UMA BREVE HISTÓRIA DO HOMEM Celso Piedemonte de Lima* e-mail : [email protected] Fico abalado ao constatar que há apenas um ano fiz as declarações que fiz1. Na última década foram descritas cinco ou seis novas espécies de hominídeos que promoveram uma ampla reformulação nos conceitos sobre nossa história. Descobriu-se que, desde quatro milhões de anos atrás, várias espécies de hominídeos conviveram nas savanas africanas. Esse novo conhecimento promoveu o abandono das noções de que existia uma única espécie de hominídeo em cada momento e de que a árvore genealógica humana tinha um tronco único, substituída pela de um arbusto com muitos ramos dos quais o único ramo sobrevivente somos nós. Na década de 1990, encontrouse o Australopithecus amanensis, ser que originou a linhagem dos australopitecíneos e cuja presença na Etiópia e Quênia reafirmou a importância da África Oriental para a história dos hominídeos. A principal controvérsia atual refere-se a qual foi o primata que, por primeiro, assumiu a postura bípede, dois a três milhões de anos antes do A. amanensis, disputando essa vaga o Ardapithecus ramidus, o Orrorin tungenensis e o Sahelanthropus tchadensis. ______________________________________________________________________ Palavras-chave: Hominídeos. Evolucionismo. Gênero Homo. Polêmica paleoantropológica. Natureza humana. Natureza da sociedade humana. ______________________________________________________________________ O título deste artigo, nada original, inclui uma homenagem, uma observação e uma dificuldade. A homenagem é ao sucesso editorial Uma breve história do tempo, do físico inglês e privilegiado divulgador da ciência Stephen Hawking que, publicada inicialmente em 1988, dá uma visão geral sobre a origem do universo. A observação refere-se ao uso do termo “homem”. Certamente o leitor identificará este artigo com a história de nossa espécie e não com a de um determinado ser humano do sexo masculino, tal como a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão nos remete aos direitos de todos nós. Por isso, neste artigo, os termos “homem” e “ser humano” serão usados indistintamente, sem qualquer preocupação com a onda ideológica do “politicamente correto”, que empobrece a comunicação ao censurar o uso de certas palavras na suposição de que elas possam criar preconceito. A dificuldade é definir se o que tem existência real é o indivíduo ou uma unidade maior chamada humanidade. Para Carlos Drummond de Andrade, “Nenhum brasileiro existe/E acaso existirão os brasileiros?”2; para Fernando Pessoa, a humanidade é a abstração: “Só existem nações, não existe humanidade”3. A dúvida é se existem tribos, comunidades maiores ou menores caracterizadas por grupos lingüísticos ou religiosos com os quais as pessoas se identificam, se existem nações, * Biólogo e autor de vários livros em sua área. 1 Afirmação feita em 1983 pelo paleoantropólogo Richard Leakey, autor de grandes sucessos editoriais como Origens e A evolução da humanidade e membro de ilustre família de viajantes do tempo que investigam o passado humano no leste africano, incluindo seu pai, Louis Leakey, sua mãe, Mary Leakey, e sua mulher, Meave Leakey. 2 Última estrofe do poema “Hino nacional”. 3 No livro Mensagem. cidades, habitantes de um vilarejo, de uma rua, de uma casa, de uma choupana, ou se o que tem existência real é uma unidade que engloba todas as raças e civilizações em um mundo onde as fronteiras nacionais e as etnias se diluem cada vez mais. Sou eu, minha família e meu vizinho, física, psicológica e socialmente, o protótipo, o modelo de nossa espécie animal, ou são nossa cultura, nossa tecnologia, nossos meios de comunicação que nos identificam como humanos? UM SÉCULO E MEIO DE EVOLUÇÃO Na primeira metade do século XIX, a física e a química já se haviam consolidado como ciências, mas a biologia permanecia limitada pela noção de que os seres vivos teriam uma origem sobrenatural. Contudo, há exatos 150 anos, em 1º de julho de 1858, foi apresentada uma teoria sobre a evolução das espécies por meio da seleção natural que revolucionou não só a biologia como todo o pensamento moderno, porque retirou a ciência da esfera da religião. O trabalho, desenvolvido independentemente por dois notáveis naturalistas, o inglês Charles Robert Darwin (1809-1882) e o galês Alfred Russel Wallace (1823-1914), foi lido por Darwin na Sociedade Lineana de Londres, mas a comunidade científica não viu nele nada de especial. Porém, quando foi publicado no ano seguinte na forma de um livro intitulado A origem das espécies por meio da seleção natural na preservação dos tipos favorecidos na luta pela vida, sua teoria da evolução das espécies tornou-se o conceito fundamental da biologia sem o qual nada nessa ciência faz sentido. Darwin, educado na tradição religiosa anglicana, foi, no início de sua carreira como naturalista, um criacionista convicto e entendia que as espécies de plantas e animais eram imutáveis, permanecendo exatamente como saíram das mãos do Criador. Ele explicava as variações entre os indivíduos como sendo respostas temporárias aos diferentes ambientes; passada a pressão ambiental, elas retornavam ao tipo original. As observações que realizou entre setembro e outubro de 1835 sobre as diferenças entre as espécies de tartarugas e pássaros encontradas nas diferentes ilhas do arquipélago de Galápagos, de inicio, não abalaram sua crença na estabilidade das espécies, porém, mais tarde, constituíram seus argumentos mais importantes em apoio à teoria da evolução. Em 1836, já em Londres, enfrentou seus primeiros conflitos, pois as evidências de Galápagos apontavam para um rompimento nas barreiras entre as espécies, para uma evolução gradual delas determinada pela sobrevivência das variações mais benéficas em relação às menos benéficas. Sua teoria defendia que as espécies se modificam ao longo do tempo e que elas resultam de uma história material e não de um plano preestabelecido contradizendo tudo aquilo em que Darwin acreditava até então e chocando a tradição religiosa da sociedade vitoriana. Particularmente impactantes eram as implicações da teoria da evolução aplicadas a nós: não teríamos sido criados à imagem de Deus e deveríamos descender de seres não-humanos. Darwin, sempre tão prudente em suas declarações, não teve receio de enfrentar o escândalo e as restrições de Wallace ao afirmar em seu livro de 1871, A descendência do homem e seleção em relação ao sexo, que nossos ancestrais seriam encontrados na África entre seres semelhantes aos chimpanzés. Contudo essas previsões demoraram mais de 50 anos para se confirmar, pois só a partir da década de 1920 fósseis encontrados na África do Sul estabeleceram definitivamente nossa origem a partir de seres semelhantes aos macacos africanos, remontaram nossa origem a pelo menos dois milhões de anos e estimularam a busca pelo ancestral comum ao chimpanzé e ao homem. Na segunda metade do século XX, ao trabalho de campo dos paleoantropólogos somaram-se os trabalhos de especialistas em várias outras áreas, incluindo os da Biologia Molecular, que não só reafirmaram nosso estreito parentesco genético com os chimpanzés como também indicaram que nossa espécie teve uma origem muito mais antiga, situando o ancestral comum aos humanos e aos chimpanzés há cinco ou seis milhões de anos. Na última década do século XX, uma sucessão de novos fósseis encontrados na África Oriental estabeleceu a origem da humanidade em 4,5 milhões de anos, mas, a partir de 2001, novos achados recuaram nossa ancestralidade ainda mais, para seis ou sete milhões de anos. Essas descobertas modificaram totalmente as noções de quando e como surgimos e de como se parecia o ser que nos originou. EU NASCI SETE MILHÕES DE ANOS ATRÁS O primeiro de uma série de achados que nos colocaram na pista dos hominídeos africanos ocorreu em 1925, quando o anatomista Raymond Dart descreveu um crânio encontrado na África do Sul, ao qual deu o nome de Australopithecus africanus (macaco do sul-africano) e atribuiu cerca de dois milhões de anos. Desde o início, Dart admitia que encontrara o fóssil de um membro da família humana, contrariando boa parte da comunidade científica da época que preferia admitir que os restos pertenciam a um macaco próximo ao gorila ou ao chimpanzé. Também na África do Sul foi encontrado um australopitecíneo maior, denominado de Australopithecus robustus, depois renomeado de Paranthropus robustus, possuidor de fortes molares e pré-molares e grandes cristas supra-orbitais onde se implantavam poderosos músculos mastigatórios que indicavam uma dieta baseada em alimentos duros, como grãos, sementes e raizes. Na metade do século passado já se aceitava que esses seres participaram de nossa história evolutiva, mas acreditava-se que em cada momento tivesse existido uma única espécie de hominídeo, de modo que nossa história teria sido uma sucessão de espécies que evoluíram linear e gradualmente: o Australopithecus africanus teria originado o Homo erectus e este gerado o Homo sapiens. Prevalecia uma visão progressista da nossa evolução, segundo a qual primatas quadrúpedes, peludos, habitantes das florestas, teriam gradualmente se transformado em habitantes das savanas, eretos e nus, em direção à glória: nós. Hoje se sabe que a história humana não pode ser representada dessa forma, como uma árvore de tronco único ao longo do qual as espécies foram se sucedendo sucessiva e linearmente até chegar ao homem moderno; ao contrário, entendemos a história humana como um arbusto de galhos entrelaçados, no qual cada espécie de hominídeo ocupa um ramo terminal diferente; nesse arbusto nós somos o único ramo sobrevivente ao longo dos últimos 25 mil anos. É por isso que não tem sentido procurar o “elo perdido”, o ser que teria realizado o salto evolutivo que tornou o primata em ser humano; ao contrário, entende-se hoje que cada ramo do arbusto, cada hominídeo do passado, foi um ser independente, autônomo e perfeitamente adaptado ao seu ambiente específico sem nenhuma “necessidade” de tornar-se humano. Até o final da década de 1960, a África do Sul continuou sendo o local privilegiado da descoberta de fósseis de hominídeos, mas a partir de 1970 restos encontrados na costa oriental da África comprovaram que vastas regiões da África eram habitadas por diferentes tipos de australopitecíneo, que se revelou constituir um grupo bem-sucedido e bem-adaptado a diferentes ambientes, vivendo tanto nas regiões mais arborizadas, como nas bordas das florestas e nas savanas abertas, convivendo e explorando diferentes recursos do mesmo espaço ecológico. Podia acontecer com esses hominídeos do passado algo semelhante ao que ocorre hoje com as imensas manadas de gnus, zebras e antílopes que convivem nas savanas africanas sem competir, porque cada espécie se alimenta de um tipo de vegetação. Esses achados permitiram, também, atribuir aos australopitecíneos uma idade bem superior aos dois milhões de anos que até então se aceitava para o início de nossa história. Um deles, descoberto em 1978 no deserto de Afar, na Etiópia, e batizado de Australopithecus afarensis viveu entre três e 3,5 milhões de anos atrás; o esqueleto bem completo de uma fêmea conhecida como Lucy, que tinha um metro de altura e 30 quilos de peso, e as pegadas deixadas por três deles nas cinzas vulcânicas nos dão a certeza de que andavam eretos tão bem como nós. No entanto, seu crânio era pequeno, do tamanho do de um chimpanzé, de modo que Lucy somava características modernas abaixo da cabeça, com características primitivas acima do pescoço, o que significa que ela tanto pode ser o ancestral de todos os hominídeos posteriores, como pode ser um estágio terminal da evolução dos australopitecíneos, o que excluiria Lucy da linhagem humana. Seja como for, Lucy era o hominídeo mais antigo que se conhecia até 1990, mas restava saber o antes e o depois, ou seja, qual seria seu ancestral e se ela ou outro Australopithecus teria sido o precursor do gênero Homo. A década de 1990 foi rica na descoberta de novos hominídeos na África do Sul e Oriental, revelando que eles constituíam um grupo ainda mais diversificado do que se imaginava. O encontro, em 1990, de dentes, maxilares e pedaços de crânio e membros de hominídeos na bacia do lago Turkana, no Quênia, indicou que há cerca de quatro milhões de anos existiu um hominídeo com características mais primitivas do que Lucy, que também andava ereto. Esse ser, denominado de Australopithecus anamensis, referência à palavra “anam”, que na língua local significa lago, pode ser o ancestral direto de Lucy. Seu encontro recuou o surgimento dos australopitecíneos em um milhão de anos, revelou que a postura bípede ocorreu bem antes do que se imaginava e, como foi posteriormente encontrado também na Etiópia no mesmo local onde viveram vários outros australopitecineos, confirmou a importância desse local para nossa origem e que os australopitecos africanos, afarenses e anamenses viviam juntos. No entanto, até o final do século passado, ainda permanecia uma lacuna entre os australopitecíneos mais antigos conhecidos – os anamenses – e o ancestral comum a eles e aos chimpanzés. Segundo os dados da biologia molecular, a separação entre a linhagem dos chimpanzés e a dos humanos ocorreu há seis milhões de anos, mas não se conhecia nada mais antigo do que os anamenses com 4,2 milhões de anos. Porém, em 2000 foram encontrados no Quênia e na Etiópia restos de um hominídeo denominado de Ardapithecus ramidus que viveu entre 4,4 e 5,8 milhões de anos atrás e que poderia estar mais próximo desse ancestral comum. Assim, a linhagem dos australopitecíneos estaria razoavelmente delineada: o Ardapithecus ramidus seria o principal candidato a primeiro hominídeo e descendente direto do ancestral comum a nós e aos chimpanzés; ele teria originado o primeiro dos australopitecos, o Australopithecus anamensis, que seria o ancestral do Australopithecus afarensis e este teria originado a linhagem do Homo. Em 2001, ossos das pernas e mandíbulas encontrados nos montes Tungen, no Quênia, pertencentes a um ser denominado de Orrorin tungenensis e datados de seis milhões de anos, recuaram a origem dos hominídeos para 1,5 milhões de anos antes do que se imaginava. O Orrorin, apelidado de “homem do milênio”, é um do hominídeos mais controvertido do passado, pois tanto pode ser um ancestral direto nosso, como ancestral dos australopitecíneos. Restos encontrados no norte do Chade, a quase três mil quilômetros da costa oriental africana, revelaram um ser ainda mais antigo, que viveu há sete milhões de anos, denominado de Sahelanthropus tchadensis, também conhecido como Toumaï, que na língua local significa “esperança de vida”. Esse ser era estranhamente moderno para sua idade, pois podia erguer-se no solo das florestas sobre as patas traseiras utilizando as dianteiras como mãos e, talvez, pudesse locomover-se ereto melhor do que os australopitecíneos que surgiram três milhões de anos depois. Se o Sahelanthropus foi, de fato, um hominídeo, ele poderia ser o mais antigo ancestral da humanidade; neste caso, nossa característica postura ereta teria surgido nas matas e não nas savanas e a origem dos hominídeos seria um milhão de anos mais antiga do que era previsto pelos estudos moleculares. A mesma diversidade ocorria também com os australopitecíneos do tipo robusto, pois na África Oriental foram encontradas várias espécies deles, como o Paranthropus boisei e o P. aethiopicus, que viveram entre dois e 1,4 milhões de anos atrás; assim, o Paranthropus robustus, o primeiro desse tipo a ser encontrado, também não estava sozinho e convivia com várias outras espécies semelhantes. Tal como ocorria com os australopitecíneos, o gênero Homo, ainda que restrito a poucas espécies fósseis conhecidas, como o H. habilis, o H. rudolfensis e o H. ergaster encontrados no leste e sul africano e datados de 2,5 a 1,8 milhões de anos, apresenta o mesmo padrão de diversidade e de coexistência. Todos esses nomes representam apenas uma fração dos tipos conhecidos e foram citados para enfatizar que, na África, uma grande diversidade de espécies de Homo, Australopithecus e Paranthropus conviviam, competiam e compartilhavam os recursos do ambiente. Há 1,8 milhões de anos, os hominídeos chegaram à Ásia e os novos ambientes estimularam sua diversificação. Há um milhão de anos, uma espécie pertencente ao nosso gênero, o Homo erectus, já vivia na China e em Java; na África. Na Europa Oriental, vivia o H. heidelbergensis, que originou o H. neanderthalensis, espécie que dominou a Europa entre 200 mil e 30 mil anos atrás. Entre 200 mil e 150 mil anos atrás, surgiu na África o homem anatomicamente moderno, H. sapiens, que há 40 mil anos invadiu a Europa e substituiu os até então dominantes neandertais, tornando-se a única espécie de hominídeo no planeta. Esses seres produziram as primeiras ferramentas, inicialmente simples lascas de pedras elaboradas provavelmente por australopitecíneos há 2,5 milhões de anos; um milhão de anos após, essas lascas deram lugar às machadinhas de mão que vieram a ser o primeiro tipo de ferramenta produzido a partir de um projeto, de uma capacidade nova – a de imaginar e fazer coisas que não existem na natureza. A machadinha de mão, provavelmente produzida pelo H. ergaster, devia ser bastante eficiente, pois permaneceu praticamente inalterada por um milhão de anos, atingindo maior sofisticação com o homem de neandertal, sendo depois substituída pela tecnologia superior do homem moderno, que deu início à produção de lâminas de pedra longas e finas e a ferramentas de ossos e chifres. Uma das controvérsias promovidas pelo encontro desses fósseis consiste em determinar se eles pertencem ou não à linhagem humana. Se é difícil conceituar o que seja “homem”, deve ser ainda mais difícil conceituar o que seja “hominídeo”, mas, em geral, abrigam-se sob essa denominação os primatas membros da família humana que andavam eretos ou semi-eretos. Nos últimos quatro milhões de anos, existiram várias espécies de seres que podem ser reunidos nessa família, mas nem sempre é possível avaliar seu modo de locomoção, porque muitas vezes seus restos se resumem não a ossos dos membros, mas a fragmentos do crânio e a dentes isolados. No entanto, caninos pequenos, semelhantes aos incisivos e que não se projetam para fora da arcada dentária, também indicam uma direção humana. Por isso, surgem muitas controvérsias sobre se esses seres do passado pertencem ou não à linhagem humana e sobre o lugar que cada uma deles ocupa na história dos hominídeos. A polêmica também resulta do fato de que esses fósseis são raros, incompletos, reúnem características primitivas com modernas e são constituídos por fragmentos ósseos diferentes, dificultando a comparação entre eles. Assim, restam muitas lacunas a serem preenchidas e várias hipóteses conflitantes envolvem as espécies encontradas mais recentemente. Por exemplo, para alguns paleoantropólogos, o Sahelanthropous é ancestral do gorila, o Ardapithecus originou o chimpanzé e o Orrorin, o homem, enquanto uma hipótese oposta considera esses três hominídeos ligados sucessivamente na linha que levou aos humanos: se a pequena caixa craniana dos Sahelanthropus os aproxima dos macacos, seus dentes semelhantes aos dos humanos permitem considerá-lo como o hominídeo mais antigo, o ponto em que teve início a aventura humana, o momento em que nossa linhagem separou-se da do chimpanzé. As descobertas dos últimos 15 anos consolidaram a importância da África na nossa evolução, recuaram a história da humanidade em pelo menos um milhão de anos, reforçaram a importância do andar bípede, da inteligência e da cultura na nossa evolução e modificaram radicalmente várias noções que se tinha sobre a origem do bipedalismo. De acordo com os novos achados, a posição ereta surgiu nas matas há seis ou sete milhões de anos numa ocasião em que as grandes florestas tropicais haviam recuado, forçando nossos ancestrais a aventurar-se nas savanas recém-criadas. Nesse novo ambiente, a postura bípede revelou-se mais eficiente do que a quadrúpede, porém seu subproduto mais importante, a tecnologia, a capacidade de produzir e usar ferramentas, só ocorreu três milhões de anos após sua aquisição. Dessa breve exposição, ressaltam quatro aspectos: 1- os hominídeos do passado que foram citados representam apenas uma parcela da variedade total dos seres que participaram de nossa história evolutiva; 2- essa descrição está longe de representar uma síntese ou de apresentar uma visão compartilhada por todos os cientistas, incluindo o debate entre correntes que reúnem vários espécimes em uma só espécie e os que consideram que pequenas diferenças são suficientes para criar uma nova espécie; 3- nossa história é, tal como a dos demais seres vivos, caracterizada por espécies que surgem, desaparecem e diversificam-se à medida que colonizam novos ambientes; 4as dúvidas e indagações sobre nossa história são mais numerosas do que as certezas. NOSSA DUPLA HERANÇA E UM DEBATE INÚTIL Resultamos de instintos ou somos construções sociais? Esse falso e antigo conflito entre natureza humana x natureza da sociedade humana, natureza x cultura, natureza x criação, nature x nurture, não faz sentido porque os dois agentes – os genes e o ambiente – são completamente interligados, estando ambos igualmente envolvidos na determinação de nossas características. Como cada um desses fatores isoladamente não determina o desenvolvimento humano, não há conflito algum entre natureza e criação, pois, embora os genes participem na determinação das características físicas, do comportamento, da personalidade, das aptidões, eles atuam em um ambiente que altera a maneira como são ativados ou inativados. Não há, portanto, determinismos genéticos ou ambientais absolutos, nada é inevitável, não há destino e predeterminação que seriam inimigos da livre escolha e de nossa liberdade. Ao contrário, os genes e o ambiente possibilitam a liberdade porque, em virtude de sua interação, nenhum comportamento ou traço cultural humano pode ser atribuído a uma “lei” biológica ou ambiental dos quais as pessoas não podem escapar. A inutilidade do debate em torno da determinação genética ou ambiental de nossos comportamentos pode ser exemplificada com o antigo “problema” de definir se a pessoa nasce homossexual ou se torna homossexual em decorrência de suas experiências de vida. Quem considera que a homossexualidade é uma infração à suposta “lei natural” de que os sexos opostos se atraem com vista à reprodução ignora a evidência do dia-a-dia de que a atração homoerótica existe; quem admite que ela seja determinada pela cultura, pela forma como a pessoa foi criada, ignora as evidências da genética que comprovam haver um componente hereditário nesse comportamento. Igualmente são meras invenções as “justificativas” para a histórica dominação do homem sobre a mulher e para a origem das diferenças entre os sexos. A mais recente polêmica a respeito ocorreu em 2005, envolvendo o então reitor da Universidade de Harvard, que foi considerado preconceituoso e pressionado a demitir-se quando atribuiu o relativo insucesso das mulheres nas ciências exatas a diferenças inatas em relação aos homens. O reitor apoiou-se na psicologia evolutiva, que procura explicar a sociedade humana em uma base biológica: os traços de nossa personalidade teriam sido moldados pela evolução biológica, o comportamento teria uma base genética e as diferenças entre os sexos seriam determinadas pela seleção natural. No caso da inteligência, sob essa óptica, a seleção teria privilegiado em nossos ancestrais masculinos as percepções geográficas e espaciais necessárias à caça, o que os teria tornado mais aptos para a geometria, a matemática, a precisão, enquanto nas mulheres teriam sido selecionadas as habilidades de comunicação necessárias ao relacionamento com seus filhos, o que as teria tornado melhores no raciocínio verbal, no uso das palavras e na habilidade de captar o conteúdo emocional de um discurso. Os críticos ao pronunciamento do reitor consideram que não são os determinismos genéticos e evolutivos, mas sim fatores culturais, ambientais, que afastam as mulheres das carreiras de exatas. Esse debate inútil apenas demonstra ignorância da lição básica da genética: todo fenótipo (caráter) deriva da interação entre o genótipo (o material genético) e o ambiente. Essas controvérsias eternizam-se porque são estimuladas e alimentadas pela ideologia política. Admitir que os comportamentos sejam determinados geneticamente apóia a alegação de que o controle dos grupos dominantes e a distribuição desigual da riqueza são justificados por “forças da natureza” responsáveis pelo sucesso de alguns e fracasso de outros. Se, ao contrário, os comportamentos derivassem exclusivamente do ambiente, eles poderiam ser moldados de acordo com o interesse da sociedade, apoiando o ideal socialista de que um ambiente adequado e oportunidades iguais podem transformar a própria natureza humana. A última posição é mais atraente porque o ambiente pode ser mudado, enquanto os genes não e a primeira é mais conformista ao admitir que não adianta lutar pela igualdade de oportunidades e pelo progresso social, já que as pessoas nascem com comportamentos e capacidades definidas por seus genes. Mas ambas teimam em ignorar que os genes causam diversidade independentemente de qualquer ideal da sociedade e que nossas experiências pessoais estão além de qualquer tentativa de controle da vida social. Retire as normas da sociedade e você terá uma criatura totalmente nova, “Frankensteins” sem compromissos, sem história, sem passado, com a liberdade de acertar ou errar sem limites ou limitações; retire os condicionantes biológicos e você terá um “robô” escravizado pelo tecido social. Assim, embora nós sejamos animais, não apenas animais; somos seres especiais na natureza não porque tenhamos um físico diferente do padrão básico, mas porque só começamos a funcionar como membros da humanidade depois que à nossa parte animal for adicionado um componente ambiental representado por uma grande dose de cultura. A cultura é parte de nós, uma característica tão humana como a posição vertical ou como o cérebro grande, um traço que se desenvolveu junto com nossas características físicas e que, em um processo de reforçamento recíproco, nos originou. Assim, se nossa evolução como seres biológicos é explicada pelos mesmos mecanismos que orientam a evolução dos demais seres vivos, para nós esses mecanismos não bastam, pois a cultura entrou no processo determinando que, tal como a evolução biológica, certos genes fossem mantidos e outros eliminados. Tão importante foi a aquisição da cultura que, desde que ela apareceu, nós evoluímos muito mais rapidamente do que qualquer outra espécie: ela nos possibilitou uma independência que nenhum outro ser tem em relação ao ambiente, sobre o clima, sobre a produção de alimentos, sobre nossos inimigos e doenças e permitiu que nossa evolução se processasse sem alterações físicas reconhecíveis nos últimos 40 mil anos. Inútil como o debate que opõe natureza e criação, é a falsa questão de sermos produto ou produtores da cultura porque, embora a cultura tenha uma origem biológica, ela foi selecionada pelas vantagens reprodutivas que nos conferiu, ela tornou-se um sistema independente de valores e afastou-se infinitamente de sua origem biológica. Aceitar que nós somos produtores da cultura implica admitir que a cultura resulta de nossa biologia e que nós somos animais diferentes dos demais em uma questão de grau: a cultura, os símbolos e valores, as formas de comunicação, os telescópios espaciais, a gigantesca máquina que acelera prótons à velocidade da luz, seriam resultados inevitáveis de nossa evolução biológica. Entender que nossa humanidade é um produto da cultura implica admitir que somos diferentes dos demais seres vivos por um fator qualitativo – a cultura – que controla e orienta nossa evolução. Tentando encerrar o debate estéril: nossa evolução resulta de uma interdependência, de interações contínuas entre características biológicas e conquistas culturais de modo que nós diferimos dos demais seres vivos por nossa dupla herança. Esses dois processos tão diferentes interagem porque ambos são adaptativos. Animais de regiões frias adaptam seus corpos para sobreviver, enquanto os esquimós adaptam-se culturalmente por meio de suas vestimentas, alimentação e moradia, de modo que fisicamente não diferem muito dos indígenas de áreas tropicais. A adaptação patrocinada pela cultura chega a ser mais eficiente do que a adaptação biológica porque se difunde mais rapidamente, atinge um número maior de indivíduos e pode ser totalmente alterada sempre que seus portadores assim o quiserem, bem ao contrário do que ocorre com os genes. Os dois processos são complementares e a interação entre eles é total, pois tanto a constituição genética de uma população pode determinar traços culturais, como a cultura pode determinar a constituição genética de uma população. Por exemplo, em algumas populações africanas, chinesas e brancas do leste europeu há deficiência da enzima galactose-1- fosfato-uridil-transferase (traço genético) de modo que nessas pessoas não ocorre a digestão dos açúcares do leite, a galactose acumula-se no sangue e fígado causando problemas gastrointestinais, retardo mental e catarata, tornando obrigatório excluir o leite da dieta (traço cultural). A situação oposta, a de um traço cultural alterado, a constituição genética da população ocorre nas regiões inadequadas à criação de gado onde falta leite; como não há consumo desse produto (traço cultural), as pessoas com deficiência da enzima não são prejudicadas e a freqüência do gene aumenta. UMA FRAUDE E MUITOS ENIGMAS A fraude mais conhecida na história da paleoantropologia é a do homem de Piltdown, cujo principal vilão foi Charles Dawson (1864-1916), advogado em Sussex, região da Inglaterra onde fica a cidade de Piltdown. Essa fraude reflete não só um desvio da ciência, como também os preconceitos e a falta de conhecimentos sobre nossa história evolutiva. Até o final dos anos 1910, só se conhecia como humanos do passado o Homo erectus, indonésio, o Homo neanderthalensis, alemão, e o homem de cro-magnon, francês, todos europeus e, contrariando a previsão de Darwin, nenhum africano. Tudo apontava para a Eurásia como berço da civilização e da humanidade, mas a nação mais poderosa da ocasião, a Inglaterra, estava fora dessa história. Isso tinha de ser corrigido. Em 1911, Dawson e colaboradores encontraram em Piltdown uma calota craniana e uma mandíbula e deram a esses restos o nome de Eoanthropus dawsoni – homem da aurora, de Dawson, que seria um hominídeo inglês com idade estimada em 500 mil anos. Logo no início da história do homem de Piltdown, os antropólogos americanos admitiam que a mandíbula de um macaco houvesse se misturado com um crânio humano recente, seja devido ao acaso ou a uma fraude, mas no Reino Unido a maior parte dos cientistas apoiava Dawson. Curiosamente, em 1924, Raymond Dart descobriu na África o Australopithecus africanus, que recebeu pouca atenção como possível ancestral humano devido a seu cérebro ser muito pequeno; além disso, contra a humanidade dos restos achados por Dart conspiravam dois preconceitos: o de ser africano e o de não possuir o cérebro avantajado, que era considerado como a marca da humanidade. Contudo, lentamente o homem de Piltdown começou a ser desmascarado: em 1953, demonstrouse que o crânio pertencia a um homem moderno com não mais de mil anos, que a mandíbula era de um orangotango moderno, que substâncias químicas haviam sido usadas para lhes dar aparência antiga e que a dentição foi alterada para se aproximar à de um ser humano. Além da participação comprovada de Dawson na fraude, várias pessoas foram acusadas, inclusive o conhecido antropólogo francês padre Pierre Teilhard de Chardin e um assistente de pesquisa que a teria patrocinado para ridicularizar seus superiores. Arte Desde que o homem moderno surgiu há 200 mil anos, até 50 ou 40 mil anos atrás, não ocorreram mudanças significativas em sua maneira de construir instrumentos, de morar e de ver o mundo. A grande mudança ocorreu com o aparecimento do raciocínio simbólico representado pela arte. As esculturas mais antigas que se conhecem são três pequenas figuras esculpidas em marfim, com cerca de quatro centímetros e feitas no final da última Era do Gelo, há 33 mil anos. Esses objetos pertencem à cultura aurignaciana que marca a Grande Explosão Criativa, o surgimento de nossa modernidade cultural. Qual a causa ou as causas desse surto de criatividade? Até a descoberta dessas estatuetas, as manifestações artísticas mais antigas que se conheciam eram as magníficas pinturas rupestres (feitas nas paredes de grutas) de Chauvet, na França, com 32 mil anos, mas ações humanas voltadas à arte e à ornamentação já existiam muito antes, na forma de rabiscos geométricos feitos em pedra há 77 mil anos na África do Sul e de colares de conchas datados de 75 mil anos, mostrando que os seres humanos se davam o trabalho de perfurar dezenas de pequenas conchas e reuni-las em colares destinados à ornamentação do corpo. Porém nada disso se compara com as extraordinárias realizações do aurignaciano. Linguagem e agricultura A fala parece ser a única característica que nos distingue dos outros animais. A ela estão associadas pelo menos duas outras capacidades, que são o desenvolvimento da inteligência motora necessária para controlar os músculos das mãos e da face e o aparecimento da agricultura. Em nosso córtex cerebral, as áreas motoras relacionadas com as mãos e com a face são muito maiores do que as relacionadas com qualquer outra região do corpo, caracterizando nossa competência para movimentos manuais refinados e para a movimentação dos lábios e da língua, que articulam a fala. Nossos ancestrais que viveram há 30 mil anos costuravam roupas, construíam moradias e elaboravam ferramentas complexas, o que indica que eles tinham grande habilidade manual e, provavelmente, uma sintaxe elaborada. No entanto, nenhuma das linguagens dessa época subsistiu e nenhuma língua atual parece remontar a mais de 10 mil anos, sugerindo que, nessa ocasião, em um processo rápido, os idiomas anteriores extinguiram–se, dando lugar aos atuais grupos lingüísticos. Esse avanço lingüístico coincide com a aquisição da agricultura, que conferiu aos humanos um novo poder de expansão demográfica e econômica patrocinado, não pela competição ou guerra, mas pelo arado. Antes da agricultura, o único modo de vida conhecido há mais de cem mil anos era o de caçador-coletor, mas os detentores desse modo tradicional de vida não puderam competir com as vantagens evolutivas da agricultura e foram, em sua maioria, física e culturalmente substituídos. No Velho Mundo a agricultura teve início há cerca de 10 mil anos, quando os climas e os ecossistemas da Terra adquiriram sua feição atual. Com a alimentação garantida, os agricultores passaram a ter filhos em ritmo mais intenso do que os caçadores-coletores, cujo estilo de vida obrigava as mulheres a limitar sua taxa reprodutiva às poucas crianças que podiam ser carregadas durante as expedições nômades em busca do alimento. Em conseqüência do adensamento populacional patrocinado pela agricultura, ocorreram o expansionismo geográfico e político e o aparecimento dos maiores assassinos da humanidade, as doenças infecciosas, como varíola, tuberculose e gripe, muitas das quais provenientes dos animais que foram domesticados. A hipótese da expansão conjunta da agricultura e da lingüística é sedutora e conta com evidências fortes, mas é de difícil comprovação porque, se podemos recuperar esqueletos e a cultura material, não podemos desenterrar uma língua. Os primeiros habitantes das Américas Como, quando e de onde vieram os ancestrais dos índios americanos? A alternativa mais aceita é a travessia de povos com características mongólicas da Ásia para a América do Norte, por uma ponte de terra que surgiu durante a última Era do Gelo, a glaciação ocorrida entre 70 e 20 mil anos atrás, que cobriu a maior parte do hemisfério norte com espessa camada de gelo; com isso, ocorreu um rebaixamento no nível do mar em cerca de 100 metros e o estreito de Bering “secou”, criando uma rota terrestre. O aquecimento que se seguiu ao fim da glaciação provocou diminuição da ponte de terra, mas ela continuou podendo ser usada até pelo menos 10 mil anos atrás por sucessivas ondas de migrantes. Outra possibilidade é que os seres humanos tenham pulado de ilha em ilha pelo Pacífico Sul nessa época em que os oceanos tinham um nível mais baixo, ou até mesmo tenham vindo com barcos da Europa para a América do Norte, não se podendo descartar que as três rotas, ou outras ainda, tenham sido usadas em sucessivas ondas migratórias. Estudos genéticos e antropológicos indicam que os povos que alcançaram a América tinham grande variabilidade genética, apoiando a hipótese de que eles poderiam ter chegado por mais de um caminho. Outra polêmica é a época em que isso ocorreu. Até a década de 1990, a maioria dos paleoantropólogos defendia que o sítio humano mais antigo do continente era o de Clovis, nos Estados Unidos, datado de 11.500 anos; mas mais recentemente descobriram-se vestígios da presença de grupos de humanos no sítio arqueológico de Monte Verde, no Chile, datados de 12.500 anos, o que sugere que eles tenham atravessado da Sibéria para a América há pelo menos 15 mil anos, muito antes da era Clovis. Para aumentar a complexidade, foram encontrados na América do Sul e, mais recentemente, na América do Norte, vestígios de populações mais antigas e não-mongólicas, assemelhando-se mais aos atuais australomelanésios. Esses primeiros habitantes do continente, denominados de paleoíndios, são representados por dezenas de restos mais antigos que os norte-americanos do sítio Clovis e desafiam o modelo tradicional porque sugerem que povos semelhantes aos atuais aborígines da Austrália teriam iniciado a colonização do continente antes dos povos mongólicos. Supõe-se que essas populações asiáticas não-mongólicas teriam cruzado o estreito de Bering há 15 mil anos ou mais (alguns falam em 40 mil anos), tendo sido extintos por competição ou absorvidos por miscigenação com os grupos mongólicos que vieram posteriormente pela mesma via. Fogo Nenhum vestígio de fogueira com mais de dois milhões de anos foi encontrado até o momento, mas provavelmente o aproveitamento do fogo produzido naturalmente pelos raios e sua transmissão por gravetos seja muito mais antigo em nossa história, pois ele garantia luz e calor e protegia nossos ancestrais que viviam expostos no solo. As habilidades de produzir e controlar o fogo foram adquiridas há cerca de 800 mil anos e tiveram importantes impactos sobre nossa evolução, pois o fogo deu segurança para que os humanos migrassem da África para os territórios desconhecidos do restante do mundo. Além disso, sua utilização na preparação de alimentos tornou-os mais digeríveis e possibilitou extrair sua energia mais rapidamente: uma pessoa sedentária, com 50 quilos, precisaria comer cinco quilos de vegetais crus para suprir suas necessidades energéticas diárias de 2.000 calorias, mas, com vegetais cozidos, dois quilos seriam suficientes. Desse modo, as 6 horas que os macacos gastam diariamente mastigando diminui, em nós, para 1 hora, sobrando-nos tempo para que possamos nos dedicar a outras atividades. O uso de alimentos cozidos explica vários aspectos de nossa anatomia e comportamento, tais como o sistema digestivo curto, o tamanho semelhante entre homens e mulheres, nossos dentes menores que os dos chimpanzés e a estrutura da sociedade humana em famílias nucleares com divisão sexual do trabalho. Posição ereta e caça A humanidade surgiu quando o primata arborícola e quadrúpede tornou-se um ser bípede que se aventurou nas planícies abertas: a aquisição da posição ereta foi um acontecimento dramático que desencadeou nossa evolução. Ela nos legou algumas imperfeições, como problemas de coluna que afligem grande parte da humanidade, dificuldades no parto determinadas pelo tamanho da cabeça que abriga o cérebro volumoso, tendências a desenvolver varizes nas pernas e hérnias nas paredes do corpo. No entanto, as vantagens da postura ereta foram tantas, que ela se tornou responsável por vários aspectos dos nossos físico e comportamento: habitantes bípedes das savanas, ao se elevarem acima do nível do solo, podem pressentir o inimigo ou a caça a maior distância; suas mãos libertaram-se da função locomotora e especializaram-se para finalidades mais nobres, como a proteção aos filhotes, o transporte de alimentos, o manuseio de objetos, a fabricação de ferramentas; o cérebro rearranjou-se com aumento da porção média responsável pela motricidade manual e facial; as costas ficaram menos expostas ao forte sol africano. Uma das conseqüências da postura ereta é que nos tornamos excelentes andarilhos, capazes de nos espalhar rapidamente por todas as regiões do planeta. Não somos bons velocistas e não podemos sustentar altas velocidades por longo tempo, mas somos bons maratonistas, capazes de sustentar corridas de resistência por várias horas. A capacidade de andar longas distâncias nos diferenciou dos demais primatas e facilitou a caça e a obtenção dos nutrientes necessários para o crescimento e funcionamento de um órgão que demanda muita energia para funcionar: o cérebro. Uma das mudanças anatômicas patrocinadas pela marcha ereta foi o surgimento de nádegas grandes necessárias para estabilizar o corpo quando, ao andar, nos lançamos para frente.Bundas grandes antecederam os cérebros grandes de que tanto nos orgulhamos e que são, pelo menos em parte, resultado do crescimento prévio do maior músculo do nosso corpo, o glúteo máximo. Esse andarilho que foi o homem anatomicamente moderno revelou-se um excelente caçador, tendo devastado e eliminado a megafauna dos Estados Unidos em poucos milhares de anos. Os membros da cultura Clovis usavam lanças e estratégias coletivas de caça que lhes permitia há 11.500 anos caçar o mamute-lanudo, a preguiça-gigante e outros animais semelhantes; as enormes quantidades de ossos de mamute encontradas em associação com suas lanças comprovam a eficiência deles como caçadores. Na devastação do ambiente nem tudo é culpa dos humanos, sendo provável que, além de sua ação predatória, outros fatores como a mudança climática, o fogo, a fragmentação de habitats, a introdução de doenças e de espécies competidoras ou predadoras, tenham colaborado para destruir a megafauna norte-americana; com efeito, na Europa, Sibéria, Alasca e região central da América do Norte ocorreram extinções na megafauna que não podem ser atribuídas à ação de caçadores humanos. Para o hemisfério sul, que não sofreu um resfriamento comparável, pois as temperaturas caíram apenas cerca de 7 graus centígrados, os dados sobre a extinção da megafauna não são muito claros. No Brasil, sua destruição foi causada principalmente pelo aumento das chuvas que transformaram as savanas numa vegetação mais fechada, o cerrado, acabando com as gramíneas que constituíam a base da dieta desses animais. Considerando essa história violenta, nós, que tanto apreciamos a tranqüilidade das certezas absolutas, sempre retornamos à ilusória dualidade: somos macacos assassinos ou anjos decaídos? Somos violentos por natureza e nossa agressividade é justificada pelo passado de caçadores ou a violência ocorre quando há desequilíbrios de poder da sociedade? Os crimes podem ser “justificados” porque quem os pratica sempre é vítima de sua genética ou do ambiente socialmente aversivo onde foram criados? Os criminosos são responsáveis por suas escolhas ou são vítimas de determinismos genéticos ou ambientais dos quais não podem escapar? Novamente retorna a inútil polêmica entre as raízes bioevolutivas ou sociais de nossos comportamentos. Certamente a biologia responde por parte de nossa tendência à violência, comum a vários animais, como lobos e chimpanzés, que organizam grupos de machos para defender seu território ou invadir território alheio; nos cérebros desses seres, a seleção natural deve ter favorecido a tendência a criar “zonas de guerra” que delimitam fronteiras. Por outro lado, pressões culturais, como vingança, iniciação dos jovens na guerra, diferenças religiosas, também causam ações violentas. No entanto, novamente, nenhuma dessas “explicações” é suficiente, pois nós temos liberdade e livre arbítrio para decidir se seremos mais pacíficos ou mais agressivos, visto que nossos comportamentos resultam de interações entre as forças poderosas da natureza e da criação, não sendo causados por nenhuma delas isoladamente. Os neandertalenses Os primeiros fósseis do homem neandertal foram encontrados no vale do rio Neander, na Alemanha, em 1856 e, mais tarde, em grande parte da Europa e do Oriente Médio. Eles possivelmente descendem do Homo heidelbergensis, viveram na Europa a partir de 200 mil anos, coexistiram com os humanos modernos da cultura cro-magnon e extinguiram-se há 28 ou 30 mil anos seja porque levaram a pior na competição por alimento e espaço vital com esses humanos dotados de uma tecnologia superior, seja porque não se adaptaram ao aquecimento do clima, seja porque foram contaminados por agentes infecciosos trazidos pelos invasores aos quais não tinham resistência, seja porque se miscigenaram com esses invasores mais numerosos. Caso tenha havido cruzamentos com os humanos modernos, gerando descendência fértil, a extinção dos neandertalenses seria incompleta com seus genes permanecendo em nós, mas também eles podem ter efetivamente se extinguido caso o cruzamento gerasse descendentes estéreis, como ocorre no cruzamento entre éguas e jumentos que produzem um híbrido viável, mas estéril, que é a mula. Os neandertalenses tinham diferenças anatômicas e culturais marcantes em relação aos humanos modernos: crânio com testa baixa e inclinada para trás, mandíbula recuada, caixa torácica em forma de sino e não em cone como a nossa, pelve larga, perna curvada, musculatura pesada e estatura baixa, características que lhes davam aparência atarracada, porém nada substancialmente diferente de nós, mesmo porque muitas dessas características podem ser meras adaptações ao ambiente frio. Eram hábeis artesãos, fabricando ferramentas como facas, raspadores e pontas de lança e seu pensamento simbólico é representado por obras de arte que caracterizam sua cultura mousteriana (de Le Moustier, uma caverna na França). Os neandertalenses são os nossos parentes mais próximos, mas o grau de parentesco é controvertido, o que se reflete no seu nome científico: Homo neanderthalensis sugere que eles constituíam uma espécie biológica, anatômica, cultural e comportamentalmente diferente da nossa, enquanto Homo sapiens neanderthalensis sugere que eles são uma subespécie da nossa, Homo sapiens sapiens. A solução do dilema depende de saber se os neandertalenses e os humanos modernos teriam trocado genes originando descendentes férteis ou não; caso isso acontecesse, ambos seriam membros da mesma espécie, caso contrário, seriam espécies diferentes. Alguns restos parecem exibir detalhes anatômicos híbridos, mas a maior parte das evidências, inclusive moleculares, aponta no sentido de eles serem uma espécie distinta, sem ligação direta com os humanos modernos com os quais não se cruzavam. Como não há provas de que eles se cruzavam, também não há de que não o faziam, de modo que a dúvida persiste. ENTRAMOS EM CENA Desde cinco milhões de anos, talvez há sete milhões de anos, uma variedade de seres pertencentes à nossa história evolutiva perambulou pelo planeta. Nessa longa história, várias espécies de hominídeos apareceram mas todos se extinguiram, exceto nós, que desde 25 mil anos somos a única espécie de hominídeo sobre a Terra. Essa solidão favoreceu a idéia vigente até a década de 1960 de que ao longo dos tempos só teria existido uma espécie de hominídeo em cada momento, o que implica a idéia de que a evolução teria sido linear em direção a nós. A partir do final da década de 1970, ficou evidente que vários tipos de hominídeos conviveram, competiram, surgiram e desapareceram, forçando a substituição da hipótese da espécie única pela noção de que várias espécies viveram simultaneamente. Muitas evidências apontam para nossa origem africana, ocorrida há 150 mil ou 200 mil anos. Por volta de 100 mil anos atrás, nossos ancestrais já haviam alcançado o Oriente e compartilhavam com os neandertalenses o mesmo ambiente e a mesma tecnologia de fabricação de ferramentas muito semelhantes. Porém, ao chegarem à Europa por volta de 40 mil anos atrás, introduziram a tecnologia de talhar a pedra típica do Paleolítico superior, muito mais avançada, além do uso de outros materiais como ossos e chifres, da arte de entalhar, gravar e pintar em cavernas e de praticar funerais elaborados com bens de sepultura. Raças humanas Quando uma população inicialmente uniforme se divide em grupos separados, o isolamento vai gradativamente introduzindo diferenças entre os grupos. Se o isolamento for prolongado, a fertilidade entre os grupos vai se reduzindo até desaparecer e acabam se formando espécies diferentes. O estágio intermediário, no qual se notam algumas diferenças genéticas entre os grupos isolados, caracteriza a formação de raças de uma mesma espécie; assim sendo, como as diferentes raças de uma espécie têm origem comum, elas nunca podem ostentar qualquer grau de “pureza”. A diferenciação da humanidade em raças começou quando nossos ancestrais iniciaram sua expansão pelo mundo, pois a ocupação de novos ambientes e a adaptação a novos climas e a novas condições promoveram diferenciações locais com diversificação genética e morfológica. É bem sabido que o cruzamento entre pessoas de “raças” diferentes não acarreta nenhum declínio de fertilidade, o que significa que a nossa diferenciação racial não teve tempo, nem oportunidade de alcançar o ponto em que as espécies se separam; nem mesmo a diferenciação se completou com a formação de raças claramente definidas porque o tempo foi muito pequeno e sucessivas ondas de migrantes contribuíram para reduzir a diferenciação genética incipiente. Hoje, com a mobilidade das populações favorecida pelo progresso dos meios de transporte, a diferenciação racial vem diminuindo, havendo muitos grupos de transição de modo que qualquer traço humano exibe uma variação geográfica contínua e gradual de uma região para outra. Por isso, e também porque não há nenhuma definição satisfatória para o termo “raça”, toda classificação da humanidade em raças será sempre arbitrária, podendo gerar tantas quantas quisermos. Apesar da impossibilidade científica de delimitar a humanidade em “raças”, podemos reconhecer cinco grupos étnicos cujas características médias são aproximadamente definidas: europeus do Norte, europeus do Centro, africanos, australianos e mongólicos. As diferenças raciais mais evidentes entre esses grupos são externas e, literalmente, ficam à flor da pele, pois, sendo a superfície do corpo a interface entre o ambiente interno e o externo, ela desempenha um papel importante nas adaptações ao clima. As diferenças externas entre os grupos refletem apenas a história geográfica de seus antepassados, a história de suas adaptações a climas tão diferentes como o ártico e o deserto, sendo um resultado esperado para qualquer espécie de ampla distribuição geográfica, não significando que as várias raças tenham origens diferentes, que tenham surgido em momentos diferentes da evolução ou que uma seja mais evoluída que outra. Assim, essas características são adaptações determinadas por barreiras geográficas e ecológicas que estabeleceram limites à livre migração de seus membros, mas nenhuma delas, considerada isoladamente, basta para caracterizar qualquer um dos grupos. Por exemplo, os africanos e os australianos têm a mesma cor de pele, mas textura de cabelo diferente; os europeus do Norte têm a mesma cor de pele que seus vizinhos do Centro, mas índices cefálicos diferentes; os europeus do Norte e os africanos diferem na cor de suas peles, mas têm os mesmos índices cefálicos; e assim por diante. Mesmo características menos evidentes, como os marcadores genéticos e sorológicos, não constituem critérios eficientes para separar as raças, pois são antes diferenças quantitativas do que qualitativas: todas as raças têm os mesmos genes, variando entre elas apenas a freqüência deles. Além disso, de modo geral, as diferenças genéticas entre as pessoas do mesmo grupo racial são apenas um pouco maiores do que as diferenças entre pessoas do mesmo grupo. Tanto pela impossibilidade de delimitar cientificamente a humanidade em raças, como pelo descrédito desse conceito devido ao mau uso para fins militares e políticos, prefere-se abolir o termo “raça” para nossa espécie, ainda que os cruzamentos entre pessoas de mesma “raça” sejam mais freqüentes do que entre as de “raças” diferentes, determinando que as diferenças entre os grupos étnicos permaneçam. Voltamos, assim, ao questionamento inicial deste artigo referente a conceitos como humanidade, nação e raça, em nome dos quais tantos milhões de indivíduos foram sacrificados ao longo de nossa história. Neste momento, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos acaba de tomar posse, com um elogiado discurso de candidato “pós-racial”, o que não significa que nesse país, ou em qualquer outro, haja uma democracia racial ou que tenhamos superado a utopia da igualdade entre as pessoas. Uma nova evolução? Nossa evolução foi moldada pela mesma força que atua em todo o mundo vivo: a seleção natural, envolvendo competição, sobrevivência dos mais adaptados, reprodução dos tipos privilegiados com preservação de seus genes, eliminação dos mais fracos junto com seus genes. Sob ação dessas forças, há seis ou sete milhões de anos, a evolução dos primatas africanos tomou dois rumos, um que levou aos humanos e outro que conduziu aos chimpanzés. O ramo que nos originou começou a andar ereto, deixou as florestas, seus corpos e cérebros cresceram e originaram o homem moderno que, há 50 mil anos, já era fisicamente idêntico a nós. Ironicamente, se a tecnologia do Homo sapiens representada por ferramentas, armas e agricultura afastou a fome e os predadores, ela também anulou as poderosas forças da seleção natural que nos haviam originado, pois, se todos sobrevivem e se reproduzem, a seleção fica impedida e a evolução biológica fica interrompida. O que não se sabe é se a nossa evolução está parando devido ao arrefecimento das pressões seletivas clássicas ou se ela está mudando de rumo pela ação de novas pressões produzidas pela cultura e pela tecnologia. Na sociedade globalizada pode estar se iniciando uma nova evolução: o crescimento das cidades aumenta a possibilidade de epidemias; as viagens internacionais favorecem a disseminação de germes como os da gripe e cólera, impactando nosso sistema imunológico; novas substâncias químicas e radiações espalhadas no ambiente podem estar aumentando nossa taxa de mutação; as interações sociais processam-se, não mais por relações pessoais, mas a distância, via internet; o controle das tecnologias genéticas, do genoma, da reprodução assistida, da clonagem está em vias de nos permitir orientar conscientemente nossa evolução. O que fica claro é que nenhuma hipótese científica pode ser provada, que a mais brilhante teoria científica pode ser refutada e demolida por um único achado conflitante e que essa aparente vulnerabilidade da ciência constitui sua maior força, porque a impulsiona continuamente na busca de novos conhecimentos. Por isso, o conhecimento verdadeiro de nosso passado evolutivo é uma ilusão: nossos conhecimentos são precários, as “árvores genealógicas” da linhagem humana são continuamente revistas e refeitas e não é de estranhar que as lacunas no conhecimento sejam substituídas pelas interpretações e especulações que melhor satisfaçam a necessidade que cada um de nós tem de adequar-se aos fatos. Não é de estranhar que persistam dúvidas fundamentais sobre o que de fato ocorreu, afinal, acontecimentos muito mais recentes do que os de sete milhões de anos atrás estão envoltos em névoas espessas. Por exemplo, a tradição histórica aponta o Oriente Próximo (Egito e Mesopotâmia) como “berço da civilização”, donde a sabedoria se disseminou para a Grécia, depois para Roma e daí para os “bárbaros” norte-europeus que estariam placidamente aguardando a onda civilizatória. No entanto, esses “bárbaros” tinham conhecimentos matemáticos sofisticados e uma engenharia eficiente que lhes permitiram construir grandes monumentos de pedra antes mesmo dos egípcios e mesopotâmicos, incluindo o megalito de Stonehenge, que foi o primeiro observatório astronômico do mundo. Se há tantas lacunas nos acontecimentos ocorridos há poucas centenas de anos, é natural que sejam ainda maiores as dúvidas que envolvem os milhões de anos da história dos hominídeos e os milhares de anos da história de nossa espécie. Não se tem dúvida de que o berço do homem anatomicamente moderno, nós, é a África, de onde vieram as populações que substituíram as populações autóctones da Europa e Ásia. Na Europa, os grupos humanos anatomicamente modernos substituíram as antigas populações neandertalenses cujo esqueleto pesado e fronte recuada criaram no imaginário popular a idéia de brutos seres pré-humanos; por isso, foi um alívio para o nosso orgulho saber que há 30 mil anos eles foram extintos e seu lugar ocupado por seres de ossatura mais delicada e cuja maior sensibilidade é evidenciada nos desenhos que fizeram em paredes de cavernas: era a vitória da sensibilidade sobre a brutalidade. No entanto, a cultura mousteriana do homem de neandertal caracteriza-se por trabalhos em pedra muito superiores a qualquer nível cultural anterior e eles foram os primeiros humanos a enterrar seus mortos, o que sugere que tivessem sentimentos religiosos e uma visão autocrítica do mundo. Como se vê, a história dos hominídeos tem mais dúvidas do que certezas, havendo ainda muito a se desvendar, mas, como alertava o genial geneticista Theodosius Dobzhansky (1900-1975), “o estado de dúvida pode não ser muito confortável, mas o de certeza é ridículo”.