadora. Qualquer debate acerca das metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. (ADORNO, 1995a, p. 119). Dessa forma, depois de Auschwitz a educação precisa ser repensada de forma a buscar alternativas de superação ao fenômeno da industrialização da cultura que culmina com a manipulação das consciências — instrumento de dominação e manutenção do status quo que não exime as escolas. Essas por sua vez poderão ser mais um instrumento a favor da máxima mercantilização da cultura e destruição das consciências ou, em contrapartida, promover uma nova lógica de ensino, pautada na emancipação efetiva do homem. A finalidade máxima da educação é impedir que Auschwitz se repita, pois a passividade diante da barbárie é o principal instrumento para a viabilização da repressão. Por isso, Adorno é contundente ao dizer que o maior e principal objetivo da 53 educação é a desbarbarização. Auschwitz pode ter ficado para traz, mas a barbárie humana ainda é uma realidade. Adorno procura mostrar que a educação teria um poder de resistência ao rumo caótico que a civilização humana está tomando. Ela poderia se trabalhada da maneira correta, fazer com que o homem refletisse sobre sua realidade e a analisasse de maneira crítica, não aceitando todas as imposições sociais como sendo naturais, mas entendendo que é ele o responsável pela produção da realidade. (LIMA, 2008, p. 77). Desta maneira a finalidade última do esclarecimento, que era a liberdade acabou gerando um novo tipo de dominação, pois a razão técnica passa a se impor como única forma de razão, o pensamento que antes almejava a liberdade passou a ser totalitário devido ao uso de maneira equivocada a que foi submetido pela técnica. Portanto a educação a que os homens são submetidos na sociedade administrada não conduz à liberdade e autonomia de pensamento, mas sim a heteronomia e alienação tanto intelectual quanto material. (LIMA, 2008, p. 80). Dessa forma, Adorno tenta sinalizar a importância de considerar de forma crítica as condições sociais que determinam o modo como os indivíduos agem. Salientando a reflexão racional das condições de produção da realidade social e de mercantilização da cultura. “A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma autorreflexão crítica.” (ADORNO, 1995a, p. 121). 1.3.3. Por uma Emancipação contundente: reflexão e ação “Em verdade, não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária, realizar-se como prática da liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos”. Paulo Freire Quando falamos sobre Educação de Jovens e Adultos, logo Paulo Freire nos vem à mente de forma tão contundente que poucos são aqueles que ousam resistir às suas considerações. E quando a temática se faz em torno da Educação Emancipadora suas colocações parecem ainda mais significativas. Contudo se a tarefa for posicionar as contribuições de Paulo Freire frente às de Theodor Adorno, será como misturar água e óleo — o primeiro otimista ao extremo, o segundo um “pessimista de carteirinha”. No entanto, ambos trazem postulações de suma relevância, capazes de suscitar reflexões grandiosas aos interessados em discutir o que de fato vem a ser Emancipação. 54 Como educador consciente de seu papel, Paulo Freire propõe um ensino pautado no diálogo, como contrapartida àquilo que ele entendia por Educação Bancária, que considera o aluno uma folha em branco — uma gaveta na qual o educador deposita suas contribuições de forma autoritária e nada construtiva. Estudar é, realmente um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura crítica, sistemática. Exige uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a. Isto é, precisamente, o que a “educação bancária” não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em fazer do texto, não para a indispensável criticidade. (FREIRE, 1981, p. 8). No que concerne ao conceito de Emancipação é preciso dizer que o mesmo admite variados contextos e significações, sendo estas muitas das vezes por demais abstratas, porém aqui daremos destaque ao âmbito educacional. Como diz Adorno: “A ideia de emancipação, [...], é ela própria ainda abstrata, além de encontrar-se relacionada a uma dialética. Essa precisa ser inserida no pensamento e também na prática educacional.” (ADORNO, 1995a, p.143). Ou, ainda: “Única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nessa direção orientam toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência.” (ADORNO, 1995a, p. 183). Paulo Freire por sua vez, caminha em sentido parecido, defendendo que um ensino para a emancipação propõe uma educação para a criticidade, para a decisão e para a responsabilidade social e política. “Para a educação problematizadora, enquanto um quefazer humanista e libertador, o importante está em que os homens submetidos à dominação, lutem por sua emancipação.” (FREIRE, 2011). Emancipar-se nesse sentido, é superar a falsa consciência do mundo. Considerações inúmeras a parte, o que parece unânime é o fato de todos verem a emancipação como um grande progresso, que outrora já fora idealizado por Marx com destaque acentuado para o conceito de emancipação política. A emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui. Que fique claro: estamos falando aqui de emancipação real, de emancipação prática [...] Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o 55 homem tiver reconhecido e organizado suas “forces propres” (forças próprias) como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma da força política. (MARX, 2010, p. 41-54). Dessa forma, uma educação que vai ao encontro de um mundo mais humano e crítico só poderá alcançá-lo na medida em que se dispuser a pensar o sentido da emancipação em sua prática. E como vimos, tal como Adoro e Marx, Paulo Freire construiu uma trajetória de estudo em cima dessa temática, salientando que é preciso uma prática pedagógica em favor da autonomia do ser dos educandos. Freire defendia uma educação comprometida com o social. Se, para ele, a educação sozinha não é capaz de transformar o mundo, sem ela seria impossível começar qualquer tipo de luta. E é nesse sentido que também postulamos: a Filosofia sozinha não será passível de conquistas, porém sua contribuição é imprescindível. Somente homens e mulheres, como seres “abertos”, são capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente, transformando o mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la por meio da linguagem criadora. E é enquanto são capazes de tal operação, que implica em “tomar distância” distância do mundo, objetivando-o, que homens e mulheres se fazem seres como o mundo. (FREIRE, 1978, p. 65 apud DECKER, 2010, p. 38). Nesse sentido, percebemos o quanto Paulo Freire se aproxima do trabalho que aqui vem sendo proposto — o de ofertar uma educação que tente ao máximo aproximar-se da Educação popular indo ao encontro da Emancipação. Por entender as classes populares como detentoras de um saber não valorizado e excluídas do conhecimento historicamente acumulado pela sociedade, nos mostra a relevância de se construir uma educação a partir do conhecimento do povo e com o povo provocando uma leitura da realidade na ótica do oprimido, que ultrapasse as fronteiras das letras e se constitui nas relações históricas e sociais. Nesse sentido, o oprimido deve sair desta condição de opressão a partir da fomentação da consciência de classe oprimida. (MACIEL, 2011, p. 328). A descoberta do oprimido enquanto ser histórico — ou seja, emancipado — traduz a trajetória de Freire frente aos cidadãos marginalizados da EJA na tentativa de, partindo do seu cotidiano, propor formas de alfabetização mais humanas e contextualizadas das que até então vem sendo propostas. Em seus escritos, o autor deixa claro seu compromisso com o social, salientando que um educador deve agir no intuito de fazer com que seus alunos possam “ser mais” e tornarem-se “seres para si” ao invés de ser “seres para o outro”. Tal qual Adorno, Freire é contra visões extremistas de mundo, para tanto ele propõe uma ética universal 56 que deve permear as práticas sociais. “O erro na verdade não é ter certo ponto de vista, mas absolutizá-lo e desconhecer que, mesmo do acerto de seu ponto de vista, é possível que a razão ética nem sempre esteja com ele.” (FREIRE, 2011, p.18). Os seres humanos, enquanto seres históricos estão em estreita ligação com o mundo, sendo necessário que tomem consciência do mesmo para propor mudanças de forma fundamentada. Parafraseando Freire, o ser que simplesmente vive no mundo não se torna capaz de refletir sobre ele, apenas o habita em plena passividade desconhecendo as leis que regulam sua existência. Em contrapartida, o sujeito emancipado reflete sobre sua existência em um mundo em constante transformação, e que, portanto não está dado, sendo passível de mudanças. Porém, para descobrir-se enquanto ser histórico, colaborador na construção de uma sociedade mais humana, antes é necessário descobrir-se enquanto um ser inacabado, alguém em eterna construção, que, por meio da reflexão e do conhecimento de si e do mundo, se torna colaborador na efetivação de uma sociedade melhor. Assim, somente por meio da reflexão e ação dos homens no mundo é possível transformá-lo, superando a contradição opressor-oprimido. Feito para o ser mais, o ser humano é ontologicamente chamado a desenvolver, nos limites e nas vicissitudes de seu contexto histórico, todas as suas potencialidades materiais e espirituais, buscando dosar adequadamente seu protagonismo no enorme leque de relações que a vida lhe oferece, incluindo as relações no mundo e com o mundo, as relações intrapessoais, interpessoais, estéticas, de gênero, de etnia e de produção. (CALADO, 2001, p. 52 apud JUNIOR; NOGUEIRA, 2011, p. 5). Freire acentua dessa maneira, a passagem de uma consciência ingênua para uma consciência crítica que se processa durante o ensino, por meio de práticas dialógicas e reflexivas. Nesse contexto, alfabetizar jovens e adultos se apresenta como algo que necessita ser repensado, como recusa de uma educação totalmente mecanizada, visto que: A alfabetização, assim, se reduz ao ato mecânico de “depositar” palavras, sílabas e letras nos alfabetizando. Escrita e lida, a palavra é como se fosse um amuleto, algo justaposto ao homem que não a diz, mas simplesmente a repete. Palavra quase sempre sem relação com o mundo e com as coisas que nomeia. Daí que, para esta concepção distorcida da palavra, a alfabetização se transforme em um ato pelo qual o chamado alfabetizador vai “enchendo” o alfabetizando com suas palavras. A significação mágica emprestada à palavra se alonga noutra ingenuidade: a do messianismo. O analfabeto é um “homem perdido”. É preciso, então, “salvá-lo” e sua “salvação” está em que consinta em ir sendo "enchido” por estas palavras, meros sons milagrosos, que lhe 57 são presenteadas ou impostas pelo alfabetizador que, às vezes, é um agente inconsciente dos responsáveis pela política da campanha. (FREIRE, 1981, p.11). Freire propõe outro olhar sobre a alfabetização de jovens e adultos, capaz de introduzi-los num caminho de criticidade e reflexão. É preciso propor outras metodologias que subtraiam práticas nada criativas e humanizadoras de ensino. As velhas cartilhas, por melhores que sejam não substituem práticas dialógicas e reflexivas de alfabetização, funcionando como “o instrumento através do qual se vão ‘depositando’ as palavras do educador, [...], nos alfabetizandos. E por limitar-lhes o poder de expressão, de criatividade, são instrumentos domesticadores.” (FREIRE, 1981, p.11). Freire nos conduz a um ensino que se distancia do erro epistemológico do bancarismo levando o educador a um constante engajamento. Ele postula que aprender criticamente é possível. “Nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado.” (FREIRE, 2011, p. 28). O necessário é que, subordinado, embora, à prática “bancária”, o educando mantenha vivo em si o gosto da rebeldia que, aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade de arriscar-se, de aventurar-se, de certa forma “imuniza” contra o poder apassivador do bancarismo. (FREIRE, 2011, p. 27). Paulo Freire representa um verdadeiro marco na história da Educação de Jovens e Adultos. Ele argumenta de maneira contundente que uma educação que se faz de forma crítica deve ter o compromisso do educador com a consciência crítica do educando. Ou seja, nenhum educador é capaz de superar a condição de ingenuidade de seu aluno se não estiver aberto ao outro. Assim, cabe ao professor o respeito ao senso comum no processo de sua superação. Porém, para agir nessa perspectiva o educador precisa “pensar certo”, o que lhe implica respeitar os saberes — sobretudo os das classes marginalizadas — e “discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos.” (FREIRE, 2011, p. 31). Nessa direção, é preciso trazer para as salas de aula temáticas que permitam aos alunos pensarem o mundo no qual estão inseridos, refletir sobre os acontecimentos que os cercam e despertarem-se para a problemática atual, ou na visão freiriana, colocarem-se impacientes diante do mundo. O que, contudo, somente ocorre com o despertar da curiosidade que por sua vez deverá ser crítica, insatisfeita e indócil, 58 “curiosidade com que podemos nos defender de “irracionalismos” decorrentes do ou produzidos por certo excesso de “racionalidade” de nosso tempo altamente tecnologizado.” (FREIRE, 2011, p. 34). Certamente a Filosofia, com seu caráter crítico e atuante, embora não seja a solução para as incertezas e males do mundo, nos auxilia a pensar de maneira inconformada, ou seja, questionadora, o mundo e suas problemáticas. Assim como Adorno, Freire traz ao docente a necessidade de despertar no homem o que lhe há de melhor. Mas para tanto, o educador necessita perceber a essência filosófica pertencente ao ato de ensinar. Essa essência se fortalece na medida em que ele introduz em sala formas alternativas de aprendizagem. Educar não é somente introduzir conhecimentos de forma puramente conceitual, como se os alunos fossem folhas em banco, educar é transformar histórias e vidas. É pensar e repensar significados. É acima de tudo dar a oportunidade desses sujeitos sentirem-se seres que pensam, vivem e agem. É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar: Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado. (FREIRE, 2011, p. 34-35). Assim, ensinar não pode ser entendido como a simples transmissão de conhecimentos, mas como a criação de possibilidades de produção ou construção dos mesmos (FREIRE, 2011). Dessa forma, nossa tarefa não se efetiva somente quando fazemos com que nossos alunos percebam-se inacabados, crescendo enquanto seres históricos, mas, sobretudo na medida em que nós docentes também nos enxergamos inacabados, necessitando constantemente de aprimoramentos para uma prática coerente. Enquanto um ser inacabado, me faço, automaticamente, um ser em construção, que quando privado do conhecimento se instaura na passividade e no erro. Portanto, “seria irônico se a consciência de minha presença no mundo não implicasse já o reconhecimento da impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença.” (FREIRE, 2011, p. 53). 59 Dessa forma, pensar o que é o mundo de hoje implica instaurar barreiras contra o que não queremos mais que ele seja, ou venha a ser. Nesse sentido, pensar nosso contexto social é refleti-lo, traçando novas formas de significações e existências. Assim, Freire e Adorno vão além das considerações tradicionais de educação ao postularem formas de educar que coloquem o homem em evidência por meio de sua efetiva existência, que provavelmente se dá por meio do que eles cunharam por emancipação. Nesse contexto a escola se faz lugar de construções emancipatórias ao passo que: Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível sombra a nossa existência, é justamente o contrário da formação cultural, então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito importante. A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas potencialidades. E para isso ela precisa libertar-se dos tabus, sob cuja pressão se reproduz a barbárie. O pathos da escola hoje, a sua seriedade moral, está em que, no âmbito do existente, somente ela pode apontar para a desbarbarização da humanidade, na medida em que se conscientiza disto. (ADORNO, 1995a, p. 117). Embora com perspectivas de realizações sociais diferenciadas — Freire, um eterno otimista da capacidade humana de superar sua condição de oprimido; Adorno, um descrente do ser humano livre da barbárie — ambos defendem que a educação representa a oportunidade de superação da condição que não permite ao homem se desenvolver em plenitude. Ao pontuarem o papel fundamental da educação no processo de descoberta do ser humano enquanto ser social que age ativamente por uma sociedade mais justa, Adorno e Freire colocam-nos uma nova forma de pensar a aprendizagem, que embora produzidas em épocas e locais diferentes — o primeiro sob a sombra do Nazismo de Hitler, o segundo sob o ar sufocante da ditadura brasileira — apresentam-se como extremamente atuais e relevantes, pois nunca se fez tão urgente discutir novas formas de ensinar. Até aqui vimos o quanto uma educação mais crítica se faz necessária na superação de uma forma desumanizadora de sociedade, seja pela condição de opressão, seja pela natureza de barbárie. Assim, o que tentamos até esse momento foi mostrar o quanto a Filosofia poderá contribuir para a introdução de práticas mais contundentes e significativas nas turmas 60 de Educação de Jovens e Adultos, com destaque especial para as classes de alfabetização, que, infelizmente, em sua grande maioria, vivem imersas em metodologias infantilizadas e repetitivas que não trazem a criticidade, a reflexão e o diálogo como instrumentos de inovação, como já dito. Dessa forma, presumimos que as contribuições de Adorno e Paulo Freire são de natureza relevante na reflexão das práticas atuais de ensino. Quando ensinamos jovens e adultos, os focos e temáticas não podem ser os mesmos que os trabalhados com crianças. Estamos falando de pessoas que passaram anos fora das escolas, e que, como a própria legislação postula, precisam ter seus direitos assegurados, e dentre esses direitos um ensino mais humano e emancipador se faz necessário. A defesa da introdução de uma perspectiva filosófica de alfabetização se traduz como algo inovador, capaz não só de redirecionar as práticas pedagógicas vigentes até então, como também de introduzir caminhos mais diálogos e problematizadores de ensino. Por tal razão, defender a introdução da Filosofia nas turmas do Ensino Fundamental, precisamente nas etapas de alfabetização da EJA, é tarefa apenas de educadores que acreditam na reflexão enquanto “instrumento” para um “pensar certo”. É óbvio que muitos obstáculos serão postos — seja no plano legal, seja no plano prático — para a introdução da Filosofia nas classes de alfabetização. Portanto, acreditar em uma alfabetização de cunho filosófico é muito mais que defender a aprendizagem de fonemas por fonemas, é defender caminhos alternativos e testar o novo, que como tudo na vida poderá ou não dar certo. Como já dissemos, nosso objetivo não é postular que, introduzindo a Filosofia na EJA, revolucionaremos a forma de ensinar nessa modalidade, pelo contrário, não temos certezas nesse momento. Em contrapartida, as dúvidas nos tomam por completo. Também não possuímos o tempo necessário para comprovar na prática ser possível alfabetizar alguém por meio da Filosofia, nem seria este o nosso objetivo. Mas entendemos a relevância do ensino dessa área do conhecimento. Cada aluno tem suas particularidades, respondem de formas diversas às atividades propostas e solicitam formas diferentes de aprendizagem. Assim, se para muitos a Filosofia é um bem, provavelmente para outros talvez seja um atrapalho. Tratar-se-ia de adotar práticas de ensino-aprendizagem de fato mais humanas? Presumo que essa é uma pergunta que, da mesma forma que as que dizem respeito à funcionalidade filosófica, não é cabível, ao menos nesse momento. Só saberemos a 61 funcionalidade de uma alfabetização de viés filosófico no instante em que nos propusermos o desafio de alfabetizar de forma filosófica e com o auxílio da Filosofia. Se não tentarmos o novo com a justificativa de que não há indícios que comprovem sua eficácia — o que pode ocasionar “perda de tempo” — continuaremos produzindo sempre mais do mesmo. E para produzir o mesmo de sempre não há necessidade de formação constante, pelo contrário, “para uma aula qualquer serve muito bem um professor qualquer”. Contudo, o que defendemos é justamente a ausência de “qualquer aula para qualquer aluno”. A prática pedagógica é um ato comprometido, poderá determinar o futuro, a vida e os sonhos de outra pessoa. O educador, portanto não pode abster-se de uma atuação engajada. E esse engajamento tem início no momento em que ele se reconhece enquanto um educador. A Filosofia não é a salvação do mundo, mas trabalha nessa direção. A Filosofia não é a mudança, mas trabalha para sua viabilização. A Filosofia não é, nem jamais poderá ser, a verdade definitiva, se assim o fosse não haveria sentido sua existência. E a Filosofia não é para poucos, pelo contrário, sua necessidade se faz condição para toda e qualquer forma de pensar e agir, e nesse cenário os sujeitos da EJA também se incluem. 1. 4. Pensando o Ensino de Filosofia na EJA como problema Filosófico “A potência do pensar está em todos e em cada um.” Filipe Ceppas Pensar o ensino de Filosofia nunca foi tão importante como se faz agora, especialmente no que concerne à sua oferta na EJA. Primeiramente porque poucos são aqueles que entendem a relevância desse assunto deixado, na maior parte das vezes, nas mãos dos programas de Educação que rotineiramente o tratam como questão educacional e não como o problema filosófico que também deveria ser, fato observado até mesmo no crescente, mas ainda pouco expressivo, número de publicações sobre essa temática. Para se ter uma ideia do quanto pensar o ensino de Filosofia se traduz em algo relativamente novo, a Anpof (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia), por exemplo, somente teve um GT, grupo de Trabalho, nessa área em 2006, o “Filosofar e Ensinar a filosofar” (GELAMO, 2009) e: 62 Talvez um dos motivos para tão poucas publicações seja justamente o fato de as questões do ensino da filosofia serem entendidas como questões educacionais, o que possivelmente as distanciaria dos problemas filosóficos. Assim, a filosofia poderia se ocupar de questões “mais importantes” e elevadas como a metafísica, a teoria do conhecimento, a ética e, de forma geral e principalmente, a história da filosofia. (GELAMO, 2009, p.35). A defesa árdua pelo retorno da Filosofia ao Ensino Médio fez com que as discussões sobre seu ensino se concentrassem nessa etapa, o que ainda é uma realidade, permanecendo adormecidos os diálogos sobre sua oferta em outros anos da Educação Básica. A supressão se deu assim, sobre o discurso de que primeiramente é necessário aprender as disciplinas tidas como “fundamentais”, a formação mínima, como se aprender a filosofar fosse um “algo a mais” desnecessário. Nesse sentido, no âmbito daqueles que se dedicam a pensar e defender o ensino de Filosofia veremos a preocupação constante com sua oferta ao Ensino Médio, Ensino Superior, às crianças, e até ao Ensino Fundamental, mas será difícil encontrar estudiosos que discutam o ensino de Filosofia na EJA, e mais raro ainda que proponham sua inclusão nas classes de alfabetização dessa modalidade. Assim, tal como já sugeria Kant, é necessário reconhecer o ensino de Filosofia para além de uma abordagem meramente pedagógica, e sim como um problema filosófico (GELAMO, 2009). É importante reviver sua ideia de problematização dos modos de pensar a educação, refletir sobre a autonomia do sujeito no aprender a filosofar e dialogar sobre como criar as condições que nos levarão ao “pensar correto”, fazendo bom uso da razão. Buscar o lugar da Filosofia no ensino como um todo, o que inclui a alfabetização na EJA, é demarcar um espaço que há décadas encontra-se vago, à disposição das autoridades que acreditam serem suficientes 50 minutos semanais para ela. Nesse sentido, a essência do filosofar se perde, pois é impossível trabalhar o pensar nesse contexto. Na realidade da Educação de Jovens e Adultos, onde a carga horária na prática é reduzida por ser um ensino noturno, há relatos de docentes que mal conseguem realizar a chamada. Que dirá promover reflexões em menos de uma hora. O tempo disponibilizado para a apreensão dos conteúdos filosóficos e para a consolidação de um tipo de reflexão almejado pela filosofia é ínfimo. Ao dificultar a apropriação intelectual dos conteúdos pelos alunos, a negação de um modo de temporalidade necessário à formação do pensamento filosófico impede a constituição de uma reflexão crítica, equivocadamente esperada sob essas condições. (GELAMO, 2009, p.113). Nesse contexto pouco propício ao filosofar, o ensino da Filosofia muitas vezes se restringe a uma transmissão de conteúdos cujo objetivo é 63 fazer que o aluno acumule o máximo de informações possível no pouco tempo que lhe é reservado. Assim, aquilo que seria fundamental para a consolidação do processo formativo – a efetivação de uma mudança de atitude do aluno em face do mundo e de si mesmo, a partir de um pensamento crítico amparado pelas reflexões despertadas no encontro de seu pensamento com o pensamento dos filósofos – seria algo quase impossível de acontecer, por se fundamentar, muitas vezes, em um modo superficial de articulação entre as perspectivas dos filósofos apresentadas pelo professor acerca de um determinado tema e os conteúdos tidos como necessários no ensino da Filosofia. (GELAMO, 2009, p. 113-114). Portanto, a luta de um educador filósofo para levar a Filosofia até seus alunos é mais que um problema filosófico, é acima de tudo uma vivência filosófica, marcada pela problemática da existência (GELAMO, 2009), do constante questionamento do “fazer docente” e do como falar sobre Filosofia em meio às problemáticas educacionais. Ademais, o ensino de Filosofia não está puramente na transmissão de conteúdos, em “fórmulas filosóficas” (GELAMO, 2009) por assim dizer, em que o professor explica o que é “pensar filosoficamente”, sem possibilitar que seus alunos pratiquem esse ato. O papel do professor de Filosofia passou a ser o de um explicador do modo como os filósofos produziram determinado pensamento, das suas filiações teóricas, de seus vínculos com aqueles que o antecederam, dos pontos problemáticos que pretendiam resolver e do modo como responderam a esses problemas [...] Ou seja, o papel do professor, nesse contexto, é garantir que se compreenda aquilo que supostamente é necessário que o aluno efetivamente aprenda da filosofia. (GELAMO, 2009, p. 115-116). Além dos constantes desafios de ensinar Filosofia em uma escola pública que incluem: carga horária reduzida, despreparo, falta de material didático, dentre outros obstáculos, constantemente o educador ainda precisa se deparar com o desinteresse dos alunos, que não compreendem a necessidade de estudar Filosofia. Não bastassem as limitações institucionais ao ensino-aprendizado da filosofia, a perspectiva do ensino de filosofia na educação básica conta, ainda, com outros obstáculos difíceis, sendo a “imaturidade” ou o “desinteresse” de crianças e jovens pelo estudo em geral, e pela filosofia em particular, o mais propalado. De fato, tudo, cada vez mais, parece conspirar contra a ideia de que haja algum sentido em trabalhar com a filosofia dentro da escola. Contudo, esse estado de coisas [...] não deveria dar lugar a uma visão catastrofista e elitista, que reafirmaria a suspeita de que o pensar é para poucos. Esta visão não sobrevive às nossas considerações sobre as relações entre o pensar e o juízo. A potência do pensar está em todos e em cada um. O que podemos considerar como sendo um conjunto de “obstáculos” para que possamos encontrar esse espaço de distanciamento frente ao mundo visível e suas particularidades, suas contingências sem rima ou razão, estabelecendo esse paciente e cuidadoso diálogo de mim 64 comigo mesmo, é, na verdade, o horizonte onde este diálogo pode tornar-se significativo para além de si mesmo. (CEPPAS, 2015, p.59). Nesse sentido, o ensino de Filosofia deve enriquecer experiências e propiciar vivências, deve criar um “ambiente de resistência” ao não pensar, ao naturalismo e ao conformismo exacerbado, “o ensino da Filosofia, que está vinculado à transmissão de conhecimentos, não valoriza a experiência, mas a transmissão de saberes abstratos e a reprodução daquilo que foi dito pelos grandes filósofos.” (GELAMO, 2009, p. 127). Neste sentido, o problema do ensino da Filosofia seria uma questão que abarca todo fazer docente. E não seria apenas uma problemática de ordem didática, mas filosófica, algo a ser discutido também por filósofos com o intuito principal de levar Filosofia aos não filósofos. Para a maioria da população, é na escola, mais do que em qualquer outro lugar, neste espaço único ocupado, em cada turma, por um pequeno grupo de pessoas ainda não totalmente tomadas pelas demandas do cotidiano, que o puro apelo ao pensar tem a chance de se fazer ouvir e de se compreender a si mesmo, de compreender o que nele, nesse diálogo mudo e solitário, faz liga com as particularidades do mundo. Ao lado da escrita e da arte, a filosofia na escola é o espaço privilegiado para o exercício da faculdade do juízo que dá sentido à filosofia. (CEPPAS, 2015, p.60). Logo, o pensar filosófico pode e deve suscitar novas formas de perceber a realidade e se fazer presente no mundo. Seja na alfabetização ou no Ensino Médio, na universidade ou na pós-graduação, o importante é que o pensar faça-se sempre a condição necessária ao conhecimento. 65 Capítulo 2 - Um olhar filosófico sobre a produção de Materiais Didáticos para EJA “A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca mitificante. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo.” Paulo Freire Ao refletir criticamente sobre a produção de materiais didáticos para jovens e adultos trabalhadores logo nos vem à mente a proposta de um material dialógico, prático, centrado nas necessidades desse público tão diversificado. No entanto, o que presenciaremos, na grande maioria das vezes, ao adentrar uma sala de aula de EJA são metodologias e materiais didáticos infantilizados ou nada criativos, que simplesmente reproduzem o que é ensinado no Ensino Regular, sem ao menos considerar as particularidades do sujeito da Educação de Jovens e Adultos. E se por ventura fogem da realidade acima descrita, algumas dessas metodologias e materiais3 se destacarão por serem de difícil aplicabilidade, ao exigirem dos professores uma prática com a qual eles mesmos não estão familiarizados. De uma hora para outra o docente é forçado a abandonar métodos tradicionais para dar lugar às experiências e saberes dos alunos, porém sem saber como fazê-lo. Tal realidade acaba levando muitos educadores a recorrerem novamente às metodologias “ditas ultrapassadas”, com as quais possuem mais segurança e experiência — justamente por já estarem cristalizadas em suas práticas docentes — e a desconfiarem das que, por apresentarem-se revertidas de um viés ideológico, não demonstram credibilidade. Consideramos que o conjunto de saberes, valores e significados construídos em torno de um objeto é que o faz tornar-se útil ao processo de ensino-aprendizagem, transformando-o em um material didático, e que esses saberes criam “regimes de verdade” dominantes, capazes de orientar nossa visão e pensamento sobre “como” ensinar. (FISCARELLI, 2007, p. 02). 3 Aqui cabe destacar a variedade de materiais englobados na categoria de materiais didáticos que poderão ir dos simples e mais comuns como apostilas e livros didáticos, folhas impressas, ao mais modernos como o quadro interativo, dentre outros (POSSOLI; CURY, 2009). Para POSSOLI e CURY (2009), por exemplo, “os tipos de materiais didáticos podem ser classificados em três categorias: impressos (como livros, apostilas e guias de estudo), audiovisuais (como transmissões radiofônicas e televisivas) e digitais (como os Ambientes Virtuais de Aprendizagem – AVA e recursos de informática e internet)”. 66 Ao entramos na esfera da alfabetização o problema parece ainda mais urgente. Apesar de atualmente existir uma importante variedade de materiais didáticos de alfabetização à disposição para turmas de EJA, muitos deles carregam a “herança da decoreba” como metodologia central. É preciso soletrar e copiar dezenas de vezes as mesmas sílabas e frases do tipo “Tico é um macaco sapeca”, dentre outras. Não estou aqui querendo desacreditar a funcionalidade do BA, BE, BI, BO, BU, eu mesma fui alfabetizada por ele. Funcional ele é, mas será o mais apropriado? Num cenário onde se faz preciso reconhecer o avanço significativo dos últimos anos, a produção de materiais didáticos para EJA — oriunda em grande parte de programas do governo, da prática docente, do meio escolar, tais como os do Acervo EJA (MEC 2007), e de movimentos sociais e organizações civis (MELLO, 2013) — despontaram contribuindo para repensar a metodologia direcionada a essa modalidade, de maneira que se mantem fechado ao novo é ignorar o que de melhor ele tem a oferecer. Adotando esta perspectiva, podemos dizer que os estudos que se dedicam a analisar a produção, circulação e uso de materiais didáticos para a EJA, no Brasil, precisam levar em conta, pelo menos, três características básicas do corpus documental formado pelos materiais didáticos produzidos na EJA e para a EJA: sua profusão e diversidade, quando consideramos os diversos tipos e gêneros de materiais didáticos; sua completa dispersão pelo território nacional; e a ampla diversidade de sujeitos sociais e poderes instituídos envolvidos em sua produção, desde a sala de aula até os editoriais de grandes editoras comerciais. (MELLO, 2013, p.115). Nesse novo espaço destinado a pensar formas de ensinar jovens e adultos destacam-se a diversidade de materiais impressos e audiovisuais que, em grande parte, salientam a luta de movimentos vinculados à Educação Popular (MELLO, 2013), mas também os interesses despertados no mercado editorial — que rotineiramente apresenta-se despreparado para elaborar esse tipo de materiais o que resulta em adequações dos materiais reservados ao Ensino Regular para essa modalidade. Em seu estudo, Takeuchi (2005) analisa duas coleções didáticas, produzidas por grandes editoras paulistas, confrontando os dispositivos editoriais do material destinado a EJA em relação aos livros didáticos de maior importância comercial produzidos por essas mesmas editoras para a Educação Básica. Sua perspectiva de análise é orientada pela abordagem da materialidade da obra didática em suas diferenças relacionadas ao público escolar a que se destina. Seu estudo desvela que os livros didáticos para EJA são objeto de reorganizações e dispositivos editoriais (tais como projeto gráfico, qualidade do papel, quantidade de páginas, dentre outros) que impactam a qualidade dos conteúdos expostos, revelando propostas que não foram originalmente elaboradas para o público adulto, mas 67 que, por meio dessas estratégias, são destinados à EJA. (MELLO, 2013, p.103 - 104). Apesar da realidade da EJA — ao menos na produção de materiais didáticos — ter avançado nas últimas décadas, ainda é notório o tradicionalismo assumido em muitas escolas do século XXI que recorrem a materiais focados na repetição sonora e na cópia como metodologia central, apartando-se do caráter crítico e dialógico que poderiam assumir. As razões para tais posicionamentos podem estar na insegurança com que muitos docentes recebem esses materiais ou até mesmo na indisponibilidade dos mesmos nas escolas mais afastadas dos grandes centros urbanos. Basta entrar nas bibliotecas dessas escolas para perceber que poucas serão aquelas que possuem em suas coleções materiais destinados a esse público. Valorizar o que surge com o intuito de mudar esse quadro precisa fazer parte das políticas públicas direcionadas à modalidade EJA que necessitam também fazer valer a presença desses materiais em sala de aula como alternativa a um processo mais dinâmico de aprendizagem. Quando falamos de alfabetização de jovens e adultos estamos tratando de pessoas que ao regressarem ou ingressarem nas escolas trazem o sonho de aprender a leitura e escrita para realizar as tarefas mais simples do dia-a-dia como escrever o próprio nome, pegar um ônibus ou tomar um remédio, mas que ao entrar na escola se deparam com uma infinidade de famílias silábicas, símbolos e desenhos que não fazem o menor sentido. A confusão é tanta que muitos não acreditam que um dia serão capazes de decifrar tantos códigos e acabam abandonando novamente a escola sobre o discurso de que: “Isso não dá mais para mim, minha cabeça já está cansada demais”. Nunca será demais defender um material didático que atrele o processo de alfabetização à conscientização, permeando-o por discussões e diálogos que deem voz ao aluno da EJA. Nunca será demais salientar que o material precisa ser visto como uma possível forma de ensinar e não como uma receita de bolo, porque, lembremos, mesmo seguindo a receita passo-a-passo o bolo poderá não sair como esperado. E nunca será demais enfatizar que o material didático deverá se adaptar ao aluno e não o contrário. Por tal razão o educador que conhece esse sujeito deve participar do processo de produção desse material e não somente as grandes editoras. Do que 68 adianta um livro de layout formidável cujo conteúdo em nada modifica o sujeito que dele se apropria? Se nossos alunos estão indo a escola para aprender a pegar o ônibus, é hora de fazer do ponto de ônibus nossa sala de aula, é hora de dar um olhar prático ao processo de alfabetização. Afinal, já passou o momento de dar um novo sentido as aulas de EJA, e esse novo sentido começa ressignificando os materiais didáticos utilizados nesse espaço. E para enfatizar tal defesa recorrerei a uma frase clichê, mas cuja essência é a mais pura verdade: “alfabetizar é muito mais do que repetir fonemas, é pensar e discutir problemas”. A característica principal da educação libertadora encontra-se em sua essência: problematizadora, isto é, não deve trazer certezas ou verdades acabadas e muito menos suscitar segurança, mas procurar levantar problemas e provocar conflitos transformadores. (AZEVEDO, 2010, p. 03). Inserir nossos alunos num processo contínuo de descobertas, diálogos e informações se faz condição indispensável para uma educação humana. E uma educação desse tipo tem início na medida em que nossos alunos possuem acesso a um material didático que lhe reconhece enquanto cidadão de direitos, que não é mais uma criança e que, portanto, precisa ser pensado enquanto um sujeito que possui suas particularidades. Trançar políticas de direito com os sujeitos a quem são devidas essas políticas tem sido o desafio maior de gestores e de forças organizadas da sociedade, o que significa levar em conta saberes cotidianos, prévios, quase sempre ignorados pelos espaços escolares institucionalizados, que encobrem experiências sociais, históricas, culturais, de classe, de sociedade, de professores e de alunos, evitando trançar histórias e trançar com elas saberes, conhecimentos, produzidos nessa vida cotidiana, formando redes que passam a emergir na realidade da escola como emergem na realidade da vida. (PAIVA, 2011, p. 15). Enquanto educadores comprometidos com uma educação popular de qualidade devemos nos adaptar e renovar constantemente diante das necessidades dos alunos, ao invés de deixar que eles se adaptarem às nossas ou às de quem quer que seja. [...] sobre as propostas dos programas governamentais para a modalidade de ensino EJA percebemos que existem muitas políticas que colaboram com as necessidades dos alunos do EJA, todavia não é evidenciada a prática dessas políticas dentro dos conteúdos programáticos dos livros didáticos. [...] tratando da realidade de ensino do EJA o que se vê são desvalorizações do modo como é conduzido o EJA e a forma como se tenta adequar sua realidade aos parâmetros curriculares que já estão postos em todo o país. Portanto é necessário romper com tais 69 paradigmas e reconhecer que o EJA tem peculiaridades importantes e que devem ser respeitadas. Compreendemos que o Livro Didático do EJA deve apresentar conteúdos próximos dos sujeitos. Ou seja, deve apresentar um sentido para o educando quanto ao conteúdo que será ministrado. Para isso se faz necessária flexibilidade quanto a faixa etária e ano de ensino. (GOMES et al, 2014, p. 10). Nesse sentido, as respostas dos alunos ao material didático que utilizamos em sala é o retorno que precisamos para repensar todo processo de aprendizagem e propor algo que verdadeiramente lhes atenda. 2.1. EJA e Filosofia: estabelecendo um novo olhar sobre a produção de Materiais Didáticos “Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram fora de. Sempre estiveram dentro de. Dentro da estrutura que os transforma em ‘seres para outro’. Sua solução, pois, não está em ‘integrar-se’, em ‘incorporar-se’ a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazerse ‘seres para si’.” Paulo Freire O material didático deve ser um facilitador, um ilustrador das palavras do professor e dos alunos. Nessa perspectiva, reconhecer o sujeito da EJA em sua particularidade faz todo o sentido, é preciso enxergá-lo como cidadão que tem no material didático de boa qualidade seu direito a educação efetivado. Da recuperação de tempo perdido chega-se à concepção de direito, englobando o saber ler e escrever como condição de busca de igualdade, às concepções de promoção de cidadania, pela tomada de consciência de direitos de várias sortes. (PAIVA, 2006, p. 04). E é nesse cenário que propomos um olhar filosófico sobre a produção de material didático para jovens e adultos, especialmente os das classes de alfabetização. Defendemos a introdução de temáticas filosóficas como norteadoras de discussões em turmas de alfabetização da EJA acreditando que as mesmas podem não só dar sentido ao que será ensinado nessas turmas como introduzir uma área do conhecimento obrigatória somente no Ensino Médio. Nunca apenas dissertar sobre ela e jamais doar-lhe conteúdos que pouco ou nada tenham a ver com seus anseios, com suas dúvidas, com suas esperanças, com seu temores. Conteúdos que, às vezes, aumentam estes temores. Temores de consciência oprimida. Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. [...] Por isso mesmo é que, muitas vezes, educadores e políticos falam e não são entendidos. Sua linguagem não sintoniza com a situação concreta dos 70 homens a quem falam. E sua fala é um discurso a mais alienado e alienante. (FREIRE, 2011, p. 120). Atualmente não é possível encontrar no mercado materiais didáticos que façam essa articulação entre alfabetização e Filosofia. Portanto, o que estamos colocando em discussão é a possibilidade de pensar um material capaz de promover reflexões filosóficas em turmas de alfabetização sem que para isso seja necessário sacrificar o processo de aprendizagem da classe, muito pelo contrário. A Filosofia entraria nesse cenário como norteadora das discussões desencadeadas, dando sentido e contextualização ao ato de aprender a ler e escrever. Se o processo de alfabetização é uma prática com compromisso social não pode se dar em meio a um vazio de significados. Muitas editoras ao produzirem livros didáticos para EJA readaptam os conteúdos de um livro produzido para o Ensino Regular em um layout mais atrativo e “aparentemente” contextualizado. Mudam-se as gravuras, os textos, mas a essência continua a mesma: um material voltado à realidade infantil. Nesse cenário o estudante da EJA é generalizado como sendo “aquele que ficou fora da escola e consequentemente do mundo”, suas experiências são apagadas, os saberes adquiridos no cotidiano dão lugar a um conteúdo fechado onde os conhecimentos advindos da língua Portuguesa e Matemática apresentam-se como os únicos de possível compreensão e utilidade, não dando espaço para o diálogo com as outras áreas do conhecimento. O que dizer então da Filosofia? Sua introdução nas classes de alfabetização não entra nem em pauta, pois é vista como complexa demais até para os alunos do segundo grau, quem dirá para a alfabetização. Impensável! Filosofia é para ser ensinada na academia, admitindo-se sua iniciação no Ensino Médio. Esse é o discurso em voga até mesmo no plano legal. E quando a ela se recorre durante as etapas anteriores de ensino, com exceção do Ensino Médio, a tendência é “mascarar” a informação, sobre pena de sofrer crítica dos mais conservadores, tanto que ao analisarmos os cadernos de EJA (2006) disponíveis no site do MEC para o Ensino Fundamental, o Mito de Sísifo, bem como a temática “Tempo livre — ócio criativo?” são apresentados no caderno de História. Apesar de o caderno representar um avanço no sentido de introduzir temáticas filosóficas no processo de ensino-aprendizagem de jovens e adultos do Ensino 71 Fundamental, é notória sua subordinação ao intitulado currículo mínimo que não prevê que se ensine Filosofia a esse público. Por tal razão, essas temáticas são agrupadas como sendo da História, disciplina que faz parte do currículo do segundo segmento do Ensino Fundamental. Perdeu-se, entretanto, a oportunidade de valer-se da Filosofia de forma mais significativa durante a utilização desses cadernos, ambientando os alunos sobre sua existência e importância. Anulou-se a possibilidade de proporcionar a esses jovens e adultos o diálogo com pensadores da Filosofia que trabalham temáticas relativas ao trabalho e ao tempo livre como Karl Marx e Theodor Adorno. Por tal razão, todo e qualquer material didático não pode ser tomado como roteiro a ser seguido pelo professor, sob pena de apagar fontes de conhecimento que outros podem não julgar importantes. O material didático é um instrumento facilitador, que direciona os caminhos da aprendizagem, mas jamais será seu único norteador. A LDB n. 9394/96, em seu artigo 4º, inciso VII faz menção aos programas de apoio ao material pedagógico: “O dever do Estado com a educação escolar pública será efetivado mediante garantia de atendimento do educando no Ensino Fundamental, por meio de programas suplementares de material didático [...] (BRASIL, 1996, p. 3). Com base no artigo 4º, não é difícil compreender a responsabilidade do Estado para com os alunos das escolas públicas do Brasil, levando em consideração que o livro didático constitui material necessário para o processo ensino-aprendizagem. Porém, o livro não deve ser considerado como única fonte de conhecimento disponível para o educando, mesmo sendo utilizado didática e corretamente em sala de aula, pois o professor deve ter consciência da necessidade de um trabalho diversificado e, para tanto, é preciso buscar, em outras fontes, informações ou conteúdos que venham a complementar e enriquecer o livro didático”. (VERCEZE; SILVINO, 2008, p. 339). O material didático se constitui em um direito de todo e qualquer estudante. Dessa forma, devemos entendê-lo como um elemento fundamental da atuação políticopedagógica e saber que por detrás de suas páginas estão em disputa diferentes propostas e concepções sobre EJA cabendo ao educador acatá-las ou defender a sua, a qualquer preço. A educação escolar se caracteriza pela mediação didático-pedagógica que se estabelece entre conhecimentos práticos e teóricos. Dessa forma, seus procedimentos e conteúdos devem adequar-se tanto à situação específica da escola e ao desenvolvimento do aluno quanto aos diferentes saberes a que recorrem. Surge, assim, a importância do livro didático como instrumento de reflexão dessa situação particular, atendendo à dupla exigência: de um lado, os procedimentos, as informações e os conceitos propostos nos manuais; de outro lado, os 72 procedimentos, as informações e conceitos que devem ser apropriados à situação didático-pedagógica a que se destinam. (VERCEZE; SILVINO, 2008, p. 339). Tendo em vista que o objetivo do material didático é justamente tornar o processo de aprendizagem mais concreto, dar vida às palavras do professor, por assim dizer, a maneira como esse educador recebe e se vale desse material em sua prática docente, muito interessa a uma análise precisa de como estão sendo utilizados em sala de aula. Melhor dizendo, se são concebidos como instrumento ou como finalidade da aprendizagem. Se vistos como “instrumento” serão concebidos como elementos organizadores do conteúdo, facilitadores da aprendizagem, dinamizadores da aula e mediadores da aprendizagem, dentre outros atributos. Já enquanto “finalidade” passam a ser centro do conhecimento, instrumentos da verdade, portanto os únicos detentores do saber. Nesse panorama, o professor perde sua autonomia sobre o processo de ensino-aprendizagem, deixando ele próprio de ser um material didático, enquanto facilitador e mediador da aprendizagem, e passa a ser um tutor que apenas auxilia na compreensão do material utilizado. Por isso nossa insistência na instauração de um novo olhar sobre a produção e utilização de materiais didáticos, aqui em especial para a EJA, mostrando o quanto se faz relevante incluir a Filosofia nesse novo olhar sobre as produções destinadas aos jovens e adultos. Obviamente, outras áreas do conhecimento tem muito a contribuir nessa missão, porém, a Filosofia em particular pode fortalecer o viés dialógico que esse tipo de material precisa resgatar. Negando o processo dialógico, que de certa forma já lhe é inerente por ser um discurso, o material didático instaura-se como prática cristalizada, fechada para o homem e para o mundo a sua volta. Nessa perspectiva, ao invés de auxiliar, acaba por comprometer a autonomia docente e discente, justamente o que Paulo Freire nos propõe evitar. [...] Paulo Freire, partindo de um simples método de alfabetização de adultos, apresenta um ideal filosófico a ser seguido, refletido, questionado e buscado: o diálogo é capaz de criar vínculos de libertação e possibilitar o acesso a uma consciência clara e objetiva no tocante à realidade. (AZEVEDO, 2010, p. 02). Nesse ponto arriscamo-nos até a supor que simbolicamente o material didático, quando fechado à criticidade, estará a serviço da docilidade, vigiando e controlando a aprendizagem, a tecnologia do poder na concepção de Foucault empregando a funcionalidade do saber a serviço do poder. 73 Em momentos atuais não são raros os materiais didáticos produzidos para moldar a prática docente e discente visando à eficácia em provas que garantem bonificação aos estabelecimentos escolares ou ingresso nas mais renomadas universidades. Raros também não serão os casos de notas baixas pelo fato de a resposta dada em uma prova não corresponder exatamente ao que estava escrito no livro — ou seja, punição exercida sobre o indivíduo para corrigir uma conduta errada: a de não dar sua resposta com base na do autor do livro, retificando o pensamento de Foucault de que: Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade: isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir entre sentenças verdadeiras e falsas, os meios pelos quais cada um deles é sancionado; as técnicas e procedimentos valorizados na aquisição da verdade; o status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta como verdadeiro. (FOUCAULT, 1993, p.131). O fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, mantêm sujeito o indivíduo disciplinar. E o exame é a técnica pela qual o poder, em vez de emitir os sinais de ser o poderio, em vez de impor a sua marca aos seus súditos, capta-os num mecanismo de objetivação. (FOUCAULT, 2002, p.156). Por tal razão, um olhar filosófico sobre a elaboração desses materiais se faz tão urgente na tentativa de bloquear a perpetuação e padronizações de materiais didáticos que em nada colaboram para criticidade do aluno, pelo contrário, o moldam numa perspectiva puramente dócil e behaviorista. O intuito desse trabalho é justamente mostrar ao professor de EJA que ele pode e deverá ser, juntamente com seus alunos, autor e co-autor dos materiais didáticos que utiliza em sala. Dialogar com o material didático utilizado é uma maneira de questionar os conhecimentos colocados, propondo e contrapondo informações por meio da troca num questionar constante dos conceitos que lhe são apresentados como naturalizados. É por pensar assim que sugerimos um material didático, direcionado a turmas de alfabetização da EJA, que traga a perspectiva filosófica como mediadora do processo de aprendizagem da leitura e escrita. No caso dessa dissertação, as oficinas Filosóficas realizadas com os alunos da EJA em fase de alfabetização em Angra dos Reis serão disponibilizadas por meio de um caderno com propostas de como realizar a inserção filosófica nessa modalidade e de como valer-se da Filosofia em um processo alfabetizador, de maneira a tornar esse momento mais reflexivo. Frases do tipo “mamãe é bonita”, não fazem parte do contexto desses alunos. Revê-las, propondo novas formas 74 de significar a alfabetização na Educação de Jovens e Adultos é o que pretendemos por meio da incorporação de temáticas geradoras oriundas de discussões de cunho reflexivo, trabalhando com frases e conceitos filosóficos como norteadores da aprendizagem. 2.2. Alfabetizar a partir do conceito felicidade: um sentido mais humano ao ato de aprender a ler e escrever “Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido; na verdade, bem poucas pessoas levariam a sério. Seria menos higiênico. Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios. Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos imaginários.” Nadine Stair Ao tratar de alfabetização várias são as questões que nos inquietam: é possível alfabetizar letrando? Qual método devo utilizar? Como fazer para que meu aluno compreenda o que está lendo? Dentre outros questionamentos que nos atravessam enquanto educadores comprometidos com a aprendizagem de nossos alunos. Se as interrogações já são inúmeras em se tratando da alfabetização de crianças, onde podemos nos valer de diversos recursos como jogos e brincadeiras para ludificar o ensino, imaginemos quando o desafio nos parece ainda maior: alfabetizar jovens, adultos e idosos. Temos que concordar, essa tarefa não é nada fácil. E dependendo do método e concepção de alfabetização que adotarmos será ainda mais difícil, dado que: Concepções de alfabetização são desafios, ainda, a enfrentar, pela forma como educadores se formaram, crendo que, porque ensinam, os sujeitos aprendem. Quando estes não aprendem, a “culpa” é atribuída aos próprios sujeitos, não cabendo responsabilidade aos professores. Saberes e conhecimentos produzidos fora da escola têm pouca chance de serem considerados, sistematicamente negados em situação de aprendizado da leitura e da escrita. (PAIVA, 2006, p.04). Talvez essa seja a razão pelas quais muitos educadores acabam recorrendo a métodos tradicionais e reproduzindo a metodologia e os materiais didáticos que adotam com as crianças para alfabetizar jovens e adultos: desenhos, corte e colagem, repetição e cópia de sílabas em cadernos de caligrafia, tabelas com famílias silábicas para 75 decorar, dentre outros. Mas será possível alfabetizar esse público valendo-se desse tipo de materiais didáticos? Possível é, mas presumimos não ser o mais significativo e apropriado, pois se temos a opção de tornar a passagem desses jovens e adultos pela escola algo prazeroso e ao mesmo tempo carregado de sentidos por que não fazê-lo? É nessa direção que estamos tentando promover reflexões sobre a necessidade de ressignificar o processo de alfabetização nas turmas de jovens e adultos, partindo para tanto, de uma perspectiva que traz como tema gerador e norteador da aprendizagem o conceito filosófico da FELICIDADE, conceito esse aparentemente inerente ao ser humano, levando em conta que, desde Aristóteles, a felicidade tem sido concebida como o bem maior que todos buscam. Nossa proposta visa ofertar aos alunos da EJA em fase de alfabetização, na Escola Municipal Raul Pompéia de Angra dos Reis, uma experiência de inserção filosófica durante o processo de ensino-aprendizagem da leitura e escrita. Como salientado anteriormente, o intuito é partir da felicidade enquanto conceito, e não apenas palavra, para propor experiências filosóficas que atribuam novos sentidos ao momento de alfabetização. Nessa perspectiva, procurou-se observar como vem se dando o processo de alfabetização desses alunos, dando destaque a existência ou não de práticas contextualizadas e dialógicas de ensino e principalmente os materiais didáticos utilizados em aula, de maneira a descobrir o quanto os mesmos despertam ou não a motivação dos sujeitos envolvidos nesse processo. Outro ponto que se procurou observar foi o lugar das práticas e atitudes filosóficas nessa experiência de alfabetização, ou seja, se nesse espaço de aprendizagem ocorreram ao menos uma vez atividades reflexivas e críticas que levassem os alunos a pensarem sobre si ou sobre o mundo. A fase de observação da pesquisa na turma em que se aplicaram as oficinas filosóficas revelou, aparentemente, um processo de alfabetização linear, com poucos momentos diálogos e reflexivos, realidade que parece ser uma constante nas turmas de alfabetização de EJA, e que de certa forma justifica propostas como a apresentada nessa dissertação, que procuram repensar o processo de alfabetização nas turmas de jovens e adultos. 76 Diante da realidade presenciada, essa pesquisa tentou descobrir se é válida a inserção da Filosofia em turmas de alfabetização da EJA como instrumento motivacional do processo de ensino-aprendizagem e ao mesmo tempo elaborar oficinas que possam futuramente auxiliar docentes nesse caminho de “Alfabetização Filosófica”. O desafio colocado foi o de sugerir atividades de aula com o auxílio da Filosofia. Como já dissemos, a Filosofia já se encontra presente nas turmas regulares do Ensino Médio, incluindo a modalidade EJA, e há também inúmeras experiências de Filosofia com crianças nas escolas, mas desconhecemos trabalhos com a Filosofia no âmbito da alfabetização de jovens e adultos, o que indica a relevância desse estudo. Diferentemente das cartilhas esquemáticas de outrora, mas que ainda são muito utilizadas, o caderno de iniciação filosófica, elaborado através das oficinas ofertadas, procurou trazer a reflexão e o diálogo como norteadores, de maneira a permear de sentidos o processo de alfabetização e ainda oferecer-lhe momentos de experiências filosóficas, às quais muitos, pela avançada idade ou mesmo pela falta de pretensão em chegar ao Ensino Médio, não teriam acesso durante a vida. Num resgate ao método socrático de conhecer a ti mesmo, o intuito desse material não é introduzir conteúdos filosóficos destinados ao Ensino Médio na alfabetização, mas sim valer-se da essência desse conhecimento para despertar nesses alunos a vontade de aprender e descobrir coisas novas sobre si, sobre a vida e sobre o mundo, ou seja, despertar neles um movimento perene de cultivo ao conhecimento e de contemplação ao bem, ao belo e a verdade. Se essa experiência dará certo? Só descobriremos com o tempo, mas numa coisa é preciso acreditar: mal algum há de fazer. Assim, as propostas de trabalho que aqui serão apresentadas tentaram ir ao encontro do que entendemos por uma educação reflexiva, portanto, aberta a modificações e reformulações, de maneira a atender, da melhor forma possível, o público-alvo ao qual se destinou. Essa experiência serviu de grande valia para confirmar algo que já nos parecia evidente: o de que as discussões desencadeadas sobre o ensino na EJA estão muito longe de terminar e de que muito ainda há que ser discutido, proposto e realizado no que diz respeito à produção de materiais didáticos voltados a Educação de Jovens e Adultos. Apesar de a resolução 51/2009 representar um avanço ao tratar sobre o Plano Nacional do Livro Didático para Educação de Jovens e adultos 2013/2014, é preciso reconhecer que ainda há muito que fazer, haja vista que o que vem sendo presenciado 77 e produzido nas e para as aulas dessa modalidade mostra-se, constantemente, muito aquém da realidade do aluno da EJA. Esse panorama nos traz a convicção de que escutar os docentes no processo de produção desses materiais e pensar o sujeito que o usufruirá são pontos fundamentais para uma reflexão saudável sobre sua confecção. Caso contrário, em muitas escolas, esses materiais não sairão do armário por não serem condizentes com o público e a realidade a qual se destinam, isso quando existirem, já que são raras as turmas da EJA que possuem materiais didáticos à disposição. Sendo assim, é preciso propor novos rumos, olhares e formas de se trabalhar com EJA de maneira a retomar muitas das perspectivas de Freire que atreladas ao espírito filosófico darão sentido ao que se propõe ensinar. Os materiais didáticos pensados para a modalidade aqui discutida devem estar abertos ao diálogo com as experiências e saberes trazidos pelos alunos. Precisam ressignificar vivências atribuir sentidos ao que é aprendido e principalmente considerar, isto é, por em evidência o sujeito ao qual se destina. Portanto, esse texto não se pretende acabado, mas em construção. Para alguns ele propõe algo impraticável ao aproximar duas temáticas que se constituíram distintamente: Alfabetização e Filosofia. Para outros é inovador, mas ao mesmo tempo desafiador. Nesse sentido, nossas convicções, ou seja, o lugar de onde falamos, poderá despertar a dúvida sobre a possibilidade de um analfabeto filosofar. Convicções à parte, defenderemos a segunda opinião, pois “uma vida sem desafios não vale a pena ser vivida”, como nos diria Sócrates, e se tratando da EJA o desafio coloca-se a cada instante. 78 Capítulo 3 - Metodologia da Pesquisa: Uma classe de alfabetização da EJA como lugar de experiências filosóficas “A emancipação é à saída da minoridade. Mas só se sai da minoridade social por si mesmo. Emancipar os trabalhadores não é apresentar o trabalho como princípio fundador da nova sociedade, mas fazê-los sair do estado de minoridade [...]” Rancière Imagine-se por um instante imerso em uma realidade na qual os códigos a sua volta não lhe dizem nada. Em que muitas das formas de comunicação existentes são incompreensíveis aos seus olhos, confusas e distantes. Nesse contexto, o mais incomum é que esse local não lhe é estranho, pelo contrário, você cresceu nele, viu e reviu esses códigos, porém, não consegue decifrá-los. Pode até não lhe parecer familiar, mas esse mundo existe e é habitado pelas pessoas que em pleno século XXI — em meio às tecnologias mais surpreendentes — não sabem ler e escrever. Essa é a sociedade dos que por décadas estiveram apartados de um direito que lhes é inerente, o de ser alfabetizado. Um lugar ocupado pelos que estiveram à margem dos espaços sociais, mantidos na periferia da sociedade, passíveis a tudo que lhe dizem, sem vez e sem voz no mundo. Realidade lamentável, pois saber ler e escrever são requisitos indispensáveis não apenas para o exercício da cidadania, como também para uma plena existência na sociedade. Afinal, sabemos o quão importante é ser alfabetizado para a sociedade, e não é exagero salientar que o surgimento das modernas civilizações está estreitamente relacionado ao código escrito, sobretudo com a invenção da imprensa, o que ainda hoje regula, em grande medida, nossas vidas, ações e também relações, sejam estas de poder ou de dominação. Nesse sentido, potencializar o processo de apropriação da leitura e da escrita nas classes de alfabetização de EJA se faz urgente, visando a oportunidade de aprender, ensinar, viver novas experiências, refletir, transformar e realizar. Mas, para tanto, é necessário reconhecer as particularidades do estudante da EJA, um aluno que ao contrário da criança, conhece a falta da leitura e escrita em sua vida, já sentiu vergonha, tristeza e às vezes dor pela discriminação de não saber escrever seu próprio nome. Que se viu dependente de terceiros para realizar atividades simples como tomar remédios, ir ao banco ou escrever um bilhete. Enfim, não estamos falando de uma 79 pessoa qualquer, e sim de sujeitos marcados pelo estigma do fracasso, da infelicidade e da incompetência em meio à aparente superioridade do mundo letrado. São homens e mulheres que sentem vergonha em assumir sua falta de escolaridade, que se culpam por não saberem ler e escrever e que se concebem inferiores, dignos apenas de trabalho servil. Ao tratar o conceito de “estigma” Goffman deixa em evidência a proximidade entre atributos e estereótipos, a sociedade está sempre ditando a maneira como devemos ser e nos portar. Situação essa que identificamos como algo natural também para a leitura e escrita, já que para nós ler e escrever são faculdades quase que inerentes aos seres humanos, exceto quando bem pequenos, em fase de aprendizagem. Conceber que um homem possa ser analfabeto na fase adulta parece impraticável, remete a um retrocesso que a sociedade atual prefere manter à relativa distância. Suavizar a falta de escolarização recai como uma solução menos dolorosa. Goffman nos auxilia a entender que em sociedade agimos de maneira a suavizar ou reforçar os estigmas, muitas das vezes até tentando ignorar sua existência, mesmo que em nossas ações deixemos claro que o portador do estigma é inferior. Esse tipo de pensamento pejorativo reforça uma conduta de mascaramento do estigma por parte de seu detentor — que, desprezado, tenta sobreviver em meio à perversidade social. [...] As atitudes que nós, normais, temos com uma pessoa com um estigma, e os atos que empreendemos em relação a ela são bem conhecidos na medida em que são as respostas que a ação social benevolente tenta suavizar e melhorar. Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida [...] (GOFFMAM, 1988, p.8). É nesse contexto que a entrada na escola se coloca como uma tentativa de quebrar as “máscaras sociais” (GOFFMAM, 1988) criadas pelos sujeitos da EJA para suportar a vida em uma sociedade que diariamente o reprime pelo seu analfabetismo. Essas posturas fantasiosas, tidas como máscaras, surgem em razão da dor causada pelos anos imersos em uma situação de apartamento social. Não será raro, tal como postula Silva (2004), vermos analfabetos concentrados enquanto supostamente “leem” um jornal ou colocando a culpa da impossibilidade de ler na falta dos óculos. Isso reflete uma conduta de fuga, encobrimento, da sua identidade social real, já que: 80 Os padrões que ele incorporou da sociedade maior tornam-no intimamente suscetível ao que os outros veem como seu defeito, levando-o inevitavelmente [...] a concordar que, na verdade ele ficou abaixo do que realmente deveria ser. (GOFFMAM, 1988, p.10). [...] quando a diferença não está imediatamente aparente e não se tem dela um conhecimento prévio (ou, pelo menos, ela não sabe que os outros a conhecem), quando, na verdade, ela é uma pessoa desacreditável, e não desacreditada, nesse momento é que aparece a segunda possibilidade fundamental em sua vida. A questão que se coloca não é a da manipulação da tensão gerada durante os contatos sociais e, sim, da manipulação de informação sobre o seu defeito. Exibi-lo ou ocultá-lo; contá-lo ou não contá-lo; revelá-lo ou escondê-lo; mentir ou não mentir; e, em cada caso, para quem, como, quando e onde. (GOFFMAM, 1988, p. 38). Portanto, ao entrar em uma turma de EJA, após anos em exclusão social, o estudante já traz consigo a marca do fracasso escolar. São os “repetentes”, “evadidos”, “com dificuldade de aprendizagem”, “defasados”, “sem futuro”, “portadores de subempregos” “rejeitados” e tantos outros “sujeitos”, menos os sujeitos que realmente são: cidadãos em processo de aprendizagem. A “cicatriz” do fracasso é tão profunda que nem os próprios alunos acreditam em si mesmos. Adentrando uma sala de alfabetização de EJA fica fácil exemplificar essa realidade, nessas turmas um dos adjetivos mais utilizados para referir-se a si mesmo é a palavra “burro”. Frases do tipo “eu sou burro demais pra isso”; “eu sou um burro, não consigo”; “nós somos burros mesmos professora”; “burro velho é o pior que tem” dentre outras, são práticas comuns entre os alunos e já aparecem no cotidiano naturalizadas pelos estigmas internalizados ao longo dos anos. E um dos maiores males do estigma naturalizado está justamente na diminuição da autoestima que abala a confiança em si mesmo. Portanto, é demasiado inocente o educador que acredita poder apagar marcas de exclusão social de anos a fio em apenas poucas aulas de cuspe e giz. A experiência escolar, para os sujeitos excluídos, requer repensar práticas de exclusão, derrubar estigmas e construir autonomia, avaliando os impactos que o ato de aprender a ler e escrever representa nas vidas desses alunos. Nesse sentido, se por um lado a exclusão precoce das escolas, que vitima e estigmatiza os sujeitos da EJA, nos desanima da crença por uma mudança efetiva na educação, por outro, apesar das dificuldades encontradas, é a reinserção dessa população humilhada nas escolas — buscando formação escolar e profissional — que nos impulsiona a continuar remando frente às correntezas sociais. 81 No processo de alfabetização para jovens e adultos, “remar contra as correntezas” requer criatividade diária. É preciso colocar em pauta novas formas de alfabetização, novas maneiras de ensinar a ler e escrever e, principalmente, construir novos sentidos para a inclusão do sujeito em uma classe de alfabetização da EJA. Dentro dos ideais de democracia, garantir o direito à educação aos jovens e adultos exigirá uma reconfiguração mais pública da EJA. Este direito poderá ser consolidado se levadas em contas as formas de existência populares, os limites de opressão e exclusão, as escolhas a que estes indivíduos são, diariamente, forçados a fazer. Por exemplo, a constante escolha entre estudar ou sobreviver. (THEES, 2012, p.3738). Uma retrospectiva pela história da EJA nos permitirá compreender que os programas de alfabetização voltados a esse público sempre foram alvo de políticas de governo descontinuadas e desarticuladas, sem investimentos suficientes e credibilidade. Não é novidade para nenhum professor alfabetizador que durante décadas as práticas de alfabetização, incluindo as direcionadas ao público adulto, estiveram, em grande medida, mergulhadas na competência técnica de decodificação e codificação da língua escrita, e que, mesmo após anos de luta de importantes grupos de profissionais dedicados à EJA, a realidade na maior parte do país continua, em grande medida, a mesma - de maneira que a metodologia se mantém intacta, com o som e a grafia ocupando o lugar de destaque das lousas e apostilas de alfabetização. Em grande parte desses espaços, os únicos ruídos ouvidos são os oriundos da ponta do lápis quebrada facilmente diante da mão calejada que o aperta fortemente na tentativa, desesperadora, de escrever qualquer palavra que lhe é apresentada, no sentido de que muitas das vezes as aulas se resumem ao BA-BE-BI-BO-BU. Outras a grafia e leitura descriminada de palavras como lata e papai. Nessa perspectiva, a EJA assume-se como uma atividade compensatória para pessoas que não foram para escola quando crianças, mas que necessitam aprender como se assim as fossem. O sentido se perde em tantas consoantes e vogais, de maneira que compreender que o tempo não volta mais se torna difícil até mesmo para o educador. Nesse contexto, o fenômeno da culpabilidade ganha destaque na vida desse aluno — interiorizando ainda mais os estigmas que carregava como analfabeto do século XXI. O insucesso é deslocado para si próprio, excluem-se as responsabilidades governamentais para com sua aprendizagem e permanência na escola, anula-se seu 82 direito a uma educação comprometida com suas especificidades. Algo lamentável, pois como orienta o PARECER CNE/CEB 11/2000 — que estabeleceu as Diretrizes para a Educação de Jovens e Adultos por meio do relator Carlos Roberto Jamil Cury, a especificidade do aluno da EJA é algo que não pode, em hipótese alguma, ser ignorada (THEES, 2012). “A EJA, de acordo com a lei 9394/96, passando a ser uma modalidade da educação básica nas etapas fundamental e médio, usufrui de uma especificidade própria que, como tal deveria receber um tratamento consequente.” (BRASIL, 2000, p. 2 apud THEES, 2012). A especificidade encontrada na EJA se traduz na sua heterogeneidade inata — que é oriunda do local de origem de seus sujeitos, da maturidade, da religião, da experiência profissional, do gênero, da raça, da orientação sexual, dos conhecimentos prévios adquiridos e de tantos outros aspectos que contribuem de forma grandiosa para o desvendamento dos saberes encontrados em sala — saberes esses que se criam e recriam em meio uma enorme diversidade de pensamentos — ;uma variedade que não pode cair no esquecimento. Nesse contexto, o papel do estado na garantia de uma educação que faça valer a voz e a vez do estudante da EJA, aqui em destaque daquele que se encontra em fase de alfabetização, é de fundamental importância, pois estamos tratando de um direito que redefine a vida desse cidadão. Até que ponto o governo empenha-se em fazer valer o direito educacional para qualquer cidadão, independentemente de sua idade? Em qual plenitude ele auxilia na conquista de uma educação mais próxima da vida do trabalhador? Paiva (2014, p. 89) nos ajuda a pensar essas questões, quando afirma que: O poder público/ seus dirigentes não oferecem acesso à maior parte da população, não garantem a permanência para cursar com êxito e concluir os estudos com qualidade, e nem tem a EJA entre prioridades de governo, repetindo a história de interdições, sem que qualquer cobrança lhe seja feita, nem por parte do Ministério público, que deveria zelar pelos direitos da cidadania. É possível afirmar que a educação de jovens e adultos, apesar de ter conquistado espaço no campo legal, nas práticas políticas, no cotidiano, ainda não é reconhecida como direito da população, nem dever do Estado de qualquer esfera, para assegurá-lo. 83 3.1. Repensando os espaços de alfabetização para jovens e adultos “Consegue-se ver um outro mundo, porque se teve a coragem de pensar sua possibilidade.” E.Garin Enquanto a assinatura a rogo continua a vigorar, o estudante da EJA aprende a se contentar com a educação que lhe é ofertada, e que acredita ser a melhor, empenhando-se muitas vezes para aprender, ainda que em meio ao cansaço e inúmeras dificuldades de um aluno trabalhador — que precisa vencer todos os dias os desafios impostos por uma sociedade letrada. Em meio a esses obstáculos, frequentemente a evasão falará mais alto, contribuindo para uma nova exclusão social, que já nasce marcada pelo estereótipo do “fracasso”. Se, por um lado, a produção de bons materiais didáticos4 voltados à Educação de Jovens e Adultos, elaborados em sua maioria pelo Ministério da Educação e pelas secretarias de educação, bem como as inúmeras produções acadêmicas, muitas acessíveis pela internet, representam um enorme avanço na construção de metodologias mais coerentes com a realidade da EJA; por outro lado, poucos são os materiais que, em nível de alfabetização, extrapolam o âmbito da língua Portuguesa e da Matemática explorando outras áreas do conhecimento. Nesse contexto, pode-se afirmar que a tentativa de propor uma articulação da alfabetização com outras áreas do conhecimento — “dignas de anos mais avançados” — representa uma novidade no campo de estudo da EJA. Acreditamos que tal articulação poderá ser de suma valia no processo de reconstrução dos sentidos da alfabetização na EJA. Cabe aos educadores repensar os usos dos conhecimentos de alfabetização apresentados aos alunos — que não deverão reaplicar metodologias infantilizadas, mas, muito pelo contrário, buscar a formação de escritores e leitores autônomos, que se faz em meio ao diálogo contínuo com o mundo, com os alunos e com as mais diversas áreas do conhecimento. Grandes defensores e estudiosos da Educação popular como Paulo Freire, Osmar Fávero, Jaqueline Ventura, Jane Paiva, dentre outros, trazem em seu discurso um forte viés filosófico que não encontramos rotineiramente nas práticas docentes. No 4 Entendemos por bons materiais didáticos aqueles que pesam a especificidade do público ao qual se destinam, ou seja, os que efetivamente conseguem estabelecer diálogo entre docente e discente, abarcando problemáticas reais e trazendo possíveis reflexões sobre as mesmas. Um material de boa qualidade permite ao aluno pensar sobre suas postulações ao invés de trazer “conceitos fechados”, propõe a criatividade e a criticidade ao passo em que agrega conhecimento e compartilha produções do saber. 84 entanto, cabe uma reflexão sobre a possibilidade de fazer valer as correntes e ideais filosóficos, que praticamente deram origem ao pensar contemporâneo e a defesa de uma educação mais democrática, nos espaços de alfabetização voltados aos jovens e adultos. Nesse sentido, o ensino de Filosofia — que somente conquistou lugar nos currículos escolares em 2008, ficando restrito ao Ensino Médio - apesar das limitações impostas pelos currículos escolares, poderá desencadear um conjunto de possibilidades para uma alfabetização voltada ao pensar crítico. Embora, ainda não haja pesquisas que apontem a ocorrência de benefícios ao processo de alfabetização oriundo da inserção da prática filosófica no fazer alfabetizador, há de se convir que um conhecimento que tanto fundamentou reflexões sobre o direito a uma sociedade melhor, a educação e ao pensar coerente, não poderá trazer malefícios consideráveis à prática docente a ponto de barrar uma iniciativa de alfabetização filosófica que pretende iniciar o contato de estudantes da EJA, em fase de alfabetização, com a Filosofia e suas variadas maneiras de instigar o pensar reflexivo. É justamente isso que estamos tentando descobrir ao provocar o encontro entre a pesquisa acadêmica e o cotidiano escolar. Nesse panorama, ao levar a Filosofia até alunos da classe de alfabetização da EJA buscamos nos aproximar dos sujeitos aos quais esse estudo se direciona, garantindo-lhes voz na produção dessa pesquisa. Pois, como dito, o objetivo principal dessa pesquisa é verificar os benefícios da introdução da Filosofia no processo de alfabetização de jovens e adultos, ou seja, se é válida essa introdução e, em caso positivo, apresentar sugestões de como proceder. Para tanto, pensamos que a inserção no campo na busca de resposta seja a forma mais coerente de verificar nossos pressupostos. Para tanto nos valemos de Goffman (2002, p.13) que salienta a relevância da situação social enquanto cenário de pesquisa, ressaltando a importância de observarmos a situação social engendrada na comunicação face a face. Para ele, uma situação social é como um ambiente com mútuas possibilidades de monitoramento, ou seja, o indivíduo se encontra acessível aos sentidos de todos os outros que estão presentes — por isso acreditamos ser necessário ir até os sujeitos da EJA, conhecê-los e por fim aplicar o que propomos nesse trabalho, tendo em vista a dinamicidade do fenômeno educacional, cujo contexto social não pode ser ignorado. Cada vez mais se entende o fenômeno educacional como situado dentro de um contexto social, por sua vez, inserido em uma realidade 85 histórica que sofre toda uma série de determinações. Um dos desafios atualmente lançados à pesquisa educacional é exatamente o de tentar captar essa realidade dinâmica e complexa do seu objeto de estudo, em sua realização histórica. (LÜDKE; ANDRÉ, 2014, p.6). A observação direta permite também que o observador chegue mais perto da “perspectiva dos sujeitos”, um importante alvo nas abordagens qualitativas. Na medida em que o observador acompanha in loco as experiências diárias do sujeito, pode tentar apreender a sua visão de mundo, isto é, o significado que eles atribuem à realidade que os cerca e às suas próprias ações. (LÜDKE; ANDRÉ, 2014, p.31). Segundo Denzin e Lincoln (2006, p. 17) a pesquisa qualitativa assumiu diferentes perspectivas ao longo da história, no entanto é possível oferecer-lhe uma definição genérica, inicial, que, na visão dos autores em questão, pode ser considerada como uma atividade situada que localiza o observador no mundo. “Essas práticas transformam o mundo em uma série de representações, incluindo as notas de campo, as entrevistas, as conversas, as fotografias e os lembretes.” Assim, o pesquisador estuda seu objeto em seus cenários naturais numa tentativa de entender os fenômenos a partir dos significados que as pessoas os conferem. A natureza dos dados com que uma pesquisa qualitativa difere muito dos de base quantitativa. “Estes dados se apresentam como resistentes à conformação estatística. São os dados da experiência, as representações, as definições da situação, as opiniões, as palavras, o sentido da ação e dos fenômenos.” (DESLAURIERS; KÉRISIT, 2014, p. 147). Ainda segundo Denzin e Lincoln (2006, p. 17) por utilizarem uma ampla variedade de práticas interpretativas interligadas os pesquisadores que se valem da pesquisa qualitativa acabam sendo caracterizado como “bricoleur” ou “confeccionador de colchas” (Becker, 1998, p. 2 apud Denzin; Lincoln, 2006, p. 17), pois “utiliza-se de ferramentas estéticas e materiais de seu ofício, empregando efetivamente quaisquer estratégias, métodos ou materiais empíricos que estejam ao seu alcance.” construindo uma espécie de colchas com variadas informações. O pesquisador pode ser visto como um bricoleur, um indivíduo que confecciona colchas, ou, como na produção de filmes, uma pessoa que reúne imagens transformando-as em montagens. [...] Um bricoleur é um pau-para-toda-obra ou um profissional do faça-você-mesmo (LéviStrauss, 1966, p.17) [...] Existem muitos tipos de bricoleursinterpretativo, narrativo, teórico, político. O bricoleur interpretativo produz bricolage - ou seja, um conjunto de representações que reúne peças montadas que se encaixam nas especificidades de uma situação complexa. (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 17). 86 Nossa perspectiva de pesquisa qualitativa também será pautada na geração de dados e não em sua coleta, por entendermos que os dados de estudo são produzidos no desenvolvimento da pesquisa e não pré-existentes a ela, no sentido de que basta apenas a tarefa de coletá-los. Os fatos, os dados não se revelam gratuitamente aos olhos do pesquisador. Nem este os enfrenta desarmados de todos os seus princípios e pressuposições. Ao contrário, é a partir da interrogação que ele faz aos dados, baseada em tudo o que ele conhece do assunto – portanto, em toda a teoria disponível a respeito – que se vai construir o conhecimento sobre o fato pesquisado. (LÜDKE; ANDRÉ, 2014, p.05). É na tentativa de tentar responder as questões impostas por esse trabalho que nos colocamos enquanto pesquisadores no campo de trabalho — numa pesquisa que se propõe participante, ou participativa5 com o intuito de desenvolver uma observação participante sem perder, no entanto, o rigor do trabalho científico. Portanto, “é uma estratégia que envolve, pois, não só a observação direta, mas todo um conjunto de técnicas metodológicas pressupondo um grande envolvimento do pesquisador na situação estudada.” (LÜDKE; ANDRÉ, 2014, p.32). A escolha por uma pesquisa participante vinculou-se ao interesse de contribuir, mesmo que singelamente, com o processo de inserção da Filosofia nas classes de alfabetização da EJA. Pretendíamos um caminho de trabalho em equipe que envolvesse docentes e alunos na proposta de discutir felicidade numa perspectiva filosófica. Nesse sentido, o propósito principal foi mostrar aos docentes alfabetizadores da Escola Municipal Raul Pompéia que é possível filosofar com analfabetos, que é totalmente viável inovar as aulas de alfabetização com poucos recursos e dinamizar o processo de ensino aprendizagem por meio do pensar filosófico. E na tentativa de gerar dados de relevância, os sujeitos dessa pesquisa, como já dissemos: jovens e adultos em fase de alfabetização, foram a todo instante estimulados a perceberem a importância de uma pesquisa como essa, a fim de demonstrarem vontade de participar, colaborando para o alcance dos objetivos traçados. A escolha pelas oficinas com a temática felicidade deu-se, como já mencionamos, pela relevância desse conceito para a Filosofia, mas não somente para essa área do conhecimento, como para todos nós independente de raça, gênero ou 5 Para maior compreensão sobre pesquisa participante ler Carlos Brandão – Pesquisa Participante, Brasiliense, 1981. 87 renda. Acreditamos ser preciso considerar a possibilidade de pensar a felicidade nas escolas pela variedade de temáticas que podem ser trabalhadas por meio desse tema e pelos significados que essa palavra carrega no processo de desestruturação dos estigmas interiorizados nos sujeitos da EJA. 3. 2. Caminho percorrido na pesquisa “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende mais é só fazer outras maiores perguntas.” (Guimarães Rosa, in: Grande Sertão: Veredas) Como vimos, a questão principal desse estudo é investigar se a inserção da Filosofia nas classes de alfabetização da EJA poderá ou não tornar esses momentos mais dialógicos e reflexivos, contribuindo para um aprendizado mais participativo. Motivo pelo qual optamos por uma metodologia de pesquisa predominantemente qualitativa, embora alguns dados quantitativos não possam ser ignorados. Compreendemos a pesquisa qualitativa tal como Lüdke e André (2014, p. 20), para quem o estudo qualitativo “é o que se desenvolve numa situação natural, é rico em dados descritivos, tem um plano aberto e flexível e focaliza a realidade de forma complexa e contextualizada.” Segundo Bogdan e Biklen (1982, apud LÜDKE E ANDRÉ, 2014, p. 12), para um pesquisador participativo, o foco está no processo e não no produto. Portanto, não está entre nossos objetivos que os alunos sejam alfabetizados por meio da Filosofia, pois sabemos que isso não é possível dado o tempo curto de aplicação da pesquisa, mas verificar se inserindo a Filosofia nas aulas de alfabetização, por meio de oficinas filosóficas, estaremos ou não no caminho certo rumo a um ensino mais crítico e dialógico para jovens e adultos. Apesar da falta de literatura sobre outras experiências de pesquisas que vinculassem alfabetização e Filosofia mantivemos nosso foco em estudos sobre alfabetização na EJA e também nos relativos ao Ensino de Filosofia de modo amplo, tentando desenvolver propostas de atividades que pudessem articular essas duas temáticas de maneira a despertar o que cada uma apresenta de melhor. Procuramos, tal como indicam Lüdke e André (2014, p. 14), ao resgatarem os pensamentos de Bogdan e Biklen (1982) sobre pesquisa qualitativa, capturar a perspectiva dos participantes, ou seja, “a maneira como os informantes encaram as questões que estão sendo focalizadas.” 88 Desde o início da inserção no campo o intuito principal dessa pesquisa era realizar oficinas de caráter filosófico com os alunos da EJA, em fase de alfabetização, e gerar dados que pudessem responder algumas de nossas inquietações. Queríamos verificar na prática a resposta da turma aos questionamentos levantados e realizar uma análise detalhada de um caso individual, refletindo a relevância desse estudo. Assim, para viabilizar e registrar as situações vivenciadas e respostas obtidas lançamos mão da observação direta que incluiu cinco meses de efetiva atuação no campo (dois meses de observação e registro de informações e três meses de planejamento e aplicação das oficinas). Portanto, as oficinas aqui apresentadas pautaram-se em atividades pensadas para a realidade da turma observada. Seu planejamento considerou a duração de duas horas por dia, pois embora a aula começasse às 18h, os alunos terminavam de chegar às 19h. Às 20h era o intervalo, pelo qual eles ficavam ansiosos para jantar, sendo das 20h30 às 21h30 o último tempo de aula. Como a oficina era sempre interrompida após uma hora de duração, essa primeira etapa tinha que ser a mais rápida, contudo nela obtínhamos a melhor resposta da turma, pois após o intervalo já estavam impacientes para irem embora, por isso era preciso explorar ao máximo a capacidade reflexiva deles nesse primeiro momento. Assim, o aporte filosófico das oficinas ocorreu nessa etapa da aula, nas quais realizávamos as dinâmicas e discussões. Quando as oficinas envolviam atividades mais longas eram divididas em dois encontros, no primeiro introduzíamos o assunto e no seguinte fazíamos a parte prática. No total, para a realização das seis oficinas, foram precisos oito encontros que ocorriam semanalmente6, envolvendo, na maior parte das vezes cerca de 12 alunos (três homens apenas, com idades variadas, predominando os que possuíam mais de 45 anos), algumas oficinas no entanto, foram ofertadas para duas turmas representando um total de 27 alunos7 atendidos pelo projeto. 6 Foram necessários oito encontros para as seis oficinas, pois duas oficinas demandaram um tempo maior de realização, ocorrendo em dois encontros. 7 Somente algumas oficinas foram ofertadas para as duas turmas da escola, a maior parte contou com a presença de aproximadamente 12 alunos da classe de alfabetização. Destaco que as oficinas em que ocorreram a junção das duas turmas, resultando em 27 alunos, foram as oficinas de filme e curtas. 89 Capítulo 4 - Conhecendo o lugar da pesquisa e as oficinas oferecidas “A Ciência não corresponde a um mundo a descrever. Ela corresponde a um mundo a construir.” Mirian Goldenberg Após definir melhor o tema e a metodologia escolhida para aplicação da pesquisa, iniciei as observações em abril de 2016, munida da convicção de que esse estudo poderia servir, ainda que modestamente, como auxilio para se pensar a introdução da Filosofia em turmas do ciclo básico da EJA. Uma proposta que pelo seu caráter inovador já experimentou resistências no início de sua implementação, pois não foi fácil encontrar um docente disposto à participar desse projeto, que coloca em evidência uma nova maneira de dialogar na alfabetização. Logo, na primeira tentativa de participação numa turma de alfabetização, ainda em junho de 2015, não obtive por parte da docente a autonomia didática que precisava para colocar em prática as oficinas, o que demandou a mudança de campo de estudo, mas não a desistência do projeto. Nesse momento, as colocações de Mirian Goldenberg (2000, p. 13) sobre os imprevistos em uma pesquisa fizeram-se presentes, visto que “nenhuma pesquisa é totalmente controlável, com início, meio e fim previsíveis. A pesquisa é um processo em que é impossível prever todas as etapas.” Foi somente com a ajuda de uma amiga, professora na rede pública de Angra dos Reis, que acreditou na proposta desse estudo, apresentando-o às professoras alfabetizadoras da EJA de seu local de trabalho, que consegui convencer essas docentes sobre a relevância da pesquisa, no sentido de, quiçá, ajudá-las a tornar o processo alfabetizador em suas turmas um pouco mais reflexivo. As primeiras observações ocorreram timidamente, até que a autonomia e confiança necessárias fossem conquistadas. Nesse ponto, ressalto o quanto a regente da turma contribuiu para o desenvolvimento da pesquisa e para meu crescimento profissional, tratando-me de igual para igual8, como a educadora que eu era, apesar de 8 Embora se espere que durante uma pesquisa de campo os pesquisadores sejam tratados como tal, o que entendemos como o mais saudável e desejável, é comum serem vistos como “aprendizes”, ou seja, profissionais em formação “sem as competências necessárias” para efetiva inserção naquele espaço. Constantemente isso ocorre com pesquisadores inseridos em ambientes escolares que passam a serem vistos pelos docentes da turma como observadores da prática profissional, prejudicando a conquista da autonomia necessária para atuação como pesquisador participante. 90 não lecionar em minhas atividades profissionais — como pesquisadora em construção, que cometia erros de principiante, mas que estava disposta a aprender na prática como conquistar o respeito daquela turma. Dessa vez, munida da autonomia necessária, assumi um compromisso de participação junto aos alunos como uma “observadora como participante” (LÜDKE; ANDRÉ, 2014), revelando desde o início a razão de estar ali. Assim, eles entenderam que eu era uma pesquisadora e que precisava deles para desenvolver um projeto de pesquisa sobre um assunto que nunca ouviram falar, a Filosofia, mas que estavam abertos a conhecer. Como a escola fica longe do meu local de trabalho atual — cerca de 2h30min de ônibus, pegando duas conduções — somente conseguia realizar as oficinas uma vez por semana, nas segundas-feiras, por ser o único dia da semana em que era liberada mais cedo, às 15h30, conseguindo chegar às 18h, horário de início das aulas na escola. Naqueles dias, a turma já sabia que eu seria a professora regente da aula e para minha surpresa esse conhecimento não desencadeou a ausência dos alunos; pelo contrário, atrasados ou não, todos sempre estavam lá. Como dito, as primeiras observações eram menos participativas, o que me permitiu a elaboração de um caderno de campo. Depois, com minha maior inserção nas aulas, passei a lançar mão das anotações posteriores, a todo instante estava mediando às oficinas. Visando evitar o esquecimento dos detalhes observados, eu gravava um áudio no celular, no intervalo ou na volta para casa, com os fatos que mais me chamaram atenção naquele dia, para que os mesmos pudessem me auxiliar na hora de analisar os impactos das oficinas filosóficas na turma. Por isso, durante as observações tentava, na medida do possível, não perder de vista o intuito de um estudo de caso que deveria “reunir o maior número de informações detalhadas, por meio de diferentes técnicas de pesquisa, com o objetivo de apreender a totalidade de uma situação e descrever a complexidade de um caso concreto.” (GOLDENBERG, 2000, p. 33). As observações ocorreram em maior número na turma da professora Simone9, na qual se deu o início do projeto, escolhida por ser a primeira etapa de alfabetização da escola, atendendo assim aos objetivos traçados por esse estudo. No entanto, com a realização das oficinas, e por interesse das docentes, o projeto passou a envolver as 9 Os nomes empregados nessa pesquisa são fictícios em respeito à identidade dos sujeitos, no entanto, procurou-se respeitar o gênero dos atores sociais envolvidos. 91 duas turmas do ciclo básico da EJA, uma com doze e outra com quinze alunos. A turma com maior número de alunos estava um pouco mais avançada, mas pode-se dizer que os discentes ainda estavam em fase de alfabetização, grande parte enquadrava-se na categoria de analfabeto funcional, desse modo, sua inserção no projeto não alterou os objetivos iniciais da pesquisa. Durante o período da observação inicial conversei informalmente com os alunos e com as professoras. Para tanto, procurava, sempre que possível, chegar mais cedo à escola, frequentar o refeitório, onde a maior parte dos alunos se concentrava, a sala de professores e a biblioteca. Com isso pude obter informações iniciais que me familiarizaram com aquele ambiente e ajudaram o projeto a se coadunar com a identidade da instituição. De início pretendia-se utilizar entrevistas com os alunos como uma forma de geração de dados para a pesquisa, entendo a importância das narrativas orais nos estudos qualitativos. No entanto, devido às limitações temporais de um estudo de mestrado, em que a parte prática muitas vezes ocorre em menos de um ano, o foco foi redirecionado para as oficinas — numa tentativa de fazer das mesmas um momento de reflexão e aplicação da proposta desse trabalho. Tal qual Goldenberg (2000, p. 35) fui percebendo que “o pesquisador deve estar preparado para lidar com uma grande variedade de problemas que não foram previstos no início da pesquisa e que se tornam mais relevantes do que as questões iniciais.” Essa postura me aproximou igualmente das colocações de Lüdke e André (2014, p.54) de que é preciso policiar-se numa pesquisa qualitativa e de que “para que isso ocorra, o pesquisador precisa desenvolver certa disciplina pessoal, pois a tendência nesse tipo de pesquisa é achar que tudo é importante.” Assim, percebi aos poucos que se torna necessário estabelecer um foco principal para análise dos dados. A decisão sobre quais devam ser os focos específicos de investigação não é fácil. Ela se faz, sobretudo através de um confronto entre o que pretende a pesquisa e as características particulares da situação estudada.” (LÜDKE; ANDRE, 2014, p. 54). Desde o início do estudo, no entanto, nós fazemos uso de procedimentos analíticos quando procuramos verificar a pertinência das questões selecionadas frente às características especificas da situação estudada. Tomamos então várias decisões sobre áreas que necessitam de maior exploração, aspectos que devem ser enfatizados, outros que podem ser eliminados e novas direções a serem tomadas. Essas escolhas são feitas a partir de um confronto entre os princípios teóricos do estudo e o que vai sendo “aprendido” durante a pesquisa, num movimento constante que perdura até a fase final do relatório. (LÜDKE; ANDRÉ, 2014, p. 54). 92 Também por essa razão resolvi dar destaque apenas a um conceito filosófico durante as oficinas. De início, meu intuito era explorar o máximo de conceitos possíveis, todavia, o amadurecimento enquanto pesquisadora me fez perceber que para melhor desenvolver esse projeto seria necessário abandonar certas convicções e desejos e focar no que parecia óbvio: “no menos como mais”. Nas oficinas, pelas razões já explicitadas nos capítulos anteriores, decidi abordar o conceito felicidade valendo-me de diferentes gêneros e suportes. Foram utilizadas: músicas, poesias, jogos, curtas, filmes, interpretação de imagens, jornais e rodas de conversas. Cabe ressaltar que as oficinas foram pensadas somente após as observações iniciais, como Bogdan e Biklen (1994, p. 83 apud THEES, 2014, p.70) entendo que em se tratando de uma investigação qualitativa, não se pode traçar um plano detalhado antes da recolha dos dados. 4.1. O local da pesquisa “Ocultar o começo, as origens, é, muitas vezes, uma forma de adiar a chegada do novo.” Rui Campos Figura 2 - Fachada da Escola Municipal Raul Pompéia. 93 Com mais de 68 anos de história a Escola Municipal Raul Pompéia10, localizada no Bairro Monsuaba em Angra dos Reis, possui 25 salas de aula, sendo: uma sala de vídeo, um laboratório de informática (que não possui equipamentos desde a reinauguração em 2008), uma biblioteca, uma sala de professores, uma secretaria, uma sala para direção, uma cozinha, um refeitório, uma sala de recursos, um pátio e uma quadra de areia. A escola conta ainda com cerca de 90 funcionários e aproximadamente 1.152 alunos, desses 165 pertencentes a Educação de Jovens e Adultos. Em 2008 passou por uma ampla reforma na qual sua antiga sede deu lugar a uma praça. Atualmente é a instituição com maior área construída do município, são 2.290 metros construídos em 2.264 de área, no entanto, em 1948 quando começou suas atividades, ainda como escola estadual, contava apenas com duas salas de aula. Atualmente vem sofrendo com a violência no bairro, um dos pontos principais do comércio de drogas da região. Os constantes tiroteios na localidade atrapalham sua rotina, impedido alunos e docentes de comparecerem às aulas. A falta de investimentos públicos é outro problema observado, o que vem resultando num visível desgaste físico do prédio, que necessita de reformas urgentes em muitos ambientes: os banheiros não possuem portas, muitos vidros estão quebrados e a pintura das paredes está extremante gasta. Figura 3 - Vista aérea da Localização do Colégio Municipal Raul Pompéia. 10 Nesse estudo optamos por expor o nome da escola, que serviu de campo para a pesquisa, por acreditarmos que tal ação contribui para melhor socialização dessa experiência com as escolas locais. Além do que relatar o nome da instituição é uma das formas de evidenciar nosso agradecimento pela concordância com a realização desse projeto. 94 Com relação à localidade da escola, cabe destacar que Monsuaba é um distrito de Angra dos Reis localizado a beira mar. Possui por volta de 7000 habitantes e 4 escolas dentre elas a escola Raul Pompéia. Da sede municipal são ao todo dezenove quilômetros até sua localização. Já a renda mensal do distrito é proveniente em sua maior parte dos trabalhadores do estaleiro Brasfells localizado no bairro Verolme. 4.1.1. Sujeitos da Pesquisa “A vida é compreendida retrospectivamente, mas vivida prospectivamente.” Soren Kierkegaard Figura 4 - Alunos do projeto “Ensinando a escrever, aprendendo a Filosofar”. Quando nos referimos aos sujeitos da EJA em fase de alfabetização, estamos falando de pessoas que estiveram afastadas do direito a uma educação de qualidade. São jovens, senhoras e senhores, alguns já na terceira idade, que decidiram voltar à escola, após uma vida dedicada ao trabalho, à família e à sociedade. São pessoas como nós que possuem as mesmas capacidades de aprendizagem, experiências de vida, conhecimentos para partilhar e muitas coisas para aprender. Portanto, não estamos tratando de indivíduos fracassados, mas de mulheres e homens que, mesmo em meio às adversidades da vida, colocaram-se a difícil tarefa de aprender a ler e escrever, quando o mundo todo caminha em outra direção. No entanto, cabe aqui um questionamento: Se um sujeito deve ser tudo isso: político, ativo, crítico, detentor de direitos e tantas outras qualidades, é possível afirmar 95 com propriedade que o estudante da EJA ocupa seu lugar de sujeito na escola do século XXI? Até queríamos que assim fosse, mas as evidências nos levam a crer que o lugar desse aluno continua sendo o dos oprimidos, visto que, geralmente, os sujeitos da EJA são tratados como uma massa de alunos, sem identidade, qualificados sob diferentes nomes relacionados ao fracasso escolar. (ANDRADE, 2004). Obviamente, são inegáveis os ganhos obtidos pela Educação de Jovens e Adultos — que conquistou desde espaços no plano legal, aparecendo pela primeira vez como modalidade de ensino na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96), a relativo destaque em reuniões internacionais como a V CONFINTEA, 1997, que ampliou o debate da EJA para além do direito à alfabetização, postulando um ideal de aprendizado por toda vida. A EJA conquistou, ainda, expressivo reconhecimento nas academias com grupos de pesquisas dedicados a pensar e produzir conhecimentos para essa modalidade. No entanto, apesar desses pontos favoráveis ainda há muito que fazer. E sem dúvida, atribuir o efetivo grau de sujeito aos alunos da EJA parece ser um bom começo. Somente assim, tratando-os como efetivamente são11, daremos os passos necessários rumo à uma educação de qualidade. Nesse sentido, a EJA comprometida com a formação humana passa pelo entendimento de que os processos pedagógicos deverão ser desenvolvidos para atender as necessidades e desejos de seus sujeitos. (ANDRADE, 2004) ou seja: Construir uma EJA que produza seus processos pedagógicos, considerando quem são esses sujeitos, implica pensar sobre as possibilidades de transformar a escola que os atende em uma instituição aberta, que valorize seus interesses, conhecimentos e expectativas; que favoreça a sua participação; que respeite seus direitos em práticas e não somente em enunciados de programas e conteúdos; que se proponha a motivar mobilizar e desenvolver conhecimentos que partam da vida desses sujeitos; que demonstre interesse por eles como cidadãos e não somente como objetos de aprendizagem. (ANDRADE, 2004, p.1). 11 É preciso reconhecer que o estudante da EJA traz especificidades que envolvem expectativas e preocupações que alunos de outras modalidades de ensino podem não possuir. Essas características, muitas das vezes próprias de um aluno da EJA, necessitam ser colocadas em evidências na hora de planejar atividades didático-pedagógicas para esse público. Embora devamos reconhecer os inúmeros avanços ocorridos nas práticas didáticas da EJA em conformidade com um ensino mais crítico e criativo, ainda presenciamos aulas que não passam de uma “reprodução” do que ocorre no Ensino Regular, isso é ocultar particularidades da Educação de Jovens e Adultos que lhes são inerentes e necessitam ser pensadas e refletidas. Portanto, tratar o aluno da EJA como ele efetivamente é, um sujeito, inclui pensá-lo e atendêlo por completo. 96 Infelizmente, os alunos participantes do projeto “Aprendendo a escrever, ensinando a filosofar” não escapam desse contexto marginal. O público alvo desse estudo é formado por moradores de periferia, trabalhadores formais, mães em tempo integral, aposentados, desempregados e jovens em situação de risco social, todos com o desejo comum de aprender a ler e escrever. Como possivelmente ocorre com outros docentes, vários desses sujeitos me tocaram de forma significativa, ensinaram-me verdadeiras lições de vida que sustentaram ainda mais a causa desse projeto. Alguns carregavam sonhos e desejos de uma vida melhor; outros, medos e inseguranças de mais uma vez fracassarem. Mas, apesar de todas as dificuldades, da falta de materiais didáticos, infraestrutura e insegurança, cada palavra escrita era uma vitória. Como esquecer de Seu José12, que aos 65 anos voltou à escola para realizar o sonho de tirar a carteira de motorista? Ou de Dona Maria, que matriculou-se para ensinar seus netos a fazerem o dever de casa? Ou de Juliana, que trazia todas as noites sua filha para as aulas por não ter com quem deixá-la (enquanto aprendia a escrever, a mãe orgulhava-se da filha que aos sete anos ajudava os colegas de turma na realização das atividades)? No entanto, foi Rogério que mais me mostrou as realidades enfrentadas pela EJA do século XXI e quem eu gostaria de relembrar nesse capítulo. Confesso que, ao iniciar minhas observações na turma, estranhei a presença de um aluno tão jovem sentado na primeira cadeira da sala, praticamente colado na mesa da professora. Isso porque poucas vezes presenciei alunos jovens em turmas de alfabetização da EJA. Eu estava acostumada com sujeitos na faixa etária acima dos 30 anos, e de certa forma, a juventude de Rogério me intimidava, pois percebia seu desconforto ao me aproximar para lhe explicar alguma atividade. Embora recém ingressante na turma, sem nenhum amigo na sala, ele não faltava às aulas e demonstrava uma enorme vontade de aprender. Percebendo isso, a docente resolveu utilizar com ele novas metodologias, inclusive o celular — valendo-se de mensagens textuais em um aplicativo social muito utilizado pela turma. Aos poucos, ele foi interagindo melhor conosco, dando sinais de aprendizagem. Até o dia em que Rogério não apareceu mais nas aulas. Não demorou muito para sabermos que foi ele o 12 Cabe ressaltar que os nomes dos sujeitos apresentados na pesquisa são fictícios, no entanto procurouse respeitar o gênero dos sujeitos e as idades. 97 rapaz de aproximadamente 19 anos morto enquanto saia para cortar o cabelo na semana da páscoa. Mesmo sabendo, desde o meu primeiro dia na escola, que ele estava envolvido com o tráfico de drogas no bairro, cheguei a pensar que pudesse mudar de vida pela escola. Orgulhava-me em poder fazer parte dessa tentativa de mudança e via nele um exemplo de superação. A notícia triste comoveu a turma, que imediatamente respondeu com ausências e saídas antes do término da aula. Apesar de a morte de Rogério afetar o rendimento do alunos, não chegou a alterar a rotina da escola. Pode-se dizer que ela aprendeu a conviver com esse tipo de realidade. Minha maior preocupação, no entanto, foi quando me dei conta de que eu mesma já enxergava aquela realidade como natural. Toda semana havia um morto, um ferido ou um preso. Até o fato daquela região “ter virado ponto de drogas” já não assustava mais ninguém. Era comum presenciarmos jovens em grupos na frente da escola vendendo drogas ou fazendo uso delas, confirmando que: Para esses jovens, o tráfico representa a possibilidade de atingir um status social e obter respeito da sociedade. O traficante é visto como um indivíduo respeitado, que possui poder e dinheiro, algo quase inatingível em uma comunidade de baixa renda. No imaginário de vários jovens, é o traficante quem zela pelo bem-estar da comunidade, na medida em que faz benfeitorias (muitas vezes substituindo o papel do Estado). Acima de tudo, é quem os respeita como cidadãos. (CASTRO, ABRAMOVAY, 2002, p. 172). Nesse contexto, fui percebendo que a realidade que me esperava não era a que tinha imaginado. A exclusão, a opressão, a marginalidade e o medo continuavam latentes entre os estudantes da EJA. Se não eram eles as próprias vítimas da violência, eram seus filhos, esposos e netos. Essas evidências me alertaram ainda mais sobre a necessidade de introduzir o pensar naquele espaço. Fora da escola, a rua e os muros gritavam a realidade, dentro, a vida parecia fluir num outro ritmo. Nesse sentido, mais do que nunca, era necessário promover novas formas de aprendizagem. Era preciso atribuir sentidos, espaços para refletir, para o mundo e para a vida. E, acima de tudo, estava na hora de falar sobre si, sobre o conhecimento e sobre o que nos move a aprender. Portanto, como sinalizam os jovens, para transformar a atual situação, é necessário ter “atitude”. Deve-se procurar entender o que esses sujeitos na condição de alunos vêm tentando demonstrar, explícita ou implicitamente, seja pelo abandono, pela desistência, pela dificuldade de permanência, seja pelas formas com que organizam suas necessidades e anseios. (ANDRADE, 2004, p. 3). 98 E como falar de felicidade num contexto como esse? Como adentrar num espaço onde mães perderam seus filhos, colegas de classe são mortos e muitas vezes aulas são suspensas pelo tiroteio. Em suma, como dar destaque ao lado bom da vida em meio àquele contexto escolar? Seria difícil, mas julguei mais que preciso. Se aqueles alunos estavam aptos a aprender também estavam a recomeçar sua busca por uma vida mais feliz. Nesse sentido, não havia temática mais propícia que os fizesse parar para perceber e pensar o mundo a sua volta. 4.1.2. O Início da pesquisa “Ler é, em qualquer hipótese, encadear um discurso novo no discurso do texto.” Paul Ricoeur No início da pesquisa tentei colocar em andamento muito das colocações de Thees (2014), que se baseou nos escritos de Bogdan e Biklen (1994) para assumir a postura de uma pesquisadora ainda em ambientação nos primeiros dias de campo: Nos primeiros dias, não tente fazer demais. Tente fazer, aos poucos, uma entrada tranquila no ambiente de trabalho […] Mantenha-se relativamente passivo. Mostre interesse e entusiasmo por aquilo que está a aprender, mas não faça demasiadas perguntas específicas, especialmente em áreas que possam ser controversas. Faça perguntas gerais que permitam aos sujeitos falarem. Seja amigável. À medida que for sendo apresentado, sorria e seja delicado. Cumprimente as pessoas que passarem por si nos corredores. Nos primeiros dias, os sujeitos vão perguntar o que é que anda ali a fazer. Informe-os de que já falou com os responsáveis, tentando ser o mais breve possível. (BOGDAN E BIKLEN, 1994, p. 123 apud THEES, 2014, p. 84). Nesse sentido, somente iniciei as oficinas, às quais aqui darei o devido destaque, quando percebi que os alunos já estavam à vontade o suficiente para depositarem a confiança de que necessitava no desenvolvimento de um bom trabalho. Antes disso, por cerca de oito semanas, me comportei como uma professora auxiliar, ajudando no desenvolvimento das tarefas, na correção das atividades e no esclarecimento das dúvidas dos alunos, sempre tomando nota do que julgava necessário. 99 Acredito que o momento de ambientação foi de grande valia para o planejamento das oficinas, me permitiu conhecer melhor a escola, seus principais sujeitos e suas perspectivas sobre a temática que pretendia trabalhar. Assim, procurei — sempre que surgia uma oportunidade — questionar os alunos sobre suas concepções de felicidade e educação, coletando dados que me permitissem pensar atividades que pudessem envolvê-los plenamente. E foi com base nessas referências que decidi valer-me de suportes e gêneros textuais diferentes para atrair ao máximo os alunos, percebi que além de serem poucas as atividades ofertadas pela escola que os envolviam em processos reflexivos, as ocorridas ancoravam-se em propostas habituais e, em certa medida, tradicionais — que pouco demandavam dos potenciais dialógico e reflexivo da turma. Tal observação conduziu-me a explorar por meio das oficinas outras linguagens e formas de perceber a realidade, para discutir sobre a felicidade de maneira consistente e contextualizada. Cabe ressaltar que todas as oficinas foram apresentadas anteriormente à docente da classe — que por sua vez incluiu-as como conteúdo programático no planejamento anual da turma. Nessa perspectiva, visando manter um diálogo com os objetivos de alfabetização já traçados pela professora, ao término de cada oficina foram ofertadas aos alunos atividades de alfabetização cuja temática geradora trouxe assuntos apresentados no momento da oficina filosófica. No início da inserção filosófica, as atividades de cunho alfabetizador realizadas após as oficinas buscaram, sempre que possível, aproximar-se da metodologia já utilizada pela docente da turma. Tal postura foi tomada visando promover uma maior familiaridade entre os alunos e as atividades sugeridas e, de certo modo, uma introdução progressiva e respeitosa na classe. A ideia sempre foi promover uma contínua ampliação no teor crítico e dialógico dos exercícios, para que os alunos fossem superando aos poucos as dificuldades encontradas. Com o desenvolvimento do projeto, os momentos de alfabetização, ocorridos sempre como segunda etapa da oficina, passaram a apresentar, como previsto, um teor mais crítico e desafiador. Ao invés de palavras de leitura relativamente fácil, comecei a apresentar aos alunos fonemas desconhecidos, mas que faziam parte do universo das discussões sobre felicidade tais como: sonhar, saudade, virtude, trabalho, carinho, dentre outras. 100 A cada atividade essas palavras, bem como outras, eram escritas no quadro para que os alunos pudessem apreender os fonemas e letras trabalhadas. Optei por fazer uso do quadro, por ser esse era o principal recurso didático da escola, de maneira que deixá-lo apartado das oficinas não condizia com a realidade da turma. De início, pensei em trabalhar com projeções de data show, mas, diante da falta de possibilidade em fazer uso desse equipamento, a solução encontrada foi gerir os recursos disponíveis de forma a utilizá-los de maneira coerente, mas não unânime. Dessa forma, o quadro serviu muitas vezes como suporte para exibição de imagens, organização de atividade e exposição de palavras, sem no entanto, transformar-se no único meio utilizado. Nas oficinas procurei explorar um universo vocabular que fizesse parte do contexto dos alunos e que iam aparecendo durante as nossas conversas. Nesse sentido, todas as palavras novas que surgiam nas oficinas e que poderiam ser articuladas ao contexto da felicidade eram escritas no quadro. A transcrição das palavras no quadro permitiu aos alunos explorarem a escrita de forma mais contundente, percebendo as letras que as formavam e os fonemas. Optei pelas letras de “caixa alta” em escrita grande e por valer-me da reprodução no quadro apenas para exploração das mesmas. Os exercícios de fixação por outro lado, eram apresentados aos alunos já impressos para que pudéssemos trabalhá-los de forma mais proveitosa, evitando o tempo gasto demasiadamente com a cópia do quadro. Figura 5 - Transcrição no quadro - palavras trabalhadas na 1° oficina. 101 Figura 6 - Transcrição no quadro - palavras trabalhadas na 2° oficina. 4. 2. Iniciando as Oficinas Filosóficas “... Se muito vale o já feito mais vale o que será. E o que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir.” (O que Foi Feito Deverá de M. Nascimento/ F. Brant) Após a escolha do conceito filosófico que seria trabalhado com os alunos da EJA, a felicidade, chegava a hora de definir como inserir de forma filosófica essa temática na turma. Ou seja, como partir desse conceito para propiciar aos alunos seu primeiro contato com a Filosofia. Tenho que confessar, essa tarefa não me foi nada fácil. Mesmo assim, tentei ao longo de três meses (maio, junho e julho) dar início à oferta de seis oficinas filosóficas que buscaram na medida do possível atrelar reflexão à alfabetização. As dificuldades foram muitas e as incertezas por vezes me tomaram: primeiro por que, assim como para aqueles alunos, a Filosofia era nova em minha vida — apesar de encontrar-me naquele momento professora de Filosofia minha formação era em Pedagogia — muitas vezes tive medo de não estar filosofando propriamente com a turma. Segundo porque, embora professora de formação, nunca tinha trabalhado profissionalmente como docente. Somente aos poucos, motivada em grande parte pelas leituras filosóficas e estudos sobre EJA, bem como pelo apoio dos docentes e colegas do programa de mestrado, me descobri docente e pronta para instigar o filosofar. A escolha de oficinas como metodologia de introdução da Filosofia em uma turma de alfabetização da EJA deu-se por acreditar que as mesmas oferecem um 102 espaço de troca entre docente e alunos que favorecem de forma muito satisfatória o filosofar. Além disso, como relatei anteriormente, o convívio com a turma me fez perceber que levar atividades diferentes das habituais, bem como propiciar momentos de reflexão baseados em temáticas próprias do cotidiano, eram caminhos necessários para atender as perspectivas e diversas formas dos alunos de conceber a vida e a Felicidade. As oficinas foram concebidas a partir da observação da potencialidade e disponibilidade dos discentes ao pensar, de maneira a despertar momentos filosóficos de rico teor, não pela complexidade, mas pela inserção inicial em uma área do conhecimento desconhecida até então. Portanto, a ideia das oficinas filosóficas implica, em sua essência, pensar uma didática para a EJA que tenha a reflexão e o diálogo como norteadores. Logo, as atividades oferecidas deveriam surgir de uma temática que trouxesse em sua natureza algo de magnitude expressiva na vida de qualquer cidadão. E, para essa exigência, o conceito da Felicidade parecia preencher todos os requisitos: fosse pela gama de importância assumida ou pelas múltiplas possibilidades de discutilo e explorá-lo. 4. 2. 1. Primeira oficina: “Felicidade foi-se embora” “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar.” Lupicínio Rodrigues A primeira oficina intitulada “Felicidade foi-se embora” ocorreu após dois meses de observação da turma. Para introduzi-la foi escolhida a música “Felicidade foi-se embora”, de Lupicínio Rodrigues, que, a meu ver, continha em sua letra concepções sobre o conceito de felicidade relevantes para um primeiro diálogo a esse respeito, tanto que escolhi atribuir o nome da música à temática da oficina. Iniciei a atividade entregando uma folha com a música aos alunos e pedindo para que a turma prestasse bastante atenção na letra. Embora não soubessem lê-la na íntegra, o fato de poderem observar a escrita enquanto escutavam-na já lhes colocava em contato com palavras que iríamos trabalhar futuramente permitindo que interagissem com elas de antemão. Ao iniciar a música, a turma permaneceu extremamente atenta, os mais velhos inclusive cantaram alguns trechos, outros continuaram em silêncio. Enquanto a música 103 tocava fui percebendo que grande parte dos alunos tentava acompanhá-la fixando o olhar sobre a folha com a letra da música, como se tentassem encontrar junto a melodia a escrita da palavra cantada. Após escutarem a música pela segunda vez, comecei a indagá-los sobre a temática apresentada. Eles foram interpretando a música, destacando as frases mais marcantes e externando os sentimentos desencadeados pela experiência. Figura 7 - Alunos escutando a música “Felicidade Foi-se embora”. Com cuidado, conduzi a conversa para que eles percebessem a temática principal da música. Quando todos entenderam que estávamos falando sobre felicidade, perguntei a cada aluno o que ele considerava ser feliz. As respostas concentraram-se em volta da família, do trabalho, da saúde e da religião. Alguns disseram que nunca foram felizes, outros que não acreditavam na existência da felicidade, porém um grupo grande enfatizou que já eram felizes por terem bons esposos, filhos, netos, etc. Conforme os alunos iam relatando suas percepções acerca da felicidade, pedia que definissem numa palavra suas considerações. Essas palavras foram escritas no quadro, depois trabalhadas em sua escrita e fonemas ao mesmo tempo em que discutíamos seus sentidos e percepções. Logo, ao invés de nos concentrarmos apenas no aspecto alfabetizador, fomos dialogando e refletindo sobre as palavras. Em seguida, solicitei aos alunos que verificassem se a letra da música, entregue no início da aula, continha alguma dessas palavras. Com isso, procurei fazer com que explorassem a descoberta delas em um contexto social. 104 Na segunda parte da oficina, que teve início após o intervalo, entreguei aos alunos folhas com atividades que procuravam articular alfabetização e o conceito da felicidade. Os exercícios traziam reflexões sobre a procura pela felicidade. Como os alunos ainda não sabem ler com autonomia, a leitura foi feita em conjunto e cada atividade discutida por toda a turma. No primeiro exercício os alunos deveriam pensar sobre a afirmativa “O dinheiro traz felicidade”. Eles foram convidados a exporem suas percepções e construírem novas frases expressando a opinião da turma sobre o assunto. O mesmo seguiu-se para afirmativas como: “a conquista da felicidade está na beleza exterior” e “o homem só será feliz rodeado de amigos”. Ao final da oficina disse à turma que muito do que havíamos realizado naquela aula poderia ser chamado de Filosofia. Eles não sabiam o que isso significava, mas compreenderam que pensar e dialogar sobre felicidade fazia parte da vida de muitos cidadãos desde a antiguidade e que essas pessoas que dedicaram parte de sua vida pensando sobre questões como essas eram chamados filósofos. Figura 8 - Aluna realizando atividade proposta na oficina. 105 4. 2. 2. Segunda oficina: “Tristeza não tem fim Felicidade sim” “A felicidade é como a pluma que o vento vai levando pelo ar voa tão leve, mas tem a vida breve precisa que haja vento sem parar.” Vinícius de Moraes Na segunda oficina, realizada uma semana após a primeira, trabalhei a poesia “A Felicidade” de Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim. Tal como na atividade anterior entreguei para a turma uma folha com a poesia impressa e com os alunos dispostos em círculo realizamos a leitura. Como ocorreu com a música, eles pediram para que a poesia fosse lida novamente e depois aplaudiram-na entusiasmados. Logo após, comecei a conversar com eles sobre a felicidade, mas agora os alunos já conseguiram identificar a temática da poesia desde o início, apesar de eu ter escolhido não ler o título da poesia para evitar que soubessem o tema antes da leitura. Expliquei aos alunos o que era uma poesia e em seguida discutimos a estrofe principal do poema, a saber: “Tristeza não tem fim, Felicidade sim”. Nesse instante conversamos sobre o que eles entendiam daquela frase e se concordavam ou não com essa afirmação. Alguns alunos concordaram que na vida temos mais momentos de tristezas do que de alegrias, afirmando que por tal razão, ser feliz é muito difícil. Outros discordaram plenamente, alguns utilizando razões religiosas para explanar que o simples fato de estar vivo já era razão suficiente para ser feliz. Nesse instante, disse-lhes que pensadores como Freud, também acreditavam que a felicidade era extremamente difícil de ser alcançada. Outros, como Aristóteles, aproximavam felicidade ao bem — à prática de ações virtuosas — e que haviam ainda os que a relacionavam à satisfação dos prazeres, como Epicuro. Com isso pretendia que eles fossem percebendo que, tal como eles, os filósofos, dos quais tratamos na oficina anterior, também discordavam entre si quando pensavam sobre a conquista da felicidade, mas que esse tipo de atitude era extremamente saudável para o bem pensar e agir. Após o intervalo, como complementação à oficina anterior, realizei um bingo de palavras com a turma. Esse bingo era um pouco diferente daquele aos quais os alunos estavam acostumados — com gravuras de bichos e objetos. Dessa vez, resolvi apresentá-los um bingo, cujas cartelas eram feitas com as palavras relacionadas à Felicidade que trabalhamos na oficina anterior. 106 No começo eles tiveram dificuldades, pois de alguma forma saíram de sua zona de conforto, mas depois se envolveram na atividade conforme esperado. Para dinamizar a atividade quem sorteava as palavras eram os próprios alunos que tentavam lê-las para o restante da turma. Algumas delas eram lidas mais facilmente, outras, por apresentarem fonemas mais complexos, necessitavam de ajuda. Nesses momentos era comum vermos os próprios colegas de classe empenhados em ajudar na leitura, dialogando sobre as “possibilidades” de escrita e refletindo sobre o que discutíamos em sala. Figura 9 - Proposta para confecção das cartelas de bingo. Lidas as palavras, o restante da turma deveria procurar em sua cartela a grafia que correspondia à pronúncia. Como as palavras eram aquelas que trabalhamos anteriormente, tais como: trabalho, família, desemprego, sonhos, dentre outras, eles tiveram certa facilidade em identificá-las na cartela. Figura 10 - Aluna lendo palavras da cartela de bingo. No fim tanto eu como a docente da classe achamos a resposta da turma à atividade muito boa, visto que eles demonstraram muita satisfação por estarem aprendendo palavras que sempre quiseram escrever e escutando um poema do seu universo. A professora inclusive salientou isso durante a oficina, dizendo para a turma 107 que agora eles estavam escutando um poema mais “adulto” e aprendendo palavras um pouco mais “complicadas”. 4. 2. 3. Terceira oficina: “A Felicidade na vida real” “As pessoas felizes lembram o passado com gratidão, alegram-se com o presente e encaram o futuro sem medo.” Epicuro Na terceira oficina resolvi trazer alguns curtas para os alunos assistirem a fim de tratar como a felicidade ocorre na vida real, ou seja, fora do caráter perfeccionista da mídia. Ao todo foram quatro curtas: o primeiro falava sobre a convivência, o segundo sobre a amizade, o terceiro sobre a obsessão e o último sobre o amor. Cabe ressaltar, que essa foi a primeira atividade que envolveu as duas turmas da escola do primeiro ciclo do Ensino Fundamental. Antes do intervalo a atividade foi feita com a turma habitual, que se encontra em fase de alfabetização. Assistimos aos curtas e depois discutimos cada um deles, apontando em quais sentidos eles se aproximavam da temática que vínhamos trabalhando, ou seja, como os assuntos abordados pelos curtas podiam ajudar a pensar a felicidade. Cada aluno falou sobre os sentimentos que os vídeos causaram neles e de como foi a experiência de assisti-los. Depois, realizaram uma atividade na qual foram trabalhadas palavras sobre a temática dos curtas, na qual os alunos deveriam, por exemplo, localizar palavras trabalhadas nos curtas e exploradas durante a discussão dos mesmos e em seguida formar frases curtas com a ajuda da docente. Figura 11 - Oficina de exibição dos curtas. 108 A oficina foi repetida, após o intervalo, com a segunda turma. A docente dessa turma interessou-se pelo projeto e perguntou-me se aceitaria receber seus alunos nas oficinas. Obviamente aceitei a proposta, embora não estivesse preparada para incluir no projeto mais 15 alunos. No entanto, aquela era a oportunidade que precisava para aumentar meu público alvo e analisar qual a resposta ao projeto de alunos que estavam mais avançados em sua alfabetização, com grande parte da turma já sabendo ler e escrever. A resposta da segunda turma à oficina dos curtas foi parecida com a da primeira classe. Eles responderam bem ao debate e conseguiram articular os vídeos à temática da Felicidade. Partilharam experiências de vida, retornaram os assuntos abordados nos curtas e relacionaram-nos a situações do dia-a-dia. Portanto, no que diz respeito à complexidade das reflexões desencadeadas não senti uma diferença muito acentuada entre as colocações dos alunos das duas turmas; pelo contrário, as postulações dos discentes caminharam no mesmo sentido — independentemente do grau de aprendizagem dos mesmos — de maneira que a habilidade da leitura e escrita não resultou em reflexões mais aprofundadas, o que de certa forma demonstra que nenhuma das turmas estavam familiarizadas com esse tipo de proposta pedagógica. 4. 2. 4. Quarta oficina: “Em busca da Felicidade” “Se você tem um sonho, você tem que protegê-lo. As pessoas não conseguem fazer alguma coisa elas mesmas, e querem dizer que você também não consegue. Se você quer alguma coisa, vá atrás. Ponto Final.” Chris Gardner A quarta oficina foi chamada de “Filocine” por articular cinema e Filosofia com direito a pipoca e tudo mais. De início pretendia trabalhar o filme “Hector à procura da Felicidade”, no entanto, para exibição desse filme era necessária conexão com internet, o que não foi possível pela indisponibilidade de wifi na escola. O filme também não possuía disponibilidade para download gratuito e nas locadoras da região não foi encontrado. Por tal razão, resolvi utilizar o filme “A procura da Felicidade” (2006), com Will Smith, o qual também tratava assuntos relacionados ao cotidiano dos alunos como: desemprego, família, dificuldades e conquistas que eram o foco dessa oficina sobre a busca da felicidade. 109 Figura 12 - Alunos assistem ao Filme “A procura da Felicidade”. Durante a oficina percebi um ótimo retorno por parte dos alunos, pois as professoras haviam me informado, momentos antes, que normalmente em dias de filmes eles iam embora ou saiam após o intervalo. Mas nesse dia em especial, resolveram ficar e grande parte da turma permaneceu até o final do filme, que terminou às 22h. Levando-se em conta que os alunos da escola são liberados as 21h30mim, a permanência deles 30 minutos depois do habitual, representava, de algum modo, que se sentiram envolvidos com a atividade. Na aula seguinte ao filme separei algumas cenas para recordarmos momentos marcantes e refletirmos sobre o assunto. Durante essa reflexão fui escrevendo no quadro os sentimentos que aquelas cenas nos despertavam. Muitos alunos salientavam o caráter triste do filme, como se a vida real fosse um pouco menos dura. Outros relembraram que assisti-lo os fez chorar e recordar situações semelhantes que aconteceram com eles em outras épocas. Figura 13 - Releitura e resgate do filme “A procura da Felicidade” por meio de suas imagens mais marcantes. 110 Nesse momento também trabalhamos filosoficamente o oposto da felicidade que seria a dor, a tristeza, o fracasso e tantos outros sentimentos desagradáveis. Assim, fomos percebendo que pensar a Felicidade incluía muitas vezes refletir sobre seu oposto. Figura 14 - Disposição das imagens do filme no quadro (abaixo das imagens estão escritas as palavras que para os alunos melhor definem a cena). Depois de dialogarmos sobre os assuntos acima e transcrever essas palavras no quadro como de costume, pedi aos alunos que escolhessem três delas que melhor representassem os sentimentos que vivenciaram naquela experiência cinematográfica. Posteriormente lemos algumas notícias de jornais daquela data que ilustravam algumas das cenas do filme que afetavam diretamente nossa busca pela Felicidade, tais como: o aumento do desemprego e da pobreza no Brasil, o aumento no preço dos alimentos, dentre outros. Refletimos sobre as reportagens e incumbimo-nos de pesquisar e trazer, para o próximo encontro, reportagens que falassem sobre o contrário, ou seja, sobre fatos que nos ajudassem a conquistar a felicidade ou que expressassem boas ações. 4. 2. 5. Quinta Oficina: “A felicidade consiste em fazer o bem” “Felicidade é atividade.’’ Aristóteles Para essa oficina foi solicitado aos alunos que trouxessem para aula reportagens de jornais que tratassem sobre a prática do bem. Cada reportagem foi lida coletivamente pela turma e posteriormente expostas no quadro. Em seguida com o auxílio da turma 111 foi montado um “varal do bem” no qual as notícias foram expostas. Essa atividade foi pensada como forma introdutória aos pensamentos aristotélicos sobre felicidade. Figura 15 - “Varal do Bem” - Motivação introdutória ao pensamento Aristotélico sobre a felicidade. Na ocasião expliquei aos alunos quem foi Aristóteles, em qual contexto social ele viveu e o que pensava a respeito da conquista da felicidade. Posteriormente, por meio de frases nas quais Aristóteles trata o assunto, introduzi exercícios de reflexão e alfabetização. Assim, a cada frase introduzida uma nova discussão era iniciada visando iniciar os alunos em uma perspectiva filosófica do pensar. Em seguida trabalhei com o grupo as palavras contidas nos pensamentos aristotélicos, com destaque especial para a palavra virtude, e exploramos seus significados filosóficos e sociais. Destaco que grande parte dos alunos não sabia o que significava essa palavra. Os que arriscaram algum conceito atrelaram-no ao caráter religioso. Contudo, após discutirmos e focarmos a virtude em Aristóteles, eles foram percebendo que, para esse filósofo, a felicidade está estreitamente ligada à prática de boas ações. 112 Figura 16 - Construção do Varal do Bem. 4. 2. 6. Sexta oficina: “A felicidade e o Consumo Material” “A marca da cultura de consumo é a redução do ‘ser’ para ‘ter’.” John Piper Para trabalhar o consumo material e a conquista da felicidade utilizei como motivação imagens vinculadas ao consumismo e seu extremo: a pobreza. Foram criadas fichas contendo duas imagens e uma palavra expressando a cena. Durante a atividade cada aluno retirou aleatoriamente uma ficha do quadro, devendo ler a palavra em destaque e refletir sobre a imagem nela contida, sem que os outros alunos a vissem. Figura 17 - Aluno participando de atividade sobre o consumismo. 113 Posteriormente o discente era convidado a falar sobre sua imagem e ler a palavra destacada, no entanto, para dificultar o grau da atividade e torná-la mais dinâmica, no momento de sua explanação, o aluno deveria trocar sua ficha com outro e assim sucessivamente até que todas as imagens fossem analisadas e as palavras lidas. As fichas foram expostas no quadro de maneira a promover reflexões coletivas sobre as temáticas abordadas por elas. Tentei apresentar imagens fortes, com o intuito de promover indignações e diálogos sobre a realidade social ao mesmo tempo em que trabalhávamos dinamicamente as palavras contidas nelas. Figura 18 – Alunos lendo fichas sobre consumismo e analisando as figuras. Figura 19 - Disposição das fichas no quadro após dinâmica. Em seguida, nosso foco de análise deteve-se em figuras e vídeos que apresentavam como a felicidade é explorada na mídia. Propositalmente as imagens remetiam à questão do consumo e da indústria cultural, numa perspectiva adorniana. A 114 ideia principal era levar aqueles alunos a repensarem muitas das posturas assumidas frente à questão da felicidade e do quanto nossas percepções sobre a mesma acabam sendo moldadas pelo consumismo e a grande mídia. Nesse momento conversamos um pouco sobre como Theodor Adorno tratava esse assunto. Foram apresentadas aos alunos, por exemplo, imagens de propagandas de produtos famosos em um contexto de harmonia e felicidade. Nessa atividade os discentes tiveram que explicar cada gravura refletindo sobre o assunto. No fim cada aluno escolheu um título para as propagandas construindo frases no quadro com a ajuda da classe. 4. 2. 7. O encontro entre teoria e prática escolar: algumas considerações “A tarefa essencial do professor é despertar a alegria de trabalhar e de conhecer”. Albert Einstein O diálogo entre teoria e prática, nessa pesquisa em especial, possibilitou, se não a resposta a todas as indagações iniciais, reflexões sobre a prática pedagógica e filosófica assumida para com essa turma específica. Como já esperado, continuo querendo encontrar respostas que permitam assegurar com total convicção que a Filosofia pode ser inserida em turmas de alfabetização em EJA, sem nenhum prejuízo aparente. Contudo, creio que antes de tal afirmação seja necessário produzir novas indagações sobre a problemática, embora, creio que ponderações sobre minhas impressões a respeito dessa inserção sejam relevantes, afinal constituem o que de mais concreto tenho para partilhar, uma vez que esse estudo aparece como novidade no campo da EJA. Dentre as principais observações, cabe ressaltar, o visível aumento da participação dos alunos mais tímidos durante as atividades propostas. Percebi que alunos que permaneciam quietos em sala, em aulas anteriores as das oficinas, passaram a participar ativamente dos momentos filosóficos, fazendo colocações e perguntas. Era comum que eu levasse aos alunos pensamentos e frases de filósofos para refletirmos antes do início das oficinas. Nos dias, entretanto, em que planejava começar a aula por outra motivação, os alunos cobravam-me a leitura das frases, alguns até solicitavam que as escrevesse em seus cadernos para mostrar aos familiares e amigos. Não foram raras às vezes em que as oficinas acabaram começando cerca de 115 cinco a dez minutos depois do horário previsto porque ficava pesquisando frases para um dos alunos que sempre me solicitava que copiasse uma frase filosófica em seu caderno. Outro fato observado diz respeito as constantes narrativas de dor e sofrimento dos alunos, durante nossos debates sobre felicidade, alguns discursos eram tão fortemente carregados de envolvimento emotivo que se fazia impossível interromper o aluno, por mais que o pronunciamento fosse longo. Enunciados sobre as dificuldades em cuidar dos filhos, da vida dura de um analfabeto, da rotina de trabalho cansativa, dos obstáculos em aprender a ler e escrever, da morte do companheiro, dentre outros, traziam à tona as especificidades do aluno da EJA. Nesse contexto as reflexões acerca de ser ou não feliz eram marcadas por envolvimento pessoal. E de algum modo eu já esperava esse tipo de comportamento por parte dos alunos quando resolvi trabalhar justamente a felicidade. Tratar um conceito como esse em uma turma com predominância de idosos, repletos da vontade de aprender a ler e escrever, “atravessados” por marcas sociais e preconceito, estigmas de derrota, problemáticas pessoais, e outros aspectos, já nos mostra o peso dessa palavra, que de forma clara foi sentida pelos discentes. Tanto eu quanto a docente da classe percebíamos um “novo ambiente” em sala quando as oficinas ocorriam, tanto que ela mesma, várias vezes, me relatou o quanto estavam sendo proveitosos aqueles “momentos do pensar”, que os alunos os acolhiam de forma muito positiva porque fugiam da rotina escolar e instigavam-nos a pensar. Apesar de não estar entre os focos principais da pesquisa alfabetizar por meio da Filosofia, mas sim inseri-la em um ambiente alfabetizador da EJA, me preocupei em levar aos alunos experiências filosóficas que tivessem articulação com o processo de alfabetização e letramento, para tanto, dedicava um tempo importante ao planejamento das atividades didático- pedagógicas próprias para aquela turma, formuladas de acordo com o perfil da classe como respostas aos questionamentos provocados a cada nova oficina. O desafio era grande, pois precisava trazer algo novo e diferente a cada aula, ou seja, introduzir um pensamento filosófico por meio de uma metodologia capaz de atraí-los e ao mesmo tempo não tirar o foco da alfabetização. Contudo, a resposta dos alunos e da regente da classe apresentou mais pontos positivos que negativos, e creio que em nenhum momento tenha atrasado ou prejudicado o processo de alfabetização daqueles sujeitos, pois como dito, agi no intuito 116 de despertar o que cada área, alfabetização e Filosofia, poderia melhor ofertar àqueles sujeitos. Compreendo que refletir práticas educativas e metodologias de ensino é também filosofar e ao mesmo tempo descobrir formas expressivas de ensinar alguém a despertar seu potencial para o criar e o agir. Essa potencialidade para pensá-lo levou-me a indagar sobre possíveis maneiras de concretizar os pensamentos e diálogos desencadeados durante as oficinas. Nelas conversávamos constantemente sobre algo que pudesse representar tudo o que havíamos discutido. De alguma forma queria que essa concretização estivesse materializada na proposta de material didático desse estudo. Optei assim, por registrar esses pensamentos por gravuras. Na ocasião o artista plástico Carlos Eduardo Franca, morador de Angra dos Reis, auxiliou-nos nessa tarefa de registros produzindo imagens que representavam as temáticas das oficinas e as discussões promovidas nos encontros. Essas imagens fazem parte do material em anexo e nasceram com o objetivo de promover reflexões filosóficas antes mesmo que o educador comece a ler o planejamento da oficina. 117 CONSIDERAÇÕES FINAIS Falar em considerações finais nessa pesquisa não é algo propício, ao menos nesse momento. Temos a mais profunda convicção que muito ainda precisa ser discutido e proposto no que diz respeito à inserção da Filosofia nas classes de alfabetização da modalidade EJA, da mesma maneira que se torna preciso pensar a alfabetização como um todo. E, nesse caminho, é necessário entender tal proposta de estudo como uma problemática filosófica, além de educacional, para buscar soluções que visem uma alfabetização mais crítica e dialógica. Os desafios enfrentados para chegar até esse último capítulo foram inúmeros: o primeiro e maior veio logo de início e centrou-se na difícil tarefa de definir como atrelar alfabetização e Filosofia, depois em estabelecer um diálogo coerente com os autores escolhidos, em definir objetivos, pensar a metodologia mais apropriada, e tantos outros aspectos. Foram tantas dúvidas... Incertezas que constantemente colocaram em xeque a possibilidade de terminá-lo. No fim, as últimas páginas dessa dissertação são carregadas da certeza de que as incertezas que nos tomaram em seu início são ainda maiores. Contudo foram as inserções no campo de estudo, analisando o cotidiano e a introdução do novo no ambiente escolar, que nos permitiu acreditar no potencial dessa pesquisa, possibilitando um envolvimento verdadeiro com a proposta aqui exposta e um olhar sobre a EJA permeado por possibilidades filosóficas. O campo nos deu a “energia” que faltava para falar com propriedade sobre a realidade da Educação de Jovens e Adultos e mostrar ao leitor uma experiência concreta de aplicação desse estudo. Não que essa imersão tenha sido capaz de responder todas as nossas dúvidas ou de trazer uma resposta final à temática, mas revelou-se como um ponto para análise relevante. Bourdieu (1989 apud GOLDENBERG, 2000, p. 35) já nos explicava em O poder simbólico sobre a importância da “interrogação sistemática de um caso particular” para retirar dele as propriedades relevantes ou inaplicáveis, “ocultas debaixo das aparências de singularidade.” No sentido de que o raciocínio analítico nos possibilita imergir no particular do caso analisado e fazer uso da generalização sem nos deixar tomar por completo, graças à forma “particular de pensar o caso particular que consiste em pensálo verdadeiramente como tal”. “Este modo de pensamento realiza-se de maneira perfeitamente lógica pelo recurso ao método comparativo, que permite pensar 118 relacionalmente um caso particular constituído em caso particular possível”. (BOURDIEU, 1989, p. 32-33 apud GOLDENBERG, 2000, p. 35). Foi a prática que nos possibilitou a reflexão precisa para tratar essa temática. A apatia provocada pelo aporte puramente teórico só foi quebrada quando fizemos uso desses conhecimentos no cotidiano da sala de aula, quando nos possibilitamos vivenciar a EJA e oferecer-lhes parte do que vínhamos estudando. Nesse contato inicial percebemos que muitos dos sujeitos da EJA estão ali buscando novas oportunidades de inserção no mercado de trabalho, outros tentando realizar o sonho adiado, por razões diversas, de aprender a ler e escrever. São muitas histórias de vida que se compartilham e assemelham, todas embebidas pela esperança de pela educação preencher algo que os falta. Foi no campo que percebemos também que o aluno da EJA buscar seu lugar, quer falar sobre seus sonhos, suas lutas, quer ter voz. Eles se sentem agradecidos em ter alguém que possa escutá-los sem interrupções. Também gostam de participar das aulas, estão sempre atentos ao docente, exalam a “vontade de aprender.” Nesse cenário a Filosofia foi muito bem recebida. E arriscamo-nos a dizer que timidamente encontrou seu espaço num emaranhado de desconfianças. “Quem é essa professora nova?” “O que é essa Filosofia?” “Eu só conheço o Aristóteles da igreja”. Desconfianças que com o tempo foram transformando-se em novas formas de pensar. “Aristóteles era um homem avançado para seu tempo” “Professora escreve essa frase do tal Epicuro que eu quero levar pra minha filha ler”, “Esse filósofo pensa diferente do outro”. Com o passar dos dias eram os próprios alunos quem pediam que trouxéssemos frases filosóficas, e indagavam-me quando por algum imprevisto não comparecia no dia de costume. Com o tempo as oficinas tornaram-se mais dinâmicas, os mais quietos começaram a participar e a Filosofia foi se fazendo filosofar num ambiente de aprendizado da leitura e escrita. Falar sobre felicidade nesse ambiente mostrou-se extremamente propício aos nossos olhos. Quantas palavras foram apresentadas por meio de discussões envolvendo a temática, quantos assuntos atuais analisados... Em oito encontros discutimos sobre trabalho, família, tristeza, vida, morte, amor, virtude, consumo e tantas outras temáticas derivadas da felicidade. A todo instante também foi possível recordar a vida, relembrar etapas difíceis, reviver emoções e momentos especiais. Como esperava, refletir a possibilidade de ser 119 feliz com alunos tão tomados por singularidades como os da EJA, efetivamente, provocou uma fuga ao habitual. No primeiro momento os discentes mostraram-se resistentes a temática. Alguns chegaram a dizer que nunca foram felizes, mas um percentual expressivo, para minha surpresa, transportaram para suas famílias a conquista da felicidade verdadeira. Dessa maneira, aos poucos o envolvimento dos alunos com o tema tornou-se mais sólido. Era possível perceber que refletiam mais sobre a possibilidade de ser ou não feliz. Diante de uma situação problema, apresentada à turma, eles buscavam soluções dialogando com suas próprias vidas e relatando reações próprias, praticadas outrora. No fim falar sobre felicidade resultou em falar de si mesmo, em conhecer-se melhor, em refletir sobre a existência humana. Os alunos foram percebendo novas perspectivas, observando que assim como eles os filósofos tinham visões distintas sobre a verdadeira felicidade, e conquistando autonomia para pensar criticamente. Tornou-se possível fazermos ligações entre nossos pensamentos, a Filosofia e a alfabetização. Se um assunto era introduzido, logo o pensamento de um filósofo sobre o tema era apresentado e em seguida os vocábulos utilizados na discussão trabalhados com a turma. Nesse sentido, ouso dizer que vi analfabetos filosofarem enquanto aprendiam a escrever. O teor desse filosofar não entra em discussão nesse momento, muito menos se as postulações apresentadas eram totalmente pertinentes ao assunto; fato é que durante o processo de aprendizagem da leitura e escrita esses alunos refletiram sobre o que estavam escrevendo e paravam para pensar o que tudo aquilo significava. Outro aspecto de relevância inquestionável nessa empreitada filosófica diz respeito a questão religiosa vivenciada com a turma. Cerca de 80% dos alunos eram evangélicos. E essa prática refletia fortemente em suas falas e ações. Uma característica sem dúvida marcante na classe. Os alunos constantemente defendiam sua religião de forma extrema, chegando muitas vezes a discutir com aqueles que não comungavam do mesmo pensamento, o que acabava sendo concretizado nas discussões em sala. A docente da turma também costumava compartilhar com a classe pensamentos cristãos, o que em alguma medida conduzia grande parte das reflexões para o cunho religioso. Essa realidade foi percebida e vivenciada durante as oficinas. Ao perguntar-lhes palavras que sintetizavam felicidade a palavra “DEUS” foi citada quatro vezes entre os doze alunos da classe. Muitos inclusive acrescentavam 120 que na igreja descobriram a felicidade. Em outra etapa, ao trabalhar o pensamento aristotélico com eles veio à tona uma reflexão sobre a virtude. Ao questioná-los sobre o que entendiam por virtude todas as respostas foram de cunho religioso, como por exemplo, a “virtude é estar no caminho de Deus”, “Deus é virtuoso”, dentre outras. Também para muitos, só Deus poderia proporcionar a felicidade, cabendo ao homem ser obediente e aceitar suas vontades. Fui notando que parte considerável dos alunos, incluindo os não evangélicos, demonstravam certo conformismo com a infelicidade, acreditando ser a vontade de Deus uma vida de labuta e sofrimento, algo pelo qual deveriam passar por serem pecadores. Nesse cenário, tenho que confessar, não foi nada fácil apresentar novas perspectivas sobre felicidade que não se restringissem a Deus. No entanto, era preciso promover novas reflexões sem, no entanto, desrespeitar os conhecimentos prévios dos discentes. Isso nos evidencia o quanto a religião se faz presente nos espaços escolares, ainda mais quando estamos diante de colocações de cunho filosófico. Portanto, tornando-se relevante ao educador saber lidar com postulações dessa natureza sem desprezar essas considerações, visto que o aluno da EJA facilmente magoa-se abandonando o curso até mesmo por sentir-se contrariado – uma situação relatada pela própria professora da classe – mas também permitindo a eles novas perspectivas de pensamento que não fiquem restritas ao religioso. Essa não é uma atitude fácil. Muitos estão há anos na igreja, “fechados à um universo do pensar não cristão”, no entanto, o educar perpassa pela multiplicidade de saberes, de possibilidades e de escolhas. O professor precisa reconhecer que o aluno não aprende apenas na escola. Faz parte de sua formação a igreja, a família, a comunidade e tantos outros grupos sociais com os quais se relaciona. Promover atos do pensar respeitosos e criativos é obrigação do educador. Dessa obrigação também faz parte a promoção de novas vivências, ainda que a mesma não lhe pareça algo relevante. Durante as oficinas utilizei a sala de vídeo da escola por duas vezes, isso despertou nos alunos uma satisfação perceptível, visto que muitos nunca haviam entrado naquele espaço. Apesar de a escola possuir equipamento de áudio e vídeo, assistir um filme era sair da “rotina”. Um fato que me parece um déjà vu. Algo que infelizmente se mantem ao longo dos anos. Tornou-se natural uma escola ter computadores, mas os alunos não poderem acessar. Ter televisão, porém não serem exibidos filmes ou qualquer outra atração. Ter internet e nenhum discente poder utilizar, 121 e tantas outras coisas que fazem cada vez mais do aluno da EJA um sujeito sem qualquer recurso de aprendizagem, fora o livro didático e a lousa. Lamentável é perceber que posturas como essas estão longe de serem derrubadas. Muitas vezes porque a própria escola impõe limites às novas formas de produção do conhecimento, postura que se estende aos seus funcionários. No caso da oficina do filme, por exemplo, planejei levar pipoca aos alunos. Para isso solicitei às cozinheiras da escola autorização para utilizar a cozinha na preparação, assim economizaria visto que gastaria apenas um pacote de milho, no entanto, não obtive permissão pelo horário do filme ser próximo ao de preparo da merenda. Resolvi então, a um custo relativamente maior, comprar pipoca de micro-ondas e fazê-las na sala dos professores e, infelizmente, tive que escutar comentários de docentes de outras classes de que eu estava deixando um cheiro insuportável na sala e de que estava “maluca” em comprar pipoca “cara” para alunos. No entanto, a pipoca deu aquele momento um sabor todo especial. Muitos nunca haviam ido ao cinema e puderam experimentar aquela sensação, gostaram tanto que propuseram que assistíssemos outros filmes. As professoras da classe também ficaram satisfeitas com a atividade. Elogiaram o projeto e a todo instante mostraram-se empenhadas em fazer com que tudo desse certo. Poder contar com o apoio das docentes durante as oficinas foi algo de extrema importância no desenvolvimento desse estudo. Penso que todo educador não pode fechar-se ao que lhe é mais confortável. O valor social de um filme na formação dos alunos é inquestionável. Se não der para ter pipoca, então que seja sem. Mas que não deixe de ser. São momentos como esses, simples, mas ao mesmo tempo enriquecedores que conseguem significar o ensino, unir a turma e atribuir prazer ao aprendizado. Não estou dizendo que todas as aulas devam ter filmes, apenas que ignorar esse recurso o ano todo é, de algum modo, um desrespeito com instituições que desejariam tê-los e não os tem. Com os alunos que gostariam de utilizá-los e não utilizam. Com si mesmo, que no fundo sabe a relevância dessa prática, mas não aplica pelo relativo trabalho que possa vir a ter. Já passou o momento de alterar posturas, quebrar paradigmas e instaurar o novo, tal qual o ato de filosofar. Em se tratando de EJA, está mais do que na hora de reservar um espaço nas discussões filosóficas para pensar novas formas de articular Filosofia e Educação de 122 Jovens e Adultos, Filosofia e Educação Popular, Filosofia e trabalhadores e, acima de tudo, Filosofia e gente. Pessoas como eu, como você, que pensam em ter uma vida melhor, batalham por oportunidades e que retornam à escola porque, por algum motivo, acreditam na educação. Em geral, o estudo de caso mostrou-nos que não estávamos “errados” quando nos propusemos a retirar o filosofar do seu lugar de destaque, introduzindo-o no ambiente menos improvável. Ele nos ajudou a entender os “motivos” dessa empreitada, as possibilidades e principalmente os desafios, que não são poucos. E mais importante ainda, nos auxiliou na formulação de questionamentos e perspectivas futuras. “Um estudo de caso nunca está completo, sendo sempre possível acrescentar-lhe mais qualquer coisa”. (PONTE, 2006, p.7 apud THEES, 2012, 169). Quem melhor para falar sobre felicidade do que adultos e idosos. Nessa vida já desfrutaram momentos de alegria e tristeza, reviveram e revivem passados cotidianamente e tudo o que podem falar numa aula de felicidade é: FA, FE, FI, FO, FU. Se quisermos dar sentido à vida de jovens e adultos que retornam à escola, comecemos pelas nossas aulas. Se quisermos ensinar a escrever felicidade, comecemos admitindo que esse seja um conceito que abrange muito mais que um giz e um quadro em branco. Comecemos admitindo que essa palavra não poderá passar por desapercebido em uma aula, afinal passamos nossa vida inteira à sua busca. Da mesma maneira as reflexões acerca da felicidade não se encerram por aqui. As contribuições de Theodor Adorno, Freud, Paulo Freire, dentre outros, são apenas o começo de uma série de colocações que devemos nos fazer a respeito dessa conquista. “Seremos felizes nessa vida” “A felicidade existe”, são indagações inerentes a existência humana portanto, não se pretendem acabadas, mas enriquecidas pelo pensar contínuo. No fundo, se lutamos por uma educação de fato emancipadora, há que se levar em conta a felicidade do pensar. Somente embebidos pela certeza das possibilidades de refletir sobre si e sobre a vida poderemos conceber a felicidade enquanto realidade. Assim, a educação poderá colocar-se como possibilidade permanente: de realizar sonhos, instaurar perspectivas, descobrir o novo, promover o pensamento e permitir a felicidade. Em se tratando de EJA, está mais do que na hora de reservar um espaço nas discussões filosóficas para pensar novas formas de articular Filosofia e Educação de Jovens e Adultos, Filosofia e Educação Popular, Filosofia e trabalhadores e, acima de 123 tudo, Filosofia e gente. Pessoas como eu, como você, que pensam em ter uma vida melhor, batalham por oportunidades e que retornam à escola porque, por algum motivo, acreditam na educação. Fingir a não existência do analfabetismo representa um completo descaso com a população mais humilde, que necessita da escolarização para ter acesso à profissionalização, à cultura escrita e aos seus benefícios. É sinal de um descompromisso do poder público com uma dívida social de anos, que não merece ser tratada com a hipocrisia de quem não acredita na capacidade das classes populares. Estamos diante de uma proposta de trabalho inacabada, com muitas arrestas que somente a prática e a imersão na temática serão capazes de aparar. Obviamente as soluções aqui apresentadas são passíveis de críticas e reformulações, que entendemos como perfeitamente saudável ao desenvolvimento dessa pesquisa, o importante é que a “semente” da possibilidade de um analfabeto filosofar não “morra”. Pelo contrário, entendemos a Filosofia como uma “porta aberta” ao pensar, a descoberta e a vida. Afinal, o desabrochar para o conhecimento, o pensamento em ação, somente é alcançado quando estamos dispostos ao novo e, nesse sentido, levar Filosofia ao alfabetizando é romper paradigmas e instaurar novos olhares sobre o processo de alfabetização de jovens e adultos. Nesse sentido, creio que essa pesquisa, além de colocar a inserção da Filosofia na alfabetização de jovens e adultos em pauta, abre margens para futuros questionamentos sobre a própria natureza da introdução dessa perspectiva filosófica no âmbito das séries iniciais da EJA. Se como uma disciplina obrigatória, ou como uma área do saber que norteia outras com o intuito de fortalecer o viés reflexivo e criativo das mesmas. Ou seja, nos espaços de alfabetização da EJA devemos nos valer da Filosofia como disciplina ou como estratégia de pensamento crítico-reflexivo? Disciplina ou estratégia pedagógica o importante é partir do pressuposto de que o momento do filosofar não poderá constituir-se em um “evento”. Um acontecimento programado com dia e hora certos para acontecer. O pensar deve constituir-se em algo contínuo. Não é um instante. É uma relação com o saber, um processo de crescimento, aprendizagem e autonomia crítica. Portanto, não admite pormenores, pode ser planejado sim, mas não deverá ser programado como algo fora do habitual. Essas são questões que pela própria complexidade da Educação de Jovens e Adultos e da Filosofia não se cessão por agora, mas que necessitarão de destaque em futuros desdobramentos desse estudo. 124 Portanto, nem os objetivos e muito menos a metodologia aqui traçada são definitivos. Estamos dispostos a pensar juntos, refletir sobre nossos pequenos passos para nos lançar em voos panorâmicos. Afinal, desde o começo dessa pesquisa nunca foi nossa intenção acreditar que nosso trabalho seria concluído aqui, porém era preciso derrubar os primeiros obstáculos, mesmo sabendo que a estrada seria longa. Um novo caminho para a EJA é colocado nesse estudo. A Filosofia é “um caminho” e não “o caminho”. Mas poderá transformar-se numa importante forma de materializar nas salas de aula o discurso de grandes pensadores como Paulo Freire, criticado por valer-se justamente do filosofar em suas considerações. A Filosofia é “uma perspectiva” e não “a perspectiva”. Ela se traduz em uma das “possíveis” formas de enxergar o mundo e pensar sobre si de forma crítica, não é a “única” – e nem está entre suas pretensões querer tal proeza. Por fim, a Filosofia é “uma alternativa” e não “a alternativa”. Sobretudo é a solução encontrada pelos educadores que acreditam em seus alunos, na capacidade que eles possuem de refletir, ainda que no começo de sua trajetória acadêmica. Portanto, negar ao analfabeto a possibilidade de dialogar consigo mesmo, de pensar o mundo a sua volta, de conhecer o pensamento de grandes filósofos, de compartilhar experiências e, sobretudo, refletir é no mínimo incoerente com o próprio discurso da EJA, e mais, é incompatível com a própria missão de um educador. 125 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, T. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ADORNO, Theodor. Tempo Livre. In: ______. Palavras e Sinais: modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995. ADORNO, Theodor. Teoria estética. Tradução de Arthur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008. ADORNO, Theodor; HORKEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. ADORNO, W. Theodor. Digitale Bibliothek Band. 97: Theodor W. Adorno: esammelte. [Berlin]: Directmedia Publishing, sep. 2004. ANDRADE, Eliane Ribeiro. Os sujeitos educandos na EJA. In: TV Escola, Salto para o Futuro. 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TEMPO ESTIMADO PARA A OFICINA: Uma aula (duração de Três a quatro horas) MOTIVAÇÃO / SUGESTÃO: Música “Felicidade foi-se embora” de Lupicínio Rodrigues DESENVOLVIMENTO: 1° Momento: Como primeira discussão acerca do conceito felicidade orienta-se o docente a utilizar uma atividade motivadora como introdução da oficina. Sugerimos a música “Felicidade foi-se embora”. Em seguida é importante elencar com a turma algumas concepções sobre felicidade. Para isso, pergunte, por exemplo: se eles acreditam ser possível conquistar a felicidade? O que é Felicidade? Se são felizes, etc. 2° Momento: Após essa etapa o professor poderá conversar com os alunos sobre alguns filósofos que possuíam perspectivas de felicidade relacionadas às definidas por eles. Para tanto, torna-se importante explicar o que é ser um filósofo e do que trata a Filosofia, esclarecer que a conquista da felicidade sempre esteve presente na Filosofia desde a Antiguidade e que refletir sobre questões como essas são importantes para sua formação. 3°Momento: Em seguida transcreva no quadro as palavras surgidas na discussão sobre felicidade trabalhando com a turma suas grafias e fonemas. Explore sílabas desconhecidas apresentando outras palavras com sons parecidos. Obviamente o aluno não aprenderá todas as palavras numa aula, mas isso não impede o docente de apresentá-las à turma e em seguida ir trabalhando cada uma delas separadamente. Nessa aula, por exemplo, foque na leitura e escrita da palavra FELICIDADE, evidenciando que dela pode-se escrever CIDADE, IDADE e FELIZ. 133 PROJETO APRENDENDO A ESCREVER, ENSINANDO A FILOSOFAR OFICINA FILOSOFICA N° 2 TEMA DA OFICINA: Tristeza não tem fim, Felicidade sim. OBJETIVO GERAL: Refletir sobre os conceitos Tristeza x Felicidade reconhecendo palavras que possuam o encontro consonantal “TR” e terminações em “EZA”. Objetivos específicos: Refletir o conceito da Tristeza versus Felicidade; Elencar outras palavras que possuam o encontro consonantal “TR” e terminações em “EZA”; Explorar o universo vocabular oriundo das reflexões sobre felicidade, da oficina anterior, por meio de um bingo. PERGUNTA NORTEADORA: Somos mais tristes do que felizes? TEMPO ESTIMADO PARA A OFICINA: Uma aula (duração de Três a quatro horas) OBS: Reserve os dois primeiros tempos da aula para alcançar os primeiros objetivos e o último tempo para realização do bingo. MOTIVAÇÃO / SUGESTÃO: Poesia Felicidade de Vinícius de Moraes DESENVOLVIMENTO: 1° Momento: Orientamos o docente a iniciar essa aula com uma poesia que trate da temática felicidade. Para tanto, sugerimos que seja entregue uma folha com a poesia transcrita para os alunos, isso ajudara-los a localizar algumas das palavras trabalhadas na oficina anterior. Leia a poesia pausadamente, se possível mais de uma vez, em seguida promova com a turma uma discussão que traga os conceitos filosóficos Tristeza e Felicidade. “2° Momento: Elenque com a turma palavras que se iniciem ou possuam o encontro consonantal “TR” e terminações em “EZA” e “ESA” (se possível trabalhe essa diferença por meio de palavras do cotidiano dos alunos) escreva-as no quadro e trabalhe a leitura e escrita de cada uma delas. 3° Momento: O segundo momento da oficina será uma retomada das palavras trabalhadas na oficina anterior. Para tanto, sugerimos um bingo de palavras onde os alunos deverão localizar na cartela a palavra lida pelo colega de classe. 134 PROJETO APRENDENDO A ESCREVER, ENSINANDO A FILOSOFAR OFICINA FILOSOFICA N° 3 TEMA DA OFICINA: A Felicidade na vida real OBJETIVO GERAL: Pensar sobre como nossas ações diárias podem influenciar a forma com que nos aproximamos ou nos distanciamos da Felicidade Objetivos específicos: Dialogar sobre ações do dia-a-dia que nos auxiliam na busca pela felicidade; Identificar nos curtas assistidos ações semelhantes as do nosso cotidiano; Reconhecer a escrita dos temas tratados nos curtas explorando a leitura das palavras temáticas. PERGUNTA NORTEADORA: Nossas ações podem nos distanciar da conquista da Felicidade? TEMPO ESTIMADO PARA A OFICINA: Uma aula (duração de Três a quatro horas) MOTIVAÇÃO / SUGESTÃO: Apresentações de curtas com assuntos variados: convivência, amor, amizade, família, obsessão, etc. DESENVOLVIMENTO: 1° Momento: Inicie a oficina sem mencionar aos alunos os assuntos tratados nos curtas, pelo contrário, deixe que eles, após a exibição, relatem os assuntos abordados pelos filmes. 2° Momento: Após o término da exibição dos filmes promova um debate com os alunos sobre como nossas ações diárias podem nos aproximar ou afastar da felicidade 3° Momento: Nessa etapa sugerimos a realização de uma atividade que promova a interpretação dos curtas com foco na alfabetização. O professor, por exemplo, poderá escolher cenas dos filmes e explorar a escrita e leitura da palavra que melhor define aquela imagem, ou trabalhar a escrita dos temas tratados nos curtas. SUGESTÕES DE CURTAS: Convivência For The Birds: https://www.youtubr.com/watch?=BQTJgwq7gPQ O monge e o cão: https://www.youtube.com/watch?v=NBXFP2fdjKA O último trico: https://www.youtube.com/watch?v=xL50-Vlfcu0 Quero envelhecer com você: https://www.youtube.com/watch?v=C5Qha 2K-ux8 135 PROJETO APRENDENDO A ESCREVER, ENSINANDO A FILOSOFAR OFICINA FILOSOFICA N° 4 TEMA DA OFICINA: Em busca da Felicidade OBJETIVO GERAL: Dialogar sobre as cenas do filme “A procura da Felicidade” e as perspectivas de felicidades trabalhadas com a turma até então. Objetivos específicos: Refletir sobre a mensagem passada no filme; Realizar um diálogo sobre o filme assistido, atrelando essa discussão ao questionamento sobre a possibilidade de conquista da felicidade; Promover um momento de releitura e resgate do filme por meio de suas imagens mais marcantes (encontro seguinte); Utilizar palavras trabalhadas em outras oficinas para formar frases com mensagens passadas pelo filme (encontro seguinte). PERGUNTA NORTEADORA: O esforço leva à felicidade? TEMPO ESTIMADO PARA A OFICINA: Duas aulas (Com duração de Três a quatro horas cada) MOTIVAÇÃO / SUGESTÃO: Filmes: “A procura da Felicidade” e/ ou “Hector a procura da felicidade” DESENVOLVIMENTO: 1° Momento: Para motivar uma reflexão mais aprofundada sobre a conquista da Felicidade sugerimos a exibição de um filme que trate questões cotidianas de busca pela felicidade. 2° Momento: Após a exibição do filme sugerimos a promoção de um diálogo com os alunos sobre os assuntos tratados no filme, para tanto o docente pode separar algumas imagens com as cenas mais marcantes e junto com os alunos escrever no quadro as mensagens transmitidas pelo filme que se relacionam ao que já foi trabalhado sobre felicidade. 3°Momento: Nesse ponto também é possível tratar filosoficamente o oposto da Felicidade que seria a dor, a tristeza, o fracasso e tantos outros sentimentos desagradáveis, mostrando aos alunos que quando falamos de felicidade necessariamente falamos de seus antagonismos 136 PROJETO APRENDENDO A ESCREVER, ENSINANDO A FILOSOFAR OFICINA FILOSOFICA N° 5 TEMA DA OFICINA: A Felicidade consiste em fazer o bem. OBJETIVO GERAL: Refletir sobre a prática do bem e sua relação com a conquista da Felicidade. Objetivos específicos: Refletir sobre reportagens com temáticas do bem; Construir um varal do bem com as reportagens lidas sobre prática de boas ações; Dialogar sobre os pensamentos de Aristóteles acerca da Felicidade; Promover um debate sobre a prática do bem e a Felicidade. PERGUNTA NORTEADORA: A virtude pode levar à conquista da felicidade? TEMPO ESTIMADO PARA A OFICINA: Uma aula (duração de Três a quatro horas) MOTIVAÇÃO / SUGESTÃO: Construção de um varal do bem DESENVOLVIMENTO: 1° Momento: Peça com antecedência que os alunos tragam para aula notícias cujo assunto principal retrate uma boa ação, ou seja, que explore o conceito da virtude; 2° Momento: Nesse instante cada reportagem será lida para a turma, sempre que possível com a ajuda dos alunos. Logo após, o professor poderá solicitar aos discentes que definam a palavra que melhor exemplifica essa reportagem sugerindo que os mesmos façam placas de identificação para as reportagens utilizando essas palavras. 1° Sugestão: A ideia é que as leituras dessas reportagens se tornem uma rotina na sala. Visando isso, será construído, junto com os alunos, um varal do bem. Toda semana os alunos trarão reportagens novas para exibição na sala e leitura conjunta. Para a discussão dessas notícias sugerimos a formação de um círculo e a escolha de um dia fixo na semana – como parte de um planejamento anual. 3º Momento: Pense nesse como um ótimo momento para introduzir na turma o pensamento aristotélico sobre a prática do bem e sua relação com a conquista da felicidade. De forma introdutória fale sobre Aristóteles, seus pensamentos e sua produção, para tanto, após explorar as reportagens traga aos alunos frases nas quais o pensador discute essa problemática. Em seguida proponha uma breve reflexão sobre as mesmas por meio de exercícios de alfabetização que tenham essas frases como temática. 3° Sugestão: Por último monte com os alunos, ao final do projeto, um “Varal Filosófico” onde sejam apresentadas frases de filósofos com os seus respectivos nomes e imagem. Como aqui abordamos a temática da felicidade, o ideal é que esse varal explore esse tema, mas também poderá ser utilizado em qualquer outro tema. Faça isso tentando ao mesmo tempo explorar, por meio das principais frases desses pensadores, os aspectos alfabetizadores das palavras trabalhadas. 137 PROJETO APRENDENDO A ESCREVER, ENSINANDO A FILOSOFAR OFICINA FILOSOFICA N° 6 TEMA DA OFICINA: O Consumismo e a Felicidade OBJETIVO GERAL: Questionar-se a respeito do consumo na conquista da felicidade. Objetivos específicos: Pensar nas desigualdades sociais existentes na sociedade; Refletir o lugar do consumo na satisfação das necessidades individuais e coletivas; Identificar no contexto do consumismo palavras já trabalhadas, bem como as não trabalhadas em sala, que estejam relacionadas ao consumo; Perceber o papel da mídia na construção das diferentes perspectivas de felicidade e do padrão consumista do século XXI. (Encontro seguinte) PERGUNTA NORTEADORA: Consumir provoca felicidade? TEMPO ESTIMADO PARA A OFICINA: Duas aulas (Com duração de Três a quatro horas cada) MOTIVAÇÃO / SUGESTÃO: Fichas com imagens de desigualdade social e propagandas de produtos famosos. DESENVOLVIMENTO: 1° Momento: Comece a oficina dispondo no quadro ao avesso as fichas com cenas de desigualdades sociais. Faça de maneira que os alunos não sejam capazes de perceber do que se tratam as imagens. O ideal é que as mesmas tragam o contraste entre situações de extrema pobreza versus consumismo desenfreado e que contenham uma palavra que expresse aquela cena. 2° Momento: Após peça a cada aluno que se dirija ao quadro para retirar uma ficha. Ele deverá escondê-la dos demais colegas enquanto tenta ler a palavra contida na ficha e interpretar sua imagem. 3° Momento: Escolha um aluno para começar a dinâmica, mas antes de solicitar que ele fale sobre a imagem e leia sua palavra, surpreenda-o solicitando que escolha outro colega com quem gostaria de trocar sua ficha. A dinâmica seguirá dessa forma: a cada aluno solicite que troque sua ficha com outro, isso lhe promoverá uma saída da zona de conforto e um esforço maior para ler a palavra nova. 2° Momento: Disponha as imagens no quadro enquanto promove uma discussão sobre o consumismo e seus resultados na sociedade; após leia com os alunos as palavras contidas na ficha, posteriormente promova uma atividade de alfabetização que tenha como foco as palavras trabalhadas nessa oficina. 138 3° Momento: Mostre aos alunos imagens e/ ou propagandas de produtos famosos em meio a cenas cotidianas: almoço em família, café da manhã, etc. Peça aos alunos que localizem esses produtos nas cenas e promova em seguida um diálogo sobre como essas marcas estão incorporadas no mercado nacional e mundial, ditando padrões de consumo. Sugira aos alunos, por exemplo, que descrevam quais as mensagens que essas propagandas lhes transmitem, quais os padrões de famílias presentes nas cenas e em quais perspectivas a felicidade é trabalhada nas cenas. (Encontro seguinte) 4º Momento: Posteriormente monte com os alunos uma tabela contendo o nome da marca que comanda o mercado consumidor (elenque, por exemplo, aquelas marcas que por sua popularidade se confundem com o próprio nome do produto) e o verdadeiro nome do produto, por exemplo: “Bombril” – Esponja de aço; “NESCAU” – Achocolatado; “Leite Moça” – Leite condensado; dentre outros. (Encontro seguinte) 139 APÊNDICE B – Imagens utilizadas nas reflexões das oficinas filosóficas Fonte: https://br.pinterest.com/pin/373306256589427855/ Fonte: https://br.pinterest.com/pin/373306256589427855/ 140 Fonte: https://mundodesalienado.wordpress.com/2013/10/30/a-vida-da-sociedadeno-sistema-capitalista/ Fonte:http://seroutereisaquestao.blogspot.com.br/2013/06/texto-de-divulgacaocientifica-e-charge.html 141 Fonte: http://www.filosofiahoje.com/2013/04/midia-tradicional-x-midia-social.html 142 APÊNDICE C - Autorização de uso da imagem utilizada na pesquisa AUTORIZAÇÃO DE USO DA IMAGEM EM DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Eu _____________________________________________________ aluna(o) da Escola Municipal Raul Pompéia, portador do número de matrícula:_____________ autorizo a utilização da minha imagem para produções relacionadas ao projeto de mestrado intitulado “Aprendendo a escrever, ensinando a filosofar” da mestranda Angélica Lino Pacheco Paiva do programa de pós-graduação em Filosofia e Ensino do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca Angra dos Reis, _____ de ___________ 2016. _________________________________________ Aluno APÊNDICE D – Material Didático produzido a partir das oficinas filosóficas oferecidas 143 144 145 146 147 148 149 150 151 152 153 154 155 156 157 158 159