UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE - UNESC CURSO DE DIREITO MILENE DAL FARRA INÁCIO A LIVRE MANIFESTAÇÃO DE CRENÇA RELIGIOSA E O CASAMENTO RELIGIOSO COM EFEITOS CIVIS CRICIÚMA, JULHO/2009. MILENE DAL FARRA INÁCIO A LIVRE MANIFESTAÇÃO DE CRENÇA RELIGIOSA E O CASAMENTO RELIGIOSO COM EFEITOS CIVIS Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado para obtenção do grau de Bacharel, no curso de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. Orientador(a): Prof. (ª) MSc. Sheila Martignago Saleh CRICIÚMA, JULHO/2009. 2 MILENE DAL FARRA INÁCIO A LIVRE MANIFESTAÇÃO DE CRENÇA RELIGIOSA E O CASAMENTO RELIGIOSO COM EFEITOS CIVIS Trabalho de Conclusão de Curso aprovado pela Banca Examinadora para obtenção do Grau de Bacharel, no Curso de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC, com Linha de Pesquisa em Direito Constitucional e Direito de Família. Criciúma, 01 de julho de 2009. BANCA EXAMINADORA Prof. Sheila Martignago Saleh – Mestre – Universidade do Estremo Sul Catarinense Orientador Prof. Vanessa Aparecida Lenhard - Mestre - (Universidade do Estremo Sul Catarinense) Prof. Marcus Vinicius Almada Fernandes -Especialista - (Universidade do Estremo Sul Catarinense) 3 Aos meus pais, Vanderlei e Luiza, por serem simplesmente a base de tudo que sou. 4 AGRADECIMENTO Primeiramente à Deus, por nunca ter me deixado desistir, por ter me dado força de vontade para enfrentar todas das dificuldades, obrigada. Em especial a minha mãe, Luiza, e a meu pai, Vanderlei, que sempre apostaram em mim, me deram apoio, carinho e compreensão, sendo neste longo período as pessoas com quem sempre pude contar, obrigada. Aos meus verdadeiros e eternos amigos, e aos verdadeiros amigos que ganhei no decorrer deste período, obrigada. A todos os professores que de alguma forma contribuíram para esta conquista, obrigada. 5 “Por nosso amor pela liberdade e pela dignidade, estamos comprometidos a viver em comunidades nas quais não se considera que nenhum grupo é inteligente, religioso, ou numeroso o bastante para decidir questões que dizem respeito a todos os demais. Se tivermos uma preocupação verdadeira com as vidas que os outros levam, admitiremos também que nenhuma vida é boa quando vivida contra as próprias convicções e que em nada estaremos ajudando a vida de outra pessoa, mas apenas estragando-a, se a forçamos a aceitar valores que não pode aceitar, mas ao quais só se submete por medo ou por prudência.” Ronald Dworkin (2003) 6 RESUMO O presente estudo tem por objetivo realizar uma análise do principio constitucional da inviolabilidade da manifestação de crença religiosa quando do casamento religioso com efeitos civis. A problematização do tema resultou em três capítulos, utilizando-se, para tanto, o método hipotético-dedutivo. Como técnica de pesquisa foi utilizada a pesquisa indireta, através do levantamento teórico bibliográfico e revistas especializadas, analisando de forma literária o assunto, reunindo informações com base em doutrinas, artigos e a legislação. Parte-se da análise dos direitos fundamentais, desde sua origem história até a proteção constitucional à liberdade religiosa, diferenciando a livre manifestação de crença e de culto religioso. Dedicase, o segundo capítulo, a enumerar e estudar o casamento, partindo de sua origem histórica até sua celebração hoje. Já o terceiro capítulo, produto final da pesquisa, busca demonstrar a possível ocorrência de práticas que atentem contra a dignidade da pessoa humana quando tratamos do casamento religioso com efeitos civis. Podese observar que o tema apresentado possui divergência legal e doutrinária, demonstrando-se que a falta de critérios de interpretação pode gerar equívocos, omissões ou práticas que venham ferir preceito constitucional. Ademais, o Brasil não reconhece uma ou outra religião como oficial, assim não há que se falar em distinção entre manifestações de crenças ou religiões quando da celebração do casamento religioso com efeitos civis. Palavras-chave: Liberdade religiosa. Livre manifestação de crença religiosa. Casamento religioso com efeitos civis. Dignidade humana. 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8 2 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ....................................................................... 10 2.1 Da origem histórica .......................................................................................... 11 2.2 Da classificação dos direitos fundamentais .................................................. 17 2.3 Da proteção constitucional à liberdade religiosa .......................................... 20 2.4 Da diferença entre liberdade de consciência, livre manifestação de crença e de culto religioso .................................................................................................... 24 3 DO CASAMENTO ................................................................................................. 27 3.1 Da origem histórica .......................................................................................... 27 3.2 Do casamento religioso no Brasil ................................................................... 29 3.3 Do casamento religioso com efeitos civis hoje ............................................. 32 4 DA LIBERDADE RELIGIOSA............................................................................... 41 4.1 Da legislação internacional e nacional aplicável à liberdade religiosa ....... 41 4.2 Da limitação ao direito à liberdade religiosa .................................................. 43 4.2.1 Do Preâmbulo da Constituição..................................................................... 45 4.2.2 Do Estado Democrático de Direito e a liberdade religiosa ........................ 46 4.3 Da laicidade do Estado e a liberdade religiosa: a manifestação da crença religiosa quando do casamento religioso com efeitos civis .............................. 48 5 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 52 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 54 8 1 INTRODUÇÃO O objeto do presente trabalho é a obtenção final da pesquisa que tem como tema central a inviolabilidade do direito a livre manifestação de crença religiosa quando se trata de casamento religioso com efeitos civis. Tal pesquisa tem como objetivo geral: analisar o princípio constitucional da inviolabilidade da manifestação de crença religiosa em se tratando do casamento religioso com efeitos civis; e como objetivos específicos: esclarecer a teoria dos direitos fundamentais, conceituando o direito a livre manifestação de crença; conceituar o casamento, bem como especificar suas formas de celebração; traçar um paralelo entre a liberdade religiosa e o casamento religioso com efeitos civis; e, por fim, analisar a laicidade do Estado brasileiro, em se tratando de casamento religioso com efeitos civis. Para a realização da presente pesquisa, com intuito de atingir os objetivos propostos, fez-se uso dos seguintes recursos: pesquisa bibliográfica, buscando nas doutrinas e revistas jurídicas que tratem do tema a opinião dos pesquisadores do assunto; e pesquisa nas jurisprudências a respeito do assunto, verificando as soluções que vêm sendo tomadas; dividindo-se a pesquisa em três capítulos. Desde a vigência da atual Constituição Federal e posteriormente com o advento do Código Civil de 2002, muitas discussões ocorreram e ainda ocorrem em torno deste assunto, principalmente, no sentido de existirem diversas formas de manifestação religiosa, pois o aumento da complexidade social que decorre do intercâmbio cultural e das imigrações revela que, no Brasil, coexistem inúmeras religiões, sendo, muitas vezes normal a celebração de culto ecumênico para que se atenda e respeite a diferença religiosa existente na constância da relação. Daí a necessidade de levantarmos a discussão a respeito do tema, a fim de verificarmos os casos em que a aplicação de tal medida geraria prejuízos, ocasionando lesão grave, de difícil ou incerta reparação aos nubentes, vez que não podemos permitir que se faça restrição no que diz respeito à forma de casamento (religioso) realizado dentro da cultura de determinado povo, fazendo valer o "princípio constitucional da inviolabilidade de manifestação de crença religiosa”. Assim, o capítulo primeiro, de forma breve, trará a conceituação, origem histórica e classificação dos direitos fundamentais, dedicando-se, ainda, a 9 demonstrar a proteção constitucional à liberdade religiosa e diferenciar a livre manifestação de crença e de culto religioso. O segundo capítulo dedicar-se-á ao instituto do casamento, desde sua origem história, inclusive sua origem no ordenamento jurídico brasileiro, até sua forma de celebração hoje, distinguindo o casamento religioso com efeitos civis, mediante habilitação prévia e posterior. O terceiro e último capítulo buscará demonstrar a aplicação imediata do direito a liberdade religiosa, trazendo o rol de legislação nacional e internacional aplicada à situação concreta, bem como as limitações ao direito de manifestar a crença religiosa, partindo da análise do Preâmbulo Constitucional até o Estado Democrático de Direito. Dedicar-se-á, por fim, à laicidade do Estado brasileiro tendo como parâmetro o principio constitucional da livre manifestação de crença religiosa quando da celebração do casamento religioso com efeitos civis. 10 2 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS O Direito e as garantias surgem da idéia de proteção do homem contra o poder exercido pelo Estado. Tem-se que, embora o povo delegue poderes a seus representantes, tal poder não é absoluto, existindo uma relação direta entre o Estado e o indivíduo, no qual se reconhece que o indivíduo tem, primeiro, direitos, e, depois, deveres perante o Estado, dentro dessa limitação, nasce a previsão de direitos e garantias individuais e coletivas, com o objetivo de melhor cuidar das necessidades dos cidadãos. (MENDES, 2008, p. 232-233) Conclui-se que os direitos fundamentais estão indissoluvelmente ligados à noção de limitação do poder. Sendo objeto de estudo enquanto direitos jurídicopositivos, vez que vigentes numa determinada ordem constitucional, razão pela qual são coisas desejáveis, fins que merecem ser perseguidos, contudo, apesar de toda essa desejabilidade, ainda não foram totalmente reconhecidos. Mister se faz ressaltar a sua qualidade de DIREITOS FUNDAMENTAIS, colocados para tanto no mais alto degrau das fontes dos direitos: as normas constitucionais. Mendes afirma que a relevância da proclamação dos direitos fundamentais entre nós pode ser sentida pela leitura do Preâmbulo da atual Constituição. Ali se proclama que a Assembléia Constituinte teve como inspiração básica dos seus trabalhos o propósito de “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança. (2008, p. 231) Desse modo, os direitos fundamentais são assim entendidos, na medida em que encontram o reconhecimento na Constituição, Lei maior, deles derivando conseqüências jurídicas. Analisando-se o passado e o futuro dos direitos do homem, temos que o problema mais grave do nosso tempo com relação aos direitos fundamentais consiste não mais apenas em fundamentá-los, mas sim em protegê-los; Mendes afirma que “[...] o avanço que o direito constitucional apresenta hoje é resultado da afirmação dos direitos fundamentais como núcleo da proteção da dignidade da pessoa e da visão de que a Constituição é o local adequado para positivar as normas asseguradoras dessas pretensões”, desse modo, entendemos que o problema não é filosófico, mas, num sentido mais amplo, político. (2008, p. 231) 11 É importante observar que hodiernamente os direitos fundamentais estão sendo deslocados da dogmática jurídico-constitucional para as chamadas teorias da justiça, para as teorias sociais e para as teorias econômicas do direito, talvez devido à propalada crise da constituição e das teorias de direitos fundamentais; razão pela qual, se faz necessário que a dogmática e a prática dos direitos fundamentais regressem ao espaço jurídico-constitucional, em face da chamada estabilidade pura preconizada pelo modelo de Constituição do Estado, onde os direitos fundamentais são reconhecidos, consagrados e garantidos pelo ESTADO. (MENDES, 2008, p. 265-267) Sarlet menciona que a doutrina, nesse ponto, alerta para a necessidade de o Estado agir em defesa dos direitos fundamentais com um mínimo de eficácia, pois é visível esse dever de agir do Estado, afirmando que a forma como o Estado assume os seus deveres de proteção e os efetiva permanece, contudo [...], no âmbito de seu próprio arbítrio, levando-se em conta, nesse contexto, a existência de diferentes alternativas de ação, a limitação dos meios disponíveis, a consideração de interesses colidentes e a necessidade de estabelecer prioridades, de tal sorte que não se poderia, em princípio, falar de um dever específico de agir por parte do Estado. (1998, p. 193) 2.1 Da origem histórica Numa breve abordagem histórica da evolução dos direitos fundamentais vamos encontrar traços gerais das primeiras declarações de direitos na Idade Média. Nessa época, por muito tempo o Regime Feudal1 e a opressão inerente ao Absolutismo2 esmagavam a personalidade humana e a desigualdade entre as pessoas era um traço marcante e comum, como observa Silva: Foi, no entanto, no bojo da Idade Média que surgiram os antecedentes mais diretos das declarações de direitos. Para tanto contribui a teoria do 1 Modo de organização social e político baseado nas relações servo-contratuais (servis), caracterizado pelo poder descentralizado, economia de subsistência baseada na agricultura, comércio na base de troca e mão-de-obra servil. Tem suas origens na decadência do Império Romano e predominou na Europa durante a Idade Média. (MICELI, 1994, p. 28-53) 2 Sistema político que vigorou nas monarquias européias durante os séculos XVI e XVII. Suas características básicas eram a concentração de poder nas mãos dos reis, uso da violência pelo governo, falta de liberdades e total controle social. (ANDERSON, 1998, p. 16) 12 direito natural que condicionou o aparecimento do princípio das leis fundamentais do Reino limitadoras do poder do monarca, assim como o conjunto de princípios que se chamou de humanismo. (2007. p. 151) A primeira declaração de direitos fundamentais que se tem notícia foi a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, uma das treze colônias inglesas na América. Datada de 12/11/1776, foi inspirada nas teorias de Locke3, Rousseau4 e Montesquieu5, consubstanciava as bases dos direitos do homem, preocupando-se basicamente com a estrutura de um governo democrático, com um sistema de limitação de poderes. Mais tarde, com a Revolução de 17896 as declarações de direitos tornaram-se um dos traços do Constitucionalismo. Bonavides, em sua obra Curso de Direito Constitucional, observa que a veracidade que as declarações antecedentes de ingleses e americanos podiam talvez ganhar em concretude, mas perdiam em espaço de abrangência, porquanto se muito a um povo ou a uma sociedade que se liberta politicamente, [...] ao passo que a Declaração francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano. (2006, p. 562) Bonavides ressalta ainda que “[...] a vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e a dignidade humana, enquanto valores históricos e filosóficos, nos conduzirá sem óbices ao significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana”. Universalidade esta, que foi manifestada pela primeira vez com a descoberta do racionalismo francês da Revolução, ensejada pela Declaração dos Direitos do Homem de 1789. (2006, p. 562) Não há dúvidas que a causa principal do reconhecimento de direitos naturais e intangíveis em favor do indivíduo é de ordem filosófica-religiosa. Sendo 3 John Locke (1632-1704), filósofo inglês e ideólogo do liberalismo, é considerado o principal representante do empirismo britânico e um dos principais teóricos do contrato social.(WEFFORT, 2001, p. 82-83). 4 Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo suíço, escritor, teórico político e um compositor musical autodidata. Uma das figuras marcantes do Iluminismo francês, é também um precursor do romantismo. (WEFFORT, 2001, p. 191-194) 5 Montesquieu (1689-1755), político filósofo e escritor frances. Ficou famoso pela sua Teoria da Separação dos Poderes, atualmente consagrada em muitas das modernas constituições internacionais. (WEFOORT, 2001, p. 113-120) 6 Revolução Francesa (178-1799), conjunto de acontecimentos que alteraram o quadro político e social da França. Em causa estavam o Antigo Regime (Ancien Régime) e a autoridade do clero e da nobreza. Foi influenciada pelos ideais do Iluminismo e da Independência Americana, em 1776. (TULARD, 1989, P. 17-39) 13 que grande contribuição é tributada ao Cristianismo, com a idéia de que cada pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus; portanto, a igualdade fundamental natural entre todos os homens. Silva expõe que o cristianismo primitivo, sim, continha mensagem de libertação do homem, na sua afirmação da dignidade eminente da pessoa humana, porque o homem, é uma criatura formada à imagem de Deus, e esta dignidade pertence a todos os homens sem distinção, o que indica uma igualdade fundamental de natureza entre eles. (2007, p. 173-174) Como se vê, os direitos do homem, ou direitos fundamentais, existem desde a era medieval e por serem direitos naturais da personalidade humana se caracterizam por terem um valor próprio, que nasce na qualidade de valor natural. Na acepção de Canotilho, as concepções cristãs medievais, especialmente o direito natural tomista, ao distinguir entre lex divina, lex natura e lex positiva, abriram caminho para necessidade de submeter o direito positivo às normas jurídicas naturais, fundadas na própria natureza do homem. Mas como era a consciência humana que possibilitava ao homem aquilatar da congruência do direito positivo com o direito divino, colocava-se sempre o problema do conhecimento das leis justas e das entidades que, para além da consciência individual, sujeita a erros, captavam a conformidade da lex positiva com a lex divina. (1999, p. 358) Já do ponto de vista prático não tardou para que ocorressem conquistas em face do Poder Monárquico. Tal ocorreu quando os reis da Idade Média pactuaram com os seus súditos acordos, mediante os quais estes reconheciam o poder monárquico e em contrapartida o rei fazia algumas concessões. Gisela Maria Bester afirma que “[...] o que existiu foi, no máximo, alguns documentos que antecederam historicamente as modernas Declarações de Direitos”, sendo que estes documentos “[...] reconheciam algumas franquias ou concessões dos reis a alguns súditos, mas nunca direitos para todos”. (2005, p. 573) Bastos afirma que "[...] a mais célebre destas Cartas, denominada em latim Magna Carta Libertatum, foi extraída pela nobreza inglesa do Rei João Sem Terra em 1215, quando este se apresentava enfraquecido pelas derrotas militares que sofrera". (2002, p. 166) Desta feita, mister é ressaltar que no século XVII várias foram as conquistas, substanciais e definitivas, contudo o surgimento das liberdades públicas 14 tem seu marco inicial em duas fontes primordiais: o pensamento iluminista na França do século XVIII e a Independência Americana. Sobre o assunto expõe Silva: As condições subjetivas ou ideais ou lógicas consistiram precisamente nas fontes de inspiração filosófica anotadas pela doutrina francesa: [...] pensamento iluminista, com suas idéias sobre ordem natural, sua exaltação às liberdades inglesas e sua crença nos valores individuais do homem acima dos valores sociais, firmando o individualismo que exala dessas primeiras declarações dos direitos do homem. (2007, p. 173-174) Relata ainda “[...] contudo a Declaração de Independência, de autoria de Thomas Jefferson e posterior à Declaração da Virgínia, pois é de 04/07/1776, teve maior repercussão, ainda que não tivesse natureza jurídica como esta última” (2007, p. 154). É certo que as liberdades públicas têm hoje uma configuração muito mais complexa do que no fim do século XVIII. Destarte, Bastos afirma que esse quadro inicial, contudo, sofreu forte evolução cujas causas dizem respeito à necessidade de enfrentar novas ameaças e novos desafios postos pelos séculos XIX e XX. Os direitos clássicos não desapareceram. Perderam, tão somente, o seu caráter absoluto para ganhar uma dimensão mais relativa surgida da imperiosidade de compatibilizar o direito com outros princípios constitucionais. (2002, p. 171-172) Por outro lado, contrapondo esse individualismo exacerbado foi-se reconhecendo direitos que favoreciam os grupos sociais, o que não se fazia nas primeiras declarações, passando-se a aceitar “[...] a proteção do indivíduo contra outros indivíduos ou grupos de indivíduos”. (BASTOS, 2002, p. 172) Bastos conclui que “[...] se passou a reconhecer que muitas vezes é necessário proteger o grupo e não o indivíduo isoladamente”. (2002, p. 172) As manifestações dessa nova concepção ocorreram nas primeiras constituições republicanas, como a da Rússia, em 1918, a alemã, em 1919, bem como no México, em 1917, ainda que com menor repercussão. (BESTER, 2005, p. 579) A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, de 10 de dezembro de 1948, preocupou-se, fundamentalmente, com quatro ordens de direitos individuais, conforme assevera Bastos: 15 Logo no início, são proclamados os direitos pessoais do indivíduo: direito à vida, à liberdade e à segurança. Num segundo grupo encontram-se expostos os direitos do indivíduo em face das coletividades: direito à nacionalidade, direito de asilo para todo aquele perseguido (salvo os casos de crime de direito comum), direito de livre circulação e de residência, tanto no interior como no exterior e, finalmente, direito de propriedade. Num outro grupo são tratadas as liberdades públicas e os direitos públicos: liberdade de pensamento, de consciência e religião, de opinião e de expressão, de reunião e de associação, princípio na direção dos negócios públicos. Num quarto grupo figuram os direitos econômicos e sociais: direito ao trabalho, à sindicalização, ao repouso e à educação. (2002, p. 174-175) Bobbio diz que "[...] a Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre". (1992, p. 34) Bobbio comenta ainda acerca da transformação e ampliação dos direitos, uma vez que, em sua visão, o exame dos escritos dos primeiros jusnaturalistas nos mostra o quanto se ampliou a lista dos direitos, argumenta que Hobbes conhecia apenas um deles, o direito à vida (2002, p. 32), e complementa: [...] como todos sabem, o desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases: num primeiro momento, afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado; num segundo momento, foram propugnados os direitos políticos, os quais – concebendo a liberdade não apenas negativamente, como não-impedimento, mas positivamente, como autonomia – tiveram como conseqüência a participação cada vez ampla, generalizada e freqüente dos membros de uma comunidade no poder político (ou liberdade no Estado); finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos valores –, como os de bem-estar e da liberdade através ou por meio do Estado. (992, p. 32-33) Porém, hoje falamos nos direitos de quarta geração, que “[...] compreendem os direitos do homem no âmbito internacional”, “[...] não são direitos ‘contra o Estado’, nem direitos de participar ‘no Estado’, tampouco direitos [exercíveis] ‘por meio do Estado’, mas são sim Direitos ‘sobre o Estado’”, na visão de Bester. De acordo com Bester, esses direitos consistem no direito ao desenvolvimento, direitos ao meio ambiente sadio, direito à paz e direito a descolonização; essa geração tem como marco o ano de 1948, com a Declaração 16 Universal dos Direitos do Homem, sendo este considerado o documento mais importante dentro dessa categoria de direitos. (2005, p. 594-595) Relembremos Canotilho, para quem, distingue direitos do homem e direitos fundamentais: As expressões ‘direitos do homem’ e ‘direitos fundamentais’ são freqüentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta. (1999, p. 369) Existente, pois a necessidade de abordarmos os direitos fundamentais formalmente constitucionais e os direitos fundamentais sem assento na norma constitucional. Assim, Canotilho ao discursar sobre o tema, afirma que os direitos consagrados e reconhecidos pela constituição designam-se, por vezes, direitos fundamentais formalmente constitucionais, porque eles são enunciados e protegidos por normas com valor constitucional formal (normas que têm a forma constitucional). A Constituição admite [...], porém, outros direitos fundamentais constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional. Em virtude de as normas que os reconhecem e protegem não terem a forma constitucional, estes direitos são chamados direitos materialmente fundamentais. (1999, p. 379) Partindo deste princípio, é necessário lembrar que os direitos fundamentais cumprem o que Canotilho chama de “[...] as funções dos direitos fundamentais”, quais sejam: função de defesa ou de liberdade, função de prestação social, função de proteção perante terceiros e função de não discriminação. (1999, p. 383-386) A primeira Constituição Brasileira a adotar, em seu texto, essa inspiração foi a de 1934, no que foi seguida pelas posteriores. As anteriores – 1824 e 1891 – manifestavam em seu texto o apego à concepção individualista dos direitos fundamentais. Bastos cita algumas alterações introduzidas pela Constituição de 1934, traduzindo-se estas em autênticos avanços, sobretudo no campo das nacionalizações e dos direitos sociais, os quais, no seu entendimento, seria 17 impensável recusar em nosso dias, quais sejam: o voto feminino, a sindicalização, as normas de Previdência Social. (1997, p. 114) Nessa linha, a Declaração contida na Constituição Brasileira de 1988 é, sem sombra de dúvidas, a mais abrangente de todas as anteriores e, além de consagrar os "direitos e deveres individuais e coletivos", a Carta Magna de 1988 abre um capítulo para definir os DIREITOS SOCIAIS. (BESTER, 2005, p. 606-608) Desta monta, a exemplo das anteriores, a Constituição da República Federativa do Brasil não enumera os direitos fundamentais; pois, além dos direitos explicitamente reconhecidos a norma constitucional admite existirem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados. Mendes, ao tecer seu comentário sobre a Constituição Federal de 1988, reserva-se apenas a um ensejo, “que ela nos permita construir, com discernimento e firmeza, uma sociedade efetivamente justa e solidária, que tenha na dignidade da pessoa humana o seu referente fundamental”. (2008, p. 179) Portanto, de forma ordenada a Constituição reconhece e assegura DIREITOS FUNDAMENTAIS explicitamente no art. 5º: Direitos cujo objeto é a liberdade (de locomoção, de pensamento, de reunião, de associação, de profissão, de ação, de liberdade sindical e direito de greve); Direitos cujo objeto é a segurança (dos direitos subjetivos em geral, em matéria penal (presunção de inocência), do domicílio); Direitos cujo objeto é a propriedade (propriedade em geral: artística, literária e científica, e hereditária). (BRASIL [Constituição (1998)], 2008, p. 5-21) Observa-se que os direitos fundamentais do homem constituem uma variável ao longo da história, cujo elenco se modifica continuamente, a época histórica, das classes no poder ou dos meios disponíveis. (BESTER, 2005, p. 570582) 2.2 Da classificação dos direitos fundamentais Para a classificação dos direitos fundamentais, costuma-se recorrer ao critério das gerações, baseado de maneira grosseira na ordem cronológica em que os diversos direitos foram sendo reconhecidos ao longo da história moderna. Uma das primeiras classificações que se tem notícia, sendo a mais aceita, é a que foi 18 proposta por H. Marshall: “originalmente Marshall classificou os direitos em civis (firmados no século XVIII), políticos (conquistados no século XIX) e sociais (comquistados no século XX)”. (BESTER, 2005, p. 587) Na medida em que cada geração foi reconhecida a partir de lutas políticas, tal classificação permite que se tenha em mente as influências ideológicas que são subjacentes a cada direito. Mendes argumenta que “essa distinção entre gerações dos direitos fundamentais é estabelecida com o propósito de situar os diferentes momentos em que esses grupos de direitos surgem como reinvidicações acolhidas pela ordem jurídica”. (2008, p. 234) Assim tem-se que os direitos adquiridos por uma geração permancem válidos, agregados com os direitos da nova geração, “[...] ainda que o significado de cada um sofra um influxo das concepções jurídicas e sociais prevalecentes nos novos momentos”. (MENDES, 2008, p. 234) Feitas tais ressalvas, dentre as classificações geracionais que encontramos na literatura, trabalharemos com a elaborada por Gilmar Antônio Bedin, com pequenas colaborações de Bester. (BESTER, 2005, p. 588-600) 2.2.1 Direitos Humanos da Primeira Geração (Civis) A primeira geração, primeiros direitos humanos que foram positivados, é a dos direitos fundamentais da liberdade, que buscavam fixar a autonomia pessoal de cada indivíduo. Refletindo o individualismo, tais direitos traduziam-se na não intervenção dos governantes, compondo obrigações negativas, ou seja, abstenções, ao invés de intervenções, ao Estado. São direitos de titularidade individual, embora alguns sejam exercidos em conjuntos de indivíduos. Essa geração inclui os direitos à vida, liberdade, segurança, não discriminação racial, propriedade privada, privacidade e sigilo de comunicações, ao devido processo legal, ao asilo face a perseguições políticas, bem como as liberdades de culto, crença, consciência, opinião, expressão, associação e reunião pacíficas, locomoção, residência, participação política, diretamente ou por meio de eleições. (MENDES, 2008, p. 233) Segundo Mendes “[...] o paradigma de titular desses direitos é o homem individualmente considerado”. (2008, p, 233) Já Bester, citando Claude Lefort, que em sua obra “Pensando o Político”, afirmou que esses direitos constituem “a pedra de fundação da democracia 19 moderna”, diz que se tais direitos forem suprimidos ou ofendidos, descaracterizariase a essência da democracia. (BESTER apud LEFORT, 2005, 588) 2.2.2 Direitos Humanos da Segunda Geração (Políticos) Os direitos de segunda geração vêm para complementar os individuais, pois estes, por si só, não são suficientes para a formação de uma cidadania ativa. Na visão Bester “[...] são tidos como direitos positivos, já que aqui a liberdade aparece sob forma positiva, como autonomia e como desejo de participar no Estado, isto é, na formação da vontade política, do poder político”. (2005, p. 591) Entre os direitos de segunda geração, está o direito ao sufrágio universal, direito a constituir partido político, direito ao plebiscito, ao referendo e à iniciativa popular legislativa. (BESTER, 2005, p. 591-592) 2.2.3 Direitos Humanos da Terceira Geração (Econômicos, Sociais e Culturais) A terceira geração é a dos direitos da igualdade, a saber são os direitos sociais, econômicos e culturais, decorrentes de aspirações igualitárias inicialmente vinculadas ao “descaso com os problemas sociais [...] associado às pressões decorrentes da industrialização, [...] o impacto do crescimento demográfico e o agravamento das disparidades no interior da sociedade”. (MENDES, 2008, p. 233) Têm por objetivo garantir aos indivíduos condições materiais, tornando o Estado devedor de sua população, em principal dos indivíduos trabalhadores e marginalizados; tendem a exigir do Estado intervenções na ordem social, obrigandoo (o Estado) a realizar ações concretas que garantam um mínimo de igualdade e de bem-estar social. Incluem os direitos ao trabalho e proteção contra o desemprego, incluindo salário mínimo, férias remuneradas, direito a liberdade de associação sindical, direito de greve, de representação classista; direito à seguridade social, à educação, a habitação, a cultura, direito ao lazer, direito ao meio ambiente; direitos sociais para as crianças e os idosos. (BESTER, 2005, p. 593-594) 2.2.4 Direitos Humanos da Quarta Geração (Direitos de Solidariedade) 20 Estão compreendidos entre os direitos da quarta geração aqueles direitos do homem no âmbito internacional, pois surgem das Declarações, Pactos e Cartas Internacionais para a proteção da humanidade, excluindo-se aqui o âmbito dos Estados Nacionais, tendo como marco o ano de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Têm por destinatário o gênero humano, não atendendo a fronteiras geográfico-territoriais. (BESTER, 2005, p. 594) São direitos fundamentais de quarta geração o direito à paz, ao desenvolvimento sustentável, à posse comum do patrimônio comum da humanidade, direito ao meio ambiente. (BESTER, 2005, p. 594) Segundo Bonavides “[...] os direitos da quarta geração compendiam o futuro da cidadania e o provir da liberdade de todos os povos”. (2006, p. 572) 2.3 Da proteção constitucional à liberdade religiosa A liberdade religiosa é tema da mais alta relevância na contemporaneidade. Numa sociedade como a brasileira, onde a diversidade religiosa é enorme devido às invasões, os diferentes tipos de colonização, a presença de escravos africanos e as constantes imigrações, não é de se admirar que as culturas de origem nativa tivessem se preservado e se manifestado ao mundo urbano. Maluf sustenta que “[...] a liberdade religiosa é um direito que não precisa de garantia jurídica, porque pertence ao foro do homem e não admite restrição; nem precisa de proteção do Estado”. (2001, p. 158) Dowrkin ensina que “[...] um dos deveres fundamentais do governo, reconhecido por todas as democracias ocidentais desde o século XVIII, consiste em assegurar que as pessoas tenham o direito de viver de acordo com suas próprias convicções religiosas”. (2003, p. 225) Importante, de pronto, conceituar a liberdade religiosa, para mais tarde compreender que o objetivo primordial desta liberdade é proteger a crença e as manifestações religiosas do indivíduo que escolhe uma determinada doutrina sobre a divindade que é base de sua existência. 21 Ferreira Filho entende que a liberdade religiosa é o “direito de cada ser humano ter sua religião, por escolha livre, segui-la livremente nos seus mandamentos, prestar, segundo estes, o seu culto à divindade, sem ingerência, mas com apoio do Estado”. (1994, p. 17) De igual modo nos ensina Miranda: A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinada crença. Consiste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família, ou de ensino, por exemplo) em termos razoáveis. E consiste, por outro lado (e sem que haja qualquer contradição) em o Estado não impor ou garantir com as leis o cumprimento dos deveres. (1998, p. 88) Pinto Ferreira diz que “[...] a liberdade religiosa é o direito que tem o homem de adorar a seu deus, de acordo com a sua crença e o seu culto”. (1996, p. 102) Já Mendes diz que “[...] na liberdade religiosa incluem-se a liberdade de crença, de aderir a alguma religião, e a liberdade do exercício do culto religioso”. E conceitua religião como “[...] sistema de crenças que se vincula a uma divindade, que professa uma vida além da morte, que possui um texto sagrado, que envolve uma organização e que apresenta rituais de oração e de adoração”. (2008, p. 417) Soriano em sua obra “Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional”, argumenta que a liberdade religiosa é um direito humano fundamental, consagrado nas Constituições dos países democráticos, bem como por diversos Tratados Internacionais. Trata-se, portanto, de uma liberdade pública ou, se se preferir, de uma prerrogativa individual, em face do poder estatal. (2002, p. 5) Tem-se, a partir daí, que a liberdade religiosa manifesta-se como um princípio Constitucional, além de ser um direito fundamental do homem, sendo considerado ainda um direito de primeira geração, impondo ao Estado um dever de não-fazer e de não-atuar, tornando-o (o direito) uma prerrogativa individual oponível ao Estado, cabendo a este somente a obrigação positiva de impedir eventuais violações a liberdade religiosa. (SORIANO, 2002, p. 5-7) Soriano assim se referiu sobre o tema: 22 A liberdade religiosa é um direito fundamental catalogado no pacto social pátrio, e não é só, repita-se, é também um dos princípios Constitucionais consagrados na Carta Magna e no constitucionalismo de diversos paises. (2002, p. 9) A exemplo, o Estado brasileiro, que é um estado laico, porém não é ateu, como podemos deduzir quando da leitura do preâmbulo da nossa Constituição, que invoca de maneira clara a proteção de Deus. (MENDES, 2008, p. 418) Porém, não foi somente na Constituição Federal de 1988 que o Brasil garantiu a proteção a liberdade de crença, vejamos: • Constituição de 1824: admitiu parcialmente a liberdade de culto, vez que o culto podia ser exercido somente em templos católicos; às outras religiões era permitido apenas o culto doméstico ou particular; • Constituição de 1891: estabeleceu a ampla liberdade religiosa, vindo a separar o Estado da Igreja, proibindo qualquer auxílio pecuniário do Estado às igrejas, securalizando o casamento, os cemitérios e o ensino religioso; • Constituição de 1934: fez distinção entre liberdade de crença e liberdade de culto, moderando as tendências do Estado leigo, o que também ocorreu com a Carta Magna de 1937; • Constituição de 1946: manteve os princípios constitucionais de 1934, intensificou a assistência às Forças Armandas, a secularização dos cemitérios também foi mantida, assegurou-se todavia de forma plena a liberdade de crença e de culto, com o livre exercício do culto a todas as pessoas, a liberdade de convicção religiosa, como também filosófica ou política; • Constituição de 1967: manteve-se na mesma nota de proteção à liberdade religiosa, garantindo ainda a liberdade de consiência e se assegurou aos crentes o exercício dos cultos religioso, porém estes não deviam contrariar a ordem pública e os bons costumes; (FERREIRA, 1996, p. 103) Como não poderia ser diferente, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, se orienta na mesma linha de pensamento, consagrando de forma inédita como direito fundamental a liberdade de religião. Esse reconhecimento da liberdade religiosa pela Constituição indica a existência de um sistema jurídico ligado a religiosidade com um bem em si mesmo, um valor a ser preservado. Com essa afirmação, o Estado preocupou-se em proteger a liberdade 23 religiosa a fim de facilitar a seus cidadãos o livre exercício da sua fé. (MENDES, 2008, p. 419) Não existindo religião oficial, o Estado presta proteção e garantia ao livre exercício de todas as religiões, assim conceitua o artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal ao afirmar que: É inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias. Em outros pontos de nossa Constituição existe a manifestação expressa do Estado no cumprimento de seu dever de proteger e garantir o livre exercício de todas as religiões, vejamos: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: VII - É assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva. VIII - Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-las, embaraçarlhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VI – instituir imposto sobre: [...] b) templos de qualquer culto; Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensimo fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. Art. 213. Os recursos públicos serão destinados ás escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que: I – comprovem finalidade não lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação; 24 II – assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 2005, p. 6, 19, 113-114, 149, 151, 158) Conclui-se, conforme entendimento de Mendes, que a Constituição protege a liberdade de religião para que seja facilitado ao homem a vivênvia de sua fé, colocando ainda que o reconhecimento da liberdade religiosa pela Constituição denota haver sistema jurídico tamado a religiosidade como um bem em si mesmo, como um valor a ser preservado e fomentado. Afinal, as normas jusfundamentais apontam para valores tidos como capitais para a coletividade, que devem não somente ser conservados e protegidos, como também ser promovidos e estimulados. (2008, p. 419) 2.4 Da diferença entre liberdade de consciência, livre manifestação de crença e de culto religioso Quando tratamos do princípio da inviolabilidade de manifestação de crença religiosa, necessário é fazer a distinção entre liberdade de consciência, livre manifestação de crença e de culto religioso. Vejamos: 2.4.1 Distinção entre liberdade de consciência e de crença A primeira distinção realizada envolve a liberdade de crença e a liberdade de consciência. Na lição de Bastos, essas duas vertentes são inconfundíveis: Em primeiro lugar, porque uma consciência livre pode determinar-se no sentido de não ter crença alguma. Deflui, pois, da liberdade de consciência uma proteção jurídica que inclui os próprios ateus e os agnósticos. (BASTOS, 1997, p. 190) 25 Na acepção de Mendes o conteúdo da liberdade de consciência tem estrita relação com a “[...] faculdade de o indivíduo formular juízos e idéias sobre si mesmo e sobre o meio externo que o circunda”. (2008, p. 413) Desta forma não pode o Estado interferir nessa esfera, tão íntima de cada indivíduo, não cabendo ao Estado impor concepções filosóficas ou religiosas aos cidadãos. (MENDES, 2008, p. 413) Ainda sobre o tema, Bastos diz que a “[...] liberdade de consciência pode apontar para uma adesão a certos valores morais e espirituais que não passam por sistema religioso algum”. Citando como exemplo disto os movimentos pacifistas que, embora tenham o intuito de paz e banimento da guerra, não estão ligados a nenhuma fé religiosa. (1997, p. 191) A Carta Magna de 1988 consigna a distinção entre liberdade de crença e consciência, cuja dicotomia, no comentário de Aldir Guedes Soriano, se justifica quando a liberdade de consciência e de crença são inconfundíveis, pois o descrente também tem liberdade de consciência e pode pedir a tutela desse direito juridicamente. (MIRANDA apud SORIANO, 2002, p. 12) Ainda segundo Soriano, a liberdade de consciência é de foro individual, enquanto que a liberta de crença apresenta dimensão social e institucional. Se não bastasse tal fato, a liberdade de consciência é muito mais ampla do que a liberdade de crença, abarcando tanto a liberdade de se ter como de não ter uma religião. (2002, p. 12) Na concepção de Soriano a liberdade de crença pode ser stricto sensu e lato sensu, assim entendidas: A liberdade de crença, de religião ou religiosa stricto sensu se refere apenas ao direito de se crer, de se escolher uma religião ou de se mudar de religião ou crença; não compreende a liberdade de não se ter religião ou crença. Assim sendo, o direito à liberdade religiosa, no sentido lato sensu, interessa tanto ao que crê como ao que não crê, porquanto crentes e descrentes são igualmente amparados pelo direito. Esses, através das liberdade de crença e de consciência, ao passo que aqueles, através da liberdade de consciência. (2002, p. 12) 2.4.2 Distinção entre livre manifestação de crença e de culto Cumpre, ainda, distinguir a liberdade de crença da liberdade de culto. O professor Bastos elucida o assunto ao dizer: 26 Pode haver liberdade de crença sem liberdade de culto. Era o que se dava no Brasil Império. Na época, só se reconhecia como livre o culto católico. Outras religiões deveriam contentar-se com celebrar culto doméstico, vedada qualquer forma exterior de templo. (1997, p. 191) Na acepção de Soriano, a liberdade de crença diz respeito às faculdades de escolher, ou de aderir a uma crença ou religião e de mudar de crença ou de religião. O culto resulta da exteriorização da crença, que pode manifestar-se através de ritos, cerimônias, reuniões, conforme a prescrição do credo escolhido. (2002, p. 12-13) Bastos afirma que a liberdade é de culto quando significa que pode ser exercida em princípio em qualquer lugar e não necessariamente nos templos, pois a religião não se contenta apenas com sua dimensão espiritual, procura necessariamente uma externação, o que demanda um ritual, uma solenidade. (1997, p. 191) 27 3 DO CASAMENTO Tem-se que diversos são os conceitos de casamento, ora baseados na idéia de instituição, ora na de contrato, ora caracterizando o ato sob concepções filosóficas ou religiosas, ora sob o aspecto formalista da solenidade e, geralmente, definindo o ato pelos seus fins ou efeitos. Conceituar casamento sob o prisma jurídico é empreendimento árduo. Não há uma definição que possa satisfazer a todos os regimes jurídicos, mesmo porque a evolução histórica e social do casamento traz novos elementos substanciais que alteram o conteúdo e a estrutura matrimoniais. De qualquer modo, é inegável que o casamento é uma convenção criada pelo homem para disciplinar o que foi criado pela natureza – a família. (PEREIRA, 1959, p. 105-106) Esta (a família) recebeu da inteligência humana contornos sociais, culturais, filosóficos, psíquicos, morais, religiosos, econômicos, científicos e jurídicos; foi condicionada por solenidades, formas de constituição e de dissolução, direitos e deveres, regimes patrimoniais. De “conjunção do macho e da fêmea” a “fundamento da sociedade, base da moralidade pública e privada”, o casamento já foi alvo de variadas definições. (ULIANO apud MONTEIRO, 1997, p. 11) Casamento caracteriza-se pela convivência pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família, como também se caracteriza a união estável, tendo, por principal diferencial de formação em relação a esta última, a declaração solene da vontade que estabelece o vínculo conjugal, realizada perante autoridade. O casamento consiste, assim, na união afetiva matrimonializada pelo rito formal da celebração. É um negócio jurídico constituído pelo consentimento recíproco de um homem e uma mulher, na forma da lei, estabelecendo a criação de sociedade e vínculo conjugais disciplinados pelo direito positivo, dando origem à família nuclear e aos efeitos jurídicos pessoais e patrimoniais dela decorrentes. (FIUZA, 2001, p. 604) 3.1 Da origem histórica 28 Para Arnaldo Rizzardo “efetivamente, a origem primeira do casamento está na atração sexual, ou na concupiscência inata na pessoa”. (2005, p. 17) Rizzardo ainda comenta que, de uma forma ou de outra, sempre existiu o casamento, desde os primórdios da vida humana. Como fato natural, a família precedeu o casamento, formada que foi pelo impulso biológico que originariamente uniam o homem e a mulher. (2005, p. 17) Assim, o casamento civil surgiu, dentre muitos fatores, da preocupação da Igreja Católica com os casamentos clandestinos e da necessidade de normatização da matéria, vez que com o surgimento do anglicanismo, católicos vieram a não reconhecer os casamentos celebrados por protestantes e vice-versa. (OLIVEIRA, 2001, P. 153) Para Leite, [...] o casamento cristão, ao contrário do que se poderia imaginar, não é tão antigo quanto o Cristianismo. O casamento tal como conhecemos atualmente é uma invenção medieval e se casar na Igreja só se tornou prática corrente no século XIII. (1991, p. 210) Cahali traz um panorama jurídico-religioso da época, indagando que a princípio, a ação da Igreja visou apenas à moralização do casamento do ponto de vista religioso. Porém, à medida que se foi desenvolvendo o direito canônico e, sobretudo, à medida que aumentava o poder espiritual e político da Santa Sé, começou a atribuir a si a competência legislativa e jurisdicional. As primeiras medidas datam do século IX. Paulatinamente foi aumentando a sua ingerência, até que finalmente o Concílio de Trento, em 1563, afirmou definitivamente sua competência exclusiva para julgar as causas matrimoniais. (1993, v. 13, p. 445-460) Os casamentos, até meados de 1500, eram civis, reservados ao seio familiar; mas isto não significa dizer, em absoluto, que as celebrações religiosas não existiam. Leite afirma que "de repente direito e rituais até então civis, tornam-se eclesiásticos. O direito matrimonial ingressa na competência da Igreja, que entende legislar e julgar soberanamente sobre a matéria". (1991, p. 212) O casamento civil, realizado nos moldes atuais, foi instituído na Holanda, em 1580. Oliveira relata que naquela época, Lutero e Calvino negavam a “natureza 29 sacramental do casamento” sustentando “que sua disciplina e jurisdição” pertenciam ao Estado. (2001, p. 154) Leite afirma que não existe concordância sobre a época precisa em que houve a importante transformação da troca de papéis, mas existe certa concordância em fixar o século XI, como o início da supremacia da Igreja nesta esfera até então reservada ao interesse privado. Já na Idade Média, o casamento passa por uma importante evolução. Resta-lhe, a terceira e definitiva fase: a “da supremacia incontestável do Estado”. (1991, p. 208) A Igreja, preocupada com as transformações sociais e religiosas, viu-se obrigada a convocar um concílio para definir sua doutrina a respeito de vários assuntos, inclusive casamento. Diante disso, em 1.563, inicia-se o Concílio de Trento, que afirmou ser o casamento como um contrato indissolúvel, onde é reconhecido o princípio monogâmico na determinação do livre consentimento dos nubentes para contrair o matrimônio na obrigatória presença do ministro eclesiástico e testemunhas, com a benção. (LEITE, 1991, p. 251) A Igreja caminha soberana disciplinando o casamento até o século XVIII, com a Revolução Francesa, que "[...] inaugura o começo do período do casamento civil, obrigatório, determinando, a Constituição de 03/09/1791, no art. 7º, título 2, ‘que a lei considera o casamento somente como um contrato civil’."(LEITE, 1991, p. 254) 3.2 Do casamento religioso no Brasil "Em Portugal, o alvará de 12-09-1564, publicou e mandou observar as disposições do Sagrado Concílio Tridentino em todos os domínios da Monarquia Portuguesa...", por conseguinte, no Brasil. (WALD, 1999, p. 17) Segundo Rizzardo, No Brasil, quando da Colônia e do Império, conheciam-se três modalidades de casamento: o católico, celebrado segundo as normas do Concílio de Trento, de 1563, e das constituições do arcebispo da Bahia; o casamento misto, entre católicos e não-católicos, que seguia a orientação do direito canônico; e o casamento que unia membros de seitas diferentes, obedecendo-se as prescrições respectivas. Um decreto de 3 de novembro de 1827 oficializou o casamento segundo as diretrizes do Concílio de 30 Trento. Com isso reconheceu e adotou a jurisdição canônica sobre o casamento e sua dissolução, o que significava afirmar que não se admitia a validade do casamento sem a intervenção da Igreja. (2005, p. 19) Com a proclamação da República, em 1889, o “casamento civil recebe consagração legislativa e firma-se o princípio da separação do matrimônio civil do religioso, [...] que atribui ao Estado o poder de disciplinar o direito matrimonial”. (OLIVEIRA, 2001, p. 154) O Decreto 181, de 24 de janeiro de 1890, de autoria de Ruy Barbosa, em seu artigo 108, institui o matrimônio civil com exclusividade, reconhecendo como válido, no Brasil, somente o casamento civil. (OLIVEIRA, 2001, p. 154) Arnaldo Rizzardo nota que o Decreto nº. 181, de 1890, estabelecera que a validade dos casamentos celebrados no Brasil dependeria da observância das disposições pertinentes, obviamente inclusive daquelas emendas das Ordenações ainda não modificadas por leis novas. (2005, p. 20) Oliveira menciona ainda que em 26 de junho de 1890, o Governo Provisório veio a expedir outro decreto sobre o casamento civil, determinando que o casamento civil, único válido nos termos do artigo 108 do Decreto 181 de 24 de janeiro último, precederá sempre às cerimônias religiosas de qualquer culto, com que desejam soleniza-las os nubentes. O ministro de qualquer confissão que celebrar as cerimônias religiosas do casamento antes do ato civil, será punido com seis meses de prisão e multa da metade do tempo. (2001, p. 154-155) Ao introduzir o casamento civil obrigatório o legislador separa de fato o Estado e a Igreja, tal fato marca profundamente o inicio do século XX. A partir daí, os nubentes que desejassem contrair matrimônio religioso, deveriam celebrá-lo segundo a forma do seu culto, porém era obrigatório, a precedência da celebração do casamento civil, tal iniciativa procurava evitar que os nubentes, que por ventura celebrassem apenas o casamento religioso, ficassem em situação de puro concubinato. Assim, diz-se que a “cerimônia religiosa era facultativa para exprimir que os interessados não estavam obrigados a recorrer a ela”. (OLIVEIRA, 2001, p. 155) Oliveira afirma ainda que “o Estado reconhecia como válido unicamente o casamento civil e negava relevância jurídica ao casamento religioso”. (2001, p. 155) 31 Segundo o mesmo autor, esta separação entre Estado e Igreja ficava bem clara, se observado o consagrado na Carta Magna de 1891, que inaugurou a era republicana, rezando em seu artigo 72, os seguintes parágrafos: § 4º A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita; [...] § 7º Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados. (2001, p. 155-156) Explica Pereira que, esse artigo ficou inserido nesta Constituição em razão da separação Igreja/Estado. A partir do regime republicano, o catolicismo deixou de ser a religião oficial e com isto tornou-se necessário mencionar o casamento civil como o vínculo constituinte da família brasileira. Até então era dispensável, pois as famílias constituíram-se pelo vínculo do casamento religioso, que tinha automaticamente efeitos civis, já que não havia a separação dos poderes Igreja/Estado. (1996, p. 20) Na visão de Rizzardo, as constituições que se seguiram trataram do tema na seguinte ordem: • Constituição de 1891, consolidou tal disposição, sem referir a precedência do casamento civil à cerimônia religiosa; • Constituição de 1934, veio mantida a instituição, com a proteção, inclusive, do casamento religiosa com efeitos civis (art. 146); • Constituição de 1937, é omissa acerca do assunto; • Constituição de 1946, art. 163, §§ 1º e 2º; • Constituição de 1969, art. 175, §§ 2º e 3º; • E na Constituição vigente, art. 226 § 1º: “O casamento é civil e gratuita a celebração”. O §2º: “O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.” E no §6º, pertinente a sua dissolução. (2005, p. 19-20) No direito brasileiro, perdura até nossos dias, a influência do direito canônico, inclusive com o advento do atual Código, introduzido pela Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, isso remonta o começo de nossa história, ao longo da colonização, e seguindo as épocas posteriores. (RIZZARDO, 2005, p. 20) 32 3.3 Do casamento religioso com efeitos civis hoje 3.3.1 Breves notas É inegável a influência que a Igreja possui quando se trata de matéria familiar, sobretudo quando se trata do casamento. Orlando Gomes, no primeiro capítulo da obra Direito de Família, já afirma que "[...] não se pode omitir a influência da Igreja, por sua doutrina e ação, na elaboração do estatuto da família. A Religião e a Moral influem na formação dos costumes familiares e, portanto, na legislação que o Estado dita para regular a constituição da família e as relações provenientes". (1999, p. 10) Partindo desde pressuposto, ensina Oliveira, [...] ora, como é sabido, a CF/34 concedeu efeitos civis ao casamento celebrado em forma religiosa. Deve-se deixar bem claro que não institui um outro tipo de casamento, mas, sim, formas de celebração de casamento civil. Tal como no sistema de casamento civil obrigatório, temos um só tipo ou modalidade de casamento, o civil, e forma do mesmo, a civil e a religiosa. (2001, p. 156-157) Desta forma, não se reconhece um verdadeiro e próprio casamento religioso, o que se consagrou foi o sistema de casamento civil facultativo do tipo anglo-saxão, permitindo-se aos nubentes a liberdade de escolha da forma de prestar o consentimento matrimonial: ou no contexto de um rito religioso, na presença do ministro do culto, ou no ato de celebração civil, perante o Juiz. São as formas possíveis de um único casamento (o civil) para todos os cidadãos. Casamento disciplinado, em seus aspectos substanciais, pela lei do Estado. (OLIVEIRA, 2001, p. 157) Com entendimento contrário, Cruz afirma que “[...] o único matrimônio realmente válido, é o que se realiza dentro dos parâmetros canônicos. O chamado matrimônio civil é apenas uma cerimônia que, em face da Igreja não acrescenta e nem diminui a validade do matrimônio canônico”. (1998, p. 31) E citando Hortal, Falando a rigor, o Estado é incompetente para regulamentar o matrimônio entre os batizados, por essa razão a harmonia que almejamos deveria ser 33 no sentido de um reconhecimento do matrimônio católico pelo Estado, com as mesmas conseqüências jurídicas. (Cruz apud Hortal, 1998, p. 31) Assim, conclui-se que o casamento religioso recebe esta denominação porque a autoridade que preside a cerimônia é ministro eclesiástico. Contudo, as normas que o disciplinam tal ato são civis, cogentes, de ordem pública. Significando, para tanto, que a autoridade religiosa não pode dispensar as formalidades exigidas por lei civil, devendo observá-las e, em obediência a elas, celebrar o matrimônio. Em que pese a afirmação acima, cumpri ressaltar que, mesmo que os noivos atendam a todos os requisitos legais, a autoridade religiosa não tem a obrigação de celebrar o casamento. Isso porque a Constituição Federal promulgada em 1988 consagra como direito fundamental (artigo 5º, inciso VI) o direito de ser "inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos". Assim, os ministros de confissão religiosa não são obrigados a celebrar o matrimônio, mas ao fazê-lo cumprirão fielmente a lei civil. Note-se que no Brasil, durante muito tempo, a Igreja Católica, por essa ser a religião oficial (o catolicismo), foi detentora quase que absoluta dos direitos matrimoniais, o casamento era matéria afeta ao Direito Canônico e, portanto, o Estado não tinha competência para legislar sobre esta matéria. (DINIZ, 2007, p. 49) Com a crescente imigração, vieram pessoas que professavam religiões diversas, assim instituiu-se, ao lado do casamento eclesiástico, o de natureza civil, permitindo a união de casais de seitas dissidentes. (VENOSA, 2005, p. 48) Venosa, ao referir-se sobre o tema, diz que a partir de então, passou-se a permitir, além do casamento religioso católico oficial do Estado, o casamento misto, entre católicos e não católicos, realizado também sob disciplina canônica, e o casamento de pessoas de outras religiões, em obediência às respectivas seitas. (2005, p. 48) Foi apenas no período republicano que o casamento civil obrigatório foi introduzido, como conseqüência primordial da separação da Igreja do Estado. Fato que se consolida até nossos dias, quando a Constituição de 1988 também trata da questão em seu artigo 226, parágrafo segundo. (VENOSA, 2005, p. 48) A Lei nº. 1.110/50 disciplina que o casamento religioso equivalerá ao civil quando os consortes promoverem o devido processo de habilitação perante o oficial de registro, na forma da lei civil. Note-se que o legislador foi muito além, ao permitir 34 que a habilitação ocorra posteriormente ao casamento religioso, com a apresentação dos documentos legalmente exigidos, sem a prévia habilitação civil. (VENOSA, 2005, p. 48) Válido o matrimônio oficiado por ministro de confissão religiosa reconhecida (católico, protestante, mulçumano, israelita). Não se admite, todavia, o que se realiza em terreiro de macumba, centros de baixo espiritismo, seitas umbandistas, ou outras formas de crendices populares, que não tragam a configuração de seita religiosa reconhecida como tal. (PEREIRA, 1996, p. 42) Partindo da afirmação acima, chega-se a um ponto delicado, sendo este o que diz respeito ao reconhecimento da confissão religiosa e, por conseguinte, de sua autoridade. A Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), em seu artigo 17, dispõe que: As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes. Com base no exposto no artigo 17, da LICC, Antônio Chaves faz uso da lição de Bruno de Almeida Magalhães para estabelecer um critério sobre a idoneidade do rito confessional, vejamos: Não é contrário à ordem pública (...) ‘se as formalidades de celebração não atentam contra as que a lei estabeleceu para segurança e validade dos atos jurídicos em geral e do casamento civil em particular. Assim será contrário à ordem pública o rito de uma confissão que celebrar o casamento: a. fora das horas destinadas pela lei para a prática dos atos jurídicos; b. em lugar inacessível a qualquer pessoa; c. não estando os contraentes livres para expressarem sua vontade ou se achando sob coação; d. no mesmo dia da retratação de um dos contraentes; e. com testemunhas legalmente incapazes ou em número inferior ao admitido pela lei’. (CHAVES apud MAGALHÃES, 1994, p. 215) Afirma ainda o ilustre tratadista ser possível duas impugnações: "[...] em relação à qualidade e competência do ministro e em relação à idoneidade do rito". (CHAVES, 1994, p. 216) Merece apreço tal afirmativa, pois que o oficiante pode não ser um padre, pastor, rabino, bispo, e sim apenas um teólogo, coroinha, evangelista, isto é, pessoa não habilitada para a realização do ato, de acordo com as leis internas de cada 35 religião. Tal fato, contudo, não traz maiores problemas, eis que a irregularidade salta aos olhos. Maior discussão encontra-se na idoneidade do rito, fato claro quando da afirmação de Pereira, antes citada, tendo em vista o não reconhecimento do casamento religioso realizado por seitas religiosas que não são reconhecidas como tal. Pela escassez destas celebrações, o Poder Judiciário não é chamado, com freqüência, para decidir sobre a idoneidade de certo rito. Wald aponta um exemplo raro extraído da jurisprudência carioca: As Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Alçada do antigo Estado da Guanabara decidiram, por maioria, ser insuscetível de registro civil a união conjugal realizada em centro espírita. (1999, p. 56) E continua, afirmando que “[...] de fato, parece contrariar os bons costumes a prática de rituais em que há a execução de animais, uso e abuso de bebida alcoólica e do tabaco”. (1999, p. 56) Conclui-se então, que os nubentes podem unir-se sob qualquer rito confessional. Contudo, o Estado somente reconhecerá efeitos civis ao casamento celebrado consoante rito que não ofenda os bons costumes, tais como, o evangélico, católico, mulçumano, israelita. No que diz respeito ao local para a realização da solenidade, a lei é omissa. É utilizado como parâmetro norteador, o projeto da Lei nº. 379, que estabelecia: A solenidade terá lugar na igreja, ou templo, ou outro local designado, ou admitido pelo celebrante, a portas abertas, perante testemunhas, parentes ou não, dos contraentes, e na forma do rito da religião adotada. Atualmente, o casamento religioso com efeitos civis é consagrado pelo § 2º do artigo 226 da Constituição Federal, e, ao reconhecê-lo nos termos da lei, faz remissão aos artigos 70 à 75 da Lei nº. 6.015/73, in verbis: Art. 70 Do matrimônio, logo depois de celebrado, será lavrado assento, assinado pelo presidente do ato, os cônjuges, as testemunhas e o oficial, sendo exarados: 1º) os nomes, prenomes, nacionalidade, data e lugar do nascimento, profissão, domicílio e residência atual dos cônjuges; 36 2º) os nomes, prenomes, nacionalidade, data de nascimento ou de morte, domicílio e residência atual dos pais; 3º) os nomes e prenomes do cônjuge precedente e a data da dissolução do casamento anterior, quando for o caso; 4°) a data da publicação dos proclamas e da celebração do casamento; 5º) a relação dos documentos apresentados ao oficial do registro; 6º) os nomes, prenomes, nacionalidade, profissão, domicílio e residência atual das testemunhas; 7º) o regime de casamento, com declaração da data e do cartório em cujas notas foi tomada a escritura ante-nupcial, quando o regime não for o da comunhão ou o legal que sendo conhecido, será declarado expressamente; 8º) o nome, que passa a ter a mulher, em virtude do casamento; 9°) os nomes e as idades dos filhos havidos de matrimônio anterior ou legitimados pelo casamento. 10º) à margem do termo, a impressão digital do contraente que não souber assinar o nome. Parágrafo único. As testemunhas serão, pelo menos, duas, não dispondo a lei de modo diverso. CAPÍTULO VII Do Registro do Casamento Religioso para Efeitos Civis Art. 71. Os nubentes habilitados para o casamento poderão pedir ao oficial que lhe forneça a respectiva certidão, para se casarem perante autoridade ou ministro religioso, nela mencionando o prazo legal de validade da habilitação. Art. 72. O termo ou assento do casamento religioso, subscrito pela autoridade ou ministro que o celebrar, pelos nubentes e por duas testemunhas, conterá os requisitos do artigo 71, exceto o 5°. Art. 73. No prazo de trinta dias a contar da realização, o celebrante ou qualquer interessado poderá, apresentando o assento ou termo do casamento religioso, requerer-lhe o registro ao oficial do cartório que expediu a certidão. § 1º O assento ou termo conterá a data da celebração, o lugar, o culto religioso, o nome do celebrante, sua qualidade, o cartório que expediu a habilitação, sua data, os nomes, profissões, residências, nacionalidades das testemunhas que o assinarem e os nomes dos contraentes. § 2º Anotada a entrada do requerimento o oficial fará o registro no prazo de 24 (vinte e quatro) horas. § 3º A autoridade ou ministro celebrante arquivará a certidão de habilitação que lhe foi apresentada, devendo, nela, anotar a data da celebração do casamento. Art. 74. O casamento religioso, celebrado sem a prévia habilitação, perante o oficial de registro público, poderá ser registrado desde que apresentados pelos nubentes, com o requerimento de registro, a prova do ato religioso e os documentos exigidos pelo Código Civil, suprindo eles eventual falta de requisitos nos termos da celebração. Parágrafo único. Processada a habilitação com a publicação dos editais e certificada a inexistência de impedimentos, o oficial fará o registro do casamento religioso, de acordo com a prova do ato e os dados constantes do processo, observado o disposto no artigo 70. Art. 75. O registro produzirá efeitos jurídicos a contar da celebração do casamento. Como podemos verificar, é na legislação infraconstitucional que se encontra expressa menção ao casamento religioso com efeitos civis mediante habilitação prévia e posterior. (OLIVEIRA, 2001, p. 158) 37 3.3.2 Habilitação prévia De acordo com Pena Jr. a “habilitação é o processo por meio do qual os nubentes, de próprio punho, ou por intermédio de representante legal, formalizam o pedido de expedição de certidão de habilitação para o casamento, perante o oficial de Registro Civil, devidamente instruído com os documentos do artigo 1.525 do Código Civil”. (2008, p. 93) Argumenta o referido doutrinador que a habilitação tem por finalidade verificar a capacidade nupcial dos nubentes, bem como a existência de impedimentos ou de causas suspensivas, revelando-se como atitude preventiva do Estado, com propósito de evitar a realização de casamentos vedados por lei. (PENA JR, 2008, p. 93) Conforme ensina Oliveira, de conformidade com o disposto no artigo 2º, da Lei 1.110, de 23/05/50, a celebração do casamento é precedida de procedimento de habilitação que tem o início com a declaração dos interessados de que pretendem contrair casamento perante autoridade religiosa. (2001, p. 158) Desejando, pois, submeter-se ao casamento religioso com efeitos civis, os nubentes deverão proceder à habilitação perante o Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais. Esse procedimento visa declarar e certificar que os interessados não possuem impedimentos, estando aptos para o casamento; findo esse procedimento preliminar, e mediante constatação que nada se opõe, nos termos da lei civil, à celebração do casamento, os nubentes recebem o certificado de habilitação matrimonial do oficial do Registro Civil. (OLIVEIRA, 2001, p. 158) A partir daí, conforme assevera Oliveira, [...] os nubentes ficam autorizados a celebrar o casamento perante a autoridade religiosa que, habilitada à realização de um casamento válido para o Estado, deve documentar sua formação, lavrando o termo ou assento do casamento religioso com os requisitos do artigo 70 da Lei 6.015, de 31/12/1973. (2001, p. 158) Dias salienta que, 38 [...] a validade civil do casamento religioso está condicionada à inscrição no Registro Civil de Pessoas naturais, desde que atendida a providência de habilitação, antes ou depois do ato religioso. Os efeitos civis são admitidos a qualquer tempo. Procedida à habilitação e ao registro, ainda que tardio, os efeitos civis retroagem à data da solenidade religiosa (conforme disciplina o artigo 1515, do Código Civil). No caso de prévia habilitação, o prazo para registro é de 90 dias. (2007, p. 142) Oliveira ensina que a habilitação é um pressuposto ou condição prévia do casamento religioso, que se celebrado sem as formalidades preliminares, não pode ser transcrito no Registro Público, a menos que, previamente ao registro, a habilitação venha a realizar-se (artigo 4º da Lei 1.110/50). (2001, p. 159) Dias leciona que “[...] realizado o casamento religioso sem as formalidades legais, poderá ser inscrito no registro civil: basta que se proceda à devida habilitação perante a autoridade competente”. (2007, p. 142) Dispõe o art. 73, da Lei nº. 6.015/73, in verbis, que: [...] no prazo de 30 (trinta) dias a contar da realização, o celebrante ou qualquer interessado poderá, apresentando o assento ou termo do casamento religioso, requerer-lhe o registro ao oficial do cartório que expediu a certidão. Mister ressaltar que com o advento do Código Civil (Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002), tal prazo foi alterado, conforme dispõe o artigo 1516 e 1532, in verbis: Art. 1.516. O registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos exigidos para o casamento civil. o § 1 O registro civil do casamento religioso deverá ser promovido dentro de noventa dias de sua realização, mediante comunicação do celebrante ao ofício competente, ou por iniciativa de qualquer interessado, desde que haja sido homologada previamente a habilitação regulada neste Código. Após o referido prazo, o registro dependerá de nova habilitação. § 2o O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o prazo do art. 1.532. § 3o Será nulo o registro civil do casamento religioso se, antes dele, qualquer dos consorciados houver contraído com outrem casamento civil. Art. 1.532. A eficácia da habilitação será de noventa dias, a contar da data em que foi extraído o certificado. Vê-se que o referido artigo prevê de forma genérica que qualquer interessado pode requerer a transcrição do casamento religioso no registro civil. Oliveira ressalta que “[...] sobre esse ponto convém precisar que são consideradas 39 interessadas somente aquelas pessoas que, no âmbito da família, possam obter uma utilidade jurídica com a eficácia civil do matrimonio religioso”. (2001, p. 160) Porém não é esta a lição de Antonio Chaves, afirma o tratadista que a inscrição do casamento religioso no registro civil deve ser promovida pelos cônjuges apenas. (1994, p. 212) Com relação ao prazo, já houve entendimento doutrinário, com certo vigor até, de que a não observância do registro no prazo legal, subseqüentes à cerimônia acarretaria a inexistência do ato jurídico, pois a transcrição não seria um simples ato probatório, mas teria função constitutiva dos efeitos civis, ficaria então, a celebração do casamento cuja transcrição não foi requerida no prazo previsto, privada dos efeitos civis. (OLIVEIRA, 2001, p. 160-161) Porém, a tendência parece ser outra, conforme salienta Oliveira: A transcrição do casamento religioso no registro público não está sujeita a prazo. [...] ... o Supremo Tribunal Federal conclui que, a rigor, a transcrição é um elemento probatório. O casamento celebrado na forma religiosa já existe, é válido e eficaz antes da transcrição: ‘o registro a posteriori não é um pressuposto de eficácia do ato, mas necessário a sua publicidade’. (2001, p. 162-163) E mais: O casamento religioso não transcrito é relevante juridicamente para o efeito de impor ao oficial do Registro Civil o dever de efetuar a transcrição do ato de celebração. Afirma-se em tais circunstâncias que o casamento religioso já produz efeitos de um fato jurídico e, neste limitado sentido, tem existência jurídica. (OLIVEIRA, 2001, p. 163) Com entendimento contrário, Dias leciona que o casamento religioso (sem efeitos civis) não é reconhecido pelo Estado brasileiro, se tal fato ocorre, na prática ele equivale à união estável, não gerando quaisquer efeitos jurídicos. (2007, p. 7677) Ademais, Kumpel salienta que se a lei prevê prazo para que seja realizado a transcrição do registro, este deve ser cumprido, eis que o Direito positivo, contrapondo-se ao direito natural, é aquele elaborado pelo homem na sociedade, tendo caráter imperativo, ao contrário do direito natural, que é constituído de princípios naturais imutáveis. (...) Uma vez instituído, o direito positivo passa a ser coercitivamente imposto. (2007, p. 26) 40 3.3.3 Habilitação posterior A habilitação posterior ocorre quando o casamento religioso foi celebrado sem prévia habilitação perante o oficial do Registro Público, assim, sempre que isso ocorrer, é possível transcrevê-lo no registro público. (OLIVEIRA, 2001, p. 163) Neste caso, conforme a própria denominação, primeiro é realizada a cerimônia religiosa para após haver a competente habilitação e, por fim, a inscrição do casamento religioso no registro público. A possibilidade da habilitação posterior é oriunda da Lei nº. 1.110, de 23 de maio de 1950, nos artigos 4º e 5º; posteriormente, a Lei nº. 6.015/73, no artigo 74, regulou a matéria. A transcrição exige prévio processo de habilitação, que se dá da mesma forma que o processo de habilitação prévia, ou seja, tem início com o requerimento dos nubentes, aquele citado no artigo 4º da Lei nº. 1.110, acompanhado da prova do ato religioso e dos documentos exigidos pelo artigo 180 do Código Civil. (OLIVEIRA, 2001, p. 164) De acordo com o ensinamento de Oliveira, “o procedimento de habilitação é organizado com o fim de verificar a existência de algum impedimento que obste a transcrição”. (2001, p. 164) Consoante os artigos 4º e 5º da Lei nº. 1.110/50, e § único do artigo 74 da Lei nº. 6.015/73, terminado o processo de habilitação e verificado que nada impede o registro do casamento religioso, o oficial do Registro Civil certificará a inexistência de impedimentos e realizará a transcrição. Não se faz necessário que os nubentes ingressem com o requerimento porque o procedimento, em virtude de lei, desenvolve-se de ofício. (OLIVEIRA, 2001, p. 164) Preceitua o artigo 75, da Lei nº. 6.015/73, que os efeitos civis do casamento religioso, após o devido registro, retroagirão à data de sua celebração, ou seja, são ex tunc.(OLIVEIRA, 2001, p. 164) 41 4 DA LIBERDADE RELIGIOSA A liberdade religiosa, que engloba a livre manifestação de crença e de culto religoso, é considerada como um direito humano fundamental. Em seu seio, a liberdade religiosa inclui ainda a liberdade de não seguir qualquer religião, ou mesmo de não ter opinião sobre a existência ou não de Deus (agnosticismo e ateísmo). (SORIANO, 2002, p. 12-13) A Declaração Universal dos Direitos Humanos, primeiro diploma a tratar do tema, adotada pelos 58 estados membros conjunto das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, no Palais de Chaillot em Paris (França), definia a liberdade religiosa, no seu artigo 18: Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular. A liberdade de religião, enquanto conceito legal, ainda que esteja relacionada com a tolerância religiosa, não é idêntica a esta - baseando-se essencialmente na separação da Igreja do Estado, ou laicismo. (OLIVEIRA, 2001p. 155) 4.1 Da legislação internacional e nacional aplicável à liberdade religiosa Segundo Campos, responsável pela organização e idealização da página www.liberdadereligiosa.org.br, que tem por principal objetivo ampliar o debate sobre os direitos humanos e apresentar os instrumentos jurídicos nacionais e internacionais aplicáveis ao direito de liberdade religiosa, é grande a gama de leis e tratados aplicáveis à liberdade religiosa, tanto na esfera nacional quanto na esfera internacional. 42 Abaixo a relação dos Tratados ao qual o Brasil é signatário, que trazem em seu seio a defesa da dignidade da pessoa humana, traduzindo este na garantia de livre manifestação de crença religiosa: • Carta das Nações Unidas, de 26.06.1945; • Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10.12.1948; • Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 16.12.1966; • Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 16.12.1966; • Convenção sobre Eliminação sobre Todas as Formas de Discriminação Racial, de 21.12.1965; • Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 18.12.1979; • Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, de 22.11.1969; • Convenção contra a Tortura, de 10.12.1984; • Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 09.12.1985; • Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação fundadas na Religião, de 25.11.1981; No Brasil, além da Constituição Federal, que traz como clausula pétrea a livre manifestação de crença religiosa, temos ainda as legislações ordinárias que também são aplicáveis ao tema: • Decreto Lei nº. 2.848, de 07.12.1940 – Código Penal: Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena: detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa. [...] § 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem: Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa. Art.208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objetos de culto religioso: Pena: Detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa. Parágrafo único: se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência 43 • Lei Federal nº. 5.250, de 09.02.1967 - Regula a Liberdade de Manifestação do Pensamento e de Informações; • Lei Federal nº. 6.923, de 29.06.1981 - Dispõe sobre o serviço de Assistência Religiosa nas Forças Armadas; • Lei Federal nº. 7.716, de 05.01.1989 - Define os Crimes Resultantes de Preconceitos de Raça ou de Cor. Art. 20 - Praticar, induzir ou incitar, pelo meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional. Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. • Lei Federal nº. 9.455, de 07.04.1997 - Define os crimes de tortura e dá outras providências. Art. 1º - Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa. [...] 4.2 Da limitação ao direito à liberdade religiosa Moraes ensina: Os direitos humanos fundamentais não podem ser utilizados com um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. [...] Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna. (1998, p. 46) Para tanto propõe que [...] quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do principio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional de âmbito de alcance de cada 44 qual (contradição de princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas. (1998, p. 46-47) Soriano, tratando do mesmo tema relata que seguindo esta mesma linha de raciocínio, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça endossam a relativização dos direitos fundamentais, afirmando para tanto que um direito individual não pode servir de salvaguarda de práticas ilícitas. (2002, p. 37-38) E continua afirmando que [...] a liberdade religiosa, como qualquer outro direito humano, não pode servir de escudo protetivo, para dar guarida a atividades ilícitas ou atos que atentem contra a incolumidade pública, a moral e os bons costumes. A liberdade religiosa não é um direito absoluto. Existe uma relativização à liberdade religiosa. (2002, p. 38) E discorrendo sobre a relatividade do direito à liberdade religiosa, Bastos e Martins afirmam: O campo religioso, além de ser, por excelência, o das faculdades mais altas do ser humano, campo de realização dos anseios mais profundos da alma humana, é também espaço invadido por impostores, falsos profetas, que desnaturam esta atividade movidos por toda sorte de vícios. O Estado não pode deixar de estar alerta para coibir estas falsas expressões de religiosidade. (1989, p. 52) Acrescentam, os ilustres doutrinadores, que a inviolabilidade do direito à liberdade religiosa, prevista no artigo 5º, inciso VI, da Carta Magna, está condicionada à ordem pública, que, embora omitida nessa norma, há de ser observada, com o fim de “não prejudicar igual direito de outrem, e não ferir os valores éticos-morais, estruturantes de uma sociedade”. (1989, p. 52) Importante o comentário de Feu Rosa, ao falar sobre o direito à liberdade religiosa, vejamos: A tutela aí é a religião num sentido geral e amplo. Compreende todas as religiões, desde que permitidas e compatíveis com as normas comuns do Estado. Não há necessidade de registro. Só não podem ser religiões aéticas, imorais e incitadoras do suicídio, de maus costumes, do sacrifício de pessoas que instiguem a violência, etc. (1999, p. 33) Na visão de Soriano, ponto de relevância encontra-se na linha tênue que separa a limitação ou a relativização da liberdade religiosa pelo Estado, posto que 45 incorre-se no risco de se errar tanto para menor como para maior, onde o excesso poderá levar ao cerceamento à liberdade religiosa, do contrário, a inércia estatal, favorece os abusos, como o terrorismo religioso e outras práticas criminosas ou discriminatórias. (2002, p. 39) E concluí que “a liberdade religiosa não é absoluta. Não é uma ilimitada liberdade em relação ao Estado ou a Deus, porquanto todos devem respeitar o Estado Democrático de Direito e, ao final, prestar contas a Deus”. (SORIANO, 2002, p. 39) 4.2.1 Do Preâmbulo da Constituição O Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, tem o seguinte enunciado: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. Soriano ensina que “a Constituição brasileira de 1988 consagra a liberdade como um direito e um princípio fundamental”. Já no preâmbulo da Carta Magna, encontramos “a liberdade entre os valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito”. (2002, p. 86) Moraes leciona que o preâmbulo constitui [...] um breve prólogo da Constituição e apresenta dois objetivos básicos: explicar o fundamento da legitimidade da nova ordem constitucional; e explicar as grandes finalidades da nova Constituição. (1998, p. 57) E Bastos, em sua obra ‘Hermenêutica e interpretação constitucional’, afirma que 46 [...] é possível obter nos preâmbulos alguns vetores para a atividade interpretativa, dado que, na maior parte das vezes, consagram declarações principiológicas, de caráter geral. (1999, p. 81) Partindo dos ensinamentos de Moraes e Bastos, Soriano, conclui: Ora, uma sociedade fraterna, justa e pluralista, nos termos do preâmbulo Constitucional, só pode subsistir com liberdade, inclusive liberdade religiosa. Consequentemente, essa sociedade deve ser tolerante, em relação às diferentes confissões religiosas, senão deixa de ser pluralista, e não terá a liberdade como valor supremo. Portanto, a tolerância é fundamental para a manutenção de uma sociedade fraterna, justa e pluralista. É dizer, subtraindo-se a liberdade, não há que se falar em justiça, fraternidade e pluralismo. Disto deflui, também, que a liberdade religiosa é um componente importante da sociedade brasileira, que pretende ser fraterna, justa e pluralista. (2002, p. 86) 4.2.2 Do Estado Democrático de Direito e a liberdade religiosa Dispõe o artigo 1º da Constituição Federal, in verbis: Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (Grifamos) Conforme leciona Soriano, “a liberdade religiosa, no Brasil, tem amparo do Estado Democrático de Direito, uma vez que a República é constituída como tal, conforme o artigo 1º, da Constituição Federal”. (2002, p. 87) Tem-se que dentre os fundamentos elencados no artigo 1º da Carta Magna, encontram-se a cidadania e a dignidade da pessoa humana, onde a cidadania tem papel de extrema relevância em sede de direitos fundamentais, o que não difere-a de forma específica, quanto tratamos na livre manifestação de crença religiosa, já que entende-se por cidadania “o direito a ter direito”. (SORIANO, 2002, 87) 47 Lafer faz breve reflexão sobre o pensamento de Hannah Arendt, quando esta discursa sobre o tema: O que ela (Hannah) afirma é que os direitos humanos pressupõe a cidadania não apenas como um fato e um meio, mas sim como um princípio, pois a privação da cidadania afeta substantivamente a condição humana, uma vez que o ser humano privado de suas qualidades acidentais – o seu estatuto político – vê-se privado de sua substância, vale dizer: tornado pura substância, perde a sua qualidade substancial, que é de ser tratado pelos outros como um semelhante. (LAFER, 1988, p. 151) Não há que se falar em tutela dos direitos humanos sem cidadania, como pondera Soriano A dignidade da pessoa humana apresenta-se como um princípio importante em sede de liberdade religiosa, uma vez que o cerceamento à liberdade constitui, indubitavelmente, um duro golpe à dignidade humana. O homem, destituído de liberdade, tem, logicamente, sua dignidade abalada. (2002, p. 88) Para Canotilho é na dignidade da pessoa humana que se fundamentam os direitos humanos. (1999, p. 498) Nesta mesma perspectiva, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena (1993), além de endossar a universalidade dos direitos humanos, “reconhece que todos os direitos humanos têm origem na dignidade e valor inerente a pessoa humana e que esta é o sujeito central dos direitos humanos e liberdades fundamentais”. (PIOVESAN, 2001, p. 41) Já Silva tem a dignidade da pessoa humana como valor supremo “que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”. (2007. p. 106) E Piovesan, assim se expressa: O valor da dignidade humana impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos e garantias fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico ao sistema jurídico brasileiro. Os direitos e garantias passam a ser dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo o universo constitucional e servindo como critério imperativo de todas as normas do ordenamento jurídico. (1997, p. 315) 48 Assim o Estado Democrático de Direito, por estar sob o império da lei, deve propiciar liberdade e vida digna a seus cidadãos. E em se tratando de consciência humana, como no caso da liberdade religiosa, o Estado não tem o direito de interferir, sendo que um dos propósitos do constitucionalismo é justamente este: limitar o poder Estatal em relação ao indivíduo. (SORIANO, 2002, p. 2009) Bem afirma Bastos, “as convicções e práticas religiosas assumem, destarte, um estatuto de foro íntimo das pessoas”, portanto, ninguém é obrigado a professar ou revelar as suas convicções religiosas. (2002, p. 192) Assim o Estado Democrático favorece, de forma ampla e geral, a proteção de todos os direitos humanos e a Carta Magna, promulgada em 1988, representou um grande avanço na proteção dos direitos humanos, obviamente a liberdade religiosa foi largamente favorecida, porquanto está no rol dos direitos humanos tutelados pela Constituição Cidadã, estando inclusive inserida nas clausulas pétreas. 4.3 Da laicidade do Estado e a liberdade religiosa: a manifestação da crença religiosa quando do casamento religioso com efeitos civis Estabelece o artigo 19, incisos I e III da Constituição Federal: Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçarlhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. (...) III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. Ademais, em que pese o fato de haver menção a Deus no preâmbulo de nossa Constituição, Nery Junior, leciona que [...] o Brasil é um Estado laico, porque o poder político temporal independe da confissão religiosa do povo, nem depende da religião adotada pela maioria do povo. (2006, p. 115) Com essa afirmação, pode-se dizer que o Estado deve se preocupar em proporcionar a seus habitantes, no mínimo, um clima de compreensão religiosa, 49 prevenindo a intolerância. Deve existir uma divisão acentuada entre o Estado e a Igreja (leia-se manifestações religiosas), não existindo nenhuma religião oficial, deve o Estado prestar proteção e garantir a livre manifestação de todas as religiões, indistintamente e sem análise do conteúdo de cada uma das doutrinas ou credos. Oportuno trazer o ensinamento de Scherkerkewitz: De que o Estado tem o dever de proteger o pluralismo religioso dentro de seu território, criar as condições materiais para um bom exercício sem problemas dos atos religiosos das distintas religiões, velar pela pureza do principio de igualdade religiosa, mas deve manter-se à margem do fato religioso, sem incorporá-lo em sua ideologia. Desta forma, sendo a crença religiosa um complexo de princípios que dirigem o pensamento do homem a Deus, ou a qualquer outra divindade, é certo que abarca os dogmas, a moral e a liturgia. Assim, “o constrangimento à pessoa humana, de forma que renuncie à sua fé, representa o desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosofias e à própria diversidade espiritual”. (MORAES, 1998, p. 40) Partindo desta afirmação, a grande problemática envolve o casamento religioso com efeitos civis, pois diversas são formas de manifestações religiosas existentes em nosso país, decorrentes do aumento da complexidade social, do intercâmbio cultural e das imigrações; fato que revela a coexistência de inúmeras religiões, sendo, muitas vezes normal um casamento ecumênico para que se atenda ou respeite a diferença de religião existente na constância da relação. As manifestações religiosas são tão antigas e estão de tal modo difundidas, que se torna difícil imaginar o homem sem religião. Os homens sempre esperam das religiões respostas para os enigmas com que se deparam: O que é homem? Qual o sentido da sua existência? Qual a origem e o fim do sofrimento? Como podemos atingir a felicidade? O que é a morte? Existe uma justiça sobrehumana que castigue os que fizeram outros sofrer e recompense as suas vítimas? Não encontrando respostas na ciência para estas questões, buscam-nas com freqüência na religião. (VARELA, 1981, p. 10) Mas o sentimento religioso emerge também a partir da própria consciência que o homem é um ser finito, limitado, imperfeito, que se descobre num mundo que não criou e cujo sentido desconhece. A experiência religiosa está igualmente 50 associada a vivências particulares, como os fenômenos sobrenaturais, que despertam os homens para outras dimensões da realidade. (WILGES, 1979, p. 12) Demonstrado a importância da religião na vida do homem, cabe indagar se podemos permitir que se faça restrição no que diz respeito à forma de casamento (religioso) realizado dentro da cultura de determinado povo, pois quando o Código Civil, em seu artigo 1.515, estabelece que o “casamento religioso equipara-se ao casamento civil, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração”, traz consigo o entendimento que tal artigo somente pode ser aplicado se o casamento for "oficiado por ministro de confissão religiosa reconhecida (católica, protestante, muçulmana, israelita). Não se admite, todavia, o que se realiza em na umbanda, centros espíritas, seitas umbandistas, ou outras formas de crendices populares, que não tragam a configuração de seita religiosa reconhecida como tal." (PEREIRA apud VENOSA, 2006, p.32) É importante ressaltar que a proteção constitucional alcança todas as manifestações religiosas, sem exceção. A interpretação das normas do Código Civil, no que tange ao casamento religioso, não pode restringir o que a Constituição Federal não restringe. Assim, além da religião cristã, da judaica, da muçulmana, se faz necessário considerar a existência de outras manifestações religiosas, como as provenientes de culturas africanas, orientais e de outras partes do mundo, incluindose aqui as de culturas de sociedades ditas "primitivas", porque não há, em absoluto, qualquer restrição jurídica que impeça o índio ou o aborígine de trazer consigo seu ritual de casamento. Dias afirma que cabe reconhecer a possibilidade de o ato religioso de qualquer credo servir para fins registrais, tal como as cerimônias de casamento realizados por religiões afro-brasileiras e o casamento cigano. Não se pode olvidar que o Brasil é um país laico, não cabendo priorizar uma religião em detrimento de outras. A própria Constituição assegura a inviolabilidade do direito de crença (CF, 5º, VI). Nada justifica que se deixe de admitir efeitos civis aos casamentos celebrados por qualquer religião. Basta que se professe fé que não se afaste dos princípios da sociedade. Claro que não se podem aceitar tais efeitos se a religião, por exemplo, admite a poligamia e celebra múltiplos casamentos de uma mesma pessoa. Fora essas excepcionalidades, nada impede que os casamentos de qualquer crença ou religião sejam levados ao registro civil. (2007, p. 142-143) Ressalta-se que tomar uma atitude de propensão reducionista do conceito de religião afronta as garantias constitucionais podendo provocar sérias 51 perturbações sociais. A Constituição Federal, em seu art. 5º, caput, estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo a todos a inviolabilidade do direito à liberdade e à igualdade, onde é inviolável a liberdade de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (inciso VI). Repudiar as manifestações religiosas advindas de outras culturas e nomeá-las de modo pejorativo, expressa um desejo de recuperar a velha ideologia colonialista, que forneceu justificativas para negar humanidade aos negros e aos índios. 52 5 CONCLUSÃO A pesquisa demonstrou que a questão da Liberdade Religiosa é extremamente complexa e delicada. É complexa porque a compreensão desse tema depende de uma abordagem interdisciplinar e, por conseguinte, de incursões que vão além da ciência jurídica, envolvendo, também, a história, a teologia, a antropologia, a ciência da religião e a filosofia. O tema é delicado porque revela o desafio de se conviver num mundo plural, em que a intolerância religiosa ainda está presente em vários países do mundo, inclusive no Brasil. Ademais, o tema envolve questões complexas, como a observância e a concretização do princípio constitucional, qual seja, a inviolabilidade do direito a livre manifestação da crença religiosa, quando tratamos do casamento religioso com efeitos civis. A liberdade religiosa é tida como direito fundamental; para tal conclusão, partiu-se, da análise histórica dos direitos fundamentais até sua concretização nas Constituições brasileiras, e obteu-se assim o resultado de que a liberdade religiosa faz parte dos direitos humanos de primeira geração, tendo sua garantia assegurada já na Constituição Federal de 1824, porém com algumas particularidades. Demontrou-se também que a diferença entre liberdade de consciência religiosa, que é a liberdade cultuar qualquer deus, inclusive de não se ter crença alguma; livre manifestação de crença religiosa, que é a faculdade de escolher ou aderir a qualquer crença, incluindo ai o direito de mudar de crença ou religião; e liberdade de culto, que seria a exteriorização da crença ou religião, podendo ser realizado em qualquer lugar, e não somente em templos. Já no segundo capitulo, o casamento foi o tema central; passou-se a uma análise de sua evolução história, com enfase a evolução histórica do casamento religioso e sua garantia nas Constituições Brasileiras; ao passo que foi abordado o casamento religioso com efeitos civis, diante no Código Civil Brasileiro e legislação esparsa, trazendo inclusive o procedimento para a habilitação prévia e posterior. Para finalizar a pesquisa, o terceiro capítulo tratou da livre manifestação de crença religiosa quando da celebração do casamento religioso com efeitos civis; fez sussinta menção a legislação nacional e internacional aplicada ao tema e acabou por tratar da limitação ao direito de liberdade religiosa, afirmando ser o Estado 53 brasileiro um Estado Democratico de Direito, onde a liberdade religiosa, além de assegurada na Constituição Federal, fazendo parte do rol de claúsulas pétreas, é direito fundamental, para tanto o Estado tem o dever de fazer cumprir a vontade única do individuo, não podendo interferir nas escolhas íntimas de cada ser. Por ser um Estado laico, o Brasil não reconhece uma ou outra religião como oficial, assim não há que se falar em distinção entre manifestações de crenças ou religiões quando da celebração do casamento religioso com efeitos civis, há apenas de falar-se em dever do Estado de garantir a autonomia do individuo, quando este escolhe suas convicções religiosas, posto que tal fato é de foro íntimo, onde a Constituição não restringe esse direito, e por derradeiro, não autoriza o legislador ou doutrinadores a restringi-lo. 54 REFERÊNCIAS ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. 3. ed. 1ª reimpressão. SãoPaulo: Brasiliense. 1998. 548p. ANTUNES, Varela. Estudos jurídicos em homenagem à Faculdade de Direito da Bahia, São Paulo: Saraiva, 1981, p. 151-152 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. 807 p. ________. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999 BASTOS, Celso Ribeiro. 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