Introdução Divulgando o pensamento Primeiro foram “Os dez mandamentos”, depois “Os sete pecados capitais”. São dois produtos audiovisuais, realizados pela empresa Tranquilo Producciones, que mais tarde se transformaram em livros. Tanto os programas televisivos quanto as produções editoriais tiveram ótima aceitação, o que mostra a capacidade que tem a televisão de divulgar cultura e educação. Há pouco mais de um ano, voltamos a entrar em contato com a equipe da Tranquilo para criar uma série de 26 capítulos, realizando uma viagem que tivesse como temas os 26 filósofos do mundo ocidental que mais influíram na nossa sociedade do século XXI. Assim nasceu A aventura do pensamento, que agora chega às suas mãos em forma de livro, apresentando um resumo de todos os capítulos gravados. Produzimos uma obra de divulgação filosófica que permite ao leitor penetrar no mundo da reflexão, desde a Grécia antiga de Platão até os filósofos contemporâneos, cuja intervenção na vida moderna também inclui sua participação na política, as polêmicas sociais e sua presença nos meios de comunicação de massa. Quero expressar meu mais profundo agradecimento ao professor Ricardo Álvarez, que se encarregou da assessoria científica do projeto televisivo, da organização das informações de cada capítulo e da leitura obsessiva e profissional dos textos que geraram esta obra. 7 A aventura do pensamento O filósofo ao longo do tempo Hoje em dia, vivemos num mundo em que o filósofo é visto como um personagem diferente daquele da época clássica. Quando a reflexão começou a ser valorizada, um indivíduo, para ser filósofo, não precisava fazer nada de especial. Ou seja: na época de Sêneca, por exemplo, ou em Roma, ou na Idade Média, os filósofos eram pessoas que viviam de um modo determinado. Não tinham necessidade de desenvolver nenhuma atividade específica, nem de dar aulas, nem de escrever; no entanto, eram considerados filósofos porque viviam de maneira estoica ou epicurista, quer dizer, norteavam sua existência de acordo com um plano estabelecido. A filosofia era uma forma de vida que envolvia reflexão permanente. Como consta na Apologia de Sócrates: “Uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”. E a filosofia era uma resposta a essa questão. Isso era ser filósofo. Logo o filósofo se transformou em professor, depois numa pessoa que ensinava a filosofar e também explicava as verdades do mundo. Hoje em dia é um professor que prepara outros professores. Os papas do pensamento Talvez Bertrand Russell e Jean-Paul Sartre sejam os últimos representantes da ideia de que antes sempre havia um papa católico e um papa filosófico. Russell e Sartre, enquanto vivos, eram considerados os papas do pensamento. Essa relação é semelhante à que as pessoas têm hoje com o papa Francisco. Há pessoas que gostam dele, outras não, mas todas concordam que esse é o papa. Acredito que, depois da morte de Sartre, não houve mais papas na filosofia. Embora vejamos personagens extremamente respeitados como Umberto Eco, eles já não têm esse papel pontifical como em outros tempos. Além do mais, um fator revolucionário contribuiu para isso: o avanço dos meios de comunicação de massa, que reforçam 8 Introdução um dos aspectos da filosofia, que implica sempre a relação com os outros. Pensar e duvidar A diferença fundamental entre um sábio oriental e um filósofo é que o sábio resolve tudo por conta própria: vai para a montanha, medita e sofre mudanças íntimas na solidão, considerando o discípulo muitas vezes como um estorvo. O filósofo não: não sai vendendo conhecimento, mas joga com ele, questionando de alguma forma as certezas dos outros e criando uma inquietação quanto ao que os outros querem saber. Eu sempre acreditei que filosofamos não para resolver dúvidas, mas para adquiri-las. A filosofia não tenta analisar tudo de maneira aforística – ou seja, isolada –, mas sim encontrar uma relação. Procura ter uma visão total de conjunto, criando um espaço para guardar as coisas que vão surgindo; ou seja, o problema hoje não é que não saibamos as coisas, mas sim que recebemos uma quantidade imensa de informações, principalmente pela internet. Porém, essa massa de informações pode ser verdadeira ou falsa, irrelevante ou importantíssima, ter fundamento ou não. O problema não é receber informações, ao contrário: a quantidade delas é tão grande que não conseguimos lidar com tudo. O importante é saber aplicá-las em algo, para não ficar sufocados. Assim, a filosofia pretende criar um espaço que abrigue as coisas relevantes e sirva de muralha contra o irrelevante, o trivial, o enganoso. É preciso ter critério, saber separar o joio do trigo, permanecendo apenas com o que é valioso. A função da filosofia Para que a filosofia não seja considerada uma matéria esnobe ou pedante, deve se originar dos conflitos pessoais. Ou seja, todos 9 A aventura do pensamento nós algum dia passamos por alguma situação que nos torna filósofos: a morte de uma pessoa querida, um fracasso profissional, uma frustração política. Quando está tudo bem, simplesmente não pensamos, porque não faz falta: as coisas vão caminhando e não refletimos sobre elas. Só pensamos quando, de repente, algo não funciona, algo nos desperta. Um pesadelo, por exemplo, nos ajuda a refletir. Recorremos à filosofia se estamos abalados por uma desilusão, uma derrota, um pavor. A filosofia é a ferramenta que sempre permite nos questionarmos. Espero que nas próximas páginas vocês encontrem questões e temas interessantes que possibilitem a alguns continuar e a outros começar a questionar-se em vez de se conformar com o que já existe. Essa seria a melhor recompensa para este trabalho. 10 1 Platão, os diálogos que iniciaram tudo O que é filosofia? Alguém afirmou que todas as obras filosóficas que foram escritas são simplesmente notas de rodapé dos diálogos de Platão. Portanto, para falar de filosofia, inevitavelmente temos de começar por Platão, autor de uma série de diálogos, quase todos protagonizados pelo protofilósofo Sócrates. Sócrates foi mestre do próprio Platão. Era uma pessoa estranha e curiosa que não tinha estudo. Alguns o consideravam um palhaço; outros, um subversivo que perambulava por Atenas sem nenhuma arrogância, não se valorizava nem se julgava um professor. Sua atividade se resumia a perguntar às pessoas da cidade se sabiam o que era beleza, o que era verdade, o que era justiça. Quando seus interlocutores davam uma resposta convencional – em meio a risadas, já que aqueles eram temas muito delicados –, ele tornava a perguntar várias vezes até deixar claro que eles não sabiam qual era a resposta correta. Isso não significava que Sócrates os contestasse definitivamente, mas demonstrava que os outros também não sabiam nada sobre coisas que imaginavam tão claras, fáceis e evidentes. Ah, o prazer de perguntar e perguntar, não para saber, mas para saber que se pode perguntar e perguntar! Perguntar filosoficamente é pôr em xeque uma pessoa que julga saber ou que quer que aceitemos que ela sabe. Isso não implica nem um pouco que quem pergunta saiba mais que ela. Essa disposição de perguntar para se livrar das certezas estabelecidas, 11 A aventura do pensamento mas sem ter pressa de substituí-las por outras, é própria de Sócrates nos primeiros diálogos platônicos. Com o tempo, ele vai se tornando cada vez mais assertivo, mais informativo. Às vezes alguém pergunta para questionar a validade das crenças vigentes, sua aparência de ditadura intransponível. Os dogmas não são conclusivos, mas oclusivos: obstruem o livre jogo dos sentidos e a liberdade da razão. Não há dogma quando alguém diz: “Essa é a minha pedra angular, e não me farei mais perguntas”. Nisso consiste a sanidade, nem mais nem menos. No entanto, há dogma quando se quer impor publicamente a outra pessoa que algo é a pedra angular e que não é permitido fazer mais perguntas. Nesse caso passa a ser urgente a pergunta, porque a certeza inquestionável decretada pela autoridade, à qual não chegamos por esforço próprio, assim como o nadador que chega exausto à praia, é mais asfixiante do que a série asfixiante de dúvidas. Enquanto o guru amacia a voz para afirmar que o mundo cavalga sobre um grande elefante, que Deus fez o céu e a terra em seis dias ou que devemos amar ao próximo, o garoto impertinente, a senhora escrupulosa e o filósofo perguntam em coro: “Por quê?”. Quando eu era pequeno, meu pai me deu minha primeira enciclopédia, a única inesquecível: chamava-se O tesouro da juventude. Cada volume tinha vários “livros” com temas diferentes: as narrações extraordinárias, os feitos heroicos, as grandes explorações, a natureza, a magia, a ciência… E cada uma dessas seções, maravilhosamente ilustradas, trazia lições eloquentes, narrava histórias ou descrevia paisagens. Uma de minhas favoritas era “O livro dos por quê?”, que respondia a uma infinidade de questões: Para que serve a água? Por que os barcos flutuam? Por que os gatos enxergam no escuro? Por que as montanhas são azuis ao longe? Lembro-me vagamente das respostas desse questionário incrível, e as que me vêm à cabeça talvez tenham sido aprendidas mais tarde, por outros meios menos agradáveis. Mas o que não me sai da memória é a satisfação que eu sentia com as perguntas em si e com sua cadência hipnótica. 12