F-107 Capítulo VII Mauro M.G.de Carvalho CAPÍTULO VII Tópicos em bioeletricidade Os efeitos fisiológicos do choque (tabela 1) se devem à corrente e não à tensão. Uma vez que I = V/R , mesmo tensões pequenas podem gerar altas correntes e vice-versa, dependendo do caminho da corrente (ou seja, R). Os efeitos do choque são piores para correntes alternadas de 60Hz. Correntes de alta frequência têm efeitos térmicos mas dificilmente causam fibrilação. (para uma corrente de 10000Hz, por exemplo, o perigo da fibrilação ocorre para cerca de 75A!). Por isso, eletro-cauterização é feita com correntes de alta frequência. Tabela 1 : Efeito do choque elétrico Efeitos Limiar da sensação Corrente máxima suportável sem problemas Limiar da contração muscular tolerável. Este limiar depende da duração do choque. Contração dos músculos do tórax pode causar parada respiratória durante o choque (que pode ser fatal!). 50 Limite da dor suportável. 100-300 Possível fibrilação ventricular; frequentemente fatal. 300 Limiar de queimaduras, dependendo da concentração da corrente. 6000 (6A) Parada respiratória e cardíaca durante o choque. Frequentemente o batimento cardíaco e a respiração retornam após o choque. Correntes dessa ordem são usadas em defibriladores. Obs: Os valores da tabela referem-se a choques em homens com C.A de 60Hz e 1 segundo de duração. Para mulheres, os valores estão entre 60 e 80% dos valores listados para homens. Corrente (mA) 1 5 10-20 Sensibilidade a micro-choque. Algumas pessoas portadores, permanente ou temporariamente, de eletrodos, sondas, próteses, etc podem ficar sensíveis a correntes muito menores do que as apresentadas na tabela acima. Se alguém toca os eletrodos de um paciente com marca-passos, pode ocasionar uma corrente de A para a qual não somos sensíveis mas que pode ser fatal para o paciente (os eletrodos de um marca-passos ficam sob a pele do portador). Cateteres também podem tornar uma pessoa sensível a microchoques. Para a defesa contra choques, aparelhos elétricos e eletrônicos devem ser aterrados (e não enterrados!). Todo laboratório deve ter pontos de aterramento. Os chuveiros elétricos deveriam ser aterrados, mas raras são as casas que possuem pontos de aterramento além do obrigatório. Aplic. 1: Uma pessoa toca um fio fase de 120V. Calcule a corrente que atravessa a pessoa se ela: (a) está sobre um tapete de borracha para banheiro. Neste caso a resistência entre a pessoa e a terra é de 200k. (b) Está descalça no chão molhado, com uma resistência total à terra de 4k R(a) 0,6 mA; (b) 30mA Aplic. 2: Uma corrente de 20A aplicada diretamente sobre o coração de uma pessoa pode causar fibrilação ventricular. Se a resistência do coração é 300, qual a menor tensão que constitui um perigo num coração exposto (numa cirurgia, por exemplo). Paciente e médicos devem estar “aterrados” ou isolados da terra? R: 6mV Aplic. 3: Um médico, eletricamente isolado, toca nos eletrodos do marca-passos de um paciente encostado numa torneira aterrada. Com a outra mão, o médico toca um equipamento mal aterrado que está com um potencial de 120V. A resistência entre as duas mãos do médico é 100k e a do paciente à terra 1kCalcule a corrente através do médico e do paciente. R: 0,1 A 138 F-107 Capítulo VII Mauro M.G.de Carvalho Bioeletricidade Moles/m3 Fig. 1: A membrana celular K+ 160 Na+ 120 80 40 Na+ K+ Cl _ 40 A_ 80 120 A Dentro da célula Cl _ _ 160 Fora da célula Fig. 2: Concentração de íons de K, Na e Cl dentro e fora de uma célula. A _ é a soma de todos os outros íons negativos. 139 F-107 Capítulo VII Cl _ Mauro M.G.de Carvalho K+ Cl _ Na+ Na+ Força de difusão no K+ Força de difusão no Cl _ Campo elétrico na membrana K+ K+ Cl _ Fig. 3: O K+ difunde-se de dentro para fora da célula criando um excesso de cargas positivas na parte externa da membrana celular. O Cl_ , ao contrário, difunde-se de fora para dentro criando um excesso de cargas negativas pa parte interna da membrana. A atração/ repulsão elétrica impede que essa difusão continue. Existe um campo elétrico na membrana celular (Fig.1). A existência desse campo se explica como se segue. Devido às diferenças de concentração entre o meio intercelular e o interior da célula (Fig.2), íons de Cl _ e Na+ tendem passar do lado de fora para o lado de dentro da célula. Pela mesma razão, íons de K+ tendem passar de dentro para fora da célula. Essa difusão de íons depende, além da diferença de concentração, da permeabilidade da membrana celular. A permeabilidade da membrana para o Na+ é cerca de 100 vezes menor do que para o cloro e potássio. Menor ainda é a permeabilidade para todos os ouros íons. Por isso vamos considerar somente as difusões de cloro e potássio (Fig.3). A difusão de Cl_ para o interior da célula e K+ para o exterior se processaria até que as concentrações dentro e fora fossem iguais. Porém, como antes da difusão a célula e o meio intercelular são neutros, a difusão de íons de um lado e de outro quebra essa neutralidade, tornando o interior negativo e o exterior positivo. Sendo esses íons de sinais contrários, eles se atraem eletricamente e ficam nas paredes interna (íons negativos) e externa (íons positivos) da membrana celular criando um campo elétrico no seu interior. É esse campo que impede, a partir de um certo ponto, que essa difusão continue. A explicação é simples. Considere, por exemplo, um íon de potássio. Para passar para o lado externo da célula ele vai encontrar um campo elétrico (dentro da membrana) contrário a esse movimento. Se a força de difusão é maior do que a força elétrica, ele passará pela membrana e aumentará a carga positiva na sua parede externa. Consulte seus alfarrábios e verifique que aumentando a carga na parede da membrana, aumenta o campo elétrico no seu interior e, consequentemente, a força contrária à passagem de outro íon de potássio. Quando a força elétrica se iguala à de difusão, cessa o movimento de íons através da membrana celular e temos a situação de equilíbrio. Isso ocorre para uma diferença de potencial da ordem de 70-90mV e com a participação de 1 para cada 100000 íons de potássio e cloro.. Embora 90mV pareça pouco, dada a espessura da membrana (~8nm), gera um campo de cerca de 11MV/m o seu interior! Campos dessa ordem dificilmente deixam de ter efeitos interno na membrana. Embora não completamente conhecidos, sabe-se que a simples inversão da polaridade na membrana causa um aumento de 1000 vezes na sua permeabilidade para o sódio. O potencial externo de uma membrana é maior que o interno. Em geral toma-se como zero o potencial externo e negativo o potencial interno. O Neurônio O neurônio é um transmissor de bioeletricidade. Quando estimulado, o neurônio envia um sinal bioelétrico através de um potencial reverso numa pequena região de sua membrana. Este sinal é chamado de despolarização e a volta à situação de equilíbrio de repolarização O neurônio possui uma longa cauda (pode chegar a 1m de comprimento), denominada axônio, que leva sinais do corpo celular para músculos, glândulas ou outros neurônios. Os dendritos são prolongamentos delgados e ramificados que recebem estímulos e os tramitem ao corpo celular. Muitos são os possíveis estímulos para os neurônios: temperatura, pressão, corrente elétrica e estímulo químico enviado através da junção entre dois neurônios (sinapse). Um estímulo faz a permeabilidade do Na+ aumentar muito (~1000 vezes, ficando cerca de 10 vezes maior do que a do K+). A difusão de sódio no interior da célula faz com que ela se torne positiva em relação ao exterior, passando de - 90mV para +40mV. Essa despolarização altera a estrutura da membrana e faz a voltar ao normal a permeabilidade para o Na+ e aumenta a do K+ cerca de 30 vezes (Fig.5). Isto faz cessar o fluxo de Na+ e voltar á situação de equilíbrio, 140 F-107 Capítulo VII Mauro M.G.de Carvalho embora com um pequeno excesso de Na+ e falta de K+ no interior da célula que é lentamente eliminado1. A causa das mudanças na permeabilidade das membranas celulares ainda não é bem conhecida. Para outro neurônio Sinapse Dendritos Núcleo Axônio 1 mm 10-3 mm Bainha Mielínica Nós de Ranvier Terminações Nervosas Terminações Nervosas Fibra Muscular Fig. 4: O neurônio O pulso criado com a despolarização, denominado potencial de ação é que é transmitido pela membrana celular. A despolarização numa região é um estímulo suficiente para criar despolarização nas regiões adjacentes fazendo o pulso propagar-se (Fig.6). 1 A eliminação do Na+ contra a concentração e o campo elétrico e a volta do K+ contra a concentração se faz por um processo denominado bomba de sódio-potássio. O metabolismo da célula é o responsável por esse transporte. 141 F-107 Capítulo VII Mauro M.G.de Carvalho Fig. 5: Na despolarização a permeabilidade para o Na+ aumenta mas logo em seguida a do K+ também aumenta 142 F-107 Capítulo VII Mauro M.G.de Carvalho Fig. 6: A despolarização numa região causa a despolarização nas regiões adjacentes fazendo o potencial de ação propagar-se Bainha mielínica: Alguns neurônios têm o axônio coberto por uma capa de mielina. A mielina é um mau condutor e e tem algumas funções muito importantes. A primeira é que isola o axônio do contato com outros axônios impedindo interferências espúrias. O segundo é que aumenta muito a velocidade do potencial de ação (podendo ser de 0,5m/s em alguns axônios sem mielina até 130m/s em axônios com mielina) Finalmente, a mielina economiza energia na medida em que somente uma muito pequena porção do axônio terá que usar a bomba sódio potássio. 143 F-107 Capítulo VII Mauro M.G.de Carvalho Despolarizando Respolarizand0 Pulso de tensão- estimula a despolarização Ainda Polarizado Na+ bainha Mielínica Fig. 7: A Bainha mielínica envolve o axônio e ajuda a propagar o potencial de ação O aumento da velocidade do potencial de ação se dá pela seguinte razão. Quando o pulso chega à mielina, como o axônio está isolado do meio e intercelular, cessa a despolarização. Mas o pulso não desaparece. ele passa a se propagar na mielina através do campo elétrico. Essa propagação de potencial é muito rápida, mas ao mesmo tempo dissipa energia devido à resistência elétrica da mielina. O potencial cai de V = RI ao longo do percurso e se tornaria praticamente nulo se a bainha mielínica fosse contínua. Mas não é. Ela é interrompida a cada milímetro aproximadamente onde o potencial de ação ainda é suficiente para despolarizar a parede do axônio exposta e recuperar o potencial. Logo em seguida (a interrupção tem cerca de 10-3 mm), o pulso encontra nova bainha mielínica e continua o processo até o fim do axônio. As interrupções da bainha mielínica são chamadas nós de Ranvier. Todo o entendimento do que foi anteriormente explicado é conseqüência de medidas diretas e individuais nas células nervosas. Por exemplo, para se obter a diferença de potencial entre o e interior e o exterior da célula, introduz-se agulhas muito finas nas células individualmente, tomando a precaução para que estas pontas de prova não influenciem no comportamento da célula. Muitas informações são obtidas monitorando-se como os estímulos são conduzidos ao cérebro. Através desses estudos verificou-se que existem nervos sensíveis ao toque e outros sensíveis às variações de temperatura. O que dispara o potencial de ação de um nervo também varia muito. Existem nervos que disparam a cada estímulo, outros que só disparam no inicio e no fim do estímulo, etc. Esses comportamentos deverão ser estudados em outras cadeiras do curso de biologia. 144 F-107 Capítulo VII Mauro M.G.de Carvalho Exercícios 1) A difusão de íons de um lado para outro da membrana celular e a ddp criada entre os dois lados da membrana faz parte de um balanço energético. A equação de Nernst leva em consideração esse balanço e dá a ddp entre os dois lados da membrana: ΔV Vd Vf 2,30 k BT Ze log Cd onde kB =1,4 x 10-23 J/K é a constante de Cf Boltzmann Z é o número valência do íon , C a concentração de íons, os índices d e f referem-se a dentro e fora da célula e T a temperatura absoluta (em K). Use as seguintes concentrações aproximadas de íons dentro e fora de um neurônio: Ion K+ Na+ Cl- Cd (moles/m3) 140 15 9 Cf (moles/m3) 5 140 125 Determinar V a 37oC, como se a membrana celular fosse permeável somente ao íon : (a) Na+ (b) K+ (c) Cl_ Discuta porque esses cálculos mostram que a membrana não é muito permeável ao sódio R: (a) 60mV (b) - 90mV (c) - 71mV 2) Um marca-passo aplica 72 pulsos estimuladores retangulares por minuto ao coração. O tempo de cada pulso é 0,5ms e a tensão 5V. Os pulsos são aplicados à parede cardíaca cuja resistência entre os dois pontos de aplicação é 600 a) Qual a potência de cada pulso? R: 41,7 mW b) Qual a energia de cada pulso? R: 20,8 mJ c) Qual a potência média do marca-passo? R: 25mW 145