A prova do Vinho: embriaguez, educação e prazer nas Leis de Platão Expositor: José Renato de Araujo Sousa Na verdade, quem pensaria num tempo de crise política e social usar o vinho como um dispositivo educacional para corrigir os homens de seus defeitos? Uma bebida que deixa mais intensos os prazeres (ta;" hJdonav"), as dores (luvpa"), as paixões (qumou;" ) e o amor (kaiv e]rwta" ), e ao contrário disso, faz com que a percepção (aijsqhvsei"), a memória (mnhvma"), as opiniões (do;xa") e os pensamentos (fronhvsei")1 o abandone, de forma que quem tomar dessa bebida perca o domínio de si? Qual seria a utilidade do vinho para a paidéia? Uma vantagem o Ateniense diz que já se pode obter, comparando-se com a ginástica, é o fato de não causar dor (th;n luvphn). Mas isso torna-se secundário, ou mesmo passa despercebido quando nos deparamos com esta proposta: “Para conhe- cermos o feitio intratável e selvagem de qualquer alma, fonte de um semnúmero de injustiças, não é mais perigoso fazer a prova por meio da realização de algum negócio, com todos os riscos inerentes, do que ter essa pessoa por companheiro de Dioniso?”2 1 PLATON, Ouvres complètes - Les Lois, 645 d-e. Texte établi e traduit por Édouard Des Places, S.J., Les Belles Lettres, Paris, 1951. 2 PLATÃO. Leis, 649 e-650 a. Trad. Carlos A.Nunes. UFPA, 1980. Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001. 130 José Renato de Araújo Sousa Afinal o que significa ser companheiro de Dioniso? Bem, a resposta pare- ce que é participar de um banquete, com música, dança, e muito vinho para despertar a embriaguez. Contudo esse não é um banquete comum, ele é comportado, seguido com todas as regras, tal como aquele do diálogo “O Simpósio”, também de autoria de Platão. Mas não fiquemos surpreso com isso, o personagem Clínias já nos antecipou a surpresa ao perguntar ao Ateniense que vantagens poderia se obter de um banquete praticados com todas as regras e que benefícios haveria para os homens ou para a cidade3. A resposta é que dessa forma se descobriria a disposição natural dos homens (tav" quvsei")4. O vinho, dessa forma, é proposto como um dispositivo para conhecer aquilo que estaria mais oculto na mente humana. Sua função seria o de tornar manifesto todos os desejos latentes, todos os instintos selvagens que incitam o homem a fazer o mal. E o indivíduo possuído por essa porção, agora deveria mostrar sua verdadeira coragem, teria que lutar contra todas essas forças negativas, para não cair no vexame e na desconfiança daqueles que ali estariam para observá-lo e censurá-lo, caso este se tornasse fraco diante dos desejos, das perversões. Sabe-se que em nenhum outro lugar dos diálogos de Platão foi feita tanta referência a Dioniso, o deus do vinho, do êxtase e da embriaguez, como nas Leis, tal fato levou alguns comentadores a afirmarem que Platão resgata o deus nos seus escritos. Vejamos esta outra menção a Dioniso: “– O Ateniense – Então, paremos com essas críticas sumárias à dádiva de Dioniso, e não a qualifiquemos de perniciosa e indigna de ser acolhida pela cidade. Ainda haveria muito mais que dizer a seu favor; porém, diante das multidões, temos escrúpulo de falar do maior bem que ela nos proporciona, porque essa gente não entende nada e deturpa tudo o que ouve.”5 3 “a[n givghtai tou'to ojrqo;n to; peri; ta;" povsei" novmimon, ajgaqo;n a[n dravseien hJma'";” PLATON, Op. Cit., 641 a-b. 4 PLATON, Op. Cit., 650 b. 5 PLATÃO. Leis, 672 a-b. Trad. Carlos A.Nunes. UFPA, 1980. Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001 A prova do vinho: embriaguez, prazer e educação na Leis de Platão 131 Quão estranho não poderia parecer essa afirmação do Ateniense, personagem platônico, que muitas vezes lembra o Sócrates, de A República? Este que foi acusado por Nietzsche de ser apolíneo e anti-dionisíaco e de ter influenciado Platão a expulsar Dioniso de sua obra. Teria Platão no fim da vida se arrependido de ter abandonado Dioniso, e por conseguinte resolveu acolhê-lo novamente? O que o velho Ateniense, talvez o autoego do filósofo Platão, tem a dizer a favor dessa divindade tão estranha e ao mesmo tempo rebelde quando comparado a deuses como Apolo? Seria o reconhecimento da impossibilidade de se desvencilhar de uma entidade tão poderosa e que no fundo estaria tão intimamente ligada ao nascimento do homem? Será que não faria parte do destino do deus reclamar sua existência e sua participação na natureza humana, uma vez que sabemos pela mitologia que esta divindade foi despedaçada pelos Titãs, a mando da ciumenta Hera, e devorado por esses após ter sido cozido num caldeirão6? Bem, sabemos pela tradição mítica que após o aniquilamento de Dioniso, Zeus se vinga transformado os Titãs em pó. Mas a história não acaba aqui. Desse pó Zeus fez nascer os homens, que teriam agora uma dupla natureza: um lado mal por parte dos Titãs e uma boa por parte de Dioniso7. Seria essa natureza titânica, ameaçadora, que o Ateniense procura despertar nos homens, quando propõe o uso do vinho nos banquetes para conhecer a disposição natural deles? Mas que controle exerceria ele sobre essa força instintiva, e porque não dizer sabedoria e da justa medida destrutiva? Ao sugerir ter os homens como companheiros de Dioniso, é de se esperar que se tenha um Apolo por perto, deus da força, da luz, para neles lançar a flecha da: “Conhece-te a ti mesmo e “nada em demasia”. Mas estas duas forças Apolo e Dioniso, há muito já haviam se reconciliados para o bem dos gregos e isso foi possível segundo Nietszche por causa da resistência de Apolo, representada na arte dórica8. Como sabemos pela tradição, Esparta, herdeiro dos Dórios, foi o Estado 6 7 8 BRANDÃO, Junito de S., Mitologia Grega. Ed. Vozes, Petrópolis, 2000, 11º ed. p. 117. Idem, p. 118. Diz Nietzsche dessa disputa entre Apolo e Dioniso: “...É na arte dórica que se imortalizou essa majestosa e rejeitadora atitude de Apolo. Mais perigosa e até impossível tornouse a resistência, quando, por fim, das raízes mais profundas do helenismo começaram a irromper impulsos parecidos: agora a ação do deus délfico restringiu-se a tirar das mãos Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001. 132 José Renato de Araújo Sousa político grego de maior rigidez em todos os seus padrões sócios-culturais. Quanto a isso, nas Leis, Megilo, o lacedemônio, diz que a embriaguez é proibida em qualquer hipótese em seu Estado. Mas essa parte boa de Dioniso, apontada por Junito Brandão, já é conseqüência de um Dioniso domesticado e unificado a Apolo, o deus da swfrosuvne, que presidia o Oráculo de Delfos. Se estranhamos a atitude de Platão que nos apresenta um Dioniso ainda mais sereno e dócil, é porque não conhecemos ou esquecemos que já era uma tendência, digamos, quase natural do povo grego de dominar seus instintos mais selvagens, de suavizar um dos seus principais aspectos trágicos, ou seja, a u}bris,palavra grega que traduz violência, excesso, desmedida, etc. Da crítica niezstcheana, assimilamos igualmente contra Platão uma ojeriza ao seu comportamento apolíneo, quase antidionisíaco, ou se preferirem, assim como Nietzsche, digamos completamente antidionisíaco. A fundamentação que justifica o uso do vinho e de Dioniso na educação das Leis, dar-se mediante a interpretação que o Ateniense faz da paidéia antiga como atributo dos deuses. Assim, diz que os deuses compadecidos da geração dos homens, que nascera só para os trabalhos, estabeleceram pausas em suas atribulações , com a sucessão dos festivais sagrados, e lhes deram as Musas, Apolo e Dioniso, como companheiros de tais festas para corrigir os defeitos da educação9. Para justificar essa versão mítica, o Ateniense recorre a uma explicação mítico-evolutiva das espécies. Diz, então, que todos os animais nos primeiros meses vivem a dar saltos e cabriolas, como se estivessem executando uma espécie de dança alegre com expressões de regozijo e gritos. Mas os deuses foram fazer companhia aos homens nas suas coréias e lhes deram a harmonia e o ritmo, para terem noção de ordem e desordem nos seus movimentos, enquanto dançavam e cantavam de mãos dadas10. do seu poderoso oponente as armas destruidoras, mediante uma reconciliação concluída no devido tempo.” NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia. Ed. Cia. Das Letras, São Paulo, 1992, p. 33. 9 PLATÃO. Op.cit, 653 d. 10 Idem, 654 a. Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001 A prova do vinho: embriaguez, prazer e educação na Leis de Platão 133 Dessa forma, a educação nas Leis, assim como em A República, deveria começar no âmbito da música, só que com uma diferença importante: a educação começaria com a arte da dança, enquanto em A República, ela começaria com as fábulas11. Uma justificativa nas Leis para se começar com a arte da dança, é que considera-se mal educado (ajpaivdeuto" ) quem não for conhecedor dessa arte. A coréia, por sua vez, na descrição do Ateniense aparece como a união do canto e da dança12. O canto seria visto como encantamentos para a alma, feitos com objetivo de educar as crianças de modo que não se habituem aos sentimentos de dor e prazer contrários ao que a lei determina. Para persuadirem as crianças e os jovens a acreditarem no que a lei determina, o Ateniense sugere que os coros em número de três empregue em seus cantos as mais belas máximas que dizem “para os deuses a vida mais agradável é também a mais justa”13. O coro das Musas seria formado por meninos, o de Apolo por pessoas com menos de trinta anos, e o terceiro, chamado coro de Dionisos, seria formado por pessoas com mais de 30 a 60 anos. A presença das Musas, inspiradora dos poetas, e de Apolo o deus da arte, não é nenhuma novidade na paidéia grega, quanto a Dioniso é uma novidade que Platão nos apresenta. A surpresa de Clínias quanto a formação desse terceiro coro, demonstra bem que se trata de uma novidade, até então para a educação grega. O Ateniense propõe explicar a utilidade do coro de Dioniso para a cidade. A primeira observação é de que ele por ser formado por pessoas mais idosas e sábias terá mais condições de persuadir a comunidade. Contudo nem sempre estes homens mais velhos e mais sábios terão disposição de cantar e de se divertir, pois a medida que avançarem na idade se sentirão mais indispostos e receosos de fazerem isso (665 e). O Ateniense pergunta como fariam para encorajá-los a cantar. Para responder a essa questão diz que é preciso começar por uma lei que proíba os jovens com menos de dezoito anos a tomarem vinho, para evitarem que sejam vítimas de sua própria loucura (666 b). Depois dessa 11 N’A República, 376 e, Sócrates propõe que a educação comece também pela música, só que com a literatura, ou seja, as fábulas. 12 PLATÃO. Op.cit., 654 b. 13 Idem, 664 b. Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001. 134 José Renato de Araújo Sousa idade será permitido beber moderadamente até os trinta anos, mas sem se envolverem em farras e bebedeiras. Porém quando atingirem os quarentas, diz que eles “...participarão das sissítias, invocarão os deuses e convidarão em par- ticular Dionisos para seus mistérios e divertimentos, por haver ele dado aos homens, com o vinho, um remédio capaz de amenizar a austeridade da velhice...” remédio esse deu aos homens que faz os homens rejuvenescer e esquecer as tristezas e abranda a dureza do caráter, deixando-o maleável, como o ferro posto ao fogo14. Ora, não teria Platão reconhecido aquela disposição musical que vem dessa divindade e que encantou Nietzsche n’O Nascimento da Tragédia? O velho Ateniense ao afirmar que Dioniso um favrmakon, juntamente com o vinho, capaz de amenizar a velhice e despertar a alegria de viver novamente, não estaria reconhecendo ou mesmo procurando despertar a serenojovialidade15 dos gregos, há muito abalada por suas transformações e crises políticas? Bem, se quisermos, podemos dar um significado mais artístico ou alegórico, ao sugerir que esse rejuvenescimento provocado pelo vinho, é parte daquele entusiasmo que sentiam as bacantes, quando estavam em estado de transe diante do deus. Se esse entusiasmo já não é completo, é porque nem mesmo o cenário de Dioniso é o mesmo, sua descida das montanhas para as cidades, fez com que o deus se adaptar-se a um novo cenário: os banquetes e o teatro. Além do teatro, o banquete seria um lugar propício a sua presença, pois nesse, já presidia as Musas e Apolo, duas presenças marcantes da inspiração poética. Assim, Dioniso, por meio do vinho viria a completar esta festa com seu êxtase e seu entusiasmo. A prova do vinho, aparece dessa forma como uma proposta educacional diferente e inovadora para a paidéia grega, não só por se dar de forma prazerosa, mas por de ir encontro aquele que teria organizado o primeiro dos banquetes, Dioniso. 14 PLATÃO. LEIS, 666 b-c. Aqui empregamos a palavra ‘serenojovialidade’ tal como ela nos é sugerida pela tradução de J. Guinsburg em “O Nascimento da Tragédia”, ed. Companhia das Letras, 1992. 15 Cadernos de Atas da ANPOF, no 1, 2001