descartes e a interdisciplinaridade

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FORMANDO O PROFESSOR DE FILOSOFIA: DESCARTES E A
INTERDISCIPLINARIDADE
CORREIA, Wilson – CFP-UFRB
[email protected]
Eixo Temático: Formação de Professores e Profissionalização Docente
Agência Financiadora: CNPq-FAPESB-UFRB
Resumo
Por meio do presente estudo, procuramos atender a uma necessidade verificada na execução
do Projeto de Pesquisa intitulado “Docência em Filosofia no Município de Amargosa, BA:
afiliações teóricas, concepções metodológicas e práticas curriculares em ação no âmbito da
Educação Básica”. O tema e o problema motivadores deste trabalho surgiram da seguinte
forma: Descartes, importante autor da Filosofia Moderna, pode ser tomado como base para a
fundamentação de uma proposta de docência interdisciplinar em Filosofia? Diante desse tema,
Descartes e a interdisciplinaridade, a busca da metodologia mais apropriada para a resolução
do problema formulado apontou que esta seria a pesquisa bibliográfica, o que implicou
identificação e seleção de fontes escritas, leitura, colheita e organização de dados conceituais
sobre o assunto e sistematização discursiva do presente texto. A proposital escolha de autores
estrangeiros estudiosos de Descartes visou a responder à objeção de que, no Brasil, não vemos
interdisciplinaridade em Descartes pelo fato de ele não ter sido lido corretamente em nosso
país. Mas o debate evidenciou que essa percepção precisa de melhor fundamentação. Assim, a
análise da tentativa cartesiana de: fragmentar o saber, “unicizar” as ciências pela via
metodológica e de conceber um tipo de dualismo mecanicista para explicar a realidade
humana no mundo evidenciou que suas ideias parecem ultrapassar os limites metodológicos,
epistêmicos e antropológicos envolvidos na prática da pesquisa e no exercício da docência.
Dado que esses procedimentos cartesianos alcançam, no máximo, uma proposta de
padronização metodológica na epistemologia e na pedagogia, não se prestando a uma
integração pluralista das diversas ciências, a resposta ao problema encaminhou-se pela
negativa. A título de conclusão, e, aí, abandonando Descartes, aventamos a possibilidade de
se conceituar interdisciplinaridade de maneira mais menos pretensiosa, identificada com uma
possível cooperação epistêmica e com uma pedagogia participante aos níveis da pesquisa
filosófica e da docência em Filosofia.
Palavras-chaves: Docência em Filosofia. Descartes. Interdisciplinaridade.
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Introdução
Já que “A casa da saudade chama-se memória”, como poetizou Coelho Neto, e a
minha memória está cheia de Minas Gerais, inicio esta comunicação citando Carlos
Drummond de Andrade:
A porta da verdade estava aberta, / mas só deixava passar / meia pessoa de cada vez
/ Assim não era possível atingir toda a verdade, / porque a meia pessoa que entrava /
só trazia o perfil de meia verdade. / E sua segunda metade / voltava igualmente com
meio perfil. / E os meios perfis não coincidiam (“Verdade”. Carlos Drummond de
Andrade).
O tema deste trabalho surgiu do seguinte questionamento: Descartes, destacado autor
da Filosofia Moderna e que se demonstrou apegado à verdade única, pode se prestar à
fundamentação de propostas interdisciplinares de trabalho docente no âmbito da Filosofia na
Educação Básica e na universidade? Por conta dessa pergunta, motivadora deste exercício de
pensamento, o tema deste trabalho é “Descartes e a interdisciplinaridade”.
O que buscou Descartes: uma pluralidade metodológica que se prestasse ao fazer
científico ou a unicidade metodológica que, utilizada por todas as ciências, também
produzisse uma unicidade epistêmico-pedagógica no âmbito do conhecimento humano? Essa
pode ser tomada como a indagação problematizadora elementar deste estudo, para a qual o
presente trabalho buscará respostas, ainda que germinais e provisórias.
Trata-se de um estudo mais conceitual e teórico que se fez necessário ao longo da
execução do Projeto de Pesquisa intitulado “Docência em Filosofia no Município de
Amargosa, BA: afiliações teóricas, concepções metodológicas e práticas curriculares em ação
no âmbito da Educação Básica”.
Com a temática e a problema elaborados, o passo seguinte foi buscar a metodologia
mais apropriada para a resolução do problema formulado e que nos ajudasse a abordar
consequentemente o nosso tema, a qual apontou que esta seria a pesquisa bibliográfica. A
pesquisa conceitual-compreensiva implicou a identificação e seleção de fontes escritas,
leitura, colheita e organização de dados teóricos sobre o assunto, bem como a sistematização
escrita e discursiva do presente texto.
Em face da literatura especializada, que inclui obras primárias do próprio Descartes e
de seus estudiosos, privilegiamos dois autores europeus (NICOLA, 2005; GARVEY, 2009).
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A proposital escolha desses autores estrangeiros, estudiosos de Descartes, visou a responder à
objeção de que, no Brasil, não vemos interdisciplinaridade em Descartes pelo fato de ele não
ter sido lido corretamente em nosso País. Entretanto, o debate ensejado por este trabalho
evidenciou que essa percepção precisa de melhor fundamentação.
Aliás, essa proposição resultou do procedimento analítico, que levou ao estudo de três
operações epistêmico-filosóficas cartesianas, a saber: 1) a tentativa cartesiana de fragmentar o
saber; 2) o esforço cartesiano para “unicizar” as ciências pela via metodológica; e, por fim, 3)
a busca cartesiana da concepção de um tipo de dualismo mecanicista para explicar a realidade
humana no mundo, o qual parece ter ultrapassado os limites metodológicos, epistêmicos e
antropológicos envolvidos na prática da pesquisa e no exercício da docência.
Uma vez que a análise desses três procedimentos cartesianos evidenciou que o
resultado da filosofia que Descartes nos legou alcança, no máximo, uma proposta de
padronização metodológica na epistemologia e na pedagogia, não se prestando a uma
integração pluralista das diversas ciências, nem a uma cooperatividade pela raiz ao trabalho
pedagógico, a resposta ao problema apontado neste trabalho encaminhou-se pela negativa.
A título de conclusão, já abandonando Descartes, aventou-se a possibilidade de se
conceituar interdisciplinaridade de maneira mais aberta e menos pretensiosa, identificada com
uma possível cooperação epistêmica e com uma pedagogia participante aos níveis da pesquisa
filosófica e da docência em Filosofia, seja na Educação Básica seja na universidade.
Interdisciplinaridade: Onde surgiu? Como veio parar entre nós?
Parece que o debate sobre a interdisciplinaridade, tal como viemos a conhecê-lo,
intensificou-se para nós na década de 1970, mas, já na década de 1960 havia projetos de
pesquisa sob a tutela da UNESCO focando a interdisciplinaridade (MEHEU, 2002, p. 2).
Na França e na Itália, paralelamente à revolução comportamental estudantil, também
ao final da década de 1960, a interdisciplinaridade surgiu como bandeira marxista contra o
“capitalismo epistemológico” de algumas ciências, combatendo a “alienação da academia” em
face de questões da cotidianidade, contra “organizações curriculares que evidenciavam a
excessiva especialização”, enfrentando toda e qualquer “proposta de conhecimento que
incitava o olhar do aluno para uma única, restrita e limitada direção” (MEHEU, 2002, p. 4;
FAZENDA, 1995, p. 19).
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Aqui no Brasil, essas ideias européias a respeito da interdisciplinaridade ganharam
relevo com o trabalho de Hilton Japiassu (1976, 1977). Por seu turno, o exaustivo trabalho de
Ivani Fazenda também enfoca a interdisciplinaridade (FAZENDA, 1993, 1995). Por conta
disso, chegou-se, e como enfrentamento do tecnicismo pedagógico que vigorou durante o
regime militar (FERREIRA JR. & BITTAR, 2008), chegou-se a falar em “movimento pela
interdisciplinaridade” (VEIGA-NETO, 1996).
Não foi sem motivos, então, que a interdisciplinaridade se fez presente nos
documentos do marco legal das reformas educacionais que o Brasil levou a cabo na década de
1990. ela se faz presente, como concepção metodológica, epistêmica e pedagógica,
notadamente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), nos Parâmetros
Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental e Médio (PCNs) e nas diversas Diretrizes
Curriculares para os cursos em nível superior (SAVIANI, 2004).
A crítica do “movimento interdisciplinar”
Sobre o “movimento interdisciplinar”, Veiga-Neto (1996) demonstra-se visivelmente
em um misto de crítica e desencanto, sobre o qual ele indaga:
... “o que aconteceu com o movimento interdisciplinar?” - o que pode ser
desdobrado em “por que os resultados desse movimento interdisciplinar foram tão
modestos?” e “por que, de certa forma, esses resultados apareceram
deslocadamente”? (p. 106).
Esse movimento interdisciplinar brasileiro, segundo Veiga-Neto, “fora de moda”, “não
deu certo” ou foi “deslocado”, dada a “impossibilidade da consecução de um currículo inter
ou transdisciplinar” (1996, p. 110).
E não deu certo, entre outras coisas, segundo ele, porque: “o conhecimento disciplinar
não pode ser extinto por atos de vontade e por decretos epistemológicos que alterem maneiras
de pensar que estão profundamente enraizadas em nós” e porque a “disciplinaridade não é
uma doença que veio de fora para contaminar nossa maneira de pensar”. A
interdisciplinaridade é “a nossa própria maneira de pensar e engendra, ao fim e ao cabo,
nossas relações com tudo o que nos cerca” (VEIGA-NETO, 1996, p. 111).
Em segundo lugar, porque “se há mesmo alguma doença no conhecimento científico,
ela não está tanto na fragmentação cartesiana do objeto”. Essa doença “pode ser buscada mais
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na separação entre res cogitans e a res extensa, ou seja, no nosso afastamento, enquanto
pensantes, do resto do mundo” (VEIGA-NETO, 1996, p. 111).
Em terceiro lugar, porque é “impossível o estabelecimento de um campo
epistemológico único”, uma vez que as disciplinas “não se fundem, mas, no máximo,
conversam entre si”. Quando “parte delas se fundem, originando uma nova disciplina”, “as
partes que vão constituir essa nova disciplina não representam o que era cada respectiva
disciplina de onde saíram” (VEIGA-NETO, 1996, p. 111-112).
Em quinto lugar, porque “as contribuições das vertentes críticas da teorização sobre o
currículo e sobre as relações entre educação e sociedade” evidenciam: “o quanto a escola
reproduz os arranjos sociais e, ipso facto, o quanto são limitadas nossas possibilidades de
alterar diretivamente esses arranjos”. Esses estudos mostram, ainda, que “o que e como se
ensina nas escolas não são nem de todo visíveis”. Aí estão o “currículo oculto”, o “currículo
nulo” e as “pedagogias invisíveis”, entre outros, sendo que não são patentes nem mesmo “o
resultado de decisões epistemologicamente sustentadas” (VEIGA-NETO, 1996, p. 112).
Ademais, “aquilo que se ensina nas escolas não é nem o saber acadêmico, nem mesmo
uma simplificação desse saber, mas uma forma muito peculiar de conhecimento a que se
denomina saber escolar”. Aliás, esse saber, em um “complicado processo de transposição
didática, foi transformado, adaptado, recontextualizado e, às vezes, mutilado para ser depois
ensinado” (VEIGA-NETO, 1996, p. 112).
Por fim, os estudos crítico-reprodutivistas evidenciam que “a escola é um locus em
que se põem em funcionamento as bases daquilo a que FOUCAULT (1991, p. 121)
denominou razão de Estado”. Razão de Estado pode ser compreendido como “esse conjunto
de ‘princípios e métodos do governo estatal que diferiam da maneira pela qual Deus
governava o mundo”, como “o pai [governava] sua família ou um superior [governava] sua
comunidade’. Na ausência do olhar do rei, no enfraquecimento do poder pastoral, o sujeito
moderno tem de se autogovernar” (VEIGA-NETO, 1996, p. 112-113).
Após essas constatações, parece que deparamos com uma certeza fundamental: no
movimento interdisciplinar, apenas a disciplina permaneceu, forte e segura. O “movimento
disciplinar” que se iniciou na década de 1960 e que se fez presente nas reformas curriculares
dos anos 1990, à medida que manifestou o desejo de realizar uma integração dos saberes pelas
vias epistêmicas e pedagógicas, não deu conta de romper com a lógica disciplinar. E, pelo
andar da carruagem (ainda que os documentos que preconizam a interdisciplinaridade,
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emanados do marco legal das reformas educacionais dos anos 1990, estejam vigentes e
presentes em nosso cotidiano de professores de Filosofia no âmbito da educação formal)
parece que essa lógica disciplinar seguirá adiante e na mesma condição: plenamente
estabelecida e legitimada.
Por conta dessa constatação inscrita no parágrafo anterior, justificamos a realização
deste estudo, no qual pretendemos voltar a um filósofo, René Descartes. Esse filósofo pode
nos fazer pensar, desde a raiz, sobre os motivos pelos quais nos vemos às voltas com o debate
sobre como um professor de Filosofia pode fundamentar uma proposta de exercício docente
na Educação Básica. E a tentativa aqui neste estudo é a de mostrar que em Descartes parece
não ser possível realizar uma fundamentação dessa natureza.
Por que Descartes não é interdisciplinar?
Notemos a etimologia. “Disciplina” é uma palavra que vem do latim “discere”, da
qual também derivam os vocábulos “aprender” e “discipulus”, para nomear “aquele que
aprende”. Como tal, a palavra “disciplina” apresenta “um duplo sentido: tanto induz à
delimitação de um campo específico como à hierarquização e ao exercício do poder”
(GALLO, 1997, p. 117). Talvez seja por isso que é tão difícil romper com a lógica disciplinar,
esse legado cartesiano que, como vimos, ainda se faz presente entre nós.
No fundo, porém, vale o esforço para superar essa herança que, no nosso
entendimento, envenenou o Ocidente com três noções básicas, resultantes de suas obras, a
saber: 1) a fragmentação do saber; 2) a vontade de um fundamento metodológico único para o
saber científico; e 3) a dualidade, não só psicofísica, que ele produziu.
A primeira gota venenosa de Descartes ele a formulou na obra Princípios da filosofia,
onde expõe seu entendimento sobre como os conhecimentos deveriam ser organizados e em
que tempos o aprendiz deveria ter acesso a eles. Ele explica:
Explico aqui a ordem que, parece-me, devemos seguir para que nos instruamos.
Primeiramente, o homem (...) deve, antes de tudo, encarregar-se de formar uma
moral que seja suficiente para ordenar as ações da vida (...). Após isso, também deve
estudar lógica (...). E porque ela [a lógica] depende muito do uso, é bom que ele se
exercite (...) na prática de regras penitentes a questões fáceis e simples como as da
matemática. Depois (...) ele deve começar a aplicar-se à verdadeira filosofia cuja
primeira parte é a metafísica (...). A segunda é a física (...). Após o que também é
necessário examinar, em particular, a natureza das plantas, dos animais e, sobretudo,
do homem (...). Desse modo, a filosofia é como uma árvore cujas raízes são a
metafísica, o tronco a física e os ramos que daí saem todas as outras ciências, que se
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reduzem a três principais, a saber: a medicina, a mecânica e a moral; eu acho que a
mais elevada e mais perfeita moral, que pressupõe inteiro conhecimento das outras
ciências, é o último grau da sabedoria (DESCARTES, 2002, Prefácio).
Eis aí o conhecido “paradigma arbóreo” que está na base da epistemologia moderna,
do método científico de que se serve o positivismo, das concepções iluministas de ciência e
conhecimento e das práticas modernas de currículo. A sequenciação lógico-temporal não é tão
ingênua, posto que induz à hierarquização dos saberes (epistemologia), tanto quanto
fragmenta e classifica o processo de ensino e aprendizagem (pedagogia). “Para ser mais
preciso, as ciências relacionam-se todas com seu ‘tronco comum’ [a Filosofia] - pelo menos
no aspecto formal e potencialmente”. Porém, não conseguem “no contexto deste paradigma,
relacionarem-se entre si” (GALLO, 1997, p. 119).
A segunda gota do veneno cartesiano, em parelha com esse “paradigma arbóreo”, pode
ser encontrado no Discurso do método, formulada na vontade de um saber único, universal,
totalizador e totalizante, atribuindo ao método científico essa tarefa universalizante. Legisla
Descartes, em suas quatro regras para a produção do conhecimento, como se deveria proceder
nas pesquisas e nos estudos:
(1) Não aceitar nada como verdadeiro que não esteja presente à mente de modo tão
claro e distinto que não haja razão para a dúvida; (2) Fragmentar os problemas em
muitos problemas menores, tantos quanto forem possíveis; (3) Começar pelo que é
mais simples e facilmente compreendido e, com base nisso, ir construindo o
raciocínio gradativamente até assuntos mais amplos e mais complexos; (4) Revisar
toda a corrente de raciocínio para garantir que nada foi omitido (DESCARTES apud
GARVEY, 2009, p. 34).
Vejamos bem! Descartes está sustentando que, dado o ceticismo e a multiplicidade de
verdades, esse método produziria um fundamento único para a ciência, sobre o qual, aliás,
ergueu-se todo o edifício da ciência moderna e contra o qual tentou-se o empreendimento
interdisciplinar.
[Segundo Descartes] A ciência precisa de novos fundamentos, pois sendo a verdade
uma só, e a quantidade de posições filosóficas defendidas por pessoas muito cultas
enorme, era certo que ao menos algumas das opiniões que se apresentavam como
verdadeiras nas disputas escolásticas estavam erradas. Descartes propõe, então, que
se busque um fundamento para as ciências que seja tão evidente que não possa ser
objeto de dúvida ou de disputa. Em outras palavras, a base sobre a qual se deve
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edificar as ciências deve ser inabalável, isto é, os princípios que sustentam as
proposições científicas devem ser sólidos (SANTOS, 2000, p. 3).
Assim, uma única verdade poderia fazer-se subjacente às diversas disciplinas
científicas. A isso muitos “chamam possível unicidade do saber”, ao qual podemos chamar
“totalitarismo epistêmico”, pois cabresteia o fazer científico, e a docência também, ao realizar
uma articulação entre saber e poder que não deixa margem ao múltiplo, ao diverso, ao
diferente. A unicização metodológica e a verdade única seriam as algemas operacionais e
mecânicas em cujas garras os pesquisadores e docentes teríamos que enfiar nossas mãos.
Nada além de disciplinamento. Nada mais do que controle. Nada diferente do poder do
“UM”. Antes de integração pela flexibilidade das fronteiras epistêmico-metodológicas das
ciências, o que isso faz é produzir uma padronização da ciência e, por conseguinte, da
pedagogia.
Nesse sentido, Nicola afirma que, em Descartes, “o pensamento científico tem que ser
uno, para além do objeto que é aplicado” (2005, p. 220), e transcreve um excerto de Regras
para a direção do espírito:
De fato, posto que todas as ciências não são nada mais do que saber humano, que
permanece sempre um e o mesmo por mais diferentes que sejam os objetos aos quais
se aplica, não os distinguindo mais do que faz a luz do Sol com a variedade de
coisas que ilumina, não é necessário encerrar a mente dentro de qualquer limite; e,
na realidade, o conhecimento de uma única verdade não nos afasta da descoberta de
uma outra, como faz ao contrário a prática de um ofício, sendo-nos antes de ajuda
(DESCARTES apud NICOLA, 2005, p. 220).
Para além dessa padronização, a terceira dose de veneno cartesiano reside no dualismo
que ele empreendeu. Ela pode ser encontrada no famoso “cogito” (penso). “Penso, logo sou”,
tal como é lido nas Meditações metafísicas, transcritas por Nicola.
Mas logo depois me dei conta de que, enquanto eu queria de tal modo considerar
como falsa qualquer coisa, era preciso necessariamente que eu, que a pensava, fosse
todavia alguma coisa. Por isso, dado que a verdade Eu penso, logo existo é tão
irremovível e certa que não a poderiam abalar nem mesmo as mais extravagantes
suposições dos céticos, julguei poder aceitá-la sem hesitar como o princípio primeiro
da minha filosofia... (DESCARTES apud NICOLA, 2005, p. 228).
Notem que esse dualismo cinde o humano nele mesmo:
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A doutrina cartesiana do cogito (abreviação de cogito, ergo sum, “penso, logo
existo”) indica a evidência pela qual cada indivíduo reconhece a própria existência
enquanto sujeito pensante. A conclusão do raciocínio leva à fundação de duas
verdades que resistem à dúvida metódica, utilizáveis como postulados da reflexão
metafísica: 1) o pensamento é uma realidade em si mesmo (uma substância), distinto
e diferente da matéria; 2) o indivíduo humano é tanto res cogitans (um sujeito
pensante) quanto res extensa, enquanto corpo (NICOLA, 2005, p. 227).
E mais: o dualismo cartesiano, ao duplicar o humano, termina por voltar aos
paradigmas dualistas da Antiguidade, fulcro da dualidade cósmica que se verificou também
na Idade Média.
Esta é a parte central do Dualismo Cartesiano, a visão de que a mente e o corpo são
substâncias diferentes, e a linha de pensamento que leva a isso é por vezes chamada
de argumento da concecibibilidade do dualismo. Posso conceber minha mente e meu
corpo como existindo separadamente. (...) [Mas] Seu esforço para construir tudo a
partir do nada é uma espécie de falha (ARVEY, 2009, p. 37-38).
Foram esses “pilares” cartesianos aqueles que se prestaram a consubstanciar o método
científico moderno, esse que forjou a compartimentalização do saber, ainda que se tenha
desejado que ele fosse presidido pelo “governo” epistêmico da verdade universal, o que
impacta a docência e a pedagogia. É contra essa herança que se ergue a tentativa
interdisciplinar. Essa que, segundo Veiga-Neto, não entregou aos professores e à escola o que
havia prometido: a reintegração das disciplinas.
E estamos citando autores europeus neste trabalho de propósito. Todas as vezes que
discutimos essas características do pensamento de Descartes, logo aparece alguém para dizer
que “nós lemos mal Descartes”. Não cremos nisso. Pensamos que os trabalhos de brasileiros
que pesquisam o pensamento cartesiano não deixam nada a desejar em relação aos melhores
estudos sobre Descartes realizados ao redor do mundo. Parece que continuamos, firmes e
fortes, apegados à nossa “carência filosófica”. Mas, na verdade, as leituras de Descartes feitas
no Brasil podem ser tranquilamente perfiladas com esses autores.
E esse é apenas um detalhe dos desafios que temos pela frente. Enfrentar uma
mentalidade não é fácil. Porém, se queremos buscar novas articulações entre saber-poder,
ensinar-aprender, pesquisar-socializar o conhecimento, não podemos ignorar essas
dificuldades.
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Conclusão
A título de conclusão, podemos afirmar que não acreditamos em uma educação
integral para um saber total, holístico, totalizante e totalitário. Reconhecemos a complexidade
que existe na articulação entre identidade epistêmica das disciplinas e os diferentes modos de
representar o real.
E se há a necessidade de não fragmentarmos os objetos, o mundo, a vida, o ensinar e o
aprender, tanto quanto a docência em Filosofia, não temos como não articular a dimensão
epistemológica com a dimensão pedagógica, tanto quanto as dimensões técnica com a
estética, ética com a política, antropológica com a social, entre outras.
Porém, somos adeptos da compreensão de que nossos trabalhos interdisciplinares,
considerando os entraves que lhe são inerentes e essas possibilidades genéricas, encontrem
modos abertos e flexíveis para a sua condução. É nesse sentido, pois, que, antes de uma
adesão acrítica à proposta interdisciplinar, encontramo-nos filiados às posturas que tentam
privilegiar as dimensões multi e pluri do nosso trabalho como professores, estudantes e
pesquisadores da área de Filosofia.
Menos pretensioso por abrir mão de uma vontade unicizante e universalizante, tal
como passou a requerer a sociedade globalizada ou mundializada, um currículo aberto e uma
prática docente que respeitem identidades e diferenças antropológicas e epistêmicas talvez nos
ajudem mais em nossa árdua tarefa de educar. Isso, porém, a começar pela própria Filosofia, a
qual poderia ser impossibilitada se encerrada em qualquer atitude de fechamento ou
padronização ao molde cartesiano. Aliás, nessa linha, Veiga-Neto afirma:
... entendo que um currículo que busque a pluridisciplinaridade contribuirá para que
nós e nossos alunos aprendamos a conviver com o pluralismo não só disciplinar
mas, sobretudo, o pluralismo das idéias, dos gêneros, das etnias, das religiões, das
idades, das aparências físicas etc. Isso não implica buscar atingir um padrão
humano, o padrão de um sujeito transcendental que, pairando sabe-se lá onde,
serviria de modelo a guiar nossas práticas educativas. De novo aqui, não há
exterioridades a nos guiar” (VEIGA-NETO, 1996, p. 117).
Talvez a proposta, ao nível do entendimento epistemológico sobre o trabalho docente
nas escolas, seja a de notar essa possibilidade de cooperação integrativa no âmbito
epistemológico e de associação participante no que respeita ao trabalho metodológico do
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processo de ensino-aprendizagem. O que, a nosso ver, calha mais adequadamente aos
propósitos de um trabalho docente em Filosofia.
Por conta disso, voltemos ao mineiro Carlos Drummond de Andrade:
Arrebentaram a porta. / Derrubaram a porta. / Chegaram ao lugar luminoso / onde a
verdade esplendia seus fogos. / Era dividida em metades / diferentes uma da outra. /
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. / Nenhuma das duas era totalmente
bela. / E carecia optar. Cada um optou conforme / seu capricho, sua ilusão, sua
miopia (“Verdade”. Carlos Drummond de Andrade).
Sabemos que é complicado encontrar um remédio para miopia, mas, também, estamos
provisoriamente certos de que a pluralidade pode, ao menos, ser um colírio para nós,
professores e candidatos a professores e professoras de Filosofia.
REFERÊNCIAS
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