África negra I - Livraria Cultura

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INTRODUÇÃO Este volume I de África Negra, história e civilizações ocupa-­‐se do perí-­‐
odo menos conhecido da história africana e um dos mais difíceis de abor-­‐
dar. África pré-­‐colonial? África tradicional? Apesar da força considerável dos hábitos e das falsas evidências do senso comum, temos de nos decidir de maneira definitiva a deixar de concentrar estes longos séculos sob o epíteto aparentemente cómodo, mas inteiramente anacrónico e errado, de “pré-­‐
-­‐coloniais “. Regista-­‐se, com efeito, pelo menos, um erro de perspectiva, quando não um preconceito prenhe de implicações intelectuais mas também políticas, quando se pretende dar um sentido à evolução muito longa e ina-­‐
cabada de um continente e partir do último século da sua história: o século colonial. Semelhante miopia não se explica apenas pelo facto de este século ser o mais próximo de nós. Deriva também do facto de muitos continuarem a aí encontrar a legitimidade das suas posições actuais. Ora, o mínimo que se pode exigir ao historiador é que se abstraia, até onde for possível, das pres-­‐
sões afectivas e sociais do tempo presente. De resto, todas as características que as duas lendas da colonização – a lenda negra e a lenda dourada – lhe atribuem encontram-­‐se com uma intensidade variável conforme as regiões e as épocas, no período abusivamente designado como “pré-­‐colonial”: abertu-­‐
ra aos mundos exteriores; hegemonismos externos e internos; polarizações sociais; pauperização, dependência e desigualdade dos ritmos de crescimen-­‐
to económico e das formas de desenvolvimento social; alienação, acultura-­‐
ção ou afirmação de personalidades próprias... A noção de “civilizações tradicionais”, mesmo se dispondo em bloco de um crédito maior, não é em nada mais adaptada do que o conceito de “Áfri-­‐
ca pré-­‐colonial “. Começa hoje a ver-­‐se que a “invenção da tradição” (E. Hobshawm e T. Ranger), fenómeno que não é exclusivamente africano, foi o resultado de um processo complexo para o qual concorrem as obras clás-­‐
sicas da etnologia, as elites políticas e intelectuais africanas e a maior parte das próprias sociedades africanas. O conceito de “civilizações tradicionais”, cuja elaboração, produção e significações constituem um dos objectos da história, não poderia por isso tornar-­‐se, de maneira alguma, um instru-­‐
mento teórico nas mãos do historiador. Com efeito, não permite ele que se encerre a África negra numa espécie de opacidade cultural e num imobi-­‐
lismo do qual, para seu bem ou para seu mal conforme as opiniões, só teria saído sob o efeito dos recursos ou das pressões exteriores? Ver-­‐se-­‐á neste livro que, longe de estar cheio apenas com as continuidades, este tempo longo do passado africano foi talvez, em primeiro lugar, o das invenções contínuas, sob a forma de uma incessante “manipulação”, de laboriosas adaptações ou de rupturas radicais. Exercício obrigatório do ofício de historiador trabalhando sobre Áfri-­‐
ca, a procura de uma etiqueta que seria indispensável custe o que custar colocar sobre períodos previamente determinados pelos especialistas constitui, por isso, sem a menor dúvida, um exercício assaz vão e estéril. Basta dizer aqui porque razão e em que sentido se retiveram os séculos VII e XVIII. A escolha do terminus a quo depende essencialmente de considera-­‐
ções historiográficas. O século VII, – que deve ser considerado naturalmen-­‐
te uma data larga – é o momento em que, saindo dos “séculos obscuros” (R.Mauny), a África se presta enfim a todas as exigências do historiador. Antes desta época este era obrigado a colaborar a maior parte das vezes em situação minoritária com outros saberes – arqueologia, pré-­‐história, paleontologia, biologia, genética, linguística ... – cujas interrogações e con-­‐
tribuições constantemente renovadas aparecem dotadas de uma fecundi-­‐
dade insubstituível. Mais ou menos a partir do séc. VII o historiador dispõe de um poder soberano sobre um domínio cujos limites alarga constante-­‐
mente e que sabe, se tal for necessário, partilhar com as outras disciplinas. Sabe-­‐se que a produção do saber histórico deste período só foi possível graças a consideráveis inovações metodológicas tais como a revalorização e a exploração das fontes orais e teóricas, ou a formulação de perguntas constantemente renovadas ao passado africano. Quanto ao terminus ad quem, parece-­‐me que ele se afirma vantajosamente nos finais do século XVIII ou nos princípios do século XIX, de preferência ao fim do século XIX, no momento da intrusão colonial, como se pensa habitualmente. É com efeito na viragem dos séculos XVIII e XIX que, sem negar a importância das rupturas ulteriores, se assiste claramente à afirmação das dinâmicas e ten-­‐
dências pesadas, estudadas no volume II, que iriam prolongar-­‐se sob a co-­‐
lonização e algumas vezes até à nossa época. Continuidade, adaptações, cesuras: é na combinação destes processos que se exprime, em África como alhures, o movimento da história. A parti-­‐
cularidade relativa da África reside na natureza dos objectos que dão me-­‐
lhor conta destes processos. Ora, estes objectos revelam-­‐se cada vez mais numerosos e cada vez mais diversos. É necessário reler hoje os grandes clássicos deste último meio século para medir o caminho percorrido e para nos darmos conta a que ponto, e com que rapidez, se alargou o “território do historiador” consagrado a África. O colóquio de Dakar, nos princípios dos anos 601, propunha ao historiador um reduzido número de objectos privilegiados: as migrações, o Estado e as trocas. Agora, abordamos um terreno muito mais amplo, onde quase nada escapa à avidez escrutadora do historiador: ecologia e demografia; técnicas e culturas materiais; eco-­‐
1 R. Mauny, L.V. Thomas, J. Vansina, The Historian in Tropical Africa, Londres Oxford U.P., 1964. INTRODUÇÃO 3 nomia e relações sociais; culturas, crenças e mentalidades; povoamento e práticas identitárias; articulação de dinâmicas durante muito tempo consi-­‐
deradas como exclusivas (a externa e a interna, o global e o local)... Qual a escala a que convém tratar estes objectos? A, única, da África ou a, múltipla, das Áfricas? Diria as duas ao mesmo tempo, uma revelando-­‐se mais pertinente do que a outra conforme as épocas. Se a problemática das “origens” que participa largamente nos processos identitários e privilegia por isso a unidade da “África negra” (Cheikh Anta Diop), aparece como uma problemática mais ideológica do que científica, pareceu-­‐me apesar disso necessário (Capítulo I) enunciar as apostas e os termos dos debates africanos consagrados às “origens “: origens e antiguidade das civilizações africanas, assim como origens africanas da humanidade e história positiva das primeiras civilizações conhecidas em África. A África é abordada em seguida (capítulos II, V, VII) por ela própria, nas suas realidades e não já nos mitos que suscitou, de uma maneira simultâneamente sintética e regi-­‐
onal, global e local, em torno das questões e dos projectos principais que a historiografia pôs em evidência. “África Negra”, esta África aparece larga-­‐
mente aberta à África mediterrânica e aos dois espaços marítimos – o Oce-­‐
ano Índico e o Oceano Atlântico – que foram e continuam a ser fronteiras muito permeáveis, portadoras de todas as potencialidades. A natureza, a importância e os efeitos destas interacções nas fronteiras alimentam na historiografia assim como na memória dos africanos, um debate de uma gravidade tal que ocupam eles dois capítulos (III, IV), tão descritivos como polémicos. Não haverá razão para surpresas perante as diferenças voluntá-­‐
rias e sensíveis entre as maneiras de expor e até dos tons adoptados nas di-­‐
ferentes partes do livro: “história – narrativa” e “história – problema”, so-­‐
briedade desejada e busca do pormenor, dependem dos tempos e dos problemas em causa. É que, parece-­‐me, no próprio momento em que nas-­‐
ceu o discurso histórico, o historiador nunca se satisfez a “contar o que fo-­‐
ra” (Heródoto): quis, também eu, explicitar aqui o que teria sido errado ca-­‐
lar, não só os debates entre especialistas acrescentado pelo trabalho constante, sempre visível por mais longe que se volte atrás, da memória colectiva dos africanos sobre o seu próprio passado. Semelhante opção permite salientar aquilo que as desgraças do tempo presente mostram de maneira ampla, ou seja que a relativa serenidade da história sábia não su-­‐
prime, desgraçadamente, as derivações passionais das bricolagens e dos tráficos sobre a memória e o passado. A síntese aqui apresentada foi um trabalho de grande fôlego. Falta-­‐me agora satisfazer a agradável tarefa de agradecer a todos os que, desta ou daquela maneira, contribuíram para a sua elaboração e afinação. Na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, lugar incomparável de trocas, de partilha e de debates, os investigadores que participavam no meu seminá-­‐
rio puderam tomar conhecimento das partes desta obra e ofereceram-­‐me o beneficio das suas críticas, sempre fecundas. Aprendi muito com numero-­‐
sos colegas que estiveram associados de muito perto à maturação deste li-­‐
vro: especialistas da África, em particular Denise Robert (CNRS), Robert Vernet (Universidade de Niamey), Emile Mworoha (Universidade de Bu-­‐
jumbura e ACTT) e Michel Aghassian (EHESS); tal como as “diásporas afri-­‐
canas”, mais particularmente Nilda Anglaril (Centro Argentino da Investi-­‐
gação Científica), Nina S. de Friedmann (Bogotá), Luz Maria Martinez Montiel (México) e Dieudonné Gnammankou (INALCO). A montagem deste volume, como a do volume II, deve muito a Sophie le Callennec cuja amiza-­‐
de soube ser, durante as diferentes etapas deste livro, vigilante e eficaz. Elikia M’BOKOLO ÍNDICE 19 23 24 24 32 48 48 56 66 66 78 97 101 102 102 Índice das ilustrações Capítulo I. As heranças africanas I. O adquirido: outra África a redescobrir A – A anterioridade africana 1. A África e o processo de hominização, 24. A África e o género Homo, 26. B – Um continente aberto A África negra e o mundo mediterrânico, 33. O oceano Índico, lugar de trânsito e mar interior, 42. II. Debates e combates A – Mitos e lendas A questão das fontes, 49. Os mitos “científicos”, 52. B – O imbróglio do Egipto faraónico O veredicto incerto das fontes, 56. A racialização da questão egípcia, 60. III. A emergência das civilizações africanas A – As civilizações materiais Da colecta à agricultura, 67. A metalurgia do ferro, 69. B – As primeiras formações estatais A Núbia e Kush, 80. Axum, 87. Bibliografia do capítulo Capítulo II. Estados e Sociedades (séculos VII-­‐XV) I. A África do Nordeste A – A difícil sucessão de Méroe A explosão do reino de Méroe, 102. Unificação e cristianização, 105. Arabização e Islamização, 106. 109 B – De Axum ao Império do négus O descalabro de Axum, 109. O advento dos sultanatos muçulmanos, 113. A rectificação abissínia, 115. 120 II. Os Estados sudaneses 121 A – Um espaço original O povoamento: um fundo negro enriquecido por contribuições exterio-­‐
res, 121. Economias de subsistência e aumento das trocas, 125. 130 B – Dinâmicas sociais múltiplas A islamização: uma história a reescrever, 130. Uma vida urbana flores-­‐
cente, 139. Um domínio desconhecido: as sociedades rurais, 146. 151 C – Uma grande diversidade das formações políticas Tipologias frágeis face à história, 151. Mais impérios do que reinos, 154. 159 III. Os Estados das savanas meridionais 159 A – O Império do “mwene mutapa” Sítios arqueológicos impressionantes, 159. Da arqueologia à história: um percurso laborioso, 163. Processos de formação e estruturas do Es-­‐
tado: um terreno pouco firme, 167. 175 B – O reino do Kongo Origens obscuras, 175. A fundação do reino: mito e história, 183. O Es-­‐
tado Kongo: inovações e contradições, 188. 198 Bibliografia do capítulo 203 Capítulo III. Os tráficos negreiros (séculos VII-­‐XIX) 204 I. Um comércio antigo em crescimento contínuo (séculos VII-­‐XVl) 204 A – Tráfico árabo-­‐mulçumano Tráfico e escravatura pré-­‐islâmicos, 205. Tráfico e escravatura nos pri-­‐
meiros séculos do Islão, 208. Utilizações dos escravos africanos, 216. Depreciação e valorização: a imagem dos africanos, 225. 228 B – O oceano Índico e a África oriental Um mercado de primeira importância: a Índia, 228. Incertezas chinesas e extremos-­‐orientais, 237. 242 II. Nascimento e expansão do tráfico europeu 243 A – A entrada em cena da Europa Vias árabes e apetites europeusm, 243. A abertura do Atlântico: “a pri-­‐
meira invenção da Guiné” (Diogo Gomes), 246. Do tráfico afro-­‐europeu ao tráfico transatlântico, 258. 261 B – O tráfico atlântico, um bom negócio INTRODUÇÃO 7 A solicitação das Américas: economias gulosas e vorazes em homens, 261. O tráfico, uma organização muito complexa, 278. 288 III. O tráfico continental e oriental: permanências e renovação 288 A – O oceano Índico: recuo árabe e avanços europeus Árabes e portugueses: do afrontamento à coexistência, 288. O tráfico europeu: o tempo das experimentações (1507-­‐17l5), 291. O tráfico eu-­‐
ropeu: a idade de ouro dos franceses (ca. 1715-­‐1810), 293. 299 B – O tráfico continental: uma dinâmica contínua As necessidades em escravos na África mediterrânica, 300. As mercado-­‐
rias: os produtos e os homens, 303. As práticas comerciais: caminhos e mercados, 304. 308 Bibliografia do capítulo 313 Capítulo IV. Tráficos negreiros e diásporas africanas: problemas historio-­‐
gráficos 313 I. A querela dos números 314 A – O tráfico atlântico: “A comédia dos erros” (Hubert Deschamps) A tentação revisionista, 314. Uma empresa difícil, 316. 319 B – Tráfico negreiro e capitalismo europeu A bomba Eric Williams, 319. Um debate amplamente aberto, 324. 327 C – O tráfico árabe: um comércio difícil de calcular As exportações de escravos, 327. Tráfico e economia, 330. 332 II. Assimilar ou ser assimilado: os caminhos da integração 332 A – Mitos e realidades do Novo Mundo Calhambolagem, palenques e quilombos: das resistências às formas múl-­‐
tiplas, 333. Integrações americanas e fidelidades africanas, 339 343 B – Os paradoxos do mundo árabe Marrocos, uma excepção?, 343. Marginalização e resistências dos escra-­‐
vos negros, 349. 353 III. A escravatura dos negros: interesses económicos e problemas de cons-­‐
ciência 353 A – O problema do tráfico e da escravatura O debate religioso, 353. O debate ideológico e político, 361. 363 B – Raça e cultura O preconceito da cor, 364. Teorias das raças e racismo anti-­‐Negro, 365. O anti-­‐racismo: um movimento lento e ambíguo, 368. 372 377 377 378 383 Bibliografia do capítulo Capítulo V. A África na esteira dos tráficos esclavagistas (séculos XV-­‐XVIII) I. Um peso global difícil de medir A – O quebra cabeças demográfico Dificuldades técnicas insuperáveis, 378. Os efeitos incalculáveis, 380. B – Tráfico e economia: o problema do sub-­‐desenvolvimento O tráfico, um fenómeno destruidor, 383. O tráfico, um facto marginal nas economias africanas?, 384. O tráfico, gerador de estruturas duradoi-­‐
ras, 386. 389 C – Tráfico e sociedade: reorganizações profundas dos edifícios sociais Novas polarizações sociais, 390. A extensão da escravatura, 391. A dete-­‐
rioração da condição das mulheres, 392. 394 D – Uma África plural 395 II. Modificações e reajustamentos das sociedades africanas 396 A – A decomposição dos antigos Estados: mito ou realidade? O reino do Kongo, 396. O oceano Índico e o reino do mwene mutapa, 408. 415 B – Guerra, comércio e religião: a busca de novas legitimidades Reinos autoritários e Estados militares, 416. Repúblicas aldeãs e socie-­‐
dades aristocráticas, 432. 438 C – As vias da salvação A busca de um Islão popular, 438. A reapropriação do cristianismo, 450. Revoltas, fugas e calhambolagens, 455. 461 III. O começo do processus colonial 461 A – Feitorias europeias, mestiçagem e aculturação Um grupo charneira: os mestiços, 462. Mestiços e intermediários africa-­‐
nos: uma classe ascendente, 464. 469 B – A dinâmica do oceano Índico Cidades-­‐Estados árabes e civilizações suaíli, 469. Os prazos moçambica-­‐
nos: a “africanização” dos portugueses e dos indianos, 476. 480 C – Uma excepção de longa duração: a África do Sul A anterioridade africana, 481. A presença europeia: acaso e necessida-­‐
de, 482. Uma sociedade plural e fragmentada, 484. 489 Bibliografia do capítulo 495 Capítulo VI. As dinâmicas de longa duração (Séculos XV-­‐XVIII) INTRODUÇÃO 9 496 I. A recomposição dos antigos espaços políticos 497 A – O bloco abissínio: entre fragmentação e unificação Ameaças externas e hipotecas internas, 497. O restabelecimento, 499. “O tempo dos juizes”, 503. 505 B – O declínio dos Estados sudaneses: mitos e realidades Uma crise dos Estados muçulmanos?, 506. A desforra dos Estados pa-­‐
gãos?, 519. 526 C – Os “reinos da savana” As savanas, um lugar de convergência, 526. Realezas sagradas e impé-­‐
rios comerciais, 535. 540 II. A formação de novos espaços políticos 540 A – A Grande Ilha Prestígio e fragilidade dos reinos sakalave, 542. A demorada emergên-­‐
cia do Imerina, 544. Concentração e fragmentação, 546. 547 B – Os países dos Grandes Lagos O peso dos mitos e das lendas, 548. A meada do povoamento, 549. A emergência dos reinos, 550. 553 C – Os povos da floresta Redescobrir a floresta, 554. Uma história de longa duração, 555. Proces-­‐
sus globais e processus locais, 557. 562 Bibliografia do capítulo 565 Bibliografia geral 
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