Considerações da Avaliação Cardiológica na Radiografia Simples Dr. Paulo Bomfim CRMV-RJ 6680 A cardiologia diagnóstica avançou com rapidez nas últimas décadas, principalmente por causa dos desenvolvimentos clínicos e experimentais nas técnicas de imagem cardíaca. Uma vez que, de maneira sucinta, a radiografia torácica distingue entre as densidades do ar e de tecidos moles, e a ultra-sonografia (ecocardiograma) discrimina as estruturas do fluido e dos tecidos moles, estas duas práticas se tornaram ferramentas complementares para a avaliação cardíaca de modo não-invasivo. Com o advento da ecocardiografia com Doppler, adicionou-se a capacidade de avaliar a função cardíaca e os padrões de fluxo sanguíneo. Embora a radiografia torácica e o ecodopplercardiograma sejam importantes técnicas para o estudo cardiológico, recomenda-se para a elaboração de um diagnóstico completo e um plano terapêutico adequado e direcionado para cada paciente, integrar as informações obtidas nestes procedimentos à avaliação clínica, eletrocardiograma e outros exames complementares pertinentes. Tradicionalmente, a análise radiográfica cardíaca busca o diagnóstico considerando o tamanho e a forma de cada parte do coração separadamente. Embora seja válido, esse enfoque reducionista raramente gera um diagnóstico específico; recomenda-se, portanto, fazer uma avaliação holística, e não só das câmaras cardíacas. Três aspectos principais devem ser compreendidos: 123sistêmica) Tamanho e forma do coração Análise das artérias aorta e pulmonar principal Status circulatório pulmonar (e, conseqüentemente, da circulação A avaliação radiográfica da silhueta cardíaca torna-se desafiante devido às variações entre as raças e as conformações individuais, além das complicações relacionadas ao posicionamento e técnica radiográfica. Importantes fatores devem ser levados em consideração: 1 – A silhueta cardíaca é o somatório das imagens das câmaras cardíacas e dos grandes vasos, sobrepostos pelo pericárdio (FIg.01 e Fig.02); 2 – Muitos pacientes cardiopatas apresentam silhueta cardíaca normal. Isso ocorre porque há uma ampla série de tamanhos e formatos considerados normais, algumas doenças não causam cardiomegalia, e muitas podem estar presentes antes mesmo de desenvolverem alteração de volume cardíaco significativo; 3 – O tamanho e o formato cardíacos variam de acordo com a faixa etária, o estágio do ciclo cardíaco, a fase respiratória e a conformação anatômica do tórax. Tais variações serão discutidas posteriormente. Fig.01 – Ilustração Coração normal Canino (incidências LL e VD, respectivamente). Considerando-se o pericárdio removido: (cv) v. cava cranial; (br) art. braquicefálica; (ls) art. subclávia esq.; (ao) arco aórtico; (pa) art. pulmonar; (rau) aurícula dir.; (rv) ventrículo dir.; (la) átrio esq.; (lau) aurícula esq.; (ldc) ramo descendente da art. coronária esq., marcando a posição do septo interventricular; (lv) ventrículo esq.; (rpa) art. pulmonar dir.; (lpa) art. pulmonar esq.; (pc) v. cava caudal; (it) art. e veias torácicas internas. Adaptado SUTER & LORD, 1984. Fig.02 – Ilustração Coração normal Felino (incidências LL e VD, respectivamente). Considerando-se o pericárdio removido: (cv) v. cava cranial; (ao) arco aórtico; (pa) art. pulmonar; (rau) aurícula dir.; (ra) átrio dir.; (rv) ventrículo dir.; (la) átrio esq. com a aurícula esq. unida; (lau) aurícula esq.; (lv) ventrículo esq.; (pc) v. cava caudal. Adaptado SUTER & LORD, 1984. O procedimento radiográfico é realizado preferencialmente durante a inspiração e em duas incidências: látero-lateral (LL) e ventro-dorsal (VD) ou dorso-ventral (DV). Alguns estudos relatam não haver significativa diferença entre as incidências LL em decúbito esquerdo e LL em decúbito direito, ou entre VD e DV. Contudo, é importante padronizar a metodologia empregada para que análises comparativas futuras não sejam equivocadas (Fig.03 e Fig.04). Fig.03 – Posicionamento Tórax Canino (incidências LL, VD e DV, respectivamente). Adaptado SCHEBITZ, 2000. Fig.04 – Posicionamento Tórax Felino (incidências LL e VD, respectivamente). Adaptado SCHEBITZ, 2000. Muitos métodos já foram propostos para a avaliação cardíaca, porém nenhum deles alcançou aprovação unânime dos radiologistas. A interpretação empírica, subjetiva, ainda é a mais recomendada, sendo, portanto, imprescindível a experiência profissional. O método mais simples divide a silhueta cardíaca em 4 (quatro) segmentos. O segmento dorsal cranial é formado predominantemente pelo átrio direito, mais especificamente a aurícula direita, com alguma contribuição da superposição com ventrículo direito, tronco pulmonar e aorta descendente. O segmento ventral cranial é formado quase que exclusivamente pelo ventrículo direito. O segmento dorsal caudal é formado pelo átrio esquerdo e o ventral caudal pelo ventrículo esquerdo. Áreas definidas como cinturas são visualizadas cranialmente e caudalmente na incidência LL. A cintura cranial é a confluência da silhueta cardíaca com a veia cava cranial, que forma a borda ventral do mediastino cranial visível. A cintura caudal é a transição entre átrio e ventrículo esquerdos. A identificação das cinturas pode ser freqüentemente difícil, mas serve como uma útil referência. Na incidência VD, deve-se traçar uma linha oblíqua do aspecto cranial até o ápice caudal. O segmento cranial direito é formado pelo átrio e ventrículo direitos, e o segmento caudal direito pelo ventrículo direito. O segmento cranial esquerdo é formado pela confluência da silhueta da aorta descendente, artéria pulmonar principal e o apêndice auricular esquerdo. O segmento ventral esquerdo é formado pelo ventrículo esquerdo. Na incidência radiográfica LL, a silhueta cardíaca se estende da 3ª ou 4ª costelas até a 7ª ou 8ª costelas, e ocupa aproximadamente dois terços da altura cardíaca. O coração apresenta uma base dorsal e bordas cranial e caudal arredondadas, sendo menos acentuada nesta última. O ápice cardíaco encosta ou está levemente separado do esterno. Na incidência VD ou DV, a silhueta cardíaca, na maioria dos cães, ocupa da 3ª a 8ª ou 9ª costelas; em gatos, da 5ª ou 6ª a 9ª ou 10ª costelas. No seu ponto mais largo, o coração abrange cerca de metade a dois terços da largura torácica. Fig.05 – Coração normal Felino (incidência LL). Fig.06 – Coração normal Felino (incidência VD). Fig.07 – Coração normal Canino (incidência LL). Fig.08 – Coração normal Canino (incidência VD). Outro método utiliza o relógio como referência. Incidência LL: a) 12h a 2h átrio esquerdo; b) 2h a 5h ou 6h ventrículo esquerdo; c) 5h ou 6h a 9h ou 10h ventrículo direito; d) 9h ou 10h a 12h apêndice auricular direito, artéria pulmonar principal, arco aórtico e algumas estruturas mediastinais próximas ao átrio direito (incluindo veia cava cranial). Fig.09 – Coração normal Canino (incidência LL). Ilustração método de avaliação pelo relógio. Incidência VD: a) 1h a 2h artéria pulmonar principal; b) 2h a 3h apêndice auricular esquerdo; c) 3h a 5h ou 6h ventrículo esquerdo; d) 5h ou 6h a 10h ventrículo direito; e) 10h a 12h átrio direito e extensão caudal da veia cava cranial. Fig.10 – Coração normal Canino (incidência VD). Ilustração método de avaliação pelo relógio. Um sistema utilizado para mensurações cardíacas associa a determinação do tamanho do coração com uma escala vertebral. De maneira simplificada e didática, o tamanho cardíaco global é mensurado e comparado a vértebras torácicas (iniciando em T4 e seguindo caudalmente). O “Vertebral Heart Size” (VHS) é então expressado como o total de unidades do comprimento vertebral mais próximo de 0,1 vértebra. Usando esse sistema, na incidência LL, a soma de comprimento e altura de um coração considerado normal, em VHS, está em 9,7 ± 0,5 vértebra para cães, e 7,5 ± 0,3 vértebra para gatos. Exceções foram relatadas em cães com tórax curto (ex. Schnauzer Miniatura) e tórax longo (ex. Dachshund). Modificações deste método enfocam taxas específicas por raça e uma escala para animais em crescimento. Fig.11 – Coração normal Canino (incidência LL). Ilustração método de avaliação pelo VHS. A mensuração cardíaca não alcançou grande popularidade clínica na Medicina Veterinária, principalmente por causa da variação racial e conseqüente diminuição da sensibilidade do exame. Se for utilizada, alguns autores recomendam adotar uma ampla base de controle para cada raça avaliada. De qualquer forma, este método pode ser muito útil, sobretudo na análise comparativa da evolução da doença cardíaca. Variações cardíacas pela faixa etária: - Pacientes jovens aparentam ter um coração maior do que o normal após a sua maturidade, devido à proporção em relação ao tórax. Variações cardíacas pelo seu próprio ciclo: - Essa variação é mais bem observada nas raças grandes e com pequenos tempos de exposição radiográfica, entretanto, não é normalmente visualizada na radiografia; - Durante a sístole ventricular ocorre um aumento da largura da região cranial, o ápice fica estreitado e há uma acentuação da artéria pulmonar principal; - Durante a sístole o coração pode aparecer ligeiramente menor que durante a diástole. Variações cardíacas pela fase respiratória: - Um aumento mínimo do coração, associado ao aumento do contato esternal, é visualizado durante a expiração devido à diminuição do volume pulmonar; - Conseqüentemente, o coração aparenta ser menor durante a inspiração se comparado com a expiração. Variações cardíacas pela conformação anatômica do tórax: - Tórax profundo e estreito (ex. Collie): - As variações de formato nesses cães são mais evidentes; - Coração alongado, estreito e oval, que normalmente parece pequeno em relação ao volume torácico; - Incidência LL: base do ápice cardíaco mais perpendicular em relação à coluna, com mínimo contato esternal. Silhueta cardíaca ocupa aproximadamente 2 ½ espaços intercostais. Coração estreito e verticalizado; - Incidência VD: ápice localizado na linha média durante a inspiração e à esquerda da linha média durante a expiração. Coração arredondado e menor. - Tórax intermediário (ex. Pastor Alemão): - Incidência LL: maior inclinação cranial aumentando o contato esternal, se comparando com os animais citados acima. Silhueta cardíaca mais larga; - Incidência VD: coração em “formato de D invertido”, com ápice levemente posicionado à esquerda da linha média. - Tórax raso e largo (ex. Bulldog): - Silhueta cardíaca habitualmente aparenta ser aumentada devido a sua proporção em relação ao tórax; - Incidência LL: acentuada inclinação cranial e grande contato esternal. Silhueta cardíaca mais arredondada; - Incidência VD: ápice localizado à esquerda da linha média, sendo freqüentemente difícil visualizá-lo devido ao seu formato alargado. O formato e o tamanho do coração em felinos são mais uniformes, mesmo entre as diferentes raças, e são similares aos do cão, todavia, seu ápice é mais estreito quando comparado à base ou margem cranial cardíaca. Em gatos idosos, um aumento do contato esternal geralmente ocorre associado a um arco aórtico alongado. Esse arco aórtico ‘pendular’, na incidência VD, é visualizado como uma estrutura circular em região cranial esquerda cardíaca, mimetizando a presença de uma massa. Esses achados aparentemente não apresentam importante significado clínico. Um estudo observou que há uma tendência à gordura pericardial em gatos ser interpretada como parte da silhueta cardíaca, gerando um falso diagnóstico de cardiomegalia. Contudo, o uso de uma técnica radiográfica adequada e uma avaliação criteriosa das densidades permitem a diferenciação entre a borda da gordura pericardial e a silhueta cardíaca. Exemplos de afecções cardíacas: - Cardiomiopatia dilatada - Cardiomiopatia hipertrófica - Cor Pulmonale - Dirolfilariose - Endocardite e Miocardite - Insuficiência valvar (mitral ou tricúspide) - Estenose valvar (mitral ou tricúspide) - Estenose Aórtica - Estenose Pulmonar - Defeito Septal (aórtico-pulmonar, atrial, ventricular, ou átrio-ventricular) - PDA = Persistência do Ducto Arterioso - Tetralogia de Fallot (estenose pulmonar, defeito septal ventricular, dextroposição da aorta e hipertrofia ventricular direita) Cardiomegalia = termo não específico indicador de aumento das dimensões da silhueta cardíaca, excedendo o esperado para a raça e faixa etária do paciente. Fig.12 – Discreta Cor Pulmonale secundária às alterações pulmonares – metástases - (incidência LL). Fig.13 – Estenose aórtica (incidências LL e VD, respectivamente). Fig.14 – Insuficiência cardíaca esquerda com edema pulmonar secundário (incidência LL). Fig.15 – Insuficiência cardíaca direita com efusões pericárdica e pleural (muito discreta) secundárias (incidências LL e VD, respectivamente). Fig.16 – Marcado aumento atrial esquerdo devido à significativa regurgitação mitral crônica. Notar deslocamento de ápice cardíaco na VD (incidências LL e VD, respectivamente). Fig.17 – Cardiomegalia generalizada, sobretudo de átrio e ventrículo esquerdos (incidência LL e VD, respectivamente). Referência Bibliográfica BUCHANAN, J. W. Vertebral Scale System to Measure Heart Size in Radiographs. Veterinary Clinics of North America: Small Animal Practice 30(2):379-393, 2000. BURK, R. L.; FEENEY, D. A. The Thorax. In: Small Animal Radiology and Ultrasonography – A Diagnostic Atlas and Text. 3rd ed. Missouri: Saunders, 2003. p.25248. FARROW, C. S. Análise da Silhueta Cardíaca. In: Veterinária – Diagnóstico por Imagem do Cão e Gato. 1ª ed. São Paulo: Roca, 2006. p.499-501. FARROW, C. S. 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