Platonismo cristão? Que platonismo? - PUC-Rio

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PLATONISMO CRISTÃO?
QUE PLATONISMO?
*
Miguel Spinelli
1 - Intróito
1. a - O que dizer do Platonismo na medida em que lhe foi sobreposto
o adjetivo cristão? Foi a partir do século II, por obra de helenistas
convertidos ao Cristianismo, que se deu esse tipo de sobreposição. Ela foi
feita sobretudo em função de dois objetivos: um, dar à doutrina cristã um
status filosófico; outro, transformá-la numa doutrina plenamente aceita pelos
intelectuais (ou seja, helenistas) da época.
Ao recorrer à Filosofia, os novos helenistas convertidos – tais como
Justino, Tertuliano, Clemente de Alexadria, Orígenes, Gregório de Nazianzo
(objeto de estudo deste artigo) , Basílio e Gregório de Nissa1 –
*
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]
Dedicamos uma obra inteiramente ao estudo desses autores: Helenização e Recriação de
Sentidos. A Filosofia na época da expansão do Cristianismo – séculos II, III e IV. Porto Alegre:
Edipucrs, 2002, 392 pgs.
1
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evidenciaram várias "convergências" entre a doutrina cristã e as doutrinas
filosóficas. Foi por causa dessas supostas convergências que eles se viram
impulsionados a se adentrar ainda mais no território filosófico. Em geral, eles
se serviram bem mais de Platão do que de Aristóteles. A recorrência a
Aristóteles se deu sobretudo pelo fato de eles terem encontrado na lógica
aristotélica uma porta de acesso para a "teologia" de Platão. Direta ou
indiretamente, eles encontraram em Platão e em Aristóteles inúmeras
asserções que lhes pareceram úteis. Muitas delas (comumente aceitas na
discussão filosófica) foram simplesmente por eles amputadas dos contextos
filosóficos originários, e, por vezes, dogmatizadas... O resultado foi uma
mescla de Filosofia e de pregação religiosa, cuja tendência foi a de substituir
a convicção racional pela fé, a retórica pela autoridade, os princípios racionais
pelo dogma, até que o discurso do eclesiástico se transformasse numa fala
autoritária... O que se deu, a bem da verdade, foi uma subversão de
conceitos, de modo que, o que era tido como Filosofia, pouco a pouco se
converteu em Religião...
1. b – Posto esse ponto de vista, Gregório de Nazianzo (330-390),
dentre os doutrinadores cristãos, pode ser visto como um dos que mais se
dedicou a esse tipo de subversão. Ele viveu no século IV, na região da
chamada Capadócia (na Ásia Menor, em território que hoje pertence à
Turquia). Ele também é tido como "grego", mas isso se deve, além da
educação helenística que recebeu, ao cultivo da língua e da cultura grega...
Duas observações, uma a respeito do nome "Gregório", outra, quanto
ao termo "teologia". Em relação ao nome "Gregório", a sua recorrência se
explica pela sua derivação – de egrêgora, que tinha o sentido de estou
acordado ou estou vigilante. Foi por isso, ou seja, pelo fato de designar o
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Desperto, que o nome Gregório se tornou muito usual entre os recém
batizados. O próprio nome em si era um modo de eles (ou dos pais) se
posicionarem frente aos não-cristãos e a todos os opositores do
Cristianismo... Quanto ao termo "teologia", ele não tinha, na época, a
mesma abrangência atual. Por Teologia, é necessário entender uma certa
linguagem (emprestada preferencialmente de Platão e da Filosofia) através
da qual se expressava os "mistérios do divino <tò theîon>"2 -, um termo,
aliás, cuja significação cristã passa a ser essencialmente distinta daquela
concebida pelos gregos.
Vale ainda destacar que o tema da trindade (determinado pelo
Concílio)3 era a principal fonte dos debates e das querelas teológicas, feitas,
porém, como uma ocupação de filósofo e não do teólogo. Dá-se que, por
um lado, com o advento do Cristianismo e a sua consolidação, o
endereçamento religioso assumido pela Filosofia grega no seu percurso
histórico (sobretudo numa perspectiva estóica e epicuréia) encontrou no
Cristianismo um substituto; por outro, o Cristianismo, na época, era a
grande inovação, e isso atraía a atenção dos filósofos, que se dedicavam a
filosofar sobre ele... "Filosofar", em sentido amplo, significava discutir
conceitos e recriar sentidos; num sentido mais restrito, significava discutir ou
questionar assuntos da Religião e da crença (sobretudo referentes à
trindade). Visto que esse filosofar se tornou generalizado (ainda mais que,
na época, o fato de ser cristão facilitava o sucesso e as oportunidades na
2
"Par théologie, au sens que la patristique grecque des premiers siècles a donné à ce mot, il
faut entendre la langue dont on use pour parler du mystère de Dieu" (PRUCHE, Benoît.
"Introduction", in BASILE DE CÉSARÉE. Sur le Saint-Esprit. Paris: Les éditions du CERF,
1968, p.179).
3
Discours XXV, 8, 1209 A 25-27, p. 176 - Discours 24-26. Introduction, texte critique, traduction
et notes par Justin Mossay et Guy Lafontaine, Paris: Les éditions du CERF, 1981, SC284;
BERNARDI, J.. La prédication des pères cappadociens. Le prédicateur et son auditoire. Paris:
Aubier, 1968.
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vida pública e individual), isso fez com que os doutrinadores (vinculados à
ortodoxia do poder religioso) logo se apressassem em discipliná-lo...
2. Subversões de Gregório de Nazianzo
No seu empenho em disciplinar a atividade filosófica (mais
exatamente em disciplinar o "filosofar sobre o divino"), Gregório de
Nazianzo, sob um certo aspecto (amparado pelo poder da ortodoxia
estabelecida), se tornou muito restritivo. Ele dizia generalizadamente que
"sobre o divino não se filosofa"4 -, mas, ao dizer isso, tinha em mente os
seguintes propósitos: um, acautelar os "filósofos" quanto às heresias, mais
precisamente contra os que, desvinculados da ortodoxia estabelecida, não
tinham nenhuma restrição em submeter a doutrina a um rigoroso exame
racional (uma atitude, aliás, que era tida como de má-fe); outro,
simplesmente afirmar que sobre Deus (ou sobre os assuntos da fé) não se
põe questão, ou melhor, sobre o divino não se discute. Gregório, em
contrapartida, afirmava que era permitido filosofar sobre Deus, mas sob
certas condições: primeira, que essa não era uma tarefa para qualquer um,
mas restrita somente àqueles que se purificaram a si mesmos "pela prática
da filosofia"5; segunda, que só era permitido filosofar sobre Deus aos
indivíduos que alcançaram, antes, a elevação ascética, ou, de acordo com
as suas palavras, que estavam "exercitados e avançados na contemplação
<na theoría>, e que purificaram a alma e o corpo..."6.
4
"Não é terrível ser batido sobre o terreno da eloqüência (dizia), uma vez que ela não pertence
a todos; mas é terrível que a divindade seja posta em discussão, porque ela é a esperança de
todo o mundo" (GRÉGOIRE DE NAZIANZE. Discours. XXV, 18, 1224 B C 13-16, p. 202 – Cf.
Bibliografia Utilizada
5
Discours. VI, 1, 723 B 13, p. 122 - Discours 6-12. Introduction, texte critique, traduction et
notes par Marie-Ange Calvet-Sebasti, Paris: Les éditions du CERF, 1995, SC405.
6
Discours. XXVII, 3, 15 D 5-7, p. 76 - Discours 27-31 (Discours théologiques). Introduction,
texte critique, traduction et notes par Paul Gallay, Paris: Les éditions du CERF, 1978, SC250.
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Na afirmação de Gregório de que, para filosofar sobre Deus, era
necessário, antes, "purificar a si mesmo pela prática da Filosofia", ele
pressupunha o conceito platônico de catarse, mas com uma outra
mentalidade que não a platônica. A catarse a que se refere diz respeito ao
ser cristão7, pela qual a Filosofia ou o filosofar deixa de ser uma atividade
essencialmente teórica (de reflexão e de argumentação mediante
conceitos), e que passa a se assumir como um exercício ou atividade
prática. Pois, agora não é mais pela teoria ou pela via da razão e do
discurso argumentativo que se alcança o estágio máximo da Filosofia – o
bem supremo -, e sim, pela vivência cristã. Além do mais, Gregório
distingue, na Filosofia, duas vertentes: uma, como sendo "aquela de fora,
que joga com as sombras da verdade, usando a vestimenta e o aspecto
externo da Filosofia"; outra, como ele diz, "a nossa Filosofia, modesta na
aparência, mas elevada em seu âmago escondido, e que verdadeiramente
conduz ao divino"8.
Na medida em que Gregório tematiza filosoficamente a doutrina
cristã, fica muito claro que ele mistura temas filosóficos (de inspiração
platônica) com interesses religiosos. A linguagem da qual se serve é
francamente platônica, como neste trecho, por exemplo: "Quem busca a
Filosofia, a dona das paixões, ergue-se (...) no caminho do bem, desiste da
matéria, sem esperar pela sua decomposição e, dado a grandiosidade da
natureza de sua escolha, se eleva acima das coisas que se vê para apegarse àquelas que são estáveis"9. Mas entre as suas palavras e as de Platão
7
Discours, II, 78, 485 A 1, p. 192 - Discours 1-3. Introduction, texte critique, traduction et notes
par Jean Bernardi, Paris: Les éditions du CERF, 1978, SC247.
8
Discours, XXV, 4, 1204 A 17-20, p. 164 - Discours 32-37. Introduction, texte critique et notes
par Claudio Moreschini, traduction par Paul Gallay. Paris: Les éditions du CERF, 1985, SC318.
9
Discours, XXV, 4, 1203 D 12-15, p. 164
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há uma reversão de pontos de vista e de significados. As expressões são
semelhantes, por vezes até as mesmas, inclusive o conteúdo, mas
manifestam
uma
mentalidade
completamente
distinta.
Também
a
mensagem que quer veicular e os propósitos que quer alcançar são
diferentes. Quando ele diz, por exemplo, no trecho citado, que quem
escolheu o "caminho do bem (...) eleva-se acima das coisas visíveis a fim
de apegar-se às estáveis", todos esses termos – bem, elevação, coisas
visíveis e coisas estáveis – assumem significados muito diferentes.
Vejamos: no que se refere ao bem (no sentido de bem supremo), em
Platão, ele expressa, digamos assim, uma idéia reguladora do pensamento
ético e da ação; já em Gregório, além de prescrever um caminho ético (pois
indica a obrigação de um agir moral segundo os ditames da doutrina cristã),
designa, em última instância, o próprio divino (tido como o juiz supremo de
toda ação). No que diz respeito à elevação prescrita por Platão, ela tem um
sentido prioritariamente gnosiológico, enquanto que, em Gregório, persiste
sempre a conotação moral. Por kátharsis, Platão concebe uma forma de
conter o arrebatamento das paixões <do páthos> ou as inclinações intensas
da alma: afetivas e sensuais. Gregório, por sua vez, não fala propriamente
de paixões da alma, mas da carne <sarks>. É pela purificação da carne
(através do batismo e pela observância dos mandamentos divinos) que o
cristão se torna iluminado, e, assim, em condições de ver "a luz divina". Isso
está claro, por exemplo, no elogio que Gregório fez ao seu confrade Basílio
(em oração fúnebre dedicada ao amigo): ao dizer que Basílio "domesticou a
carne pela Filosofia"10, ele se referia não propriamente à dimensão da
sensibilidade humana, em termos gnosiológicos, mas aos impulsos afetivos
10
Discours. XLIII, 10, 508 A 25, p. 136 - Discours 42-43. Introduction, texte critique traduction et
notes par Jean Bernardi. Paris: Les Éditions du CERF, 1992.
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da libido. Através da expressão (domesticar a carne), ele queria, por um
lado, realçar um comportamento moral, por outro, exaltar a destinação
espiritual e religiosa que o seu confrade deu à própria vida. Por carne, além
da sexualidade, ele subentendia tudo o que era mundano, ou seja, tudo
aquilo que, no domínio do cotidiano despertava os apetites afetivos e
sensuais dos indivíduos. Aliás, o próprio conceito de cotidiano assume, em
Gregório, um sentido negativo: "Eu considero a vida presente como uma
tempestade e eu busco um rochedo (...) para me abrigar"11. O mesmo,
porém, não se aplicava rigorosamente em relação ao corpo, tido por ele
(sob o ponto de vista platônico) como o lugar da purificação da alma: "a
partir do corpo (aconselhava Gregório) ocupa-te com a tua alma com
predileção <ek toû sômatos têi psychêi philopónêson>"12. Praticamente sob
todos os aspectos, o corpo era tido por ele como um "elemento inferior",
designado de a "miserável carne", que deveria forçosamente ser dominada
pela alma.
Outras expressões ditas por Gregório, por exemplo: a) é por causa do
corpo que "o mundo daqui de baixo é o mundo das trevas"; b) é pelo corpo
que "escoa o fluxo do devir"; c) é o corpo que "intercepta o conhecimento do
verdadeiro"13... são todas expressões de origem platônica, mas que não
conservam rigorosamente a mesma mentalidade. A ascese platônica do que
se vê (a kátharsis da corporeidade) em favor do que é estável (da alma),
tem uma função libertadora distinta da idéia da remissão proposta por
Gregório. A reminiscência platônica não comporta nem a idéia da culpa,
nem a do pecado, tampouco qualquer transgressão moral, menos ainda a
11
Discours, X, 1, 828 B 11-12, p. 318
Discours, XX, 12, 1080 B 7-8 - Discours 20-23. Introduction, texte critique, traduction et notes
par Justin Mossay et Guy Lafontaine, Paris: Les éditions du CERF, 1980, SC270.
13
Discours, II, 16, 425 B 11, p. 112; Discours, XXVIII, 4, 29 C/ 32 A 13-14, p.108
12
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idéia de que é necessário livrar a alma das penas do Inferno, salvá-la da
condenação pelo divino... A elevação fundamental da ascese platônica tem,
como momento supremo, um exercício de concentração: aquele pelo qual a
"alma filosófica" se afaz à meditação ou reflexão teórica, em busca da
plenitude do conhecimento. É isto, com efeito, o que Platão recomenda às
almas filosóficas: "... recomendo-lhes que se concentrem e se voltem para
si, não confiando em nada mais do que em si mesmas... e que se
persuadam de que as coisas, que são examinadas por meio de um
intermediário qualquer, nada possuem de verdadeiro, pois pertencem ao
gênero do sensível e do visível, enquanto que o que elas vêem pelos seus
próprios meios é inteligível e, ao mesmo tempo, invisível"14. Sob esses
termos – visível e invisível – Platão contrapõe o sensível ao inteligível (ou
melhor, a observação da aparência do que se vê, contra o exame atento do
que não se vê, ou seja, "do que cada coisa é na sua essência"15); Gregório,
no entanto, sob esses mesmos termos, contrapõe o mundano ao
sobrenatural (ou eterno)...
Tanto nos Discursos de Gregório, quanto, em geral, na literatura
religiosa dos primeiros eclesiásticos, a tendência dos conceitos ou das
palavras filosóficas foi perder a sua intenção teórica e significação
originárias. Elas passaram a não mais expressar intenções da cultura
filosófica grega, mas da doutrina cristã. Por exemplo, a expressão platônica,
as naturezas inteligíveis <noeraîs phýseôs>, com a qual ele designava
pensamentos ou idéias <noêmas>, converteu-se, em Gregório, em
naturezas espirituais, a ponto de serem concebidas como existentes de fato,
14
PLATÃO. Fédon. 84 b
"Que (as almas) não creiam enfim senão no próprio testemunho desde que tenham
examinado bem o que cada coisa é na sua essência..." (PLATÃO. Fédon. 84 a-b).
15
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vivendo numa esfera superior, próximos de Deus. Do mesmo modo, o
mundo inteligível (o kósmos noêtós)... ele não mais diz respeito
propriamente ao mundo das idéias, mas a um mundo que ele chama de
inteligências espirituais...
Ao compor filosoficamente, e sob vários aspectos, a inteligibilidade
cristã, Gregório teve como propósito forçar as palavras dos filósofos gregos,
por ele tidas como profanas, a se tornarem palavras santas ou inefáveis. A
sua justificativa fora a seguinte: porque cabia a elas expressar o divino <tò
theîon> -, um termo com o qual ele aparenta conceber o mesmo que Platão,
como sendo tudo aquilo "que não é visto pelos olhos, nem entendido pelos
ouvidos, e nem teorizado pelo pensamento"16, mas é óbvio que tais palavras
não têm o mesmo alcance das de Platão, visto que escondem uma outra
mentalidade: aquela pela qual o divino diz respeito a um existente de fato.
Ora, no que concerne a Platão, o divino não predica a existência de
um ente real. Por ele, Platão indica, em um sentido amplo, um estágio além
da percepção sensível, próprio do conhecimento racional. Nesse sentido, o
divino é (segundo as palavras de Platão) "o que escapa à opinião"17, e
corresponde, digamos assim, ao momento de excelência do pensar: aquele
pelo qual a razão se concentra sobre si mesma, e assim fica completamente
absorta na meditação. Trata-se de um estágio de elevação, próprio de quem
se aplica ao estudo teórico e à pesquisa. Nesse sentido, divino é o
momento indefectível da ciência, ou seja, da construção da inteligibilidade
humana como necessidade de explicar o que quer que seja. Noutro sentido,
o divino corresponde ao inteligível, isto é, a tudo aquilo que pertence à
esfera do pensamento <do noûs> e do que é passível de ser compreendido
16
17
Discours. XXVIII, 5, 32 B 4-5, p. 108
PLATÃO. Fédon. 84 a
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ou explicado por ele. Por esse ponto de vista, o divino são as idéias.
Enquanto tal, ele está intimamente relacionado às eîdos, e, portanto, a tudo
aquilo que pode ser "visto" ou inteligido pelo pensamento. Ocorre que, das
coisas, o pensamento se apropria das formas, isto é, de definições
simbólicas racionalmente construídas. Por isso, o divino, em última
instância, é o verdadeiro. É por ele que nasce o discurso, pelo qual se
realiza a fusão do pensamento com a palavra, de tal modo que, como diz o
próprio Platão, "pensamento e discurso" resultam na "mesma coisa", ou
então, como antes dissera Parmênides, "pensar e ser é o mesmo"18.
Platão está de acordo com Parmênides em que só há um caminho de
verdade: aquele que funde o pensamento e a nomeação, ou que une a
razão e o discurso (possível). Esse ponto de vista, porém, assimilado por
Platão e por Parmênides, em nada difere do que vem subentendido no
logos de Heráclito. Heráclito atribuíra a esse termo (de uso comum na
literatura de Homero e de Hesíodo), um duplo significado: o da palavra ou
discurso e o do pensamento ou razão. Essa dupla conotação, ele a
concebeu pelo fato de constatar, por um lado, que o pensamento, sem o
auxílio da palavra (ou do símbolo, em geral), não funciona (não opera); por
outro, que o discurso, sem interiorizar em si mesmo o pensamento, é
destituído de significado (não é portador de mensagem). Um, portanto, não
se exerce sem o outro, de tal modo que é por essa identidade que a
significação ou a mensagem se manifesta. Quer dizer, o discurso só tem
sentido se for portador de pensamento, e as palavras só designam ou dizem
alguma coisa se forem racionalmente proferidas. Deve haver, pois, uma
íntima convergência entre pensamento, significado e discurso. Sobre isso,
18
PLATÃO. Sofista. 263 e; DK 28 B 3.
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todos concordam, inclusive o próprio Gregório, que diz: "Quando estão em
questão as coisas divinas <tôn theíôn>, é necessário, me parece, que as
próprias designações e as aparências (formais do discurso) não sejam
inconvenientes e indignas das coisas significadas..."19.
De posse das palavras gregas, detentoras de uma inteligibilidade
teórica específica, arraigadas dentro de um discurso com inteligibilidade
própria, Gregório introduz nelas um outro significado. Ele as submete a uma
recriação de sentidos, de tal modo que certos termos, precisos no contexto
do discurso filosófico grego, são, digamos assim, decalcados pela sua
tematização filosófica. É assim que ele recria a doutrina de Platão,
convertendo-a em doutrina cristã, de tal modo que se torna impróprio
atribuir-lhe o conceito de platonista. Afinal, ele não se interessa pelo estudo
teórico da filosofia de Platão. Do mesmo modo, a sua tematização filosófica
não se move a partir dos postulados platônicos, mas dos da doutrina cristã.
O ponto de partida de seu estudo não é a doutrina de Platão, e sim a do
Cristianismo, cujos pressupostos, bem ou mal, encontraram na terminologia
platônica (disponível nas doutrinas filosóficas de seu tempo) um modo
eficiente de se expressar.
Enfim, tudo o que se atribui a Gregório sob o título de platonismo
cristão20 nada mais é do que um aproveitamento direcionado em vantagem
19
Discours, IV, 118, 657 BC, 21-23, p. 284 - Discours 4-5. Contre Julien. Introduction, texte
critique, traduction et notes par Jean Bernardi, Paris: Les éditions du CERF, 1983, SC309. Os
parênteses foram acrescentados, em função do que segue: "Por isso é necessário se deter
com o que há de mais belo ou, pelo menos, evitar o mais feio, de tal modo que seja capaz de
agradar aos mais sábios sem prejudicar o entendimento da maioria" (Discours, IV, 118, 657
BC, 24-26, p. 284). Deter-se com o que há de mais belo, não significa, todavia, restringir-se "à
elegância literária, orgulho dos adeptos da filosofia grega" (Discours, XXV, 4, 1204 A 20-25, p.
164).
20
MORESCHINI, C.. "Il platonismo cristiano di Gregorio Nazianzeno", Anali della Scuola
Normale Superiori di Pisa. 4, 1974, pp. 1347-1392
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do Cristianismo. Por força dessa submissão, a linguagem filosófica de
Platão assume uma outra destinação teórica. Por isso, dizer, como diz
Moreschini21, que Platão serve de parâmetro filosófico a Gregório ou a
outros, resulta parcialmente verdadeiro, uma vez que Gregório, no caso,
não tem por intenção buscar compreender a doutrina de Platão e o seu real
significado. O que ele faz, em última instância, é uma translatio sentii (ou
seja, uma translação de sentidos) pela qual o discurso teológico, servindose dos mesmos termos, veicula uma outra mensagem. O melhor exemplo
dessa tranlatio pode ser constatado nas seguintes palavras de Gregório,
com as quais ele se apresenta como um contraposto à Pythia: "aproxima-te
das coisas sagradas (convida), dessa mesa mística e perto de mim, que
preside aos ritos da divinização, para os quais conduzem a tua palavra e a
tua purificação"22. Ora, quem ouve essas palavras de Gregório tem a
impressão de estar ouvindo a palavra da Pythia (da sacerdotisa do templo
de Delphos, que cuidava das coisas sagradas, dos ritos de divinização e de
purificação). Gregório, curiosamente, fala como se fosse ela, serve-se
inclusive das mesmas palavras, mas os significados que lhes impõe são
completamente distintos: tais palavras são dotadas não só de um outro
referencial ou intentio mentis, mas também, frente ao público, de um outro
destino sedutor.
21
Ao contrário do que diz MORESCHINI: "É a tradição que reinterpreta, segundo certos
parâmetros da Filosofia platônica, algumas das mais importantes doutrinas do Cristianismo"
(op. cit., p. 1351).
22
Discours, XXV, 2, 1200 B 19-21, p. 160
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