A arte, em Nietzsche, como crítica à filosofia

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A ARTE, EM NIETZSCHE,
COMO CRÍTICA À
FILOSOFIA
Mayana de Azevedo Dantas. Graduada em Filosofia pela UECE
[email protected]
Resumo: Este estudo parte da obra de Nietzsche O Nascimento da Tragédia, na perspectiva de
analisar sua reflexão sobre a arte e entender por que esta em Nietzsche é uma crítica à filosofia.
Propondo uma concepção de arte para além da estética moderna que define a beleza como único
fundamento, aponta os símbolos do apolíneo e do dionisíaco como as fontes originárias da arte,
vista agora como a transfiguração da crueldade na beleza. Iluminado pelas filosofias schopenhaueriana, pré-platônica, kantiana e pelo wagnerianismo, Nietzsche constrói uma crítica a Sócrates como instituidor do racionalismo que inicia um período de decadência da cultura. Partindo
da revisão bibliográfica da obra citada, a metodologia deste estudo incluiu filmes, músicas, pinturas, obras literárias e o estudo de autores que comentam a obra do filósofo. Buscamos, então, um
espaço de reflexão filosófica sobre a arte que possa incentivar o espírito de liberdade em ambos os
campos
Palavras-chave: Nietzsche, Arte, Filosofia.
Abstract: This study concerns the work of Nietzsche The Birth of Tragedy, in the perspective of
analyzing his thoughts on art and understand why, in Nietzsche, it is a criticism to philosophy.
Proposing a concept of art beyond the modern esthetics which defines beauty as only foundation,
points out the symbols of the apollonian and the dionysian as the originary sources of art seen now
as the transfiguration of cruelty in beauty. Under the light of the Schopenhauer, Pre-Socratic and
Kant philosophies and also Wagnerianism, Nietzsche builds a criticism to Socrates as the one who
institutionalized rationalism that begins a period of cultural decadence. Beginning with the bibliographical review of the cited work, the methodology of this study included films, musics, paintings, literary works and the study of authors who made comments on the work of the philosopher.
We aimed for a space of philosophical reflection on the art which can foster the spirit of freedom in
both fields.
Keywords: Nietzsche, Art, Philosophy.
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A arte, em Nietzsche, como crítica à filosofia , pp. 84 - 96.
E
ste estudo traz como argumento principal a proposição de Nietzsche de que a arte
surge como uma necessidade à ciência. Ou seja, a ciência necessita ultrapassar
os limites da razão e transfigurar-se em forma de arte. Para realização desta
pesquisa, temos, como fontes primárias, a leitura e análise da obra O Nascimento
da Tragédia. Como fontes secundárias, recorremos a alguns autores cujas obras
literárias influenciaram o autor, a exemplo de Goethe e dos poetas trágicos, assim como a obras
artísticas citadas em seus escritos, ou influenciados por estes, tais como músicas, filmes, pinturas,
entre outras. Buscamos tecer conexões entre a obra do autor e autores que tentam construir o diálogo
entre arte e filosofia para proceder a uma leitura crítica do pensamento nietzscheano.
A Alemanha da época de Friedrich Nietzsche (1844-1900) vivia uma nostalgia da Grécia e uma
cultura que era influenciada por ela. Em sua obra juvenil O Nascimento da Tragédia (1872), o filósofo
desafia a concepção tradicionalmente construída acerca dos gregos que ele chama de “pretensa
serenojovialidade”. Argumentando que seria impossível surgir de tal povo a arte trágica, Nietzsche
identifica uma fase onde os gregos foram pessimistas e que tem a tragédia como a maior expressão
deste sentimento e de sua superação. Justifica a existência enquanto fenômeno estético, através da
tragédia, e, dessa forma, qualifica a arte como a atividade propriamente metafísica do homem. Neste
sentido, a obra supracitada traz não apenas uma interpretação da tragédia, mas da própria cultura
grega e do nexo entre arte e filosofia.
No final do século XIX, toda Europa estava em conflito, abalada pelas revoluções burguesas
através das quais o povo, saturado pelas mortes em consequência da fome, reivindicara seus direitos de
“Igualdade, Fraternidade e Liberdade”. Em meio a esse clima bélico, estava o Romantismo, movimento
que dava primazia à experiência mística em detrimento da razão agitando artistas, pensadores e políticos
daquele tempo. A Alemanha – ainda dividida – buscava unificar-se, militarizando-se, colocando o uso
das armas como forma de negociação política e seguindo os ideais da Revolução Industrial. Vivendo
em meio a tal falta de ética, Nietzsche propõe em contraposição a partir de categorias pré-românticas
uma estética da existência1.
A busca da independência da Alemanha com relação a outros países da Europa também já havia
começado com a figura de Martinho Lutero que Nietzsche coloca junto aos grandes artistas e poetas
alemães. Lutero foi o grande formulador da língua alemã ao traduzir a Bíblia para este idioma direto
do latim. Como filólogo, Nietzsche acreditava que o bom exercício desta função está no fato de ler
bem. Sentindo a necessidade de uma nova abordagem da cultura, afirma que esta surgiria pelo estudo
das línguas clássicas, fazendo ressurgir, assim, a beleza dos antigos e o resgate da sua concepção de
SILVA JR, José Ivo. Da Inocência do Devir à Grande Política. 2008. Trabalho apresentado ao Simpósio Internacional
de Filosofia Nietzsche Deleuze, 9., Fortaleza, 2008.
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cultura. O filólogo teria, então, que ter alma de artista2.
A filologia é um ponto de partida comum em suas obras, era conhecedor das línguas clássicas
além de ter sido reconhecido inicialmente como escritor e só posteriormente como pensador. Em sua
obra juvenil, segundo Jorge Larrosa, na obra Pedagogia Profana, ele chega a fazer uma espécie de
genealogia da literatura3. A filologia também o auxilia na desmistificação de alguns temas relacionados
à cultura moderna, propondo a procura dos sentidos originários das palavras nos contextos históricos
ao invés de buscá-los em princípios metafísicos. Porém, apesar de a sua análise da tragédia ática em
O Nascimento da Tragédia abordar textos antigos e a mitologia grega, acaba lançando mão de muitas
ferramentas críticas próprias da filologia, como notas etimológicas ou menções a comentadores; além
de colocar, como pressuposto às hipóteses sobre os gregos, a metafísica schopenhaueriana4.
É com O Nascimento da Tragédia que Nietzsche, tomando como ponto de partida a estética
dos gregos, inicia sua crítica à filosofia racionalista. O pensador reconhece a dialética como um
cientificismo levado ao extremo que se baseia num otimismo teórico e só respira aliviando-se na
clareza e na consciência. Dedicando o prefácio a Wagner, declara que os assuntos contidos no texto
surgiram de uma conversa imaginária com o mesmo. O pensador questiona a metafísica construindo
um diálogo filosófico e estético com o músico. A filosofia tradicionalmente vista como algo sério é
invadida pela alegria artística.
A profunda relação com a arte e com artistas vai influenciar decisivamente a construção de sua
obra. Essa influência é expressa na utilização de categorias não filosóficas como a transformação
dos símbolos apolíneo e dionisíaco em conceitos estéticos5. A partir de elementos e figuras musicais
(Palestrina, Beethoven, Wagner e Bizet), das artes plásticas (Albrecth Dürer e Rafael) e mesmo da
literatura (como Shakespeare, Goethe e Lessing) problematiza acerca da racionalidade, do coletivo,
da crise da cultura moderna entre outros.
Em suas obras, o pensador não compreende o conceito como absoluto. Para ele, os conceitos
se mostraram menos essenciais ao se pensar produções teóricas a partir da vida. Conforme J Weber,
Nietzsche recorre “ao símbolo como uma forma de linguagem que, sendo mais afim às questões da
arte – o símbolo é intrínseco à própria obra de arte e ao fazer artístico – torna-se por isso mesmo, mais
MARTON, Scarlett. Da história da filosofia à filosofia: o devir criança do pensamento. Trabalho apresentado ao
Simpósio Internacional de Filosofia Nietzsche Deleuze, 9., Fortaleza, 2008.
3
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Trad. A. Veiga Neto - 4° Ed - Belo Horizonte:
autêntica, 2004, 207 p.
4
VIEIRA, V. M. Entre a razão e a sensibilidade: a estética pós-kantiana e o problema da cisão entre o sensível e
o supra-sensível. 2009. 222 f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2009. p. 83.
5
GIACOIA Junior, Oswaldo. Nietzsche. Publifolha, Brasil - São Paulo, 2000, p. 11.
2
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significativo que o conceito”.6 Neste âmbito, parte para uma crítica ao idealismo alemão, por haver
abstraído a existência humana em toda a sua amplitude e utiliza a “intuição psicológica” tanto para
decifrar os enigmas levantados sobre o povo grego quanto para “profetizar” sobre as consequências
da cultura moderna.
Nietzsche já anuncia em sua primeira obra, como a grandiosidade de sua tarefa, diferenciarse dos que já haviam pensado o trágico, como Schiller e Goethe, ou seja, olhar os gregos sob uma
perspectiva nova, “não tocada até agora por todos os esforços da cultura – sob os sonidos ressuscitados
da música trágica [...]”.7 A originalidade de Nietzsche surge, então, com uma de suas paixões: a
música. Ele estava encantado pela pulsão dionisíaca de Wagner, principalmente, em Tristão e Isolda
mesmo sendo crítico dessa nova cultura moderna, a ópera8. Sendo incapaz de devoção, o cantor de
ópera, diferente do artista dionisíaco, canta apenas para o seu próprio egoísmo. A ópera seria, então,
uma obra inartística e inestética, segundo Nietzsche: ”fruto do homem teórico [...]. Entender acima
de tudo a palavra foi uma exigência dos ouvintes propriamente amusicais [...] as palavras são tão mais
nobres do que o acompanhante sistema harmônico quanto a alma é mais nobre do que o corpo.”9
Além de Wagner, Nietzsche foi influenciado pela filosofia pessimista da vontade de Schopenhauer.
A concepção de música schopenhaueriana expressa-a como a arte da linguagem universal e, através
dela, temos um contato direto com a vontade cega que faz tudo continuar existindo. Este filósofo,
atribuído muitas vezes ao ateísmo, adveio do Romantismo, um movimento que surgiu com as
premissas de outro: o Sturm und Drang (tempestade e ímpeto). Este procurava na experiência mística
e da fé a superação dos limites da razão que o iluminismo já havia reconhecido10. Quando a própria
razão ganha essa característica de força onipotente, constituinte da substância do mundo, é que nasce
o Romantismo. Os filósofos da escola romântica interpretavam o infinito como sentimento. A arte,
então, apresenta-se, mais que a filosofia, como espaço privilegiado de expressá-lo 11.
A obra literária mais expressiva do Romantismo é Fausto de Goethe. Uma espécie de lenda
germânica e o símbolo de uma humanidade que errou ao tentar conseguir realizar desesperadamente
os seus ideais. Para o nosso estudo, é importante saber que a concepção goethiana de homem será
WEBER, José Fernandes. A teoria nietzscheana da tragédia. Trans/Form/Ação, São Paulo, vol.30, no.1, 2007,
p.205-223. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/trans/v30n1/v30n1a13.pdf. Acesso em: 20 maio 2008
7
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia - Trad. J. Guinsburg. Brasil, São Paulo: companhia
das letras, 1992, p. 122.
8
MIRANDA, Dilmar; BRICHE, Gérard. Desafios da Arte Contemporânea. 2008. Trabalho apresentado ao
Seminário Fetichismo e Emancipação, Fortaleza, 2008.
9
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia - Trad. J. Guinsburg. Brasil, São Paulo: companhia
das letras, 1992, p. 114-115.
10
Vide:ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1° edição brasileira coordenada e revista por Alfredo
Bosi. Revisão da tradução e tradução de novos textos Ivone Castilho Benedetti – 4° ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Verb. Sturm und Drang, p. 921.
11
Vide: Idem, 2000. Verb. Romantismo, p. 860.
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a base para a formação do símbolo de Dioniso, segundo Nietzsche: “Um homem [...] forte para a
liberdade e sem medo de gozar plenamente a sua natureza. [...] com a fé de que nada é mais condenável
que o isolamento, e é no conjunto que ele se resolve e se afirma [...].”12
Assim como Goethe, Wagner foi um artista que valorizou a cultura popular alemã. Profundo
conhecedor das mitologias germânicas transformava-as em dramas musicais, o que acabou
contribuindo para sustentar o nacionalismo exacerbado de que os monarcas necessitavam; seu exílio
provocado, outrora, por opiniões políticas radicais - compartilhava das ideias do pensador anarquista
Bakunin, foi um exemplo de sua luta por uma maior liberdade dos artistas com relação aos reis
e príncipes que dominavam a Europa13. Unindo a isso, sua ousadia em construir uma obra de arte
total - um conjunto de música, teatro e poesia -, Nietzsche o enxergou como um mestre e semelhante,
uma espécie de salvação para a decadente civilização e cultura modernas. Nietzsche expressará
sua insatisfação com muitos dos pensadores e artistas que o influenciaram. Com relação a Wagner,
posteriormente, apontou Bizet e sua ópera Carmen como os antípodas da obra wagneriana e lamentou
não ser mais a flauta de Dioniso a soar na música do renomado compositor alemão.
Heidegger considera que a evolução do pensamento nietzscheano representa o fim da metafísica.
Nietzsche argumenta que as funções da linguagem já não abarcam as entidades substanciais14. Por
isso, Schopenhauer passa a ter, para o autor, um aroma fúnebre como dirá em sua autocrítica a O
Nascimento da Tragédia. Deleuze afirma que nesta obra o filósofo alemão é “semi-dialético, semischopenhaueriano”15. Negando Schopenhauer, o filósofo aqui estudado substitui o conceito de
vontade pelo de vontade de potência.
Nietzsche desenvolveu seu pensamento de forma assistemática e sob a influência de filósofos
como os pré-platônicos16, criando a partir daí as suas próprias estratégias. Apesar de estruturar suas
obras posteriores em forma de aforismos, em O Nascimento da Tragédia, ainda construída de forma
dissertativa, o filósofo já mostrava características que iriam perdurar por toda sua produção como
a retórica, a metáfora e a musicalidade da língua alemã, propondo uma construção filosófica cujo
principal objetivo era demolir os valores instituídos como absolutos, em especial a moral e a religião.
MEIRA, Silva. Introdução. In: GOETHE, J. W. Fausto - Trad. Sílvio Meira. São Paulo, SP: Abril, 1976. p. 3.
NEUMAN, Sam; STRAUS, E. Charles; HEISLER, Stuart. Wagner. Áustria, Hungria e Inglaterrra: Classicline,
1983. 4 DVD.
14
ARRUDA, José Maria. Nietzsche e a Ontologia Desmoralizada: a inocência do Devir. Trabalho apresentado ao
Simpósio Internacional de Filosofia Nietzsche Deleuze, 9., Fortaleza, 2008.
15
Termo usado por Deleuze para explicar que Nietzsche é influenciado por Schopenhauer e pela dialética, mas que
ele vai além destas concepções. Quanto ao primeiro pelo “caráter afirmador de Dionísio, afirmação da vida em lugar de
sua solução superior ou de sua justificação”. Já com relação ao segundo, explica que “não é a oposição bem dialética entre
Dionísio e Apolo e sim a oposição mais profunda entre Dionísio e Sócrates”. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia.
Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Brasil, Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 11.
16
Termo usado por Nietzsche para se referir aos filósofos anteriores a Sócrates. LOPES, Rogério Antônio.
Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche. 2008, 573 f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, 2008, p. 230. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.
ufmg.br/dspace/bitstream/1843/ARBZ-7JJJLV/1/tesedefinitva.pdf. Acesso em: 01 outubro 2012.
12
13
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É notável a presença da ironia nos textos de Nietzsche. Esta que foi uma das principais
características do Romantismo trazida à luz, na filosofia, por Sócrates, acabou recebendo outra
conotação dos românticos. A ironia nietzscheana é fortemente influenciada pelo tom sombrio
schopenhaueriano e por poetas trágicos como Arquíloco17, aproximando-se mais da ironia romântica.
Enquanto a ironia socrática é o modo como Sócrates se subestimava em relação aos adversários, a
outra:
[...] baseia-se no pressuposto da atividade criadora do Eu absoluto. Identificando-se
com o Eu absoluto, o filósofo ou o poeta (que com muita freqüência coincidem, para
os românticos) é levado a considerar a realidade mais concreta como uma sombra ou
um jogo do Eu, a subestimar a importância da realidade, não tomá-la a sério 18.
A filosofia nietzscheana propõe um pensar leve, dançante onde a arte tem papel fundamental
e, enaltecendo a sua importância, questiona o fato de a razão ter sido apontada e consolidada como
única detentora do saber, sugerindo, como pressuposto para a construção de uma cultura sólida, a
necessidade de algo que se perdeu ao longo da história, o mito. Segundo Nietzsche: “Sem o mito,
porém, toda cultura perde sua força natural sadia e criadora, só um horizonte cercado de mitos encerra
em unidade todo um movimento cultural [...].”19
Dioniso é uma divindade que tem origem no matriarcado, ligado à terra e à natureza. Os cultos a
Dioniso serão posteriormente proibidos pelo patriarcado, sistema que fez dos camponeses e daqueles
ligados à agricultura uma classe social subalterna. Ao criar o Olimpo com suas divindades entre as
quais Apolo, o patriarcado referencia os valores da cultura helênica de guerreiros e heróis oprimindo
brutalmente as celebrações a Dioniso e, consequentemente, os camponeses e as mulheres presentes
em grande número nestes rituais por ligarem-se mais intimamente ao universo dos instintos do que à
dimensão racional.
Nietzsche traz uma nova interpretação da época apolínea grega daquela que seus opositores
reconheciam como a de seu maior triunfo. Apresentando-a como uma época em que a aparência e
o comedimento represavam artificialmente a dor e o sofrimento próprios do elemento dionisíaco, o
pensador traz no surgimento da tragédia ática, a partir da necessidade de junção dos dois impulsos
artísticos da natureza supracitados, a superação do período apolíneo que, outrora, havia abatido os
Poeta do século VII a.C., filho de uma escrava. Conta-se que negado por Licambes pai de Neobule a se casar com a
moça teria feito versos que de tão satíricos resultaram no suicídio dos dois. Ver Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg
apud NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia - São Paulo: companhia das letras, 1992, p. 148.
18
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1° edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi.
revisão da tradução e tradução de novos textos Ivone Castilho Benedetti – 4° ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2000. Verbete
Ironia, p. 585.
19
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia - Trad. J. Guinsburg. Brasil, São Paulo: companhia
das letras 1992, p. 135.
17
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heróis titânicos e bárbaros20.
Schopenhauer formulou um termo denominado principium individuationis que significa
“o poder de singularizar e multiplicar, através do espaço e do tempo, o Uno essencial e indiviso”.21
Nietzsche adere ao termo para atribuí-lo a Apolo. As artes apolíneas, para ele, são a plástica e grande
parte da poesia, pois as duas advêm da “bela aparência do mundo do sonho”22.
A arte dionisíaca é amoral. A perda da individualidade significa esquecer todas as leis da cidade,
“o escravo é homem livre, agora se rompem todas as rígidas e hostis delimitações que a necessidade,
a arbitrariedade ou a ‘moda impudente’ estabeleceram entre os homens”.23 A sanidade é apagada pela
chama dionisíaca. Mas os próprios deuses olímpicos eram destituídos de ética considerando que, com
relação a eles, “tudo o que se faz presente é divinizado, não importando que seja bom ou mau”.24
Nietzsche aponta uma sabedoria dionisíaca que seria a verdade crua e forte, sem adornos e que
nada tem de otimista, de puramente bela ou de cômoda e nisto se assemelha bastante a Schopenhauer.
A sabedoria de Sileno que responde ao insistente rei Midas que o melhor para o homem é nada ser e
logo após morrer. Esta que é uma sabedoria popular e não sistematizada ou racionalista, faz com que o
povo grego crie, então, os deuses olímpicos, a partir do conhecimento e sentimento dos “[...] temores
e horrores do existir [...]”25
O Romantismo e a primazia dada ao sentimento irromperam pelas limitações da razão
apontadas pelo Iluminismo – principalmente, através de Kant. Nietzsche, crítico de Sócrates por
ter exaltado a luz racional e aniquilado o mito, não estende, então, a sua ironia severa às filosofias
kantiana e schopenhaueriana, pois os assemelha ao pensamento pré-platônico de Heráclito e à
sabedoria dionisíaca, vendo-os como a possibilidade de destruição do “[...] satisfeito prazer de existir
do socratismo científico, pela demonstração de seus limites, e como através dessa demonstração se
introduziu um modo infinitamente mais profundo e sério de considerar as questões éticas e a arte”.26
A filosofia da Vontade de Schopenhauer se apresenta, para Nietzsche, como este saber temerário,
cruel, que rasga o véu de Maia, o véu das ilusões que são asseguradas através do prazer despertado
pelas imagens apolíneas. Romântico, o pessimista alemão concorda com o seu movimento de origem
Ver: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia - Trad. J. Guinsburg. Brasil, São Paulo:
companhia das letras, 1992, p. 41.
21
Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg apud NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia São Paulo: companhia das letras, 1992, p. 146.
22
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia - Trad. J. Guinsburg. Brasil, São Paulo: companhia
das letras, 1992, p. 28.
23
Idem, 1992, p. 31.
24
Ibidem, 1992, p. 36.
25
Ibidem, 1992, p. 36 – 37.
26
Ibidem, 1992, p. 119.
20
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quando diz que tudo vem a existir por uma vontade, sendo este, não um termo racional, mas com a
característica mais profunda de irracionalidade.
Quem melhor que Dioniso para representar tal Vontade? Nietzsche, a partir da compreensão
schopenhaueriana de música, atribui a raiz desta à divindade caracterizada pela perda de si. Não
havendo, entre a música e a Vontade, o intermédio existente entre a racionalidade e a vontade,
“podemos considerar o mundo fenomenal, ou a natureza, e a música, como duas expressões diversas
da mesma coisa”. 27 Criticando tanto as religiões quanto a arte musical de sua época por terem perdido
o seu valor mítico, mostra como a música dionisíaca, intuitiva, é a mais expressiva ligação do homem
com a verdade, ou seja, como “A música verdadeiramente dionisíaca se nos apresenta como um tal
espelho geral da vontade do mundo”.28
Nietzsche busca avaliar a arte grega a partir das categorias apresentadas pelo pensador
romântico. Denomina a tragédia como arte do pessimismo e percebe nela, através do coro ditirâmbico
- expressão do verdadeiramente existente [Wahrhaft-Seiende] - o caráter de consolo metafísico para
o horror da vida, fazendo uma espécie de adaptação da concepção de Vontade schopenhaueriana à de
Uno–primordial, de sua autoria:
[...] o efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o Estado e a sociedade,
sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a um superpotente sentimento
de unidade que reconduz ao coração da natureza. O consolo metafísico [...] aparece
com nitidez corpórea como coro satírico, como coro de seres naturais, que vivem, por
assim dizer indestrutíveis, por trás de toda civilização [...].29
Nietzsche, enfocando o problema da arte trágica como base para questionar toda a cultura da
racionalidade socrática, coloca em oposição duas concepções de mundo: a trágica e a teórica. Sófocles,
Ésquilo, o mito e a música, presentes na primeira se opõem a Sócrates, Eurípedes e o cientificismo,
presentes na segunda. Faz uma análise das obras de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, demonstrando
que características são valorizadas por cada um deles desde as diferenças no representar dos atores à
construção das estruturas dramáticas. O último dos três trágicos citados é entendido, aqui, muito mais
como um pensador do que por um poeta e é apontado como aniquilador da tragédia por ter seguido
as premissas do socratismo estético que nega o espírito dionisíaco. Eurípedes, considerado por alguns
autores como revolucionário, substitui o consolo metafísico pelo deus ex-machina “[...] que acredita
em uma correção do mundo pelo saber, em uma vida guiada pela ciência; e que é efetivamente capaz de
desterrar o ser humano individual em um círculo estreitíssimo de tarefas solucionáveis.”30
SCHOPENHAUER, O Mundo como Vontade e como Representação, Livro I, apud NIETZSCHE, F. W. O
Nascimento da Tragédia, p. 98.
28
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia - Trad. J. Guinsburg. Brasil, São Paulo: companhia
das letras, 1992, p. 105.
29
Idem, 1992, p. 55.
30
Ibidem, 1992, p. 108.
27
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No meio filosófico da época em que Nietzsche escrevia O Nascimento da Tragédia, a sabedoria
possível era a estritamente racional. Ao negar Dioniso, Sócrates e com ele Eurípedes, destroem a época
trágica. Porém eles não conseguem sobreviver apenas com o apolíneo e os dois, no final de suas vidas,
reverenciam o deus da dança. Eurípedes escreve As Bacantes, o mais expressivo relato que temos
acesso ainda hoje sobre os cultos a Dioniso e, segundo o diálogo platônico Fédon, surge aquele que
Nietzsche denomina de Sócrates musicante: “na prisão, para aliviar de todo a sua consciência, dispõese a praticar também aquela música por ele tão menosprezada.” 31
Assim como a tragédia foi o templo de deuses antagônicos e que por essa razão eram necessários
um ao outro como Apolo e Dioniso, a existência não se encerra nem pela filosofia nem pela arte. A arte
é compreendida como uma necessidade da ciência, pois atinge níveis que esta é incapaz de alcançar.
Mesmo Sócrates à espera da morte procurou seu último suspiro na arte e Nietzsche sugere que este é
mais um exemplo de que ela surge como uma necessidade a partir dos limites da ciência:
[...] será – assim devia ele perguntar-se - que o não compreensível para mim não é
também, desde logo, o incompreensível? Será que não existe um reino da sabedoria,
do qual a lógica está proscrita? Será que a arte não é até um correlativo necessário e
um complemento da ciência? 32
Nietzsche aponta uma conexão de liberdade e de complementariedade entre filosofia e arte;
uma não se subordina a outra. Percebe em Platão - proibido por Sócrates de ler tragédias e de fazer
poemas - a abertura que proporcionou a interação dessas duas formas o que se dá em seus famosos
diálogos. Mesmo criticando-o por tornar a arte uma escrava da dialética e, além disso, caracterizá-la
como simples imitação da realidade, reconhece:
O diálogo platônico foi, por assim dizer, o bote em que a velha poesia naufragante se
salvou com todos os seus filhos: apinhados em um espaço estreito e medrosamente
submissos ao timoneiro Sócrates, conduziam para dentro de um novo mundo que
jamais se saciou de contemplar a fantástica imagem daquele cortejo.33
Para Nietzsche, a relação conflituosa e reconciliadora que acontece entre os símbolos do apolíneo
e do dionisíaco também se dá na relação entre arte e ciência. A insaciável sede de saber desta ”tem
de manifestar-se hostil à arte e abominar, no íntimo, a arte trágico-dionisíaca em particular [...]”34.
Porém é esta avidez insaciável de conhecimento que, ao mesmo tempo agindo como uma espécie de
proteção ao conhecimento trágico e iluminando o que ainda é obscuro à racionalidade, transmuta-se
em resignação trágica e em necessidade de arte, originando-a:
33
34
31
32
Ibidem, 1992, p. 91.
Ibidem, 1992, p. 91.
Ibidem, 1992, p. 88.
Ibidem, 1992, p. 96.
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[...] entre o conhecimento otimista satisfeito de si mesmo e a necessidade trágica da
arte, travam-se lutas enormes nas quais temos de intervir. De seu resultado depende
que possa se dar a transmutação do conhecimento na arte e que essa transmutação
conduza a novas configurações ‘do Sócrates cultivador da música’. [...]35
A crítica que Nietzsche faz à filosofia, como já foi dito, não se estende a toda filosofia, mas àquela
que dá uma força onipotente ao seu caráter racional, caracterizada, por ele, como otimista e negadora
da arte e da vida. Esse modelo filosófico surge com Sócrates e segue até Descartes, passando pela
Idade Média. O tipo de pensamento desenvolvido por eles tem como característica uma ávida vontade
de verdade. Porém mais do que o chegar à verdade propriamente dita, é o percurso em busca da mesma
que será valorizado por Nietzsche, sob a influência de Lessing:
Não haveria ciência se ela tivesse a ver apenas com essa única deusa nua e com
nenhuma outra. [...] Por isso Lessing, o mais honrado dos homens teóricos, atreveuse a declarar que lhe importava mais a busca da verdade do que a verdade mesma:
com o que ficou descoberto o segredo fundamental da ciência, para espanto, sim,
para desgosto dos cientistas. 36
Uma visão otimista do mundo está longe de encerrar a completude da existência humana. A
filosofia assim como a arte pode ser um espaço de contemplação, de culto ao próprio sentido da vida e
abrir portas às múltiplas representações que podem ser dadas a ela. O sofrimento que é real, existente
e comum a todo ser humano pode ser aceito e a razão pode, ao invés de camuflá-lo pelo utilitarismo
científico, transfigurá-lo na forma da beleza artística, tornando-o capaz de ser sentido:
A alma [...] sabe fazer alegria com o sofrimento. Segundo Nietzsche, esse é o segredo
do teatro grego. Por isso o público voltava ao teatro para chorar com a tragédia:
era lá que morava a beleza. Como explicar o deleite estético que se tem na ópera, a
despeito do seu drama? Por que se volta à cena do sofrimento? Porque lá a tragédia
está transfigurada pela beleza. 37
Carregamos heranças da época revolucionária e demolidora em que viveu Nietzsche. Partindo do
pressuposto de que estaríamos ainda caminhando sobre muitos dos seus escombros, seria importante
também nos perguntar qual o papel da arte na cultura contemporânea que continua seguindo a lógica
do cientificismo e compreendendo a arte como entretenimento. Seria a hora de a reflexão filosófica e a
atitude própria do artista caminharem juntas nessa busca pela verdade?
Hoje, Nietzsche só é menos lido que Platão e é interessante saber que havia uma popularidade
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Trad. A. Veiga Neto - 4° Ed - Belo
Horizonte: autêntica, 2004, p. 137.
36
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Nascimento da Tragédia - Trad. J. Guinsburg. Brasil, São Paulo: companhia
das letras, 1992, p. 93.
37
ALVES, Rubem. Presente: Frases, idéias, sensações... Edvaldo P. Nascimento (Org.). Campinas, SP: papirus,
2004, p. 63.
35
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do seu pensamento tanto entre a classe operária do começo do século XX como do empresariado
alemão. Suas ideias influenciaram de forma marcante filósofos contemporâneos como Sartre,
Benjamin, Adorno, Foucault, Deleuze e Heidegger. Na arte, as contribuições de Nietzsche estão entre
o impressionismo na música, como nas obras de Stravinsky, no teatro principalmente com Brecht
e, na dança, mais recentemente, em Maurice Béjart. Na literatura brasileira, ela vai desde Monteiro
Lobato a Rubem Alves. Nietzsche, frequentemente apontado como o mais provocativo dentre os
modernos, é, então e talvez por isso:
[...] o filósofo – artista, um poeta que só acreditava numa filosofia que fosse
expressão das vivências genuínas e pessoais, vendo na experiência estética uma
espécie de êxtase e redenção, é, por isso mesmo, um precursor da crítica a um tipo
de racionalidade meramente técnica, fria e planificadora. A despeito da profundidade
e da gravidade das questões com que se ocupa, sempre as travou em estilo artístico,
poeticamente sugestivo;38
38
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche. Publifolha, Brasil - São Paulo, 2000, p. 13.
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