Carlos Gustavo Monteiro Cherri

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DESCARTES E O COMEÇO ABSOLUTO:
A INTERPRETAÇÃO HEGELIANA SOBRE DESCARTES
Carlos Gustavo Monteiro Cherri1
Resumo Segundo Hegel, a Filosofia Moderna se inicia com Descartes. Hoje em dia, tal
afirmação é unanimidade entre os autores de História da Filosofia, no entanto, quais são
as consequências de tal afirmação no interior das categorias para a interpretação da
concepção hegeliana da História da Filosofia? A pertinência dessa questão está no
significado peculiar da disciplina História da Filosofia tal como a compreendia por
Hegel. A História da Filosofia é a exposição da própria Filosofia e o meio para a sua
inteligibilidade. Os sistemas que surgem no percurso da História da Filosofia são as
configurações particulares de uma única e total Filosofia. Desse modo, as filosofias
mais recentes contêm as filosofias anteriores como unilateralidades ou princípios de seu
sistema. A progressão filosófica avança dos conceitos mais abstratos para os mais
concretos. Sendo assim, qual é a revolução promovida pelo pensamento cartesiano,
como este filósofo pôde iniciar uma nova figura na configuração total da Filosofia?
Para que o papel desempenhado por Descartes possa ser esclarecido, se propõe aqui a
análise de alguns excertos das obras Meditações metafísicas e do Discurso do método,
de Descartes, assim como do capítulo sobre Descartes em Vorlesungen über die
Geschichte der Philosophie, de Hegel.
Palavras-chave: Descartes, Hegel, filosofia, configuração, filosofia moderna,
pensamento.
ABREVIATURAS:
DM – Descartes, Discurso do método;
M – Descartes, Meditações metafísicas;
IHF – Hegel, Introdução à História da Filosofia;
VGPh - GJ – Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie (edição de
Garnirron e Jaeschke, 1986).
VGPh - M – Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie (edição de
Michelet, 1832-45).
1
Mestrando em Filosofia pela UFSCar. E-mail: <[email protected]>.
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Introdução:
Em Introdução à História da Filosofia, Hegel (1770-1831) afirma que a História
da Filosofia é o desdobramento do conteúdo da única Filosofia em múltiplas filosofias.
As diversas filosofias constituem momentos do todo desta única Filosofia e, além disso,
surgem necessariamente na época em que aparecem, pois são etapas no interior de uma
progressão necessária e racional. Entretanto, o momento de uma filosofia no todo da
Filosofia é um aspecto que permite compreender de modo mais claro como se dá esse
movimento, no sentido de desenvolvimento progressivo da Filosofia, pois, com ele, será
possível compreender como a função de uma determinada filosofia implica o
desdobramento da Filosofia total. Total, porque herda uma tradição desenvolvida desde
o seu surgimento até à época em que é reformulada e, da mesma maneira, tornando-se
material de trabalho dos filósofos posteriores. Assim, mesmo que Hegel sugira o
conhecimento de toda a floresta (Filosofia) para depois voltar-se às árvores singulares
(filosofias particulares), seguir-se-á de modo contrário, isto é, examinando o surgimento
de uma filosofia particular para desvendar o movimento do pensamento universal.
Examinando a seguinte passagem na Introdução à História da Filosofia, é
possível compreender o sentido das expressões reformulação, transformação e
preservação da Filosofia. Com efeito, diz Hegel:
Tal herança é ao mesmo tempo recepção e tomada de posse do legado;
e simultaneamente reduz-se a material, que é metamorfoseado pelo
espírito. O que se recebeu foi deste modo modificado e enriquecido e,
ao mesmo tempo, preservado (IHF, p. 18).
Hegel pensa que a Filosofia atual deve conter as filosofias anteriores, de modo
que a tradição filosófica se torna um material nas mãos do filósofo, que o transforma,
mas também o conserva. Entretanto, podemos indagar se o filósofo, pensado como
indivíduo concreto, por si só, não desempenha um papel decisivo? Consequentemente, é
preciso se concentrar apenas em uma filosofia particular, já que a partir desta se poderá
compreender o movimento dessa única Filosofia e tornar possível conceber seu devido
lugar na configuração do todo. Isso quer dizer que, ao refletir sobre a noção de que
filosofia atual contém as filosofias anteriores, o pensamento hegeliano desempenha o
papel da filosofia atual, abrangendo todos os princípios das filosofias anteriores como
unilateralidades. Desse modo, seguindo o pressuposto hegeliano de que para o estudo da
disciplina de História da Filosofia é necessário se concentrar nos principais filósofos,
escolheu-se, então, René Descartes, pois com ele surge uma nova filosofia, inicia-se
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uma nova época, a época em que o pensamento começa a ingressar em si mesmo. Nas
palavras do próprio Hegel:
A época em que o pensar sabe ter diante de si a verdade substancial e
dela faz objeto de si mesma, segue-se à época da fermentação, da
oposição de tal pensar à verdade substancial, até que surge, em
seguida, uma consciência plena e clara do pensar sobre si mesmo, uma
consciência sobre a determinação do pensar, a liberdade do pensar, de
modo que o pensar já não tem de partir de algo de pressuposto, mas de
si e assim compreender tudo, de modo que o pensar de nada parte,
embora também se inicie com o que é reconhecido como verdade a
fim de, a partir de si, ter o Espírito da verdade do mundo. Eis a
filosofia, que se inicia com Descartes (IHF, p. 247).
Então, com Descartes, o pensamento não precisa partir de qualquer pressuposto,
já que o próprio pensamento é o pressuposto para todo e qualquer conhecimento. Em
relação aos outros momentos desempenhados pela filosofia no decorrer de sua história,
a novidade de Descartes é justamente esta, isto é, que o pensamento não depende de
qualquer pressuposto que não seja ele mesmo. A respeito de Descartes, escreve Hegel,
“com este, o pensar começou a ingressar em si. ‘Cogito, ergo sum’ – eis as primeiras
palavras de seu sistema; e tais palavras expressam precisamente a diferença da filosofia
moderna em relação a tudo que a antecedeu” (IHF, p. 206). A diferença consiste em
tomar como pressuposto o próprio pensamento, uma postura filosófica que nunca
ocorrera anteriormente. Tal postura, não apenas se diferencia pela determinação de que
o pensamento parte, mas faz do pensamento a sua própria determinação. Ao defender a
ideia de que com Descartes se inicia uma nova época da Filosofia, a escolha desse
filósofo se dá pelo fato de ser possível perceber a revolução realizada a partir da análise
do estatuto da dúvida metódica e como ela encontra seu limite diante da certeza do
pensamento.
A dúvida como crítica à tradição filosófica
Mesmo que Hegel tenha por texto-base de sua exposição os Princípios da
Filosofia, de Descartes, pretendo apontar algumas evidências da ideia hegeliana em
obras anteriores de Descartes, por isso, segunda parte do Discurso do método,
precisamente em seu segundo parágrafo, é possível encontrar um trecho que sugere
indicar qual é o papel a ser executado pelo filósofo ao receber o legado filosófico, como
um material a ser trabalhado, tal como descrito por Hegel em Introdução à História da
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Filosofia. Esse deve ser um dos poucos exemplos que podem ser encontrados nas obras
dos próprios filósofos, nos quais se verifica a constante desconfiança sobre a tradição
filosófica, mas também sobre a tradição cultural e científica acolhida pelos pensadores
do séc. XVII. Com efeito, escreve Descartes:
Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros
anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que
aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não
podia ser senão mui duvidosos e incertos; de modo que me era tentar
seriamente, uma vez em minha vida, em desfazer-me de todas as
opiniões que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde
os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e constante nas
ciências (DM, Parte II, § 2; trad. p. 85).
Essa é uma das razões que faz Hegel designar um papel tão importante para
Descartes, já que tal filósofo é um divisor de águas na progressão da História da
Filosofia por estabelecer um novo caminho para a configuração da própria Filosofia.
Descartes busca iniciar tudo desde os seus fundamentos, um começo que, aos olhos de
Hegel, parte da análise de todo o “tesouro” da razão pensante, que foi apropriado,
cultivado e reelaborado por este filósofo. Sobre a sua disposição ou intenção inicial,
escreve Descartes:
[...], no tocante a todas as opiniões que até então acolhera em meu
crédito, o melhor a fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a
retirar-lhes essa confiança, a fim de substituí-las em seguida ou por
outras melhores, ou então pelas mesmas, depois de tê-las ajustado ao
nível da razão, [...] (DM, Parte II, § 2; trad. p. 35).
Considerando essa passagem sob os preceitos da concepção hegeliana de
História da Filosofia, tal excerto deve ser tomado do seguinte modo: as opiniões aceitas
correspondem à tradição filosófica que, mesmo que tenham sido aceitas como antes,
deverão passar sob um novo critério, o exame da razão. Há, nesse aspecto, um exemplo
do trabalho do filósofo ao metamorfosear a herança recebida. No entanto, isso quer
dizer que tais opiniões eram estabelecidas a partir de outro critério, o critério da
exterioridade. Tal critério representava, para Hegel, a necessidade do espírito buscar sua
realização fora dele próprio. A filosofia grega desempenhou esse papel ao identificar
seus princípios filosóficos a partir da physis, assim como as ideias platônicas, e assim
por diante. Na filosofia do cristianismo se encontra o mesmo princípio, contudo, na
forma da representação do sentimento: Deus, Cristo (exterioridade), a trindade, o culto,
a devoção, entre outros. A partir de Descartes, a razão é o critério, mas a razão não deve
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ser encarada como pressuposto para a verdade, pois a grande lição que Descartes deixou
para a posteridade da Filosofia é exatamente o contrário, isto é, de que não se deve
pressupor nada, mas duvidar de tudo. Todavia, isso não quer dizer que é necessário
compreender a dúvida como o pressuposto para qualquer afirmação, mas que ela
desempenha uma função metódica de eliminação de todo e qualquer fundamento
pautado no que é exterior.
A dúvida representa o rompimento com a autoridade religiosa e com a
exterioridade. O mesmo é possível afirmar a respeito da finitude dos objetos das
ciências, assim como todos os pressupostos. A dúvida levanta suspeita sobre a herança
filosófica que desemboca na época de Descartes, da mesma maneira que alcança a
concepção de ciência vigente em sua época. O recurso da dúvida metódica deve ser
compreendido como a segurança de não pressupor algo a respeito das coisas. Esse
aspecto já aparece na primeira regra do método cartesiano: “jamais acolher alguma
coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal” (DM, Parte II, §
7; trad. p. 37). Por isso, a dúvida é a garantia de não se tomar como verdade a
exterioridade, tanto da autoridade religiosa, como a das concepções realistas ou
empíricas, mas sim situar a verdade em outro âmbito, isto é, o âmbito do pensamento. E
como o pensamento busca sempre o universal, se faz necessário recusar os objetos
finitos das ciências. Mesmo que a ciência tenha por objeto o que é universal, por
exemplo, as leis da natureza, ela se volta aos objetos finitos. A filosofia tem de opor aos
objetos finitos o próprio universal que é o pensamento e, no caso de Descartes, tendo
em vista o estabelecimento do princípio indubitável que determinará o reinício da
Filosofia, a configuração de uma nova figura que expressará o rompimento com tudo
que a precedeu e a reelaboração das determinações do pensamento universal por meio
do próprio pensamento, ou seja, o cogito.
Descartes rejeita suas antigas opiniões e reinicia o processo do conhecimento
desde seus fundamentos para constatar se este conhecimento se estabelece em bases
sólidas e verdadeiras. Esse método é utilizado para que as coisas que até então foram
admitidas como verdadeiras não exerçam influência no julgamento sobre os objetos. As
coisas que são duvidosas são consideradas falsas na busca de um princípio indubitável.
Este princípio indubitável tem de ser o fundamento pelo qual se edificaria a ciência. No
entanto, não há necessidade de provar que as coisas falsas são falsas, já que estas se
apresentam como tal. E assim, o menor motivo de dúvida que seja possível encontrar é
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o suficiente para rejeitar quaisquer delas como falsas. Portanto, é preciso reiniciar o
processo do conhecimento desde seus fundamentos e princípios.
Descartes inicia sua investigação em torno desse princípio a partir das coisas que
ele mesmo considerou como verdadeiras. A dúvida deveria analisar todo o
conhecimento que se apresentasse como verdadeiro, por isso, decorria esclarecer quais
os critérios que tornam qualquer conhecimento verdadeiro, isto é, claro e distinto, e,
dessa maneira, garantir que até as coisas jamais questionadas que eram aceitas como
verdadeiras, que serviam de alicerces para um suposto conhecimento rigoroso, para a
construção da ciência, fossem submetidas necessariamente ao aspecto metódico da
dúvida. Por isso, segundo Descartes bastava apenas destruir o apoio dessas opiniões e
não examiná-las cada uma de uma vez. No Discurso do método, ele já apresentava a
necessidade de duvidar das coisas e qual a razão que o motivava a tal postura:
Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam apenas por
duvidar e afetam ser sempre irresolutos: pois, ao contrário, todo o meu
intuito tendia tão somente a me certificar e remover a terra movediça e
a areia, para encontrar rocha ou argila (DM, Parte III, § 6; trad. p. 44).
Está claro que a “terra movediça e areia” são, na verdade, a herança espiritual, a
formação recebida em La Flèche, ou seja, a filosofia escolástica, que precisava de
fundamentos sólidos e rigorosos (rochas e argila), lembrando que a obra Princípios da
Filosofia foi redigida com o intuito de apresentar-se como um manual que substituiria
os manuais escolásticos de ensino. O rigor deve ser encontrado com o estabelecimento
de um princípio indubitável, evidente, claro e distinto e, por isso, verdadeiro. O
conhecimento jamais pode ser fundamento por meio de princípios duvidosos e
enganosos. Assim, dentre as coisas duvidosas, os sentidos são os primeiros a serem
contestados, porque estes são enganosos. Muitas coisas existentes, por exemplo, o
tamanho real do Sol seriam desconsiderados se a forma de conhecimento destes objetos
fosse obtida por meio das vias sensoriais. Por isso, a limitação da parte dos sentidos faz
com que Descartes desconfie da veracidade dos conhecimentos obtidos por esta via.
Escreve Descartes nas Meditações:
Tudo que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro,
aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas
vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se
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fiar inteiramente, em quem já nos enganou uma vez (M, 1ª, § 3; trad.
p. 85-86).
O alcance da dúvida sobre as percepções sensoriais rompe com o recurso
utilizado pelas concepções realistas e empiristas que afirmam que as percepções são a
fonte de todo o conhecimento. Vale destacar aqui que a concepção ensinada,
predominantemente, eram pautadas nas interpretações tomasianas de Aristóteles. Mais
tarde, surgiria a fundamentação lockeana do empirismo, mas Francis Bacon já havia
publicado, em 1620, seu Novo Organon, o que leva a crer que Descartes crítica as
explicações indutivas, uma vez que eram fundamentadas na observação e, por isso,
seriam passíveis de engano. Se, por exemplo, o caráter relativo das percepções
sensoriais pode facilmente constatar como a impressão de determinado objeto pode
variar de sujeito para sujeito, como um cheiro, que pode ser agradável ou não, ou um
sabor, que pode ser amargo ou doce demais por uma questão de gosto. Esta oscilação de
percepções referentes aos objetos materiais implica uma incerteza sobre as conclusões
que se possam oferecer aos conhecimentos obtidos por essa via e, com isso, qualquer
afirmação que se possa fazer em torno dos objetos externos captados pelos sentidos
seria suspeita, de modo que, como disse Descartes, qualquer motivo que a razão perceba
como referente aos objetos externos que se apresente como suspeito, duvidoso ou
enganoso, deve rigorosamente ser considerado como falso. Portanto, a falta de
objetividade das percepções sensoriais impossibilitam o atendimento às próprias
exigências empíricas, porque elas jamais alcançariam um padrão cognitivo
correspondente à maioria dos casos, e muito menos ofereceriam leis gerais para a
apreensão dos fenômenos externos e regulamentação de suas interpretações.
Ao colocar em dúvida o próprio corpo, Descartes estende a dúvida não só sobre
os objetos materiais exteriores que são percebidos pelos sentidos, mas também ao corpo
próprio que percebe esses objetos; e assim, colocando à prova tanto o que é sentido,
como também quem ou o que sente. Nesse sentido, a dúvida atinge não apenas a
percepção sensorial, mas, além disso, a possibilidade de que tais percepções venham a
ocorrer, já que necessitam de um corpo que as perceba, ou que seja afetado por elas.
Desse modo, se elimina como efeito do alcance metódico da dúvida a possibilidade de
um corpo próprio, de objetos externos e das próprias percepções. Essa modalidade da
dúvida é ilustrada pelo argumento dos sonhos, que agora coloca em dúvida as próprias
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representações sensoriais contidas na mente. Sobre isso, escreve Descartes na Primeira
Meditação:
Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava nesse
lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse
nu dentro de meu leito? Parece-me agora que não é com olhos
adormecidos que contemplo esse papel; que esta cabeça que eu mexo
não está dormente; que é com desígnio e propósito deliberado que
estendo esta mão e que a sinto: o que ocorre-me no sono não parece
ser tão claro nem tão distinto quanto a tudo isto. Mas, pensando
cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado,
quando dormia, por semelhantes ilusões (M, 1ª, § 5; trad. p. 86).
Os sonhos também são duvidosos e, por isso, não são confiáveis. Os sonhos são
fruto daquilo que é percebido pelos sentidos e são agrupados desordenadamente pela
imaginação enquanto dormimos. Pela falta de ordem e por derivar de uma fonte
enganosa, isto é, os sentidos, a verdade sobre os sonhos deve ser rejeitada. Da mesma
maneira ocorre na vigília, ou seja, ao se estar acordado, pois ela é confundida com os
sonhos, a respeito disso, diz Descartes: “não há quaisquer indícios concludentes, nem
marcas assaz certas pelas quais se possa distinguir nitidamente a vigília do sonho” (M,
1ª, § 5; trad. p. 86). Sendo assim, os sonhos não oferecem a possibilidade do
conhecimento claro e distinto, do mesmo modo que a vigília, pois são indistintos os
objetos da vigília e dos sonhos por serem, em sua quase totalidade, objetos corpóreos
cujo modo de apreensão é a percepção dos órgãos de sentidos, que já está sob a dúvida
metódica. Escreve Descartes:
[...], considerando que todos os mesmos pensamentos que temos
quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem
que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de
conta que todas as coisas que até então haviam entrado em meu
espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos [...]
(DM, Parte IV,§ 1; trad. p. 46).
As percepções, os sentidos, os corpos e as representações, ou seja, todo o
domínio do corpóreo já pode ser rejeitado pela dúvida metódica. As quimeras e as
abstrações produzidas pela composição e mistura de coisas existentes, por exemplo, as
cores, não seriam verdadeiras? Não há realmente nada de verdadeiro nos sonhos?
Existem coisas mais simples e universais que existem além daquilo que pertence ao
âmbito sensorial? Nesse instante, Descartes faz um deslocamento da questão do aspecto
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corporal para o eixo representativo do corpóreo, no qual, considerando como natureza
corpórea, isto é, como aquilo que está permanentemente como condição de toda
representação corporal. Algumas coisas que são representadas durante o sonho podem
ser verdadeiras, por exemplo, como a extensão, a figura, o número e também as cores. A
imaginação não seria capaz de criar essas coisas, pois estas seriam necessárias para o
próprio artifício, e seriam qualidades irredutíveis das próprias quimeras produzidas pela
imaginação com o auxílio das percepções sensoriais. A exatidão da Matemática e da
Geometria prevalece tanto na vigília quanto nos sonhos, porque tratam de noções
simples e gerais. Acerca das representações matemáticas e geométricas é preciso
observar três aspectos: o primeiro é que tais representações serão estabelecidas como
verdades universais; o segundo é que essas verdades são verdades para o pensamento; o
terceiro é que até o momento da dúvida ainda não se constata o pensamento. Por isso, as
verdades matemáticas e geométricas também devem ser colocadas em dúvida; nas
Meditações, escreve Descartes:
Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há
um Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como
sou. Ora, quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito
com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso,
nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não
obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso
não me pareça existir de maneira diferente daquela que eu vejo? E,
mesmo, como julgo que algumas vezes os outros se enganam até nas
coisas que eles acreditam saber com maior certeza, pode ocorrer que
Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que eu faço
a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um
quadrado, ou em que julgo alguma coisa ainda mais fácil do que isso.
Mas pode ser que Deus não tenha querido que eu seja decepcionado
desta maneira, pois ele é considerado soberanamente bom. Todavia, se
repugnasse à sua bondade fazer-me de tal modo que eu me enganasse
sempre, pareceria também ser-lhe contrário permitir que eu me
enganasse algumas vezes e, no entanto, não posso duvidar que ele me
permite (M, 1ª, § 9; trad., p. 87).
Para a garantia de que nenhum pressuposto será tomado a não ser a certeza da
verdade, a dúvida acerca das representações matemáticas tem a função de eliminar a
possibilidade de uma verdade exterior, mesmo considerada como representação, o que
validaria qualquer noção de verdade universal, por exemplo, as noções simples de
geometria, como também as verdades da Escritura, por isso, nas Meditações aparece a
figura do Gênio maligno que, por meio dela, até estas verdades serão colocadas em
dúvida por Descartes. A dúvida atinge seu caráter metafísico e universal ao estabelecer
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como ilusões do espírito todas as formas de representações. Com efeito, escreve
Descartes:
Suporei, pois, que não há um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte
da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador
do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me.
Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as
coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele
se serve para surpreender minha credulidade (M 1ª, §12, p. 88).
Na medida em que todas as coisas são consideradas ilusões da mente, Descartes
encontra algo de verdadeiro, que supera a radicalização da dúvida, pode ser
considerada, até mesmo, como condição da dúvida, enquanto modalidade do
pensamento que é exercida pela existência do próprio pensamento. A atualidade do
pensamento, isto é, nos momentos em que pensa garante a constatação da existência do
pensamento. Tal constatação não pode ser suprimida pela figura do gênio maligno, pois
é necessária a existência de quem é enganado ou de quem duvida enquanto pensa.
Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais
que eu me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja,
enquanto eu pensar ser alguma coisa (M, 2ª, § 4; trad., p. 92).
A constatação da existência extraída a partir da universalização da dúvida ganha
forma na proposição “eu sou, eu existo” (M, 2ª, §4; trad., p. 92). Tal proposição
depende da atualidade, isto é, dos momentos em que esta proposição é enunciada à
mente. No entanto, Descartes precisa investigar o que é a natureza desse “eu” que acaba
de ser constatado no limite da dúvida, tal investigação tem a finalidade de estabelecer
que a natureza do “eu” não é exterior nem diverso dele próprio, tal é a condição
necessária para não tomar pressupostos. Assim, ao analisar a definição de homem como
“animal racional”, Descartes rejeita definições formais que poderiam remeter a
definições anteriores, (animal, homem, racional). Além disso, o que define os homens é
a racionalidade, isto é, a existência do pensamento. Descartes rejeita todos os atributos
do corpo para a definição do eu, como extensão, figura, ocupar lugar no espaço, ser
aprendido pelos sentidos, que pode ser movido por algo alheio, entre outros. Mas de
todos os atributos da alma, segundo Descartes, o pensamento é o único que é concebido
inseparavelmente. Com efeito, escreve Descartes:
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[...], o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser
separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto
tempo? A saber, por todo tempo em que eu penso; pois poderia,
talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo
tempo de ser e de existir (M, 2ª, §7, trad., p. 94).
A afirmação de que a existência depende dos momentos em que o pensamento
pensa, traz duas consequências. A primeira é o começo absoluto empreendido por
Descartes, já que o pensamento não depende de qualquer pressuposto e é livre para
partir dele próprio. A segunda é a dependência do ser em relação ao pensar, o que faz do
ser mero abstrato do pensamento concreto. Essas duas consequências são analisadas por
Hegel nas lições sobre história da filosofia.
No primeiro caso, Hegel reconhece Descartes como o filósofo que dá início à
Filosofia Moderna e esse início é demarcado com o estabelecimento do pensamento
como ponto de partida. Como na História da filosofia Hegel nos adverte de que
devemos nos preocupar apenas com o princípio, o princípio cartesiano consistia, para
Hegel, na própria dúvida, ao não tomar nada como verdadeiro, com efeito, escreve
Hegel, “o primeiro é, por conseguinte, que não se deve fazer pressupostos; este é o
princípio maior e mais importante” (VGPh – GJ; §4, p. 92). Não tomar nada como
verdadeiro garante a impossibilidade de se admitir algo exterior, mas eliminar todos os
preconceitos é o mesmo que suspender o juízo diante das coisas, de modo que nada
obtido, nem nada que possa exercer influência como, por exemplo, velhas convicções.
Essa é a forma pura da liberdade, pois o pensamento parte de si, sem depender de nada,
demonstrando que é livre de qualquer pressuposto, mas, acima de tudo, que a liberdade
consiste precisamente nisso, no pensar, nas Lições sobre História da Filosofia, escreve
Hegel, “tem que partir do pensamento; o interesse da liberdade assenta-se nessa base; o
que reconhecido como verdadeiro tem que ter lugar contido na nossa liberdade, visto
que nós pensamos” (VGPh – GJ; §5, p. 93). A grande novidade de Descartes é
justamente essa, o pensamento é anterior às determinações, constitui o próprio
princípio, diferente de todas as determinações anteriores que se sobrepuseram no
percurso da História da Filosofia. Com efeito, escreve Hegel:
René Descartes é de fato o verdadeiro fundador da filosofia moderna,
neste ponto, tomou o pensamento como princípio. O pensamento para
si é diferente da teologia que filosofa, ele se apresenta de outro lado; é
um novo terreno. A ação deste homem sobre a Antiguidade e a nova
época não pode ser representada e suficientemente em toda a sua
grandeza. Assim, ele é um herói, que iniciou, uma vez mais, tudo
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desde o começo e constituiu a filosofia primeira de uma nova base, à
qual ele regressou depois de um progresso de mil anos (VGPh – M;
§1, p. 123).
As filosofias anteriores à formulação cartesiana encontraram seu princípio na
exterioridade. Por exemplo, os filósofos gregos partiram da exterioridade ao
identificarem seus princípios com a physis, assim como as Ideias transcendentes de
Platão ou, por exemplo, no Cristianismo a figura desdobrada de Cristo, ou qualquer
representação exterior. Ao contrário, Descartes parte do pensamento, isto é, parte de um
puro e novo começo. A dimensão desse começo é considerada absoluta no seguinte
sentido: em primeiro lugar, ao estender a dúvida enquanto modalidade do pensamento à
universalidade, a única coisa que escapa à dúvida é o pensamento, já que a dúvida é
apenas uma das modalidades que o pensamento pode exercer ao pensar. Em segundo
lugar, a constatação daquele que duvida e se engana é necessariamente existente, o que
acarreta que na proposição – “eu sou, eu existo” (M, 2ª, §4; trad., p. 92), o “eu sou” é a
enunciação do pensamento por trás da dúvida e do engano. O “eu existo” nada mais é
do que o ser como predicado do pensamento, o pensamento e o ser ligados
indissociavelmente. O que nos encaminha para a segunda consequência do começo
cartesiano, ou seja, a dependência do ser em relação ao pensamento, ou a unidade entre
ser e pensamento. Contudo, neste ponto Hegel é enfático ao escrever que “Descartes
não provou a proposição da unidade entre ser e pensamento” (VGPh – GJ; §10, p. 95).
Entretanto, quais seriam as condições para que a unidade entre ser e pensamento seja
admitida? Escreve Hegel:“‘eu penso, logo, eu sou’ – este ‘logo’ não é aqui o ‘logo’ da
conclusão, mas é o que expressa a dependência por meio da qual o ser é ligado
imediatamente com o pensamento” (VGPh – GJ; §7, p. 94). O pensamento é movimento
em si, mas é pura relação consigo mesmo, pura identidade consigo mesmo – isso
também é o ser. Podemos resumir da seguinte forma: ao pensarmos, pensamos o
pensamento da coisa, isto é, a ideia, isso, porque o pensar é modo pelo qual algo ocorre
imediatamente em nós, na medida em que o pensamento existe.
É bem provável que a noção de unidade entre ser e pensamento seja devida à
noção de ideia, no sentido de que a ideia de uma coisa contém seu ser necessário ou
possível. A ideia de Deus contém a existência necessariamente e a ideia do eu a
existência possível. O que faz da ideia de Deus um pressuposto. Outra razão é que a
existência ou conhecimento de qualquer coisa depende da sua evidência no pensamento,
o gera a sua dependência diante do pensamento. Esses pontos problemáticos merecem
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atenção separadamente, portanto, não serão tratados aqui. O que deve ficar como
consideração final é o fato de que o começo absoluto empreendido por Descartes, sob a
perspectiva de Hegel, é o estabelecimento como ponto de partida para o conhecimento
das coisas, rejeitando todo e qualquer pressuposto por meio da dúvida, assim como a
eliminação de todos os preconceitos com a garantia de que nada será tomado da
exterioridade, como fizeram os antigos, e os filósofos da idade Média e os precursores
de seu tempo que, segundo Hegel, por ainda se manterem nessa postura filosófica
permaneceram na Antiguidade.
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