FUNDAÇÃO EDUCACIONAL DE ITUVERAVA FACULDADE DE FILOSOFIA CIÊNCIAS E LETRAS Nathan Bruno Camilo MAIO DE 1968: QUANDO A RUA FAZ HISTÓRIA ITUVERAVA 2014 NATHAN BRUNO CAMILO MAIO DE 1968: QUANDO A RUA FAZ HISTÓRIA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Fundação Educacional de Ituverava, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, para obtenção do titulo de Licenciatura Plena em História. Orientador: Prof. Ms. Felipe Ziotti Narita ITUVERAVA 2014 NATHAN BRUNO CAMILO MAIO 1968: QUANDO A RUA FAZ HISTÓRIA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Fundação Educacional de Ituverava, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, para obtenção do titulo de Licenciatura Plena em História. Ituverava,___ de __________ de ____. Orientador (a): ______________________________________ Prof. Ms. Felipe Ziotti Narita Examinador (a): _____________________________________ Prof. Ms. Antonio Marco Ventura Martins Examinador (a): _____________________________________ Prof. Sandro Luiz de Freitas Souza DEDICATÓRIA Dedico este trabalho aos meus pais, dos quais me orgulho, pelo amor e confiança oferecidos em todos os momentos da minha vida. AGRADECIMENTOS Muito obrigado, Ao meu orientador, Felipe Ziotti Narita, pela competência e sabedoria. Aos meus pais, pelo apoio, carinho e lições de vida. Aos professores, pelos ensinamentos. Aos funcionários desta instituição pelos anos de convivência. Aos colegas, que passaram a ser meus irmãos e irmãs. Ao programa da Capes, o PIBID que me ajudou a ter um contato cedo com a prática docente e como trabalhar a história utilizando de meios tecnológicos para despertar o interesse do estudante. A faculdade FFCL por disponibilizar um curso de qualidade, bem servido de excelentes profissionais. A todos que, direta ou indiretamente, colaboraram para o êxito deste trabalho. ―Conheço muitos que não puderam quando deviam, porque não quiseram quando podiam.” François Rabelais RESUMO Este trabalho pretende discutir as manifestações em Maio de 1968 na França, visando para tanto o momento histórico no qual aconteceram as manifestações, entendendo assim seu caráter apartidário, pois não havia nenhum partido comandando todo o processo. No entanto, o movimento apresenta uma única bandeira: a da liberdade. Os temas abordados neste trabalho, portanto, analisam desde a manifestação estudantil, o movimento operário, a mudança dos hábitos e costumes até um panorama mais amplo, situando o estudo no contexto da Guerra Fria. Para tanto a metodologia adotada será leitura e análise bibliográfica, tomando como base uma entrevista especifica realizada pelo Programa ―Arquivo N‖. Analisaremos os mais diversos pontos de vista referentes ao tema, abordados tanto por autores que são especialistas no assunto (Eric Hobsbawm, Herbert Marcuse, Olgária Matos etc.) quanto por professores e líderes que participaram do movimento. Enfatizamos, assim, a pluralidade e a complexidade de tal movimento, que estabeleceu pautas e discussões que marcaram o fim do século XX e encontram eco ainda no início do XXI. Palavras-chave: Maio de 1968. Jventude. Manifestação. França. Liberdade. SUMMARY This paper will discuss the events of May 1968 in France, aiming to both the historical moment in which the events happen, so understanding its nonpartisan character, because there was no party commanding the whole process. However, the movement features a single banner: the liberty. The topics covered from the student protests, labor movement, change of habits and customs up to a larger picture, situating the study in the context of the Cold War. For both the methodology will be reading and analyzing literature, based on an interview conducted by the Program ―Arquivo N‖ (Globo News, a Brazilian TV channel). This work will analyze the most varied points of view on the subject, addressed both by schollars (Eric Hobsbawm, Herbert Marcuse, Olgária Matos etc.) and by teachers and leaders who participated in the movement. Thus, we will emphasize the plurality of such a movement, so that it is impossible to mark its beginning and its end. Keywords: May 1968. Youth. Manifestation. France. Liberty. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Ilustração da disputa EUA-URSS............................................................................ 21 Figura 2: Desenho geopolítico da Guerra Fria ........................................................................ 22 Figura 3: Ilustração que representa a repressão sexual ........................................................... 24 Figura 4: Foto de Jim Morrison em seu show ......................................................................... 26 Figura 5: Foto que representa a ―Sociedade do espetáculo‖ onde o indivíduo é apenas um telespectador ............................................................................................................................. 29 Figura 6: Foto da manifestação Maio de 1968 ........................................................................ 33 Figura 7: Foto que mostra a barricada que os estudantes criaram para fazerem resistência perante a ação policial. ............................................................................................................. 38 Figura 8: Ilustração da reivindicação estudantil ―É proibido proibir‖. ................................... 40 Figura 9: Foto de jovem estudante protestando a favor da liberdade sexual (maio de 1968) . 41 Figura 10: Foto de estudantes manifestando na Bastilha em Paris ( maio de 1968) ............... 42 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 1 A “ERA DAS CATÁSTROFES”: 1914-1945 .................................................................... 15 1.1 A guerra contra o Eixo: 1939-1945 ................................................................................. 17 1.2 O pós-guerra ..................................................................................................................... 18 1.3 O início da Guerra Fria.................................................................................................... 20 2 OS ANOS 1960: A DÉCADA QUE NÃO QUER CALAR .............................................. 24 3 MAIO DE 1968: PROTESTO, JUVENTUDE E HISTÓRIA ......................................... 32 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 44 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 45 10 INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende apresentar e discutir as manifestações em Maio de 1968 na França, situando-as no contexto da Guerra Fria. Nesse sentido teremos sempre que relembrar o contexto histórico no qual o movimento se passa para assim ter uma visão mais apurada e completa dos aspectos que possivelmente levaram ao movimento. No primeiro capítulo será apresentado o contexto histórico anterior e pós-Segunda Guerra Mundial, época a partir da qual a Guerra Fria surgirá como uma guerra ideológica entre Estados Unidos (EUA) e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), ou seja, Capitalismo e Socialismo. Começaremos apresentando o inicio da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), guerra travada entre a Entente (Inglaterra, França, Rússia e EUA) e os Impérios Centrais (Império Alemão, Império Austro-Húngaro, Império Turco-otomano). Durante a Primeira Guerra teremos um acontecimento importantíssimo: a Revolução Russa. Segundo Hobsbawm, seria impossível entender o século XX sem entender antes essa revolução. A Revolução Russa nasce com praticamente no fim da Primeira Guerra Mundial, onde a Rússia passado por problemas internos assinará um tratado de paz com os Impérios que ficará conhecido como Brest-Litovsk. Resolvido o problema em relação ao front da Primeira Guerra, a Rússia agora poderia se preocupar em resolver suas questões internas, sob uma guerra civil entre Bolcheviques (exercito vermelho liderado por Leon Trotski) e Mencheviques (exercito branco lideres, antigos oficiais do regime czarista). Com a vitória dos Bolcheviques, em 1922 teremos a criação da URSS (primeira nação do planeta a adotar o socialismo como forma de governo). Após o breve governo de Lênin (morto em 1924), o poder será disputado entre Trotski e Stalin. Stalin triunfa sobre seu adversário e assume o governo ditatorial da URSS. No contexto da Primeira Guerra, a Entente vence o conflito e impõe penas duríssimas à Alemanha, que foi culpada como causadora da guerra. Essa injustiça criará posteriormente ―revanchismo‖ alemão. Devemos entender também que após a Primeira Guerra Mundial, a chamada Crise de 1929 abalará os Estados Unidos e as principais economias capitalistas. Diante desse fato, teremos um economista, John Maynard Keynes, que tentando resolver o problema da crise irá 11 propor um novo modelo econômico (Keynesianismo), onde o Estado passa a intervir na economia, o que criará posteriormente o ―Welfare State‖ (estado de bem estar). As marcas da Primeira Guerra ainda não haviam sido apagadas. A Alemanha vai incitar uma revanche: nesse sentido, teremos o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), conflito em que teremos novamente dois polos, o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e os Aliados (Estados Unidos, Inglaterra, França e URSS). A união entre Estados Unidos (Capitalismo) e URSS (Comunismo) é uma união extremamente política e militar, não ideológica, já que se uniram contra um inimigo comum: as potências do Eixo. O fim da Segunda Guerra Mundial se dará com a vitória dos Aliados, com novamente penas duríssimas à Alemanha e seus aliados. Como o medo de uma possível Terceira Guerra, algo que fatalmente poderia destruir a humanidade, as nações se unem e criam a ONU (União das Nações Unidas), que será responsável basicamente por manter a paz no planeta – publicando a conhecida Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. No entanto, o século XX ficará marcado na história para sempre: não bastaram duas guerras mundiais, algo ainda nos aguardava. Assim, em meio a toda a destruição causada na Segunda Guerra Mundial, inicia-se uma nova guerra, uma guerra diferente de tudo o que havia sido presenciado, uma guerra ideológica conhecida como ―Guerra Fria‖, onde teremos uma disputa mundial entre dois blocos econômicos e políticos, o Capitalismo, representado pelos EUA, e o Socialismo, representado pela URSS. Essas duas nações vão mexer com o imaginário do mundo: se em algum momento a humanidade esteve face a face com o armagedom, foi durante a ―Guerra Fria‖. Devemos relembrar que o presente trabalho está discutindo questões durante esse período, portanto é importante o entendimento sobre esse acontecimento e o imaginário que ele criará no mundo. Devido ao ―poder nuclear‖ presenciado em Hiroshima e Nagasaki, tem-se uma espécie de ―o mundo pode acabar a qualquer momento‖: uma tensão está continuamente no cotidiano das pessoas que vivenciarão esse período. Essa é uma questão extremamente importante já que nos dá aporte para o início do segundo capítulo, onde abordaremos de forma geral os aspectos culturais dos anos de 1960. Neste momento, analisaremos a juventude com o papel principal dessa peça de mudanças que ocorreram a partir dos anos 1960. Os jovens de maneira geral estavam desconfiados da sociedade que ―causou as guerras‖ e começam a fazer voz a essa sociedade que, após a Segunda Guerra, não havia mudado em nada seus hábitos e costumes, enfim sua tradição, como se não houvesse motivos para determinadas mudanças. Durante os anos 60 teremos a surgimento de uma cultura à parte da cultura dominante, conhecida como ―contracultura‖: o ―movimento hippie‖ é a melhor forma de representarmos 12 esse termo na prática. Os hippies tinham em si a contraposição aos valores que a sociedade conservadora apresentava, seu aspecto de viver em meio à natureza em comunidades ia contra o padrão vigente. As músicas, as vestimentas, as danças, o sexo e as drogas serão os principais aspectos de contraposição a esse padrão de sociedade, conversadora, dominadora e opressora. Esse movimento de aspecto pacifista que irá influenciar toda uma juventude na década de 50 sob a frase ―paz e amor‖ apresenta uma contraposição fortíssima contra a sociedade da época, não apenas pelo aspecto ideológico, mas também musical e das vestimentas. Por exemplo: suas roupas eram largas e as músicas tinham por essência a simplicidade, seu caráter organicista e naturalista batia de frente com a sociedade capitalista individualista e materialista da época. Surge também no aspecto musical o rock ‘n‘ roll, onde teremos alguns dos músicos e artistas mais populares do século XX, como Jim Morrison, da banda de rock The Doors. Como uma espécie de ―xamã das antigas tribos, transmitindo à comunidade o poder de suas experiências através do ritual da música‖ (CIDREIRA, 2008, p. 38), Jim Morrison vai influenciar toda uma juventude, não apenas no aspecto musical, como também com suas vestimentas. Os jovens viam a Morrison como o diferente perante a sociedade vigente e queriam ser tal como seu ídolo, serem os diferentes no meio da massa. Em divergência ao terno e a gravata, objetos simbólicos do status social masculino da sociedade conservadora, surgem roupas mais largas, leves, soltas, além das cores coloridas, fortes e vibrantes (vermelho, amarelo, verde, azul), em contraposição ao preto e branco tradicional. O movimento hippie apresenta uma mudança de mentalidade, uma via de escape, uma chance de escolher o diferente. Nesse sentido a música, a vestimenta e as drogas são apenas consequências desse modo diferente de se viver. A sociedade capitalista tem em si uma especificidade: ela transforma tudo em mercadoria, transforma desejos em objetos de comprar. Em Sociedade do espetáculo, Guy Debord (2003) expõe a padronização e idealização de certos produtos. Produtos inúteis são vendidos pela sociedade do espetáculo como essências para a vida, o que temos de singular nessa sociedade será que pessoas antes apenas tidas como consumidores agora passam a ser também mercadoria. Voltemos ao cerne do motivo pelo qual os hippies criam uma vida alternativa. Na verdade, não só os hippies, mas os jovens de maneira geral adotam uma forma diferente de existir em meio à sociedade vigente, por uma razão bem simples: eles queriam sua ―liberdade‖, liberdade em se expressar, liberdade em se vestir, liberdade em cantar, dança, 13 enfim liberdade de existir. A sociedade, ou seja, o Estado, a Igreja e os pais eram repressores e sendo assim autoritários. Os jovens logo se voltaram contra essa autoridade, principalmente contra a repressão sexual. Diante desse clamor pela liberdade sexual teremos a frase dos hippies ―faça amor, não faça guerra‖ (ALONSO, 2009, p.49), o que completava também sua posição de crítica da Guerra do Vietnã, dado que milhares de jovens americanos foram para a guerra. A essa altura podemos começar a falar sobre o terceiro capitulo, que tratará especificamente do movimento de Maio de 1968 na França, onde jovens vão fazer uma revolta. Aparentemente, eles não haviam motivo de fazê-la; no entanto, esse movimento é extremamente pluralista, de forma que devemos analisar seus pormenores para termos melhor visão do que estava acontecendo.Como já foi mencionado, seria impossível entender o que se passa nesse período senão relevarmos em consideração a ―Guerra Fria‖. Dado tal esclarecimento, podemos agora analisar melhor essa dada que ficou marcada para a história: nesse sentido, Zuenir Ventura escreveu o livro cunhado de 1968: o ano que não terminou. O movimento de Maio de 1968 é apartidário (não há nenhum partido no comandando), ou seja, ele não levanta bandeira capitalista e muito menos comunista. Sua única bandeira será a da liberdade, tal qual os hippies, os jovens como um todo também a reivindicam em 1968. Maio de 68 inicia-se aparentemente com uma reivindicação, a princípio comandada pelos jovens da Faculdade de Nanterre: eles queriam que meninas visitassem quartos de meninos e vise-versa. Vendo que seu pedido não seria atendido, os jovens tomam a universidade e a partir daí começam a fazer suas próprias regras. A partir desse ponto os jovens começam todo um movimento ideológico para mudar a sociedade vigente. Por ser um movimento novo, nunca antes visto na história, ninguém sabia o que iria acontecer, nem mesmo os próprios ―revolucionários‖ do movimento. Os jovens foram movidos por ideais, por sonhos de ―construir uma sociedade tal qual eles amariam viver‖, os jovens tinham como logotipo do movimento a frase ―é proibido proibir‖ (MATOS, 1981, p. 35). Além de outras ainda mais provocativas, como (MATOS, 1981, p. 95) ―Sejamos realistas, que se peça o impossível‖: frases como estas moveram os jovens em busca de um ideal, que eles estavam dispostos a lutar para conseguir. Olgária Matos (1981, p. 9) nos apresenta que, ―o desejo revolucionário será muito mais marcante do que a situação revolucionária. Talvez por isso o movimento foi muito mais capaz de contestar do que vencer, de imaginar do que transformar‖. E realmente assim ocorreu com os chamados ―filhos da burguesia‖, criando uma revolta nunca antes presenciada na História. 14 O movimento na França se espalha e começa a ter proporções cada vez maiores. Teremos a chamada ―noite das barricadas‖, onde estudantes que haviam invadido a Sorbonne iram combate à polícia a mando o presidente de Gaulle que estava estarrecido com tamanha proporção que o movimento havia ganhado. Os estudantes perderam o combate e foram presos, tentando um possível acordo entre os estudantes, uma normatização da situação. O presidente De Gaulle declara anistia aos jovens que foram presos e propõe uma virada de página na situação, que por sinal esse movimento deveria ter acontecido. Mas a história prega peças e 1968 só havia começado a se mostrar. Dias depois da anistia dos jovens estudantes, os sindicatos organizam uma greve geral, que chega a ter 10 milhões de grevistas, a greve alcança âmbito nacional, a França irá parar economicamente. Nesse momento se tivesse existido uma união entre jovens estudantes e trabalhadores provavelmente conseguiriam até mudar o sistema de governo na França, os sindicatos estavam preparando para criar um regime socialista, já que diferente dos estudantes o movimento operário era partidário. No entanto essa união nunca acontecendo, tanto os operários desconfiavam dos estudantes, quanto os estudantes desconfiavam dos operários, apesar de parecerem dispostos a se unirem a eles. Os movimentos aos poucos foram sucumbindo, os operários conseguem mudanças ligadas às horas de trabalhos e aumento salarial, e os jovens conseguem modificações nas matérias universitárias. Porém as mudanças mais significativas estão no âmbito cultural e nas relações de autoridade. Maio de 68 deve ser entendido no meio de um processo histórico, ou seja, seria errôneo apontar seu inicio ou se termino devido à pluralidade que esse movimento apresenta. Mas o filósofo Nietzsche (2005, p.287) já havia nos avisado: o que se diz importante na história são apenas ―bolhas que se tornam visíveis sobre a torrente das águas‖. Portanto, Maio de 68 é uma dessas ―bolhas‖ e por isso devemos prestar atenção nos seus pormenores, nas torrentes das águas: esse é um movimento histórico único, dotado de particularidades, de forma que seus efeitos e significados remontam aos anos 1960 mas ecoam até o mundo atual. 15 1 A “ERA DAS CATÁSTROFES”: 1914-1945 O fim da Segunda Guerra Mundial marca um período de extremas mudanças no cenário global. A Europa perde a hegemonia mundial e surgem, para ocupar esse lugar, duas novas potências que passaram a disputar a supremacia econômica e militar do planeta: os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Vamos discorrer mais sobre essa questão entre americanos e soviéticos, que ficará conhecida como ―Guerra Fria‖. No entanto, antes, vamos retornar para o inicio da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e identificar mudanças políticas e econômicas importantes para o decorrer do trabalho e para melhor entendimento do assunto. Analisaremos, agora, as principais marcas de formação do século XX, compreendendo o período que o historiador Eric Hobsbawm (2011) denominou de ―Era das catástrofes‖ – momento em que, entre 1914 e 1945, guerras generalizadas assolaram o mundo. Em 1914 teve início a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), guerra travada entre a Entente (Inglaterra, França, Rússia e EUA) e os Impérios Centrais (Império Alemão, Império Austro-Húngaro, Império Turco-otomano). Com a vitória da Entente, os impérios derrotados sofreram inúmeras perdas territoriais, políticas e econômicas (HOBSBAWM, 2011). Após a Primeira Guerra, mais precisamente em 1929, teremos uma crise econômica que vai arrasar os Estados Unidos. As causas dessa crise são bastante estudadas: como a Europa estava se reconstruindo, seu potencial de compra ficou reduzido; porém, os Estados Unidos continuaram com sua produção em massa – lembremos que estamos neste período numa economia liberal (em que o Estado intervém minimamente no mercado), e o resultado foi que não havia para quem vender, de modo que sobraram muitos produtos, com uma grande oferta e pouca procura. Assim, o valor dos produtos caiu drasticamente (diversas economias, sobretudo na Europa e na América, foram duramente golpeadas pela crise de 1929). Diante dessa crise teremos um economista que mudará o sistema econômico vigente com sua teoria: era John Maynard Keynes, que percebeu que o modelo econômico da época, o ―laissez-faire‖, não estava resolvendo o problema, pelo contrário só agravava-o. Diante dessa situação, Keynes vai mostrar a importância do Estado como controlador da economia, com o objetivo de atingir o pleno emprego, o que criará posteriormente o ―Welfare State‖ (estado de bem estar), onde o governo não só passa a intervir na economia, como também passa a proporcionar o que há de melhor para sua população. Fábio Guedes Gomes (2006, p. 203) define Welfare state como 16 [...] um conjunto de serviços e benefícios sociais de alcance universal promovidos pelo Estado com a finalidade de garantir uma certa ―harmonia‖ entre o avanço das forças de mercado e uma relativa estabilidade social, suprindo a sociedade de benefícios sociais que significam segurança aos indivíduos para manterem um mínimo de base material e níveis de padrão de vida, que possam enfrentar os efeitos deletérios de uma estrutura de produção capitalista desenvolvida e excludente. Hobsbawm (2011, p. 146) entende a introdução das medidas de Keynes adotadas pelos países capitalistas, principalmente Estados Unidos e Grã-Bretanha (sistema econômico que ficará conhecido como Keynesianismo), como uma grande contradição, já que os ―nomes‖ do sistema liberal, que defendiam o liberalismo, agora vão contra sua base principal, que era sustentada justamente pela livre regulação do mercado. Duramente afetadas pela crise de 1929, a Europa enfrentava diversos problemas financeiros: especialmente na Itália (frustrada com os resultados da guerra de 1914) e na Alemanha (humilhada após a derrota), movimentos que pretendiam reerguer os países da ruína ganhavam força. Assim, nos anos 1920 e 1930, o fascismo italiano (cujo líder era Benito Mussolini) e o nazismo alemão (Adolf Hitler). Nasciam, na Europa, experiências de governos totalitários: regimes ultranacionalistas, ditatoriais, de partido único, centralizados na figura de um grande líder, com forte teor anticomunista e racial (especialmente o nazismo alemão). Hannah Arendt (1989, p. 394) define esse processo: [...] o que caracteriza a propaganda totalitária melhor do que as ameaças diretas e os crimes contra indivíduos é o uso de insinuações indiretas, veladas e ameaçadoras contra todos os que não derem ouvidos aos seus ensinamentos, seguidas de assassinato em massa perpetrado igualmente contra culpados e inocentes. Além do nazi-fascismo, o comunismo soviético também pode ser encaixado nessa definição dos totalitarismos dos anos 1920. Retornemos um pouco para identificamos onde nasceu a URSS e seu contexto. Em 1917 teremos um fato central para o entendimento de todo o século XX: a Revolução Russa. Como principais nomes, teremos os Bolcheviques, liderados por Joseph Stalin, Vladmir Lênin e Leon Trotsky. A chamada ―Revolução de Outubro‖, tomada de poder pelos bolcheviques, em 1917, marca o estopim para a criação de uma posterior superpotência. Uma das medidas propostas por Lênin seria a paz e essa só se concretizaria com a saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial. Os Bolcheviques se organizam e iniciam a implantação do socialismo: a Rússia sai da Primeira Guerra e assina um tratado de paz conhecido como Brest-Litovsk (1918). Resolvido esse problema externo de não receber mais ataques exteriores, a Rússia irá se concentrar em revolver seus problemas internos a partir da guerra civil entre Bolcheviques (exercito vermelho liderado por Leon 17 Trotski) e Mencheviques (exercito branco lideres, antigos oficiais do regime czarista). Com a vitória dos Bolcheviques, em 1922 teremos a criação da URSS (primeira nação do planeta a adotar o socialismo como forma de governo). Após o breve governo de Lenin (morto em 1924), o poder será ferozmente disputado entre Trotski e Stalin. Este triunfa sobre seu adversário e assume o governo ditatorial da URSS. Durante o período stalinista, a URSS foi governada por uma forte burocracia, controladora do Estado e das instituições, atravessando um processo de militarização e perseguição política (CERDEIRA, 1988). 1.1 A guerra contra o Eixo: 1939-1945 Um fato interessantíssimo deve ser resaltado nesse período: a união entre Capitalistas e Socialistas, ou seja, entre EUA e URSS, para derrotar os países do Eixo (sobretudo o nazismo alemão e o imperialismo japonês). Eric Hobsbawm (2011, p. 145) afirma que Num século dominado pelo confronto entre o comunismo anticapitalista da Revolução de Outubro, representado pela URSS, e o capitalismo anticomunista, cujo defensor e principal exemplar eram os EUA, nada parece mais anômalo do que essa declaração de simpatia, ou pelo menos preferência, pelo berço de revolução mundial em detrimento de um país vigorosamente anticomunista e cuja economia era reconhecivelmente capitalista. Essa união é extremamente política e não ideológica: a aliança era feita para enfrentar um inimigo comum, ou seja, a ameaça representada pelos países do Eixo (Alemanha, Japão e Itália). Em 1939 teremos a ―revanche da Alemanha‖ com o início da Segunda Guerra Mundial, onde teremos novamente dois polos, o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e os Aliados (Estados Unidos, Inglaterra, França e URSS). A Segunda Guerra mundial deixará um cenário de caos e destruição. Além dos milhões de mortos e feridos (militares e civis), das cidades e países completamente destruídos pelas batalhas, nunca antes havia sido presenciado o poder atômico. Esse momento aconteceu no fim da guerra, em agosto de 1945, de modo que a bomba atômica foi talvez o momento que o ser humano refletiu sobre o seu poder de destruição em massa e até onde utilizar esse poder era racional. Assim, prevaleceu a frase ―guerra é guerra‖: nisso Hiroshima e Nagasaki foram às escolhidas para o teste da bomba atômica, implicando a rendição do Japão e o fim Segunda Guerra Mundial. 18 Após presenciado duas guerras, uma Terceira Guerra seria o fim da raça humana, quiçá do planeta, como disse Albert Einstein (ALBERT..., 2008): ―Eu não sei como vai ser a Terceira Guerra Mundial, mas a Quarta vai ser com paus e pedras.‖ Com o intuito de evitar que um mal maior aconteça, as nações se reúnem e criam a ONU (Organização da Nações Unidas), que será responsável basicamente por manter a paz no planeta – publicando a conhecida Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, documento que afirmava questões como liberdade, dignidade e vida a partir dos horrores vividos durante a guerra. 1.2 O pós-guerra O cenário mundial após a Segunda Guerra Mundial é de destruição, desolação, desesperança. Os impactos da guerra foram destruidores: a destruição foi completa, uma verdadeira ―Guerra Total‖ não apenas por ter havido participação de praticamente todos os países, ou por ter havido uma participação civil também, mas total porque não só mudou o cenário físico e político como também moral e ideológico (sobretudo com os massacres). Tony Judt (2014, p. 25) faz um breve comentário de como estavam as condições na Europa A perspectiva da Europa era de miséria e desolação total. Fotografias e documentários da época mostram fluxos patéticos de civis impotentes atravessando paisagens arrasadas, com cidades destruídas e campos áridos. Crianças órfãs perambulam melancólicas, passando por grupos de mulheres exaustas que reviram montes de entulho. Deportados e prisioneiros de campos de concentração, com as cabeças raspadas e vestindo pijamas listrados, fitam a câmera, com indiferença, famintos e doentes. Até os bondes parecem traumatizados — impulsionados por corrente elétrica intermitente, aos trancos, ao longo de trilhos danificados. Tudo e todos — exceto as bem nutridas forças aliadas de ocupação — parecem surrados, desprovidos de recursos, exauridos. Viver durante a guerra era um desafio, viver após ela será ainda mais difícil, como bem expõe Judt (2014): ―as cidades em ruínas eram a prova mais evidente — e captada em fotografias — da devastação,e passaram a servir de uma espécie de emblema que expressava a tristeza da guerra.‖ As condições para se reerguer diante desse cenário eram desvantajosas, principalmente para os países que fizeram parte ou apoiaram o Eixo: muitos tiveram que começar do zero, sem leis, ordem ou administração. Temos dados do subúrbio berlinense de Treptow que nos dá uma boa base como ficaram as estruturas sociais e familiar – ―em fevereiro de 1946, entre os adultos na faixa etária de 19 a 21 anos, havia apenas 181 homens, para 1.105 mulheres‖ (JUDT, 2014, p. 33). A população masculina estava escassa, teremos uma grande predominância feminina, principalmente na Alemanha, com mulheres (mães 19 solteiras) criando seus filhos sozinhas, uma vez que as crianças que nasceram nessa época não terão uma figura paterna a seu lado. Durante o pós-guerra pouquíssimas pessoas terão condições de se alimentar adequadamente, já que o mercado interno do país não estava ―funcionando‖, faltava comunicação e inúmeras fazendas foram destruídas durante a guerra, o número de pessoas desabrigadas e improdutivas era extremamente elevado o que agravava ainda mais a procura por alimentação, as poucas pessoas que conseguiam produzir alimentos em suas fazendas, não os vendia, a moeda do país estava desvalorizada, pouco lhes importava nessas condições obter lucro. Como nos explica Judt (2014), a maioria das pessoas padecia de fome e de doenças: teremos um sério problema em Berlim, no verão de 1945, por causa de cadáveres que estavam em estágio de putrefação, provocando várias doenças. Crianças foram as grandes vítimas durante esse período: por causa da escassez de alimento, muitas contraíram tuberculose, raquitismo, pelagra, disenteria e impetigo. Para clarear ainda mais o meio ao qual estamos tentando descrever, temos uma descrição do oficial do Exército britânico, William Byford-Jones (apud JUDT, 2014, p. 37) Destroços de naufrágio, cargas ao mar! Mulheres que perderam maridos e filhos, homens que perderam esposas; homens e mulheres que perderam lares e filhos; famílias que perderam grandes fazendas, propriedades, estabelecimentos comerciais, destilarias, fábricas, moinhos de trigo, mansões. Havia também crianças abandonadas, carregando pequenas trouxas, portando patéticos crachás. Tais crianças perderam-se das mães, ou as mães morreram e foram sepultadas por outros deslocados de guerra em alguma beira de estrada. Outra questão interessante que deve ser apontada é a questão dos estrangeiros: muitos, no início, estavam sendo repatriados à força; porém, diante dessa situação, em 1951 será organizada uma Convenção Europeia dos Direitos Humanos, garantindo ao estrangeiro a não repatriação. Independentemente da nacionalidade, os refugiados não eram recebidos de braços abertos: havia uma preferência por certos tipos de pessoas (no caso das mulheres, deveriam ser solteiras e sem filhos). Os judeus são um caso particular: muitos eram reenviados para acampamentos na Alemanha. Posteriormente, para ser mais coerente, a ONU cria o Estado de Israel, em 1948. Porém só teremos uma grande imigração judaica em 1951, quando 332 mil judeus saem da Europa e vão para o nascente estado de Israel. 20 1.3 O início da Guerra Fria Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o cenário econômico capitalista muda de foco: da Europa passa-se para a América. O Eurocentrismo perde força, com isso teremos os Estados Unidos erguido como a grande potência mundial. Porém isso teve um custo altíssimo: a Europa pós-guerra estava completamente destruída, como já foi mencionado anteriormente. Conforme Hobsbawm (2011, p. 237) ―[...] a situação da Europa Ocidental em 1946-7 parecia tão tensa que Washington sentiu que o fortalecimento da economia europeia e, um pouco depois, também da japonesa, era prioridade mais urgente‖. Com esse intuito de reconstruir a economia europeia teremos a criação de um plano pelos Estados Unidos, com o nome de ―Programa de Recuperação Europeia‖, mais conhecido como Plano Marshall (1947), idealizado pelo general George Catlett Marshall. O plano consistia em empréstimos e doação de recursos financeiros aos países da Europa: esses empréstimos dependiam do quão devastado o país estava pós Segunda Guerra Mundial. Alemanha e França foram as mais beneficiadas por este plano devido ao tamanho estrago que foi causado durante a guerra. No entanto veremos que houve muito mais doações de verba do que empréstimos. Os Estados Unidos impunham seus planos políticos e econômicos sobre a Europa, que nada podia fazer. O dólar era uma moeda forte e valorizada, porém essa supremacia não durará muito: a Guerra do Vietnã (1964-1965) desmoralizou os Estados Unidos perante os demais países e dividiu a própria nação americana. Sobre isso temos uma explicação muito sucinta de Hobsbawm (2011,p. 238): Os dólares são escassos em 1947, haviam fluído para fora dos EUA numa torrente crescente, acelerada – sobretudo na década de 1960 – pela tendência americana de financiar o déficit gerado pelos enormes custos de suas atividades militares globais, notadamente a Guerra do Vietnã (depois de 1965), e pelo mais ambicioso programa de bem-estar social da história americana. Nunca antes na história houve uma dependência tão grande de país para país: a guerra afetou a todos, de pequenas ou extremas formas, mas afetou e agora temos uma economia global, de forma que um país é dependente do outro. Nesse período, entre as duas superpotências vitoriosas em 1945, começa uma guerra ideológica entre capitalismo (EUA) e socialismo (URSS). Como já foi dito, essas duas potências disputariam a supremacia econômica e militar do mundo. Porém, em nenhum momento elas chegam a se enfrentar militarmente de forma direta. 21 Figura 1: Ilustração da disputa EUA-URSS. Disponível em: <http://costalonga.files.wordpress.com/2012/07/cold_war_by_costalonga-d4bdjsg.jpg>. Acesso em: 20 abr. 2014 Orivaldo Leme Biagi (2001, p. 62-63) expõe que as grandes discussões historiográficas em torno da Guerra Fria tendem a assumir duas posturas bastante distintas: ―1ª) foi uma construção soviética, que queria expandir o comunismo para o resto do mundo; 2ª) foi uma construção norte-americana, para justificar suas ações e consequentes intervenções que tiveram fora do domínio soviético.‖ Ambas as posturas são plausíveis e mostram a dinâmica pela qual os conflitos acorriam. Teremos também um imaginário, neste período, que irá assombrar a humanidade: a ―ameaça nuclear‖ era constante. Rodrigo Fernando More (2014, p. 01) define esse período como [...] um temor constante, alimentado pela instabilidade das relações entre as duas superpotências, de que a qualquer momento num simples apertar de botões estaria a humanidade face a face com o armagedom, com a completa destruição da vida pelas armas nucleares, cujo potencial destrutivo fora testado e apresentado ao mundo em agosto de 1945 sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Sob essa perspectiva, a Guerra Fria pode ser entendida como algo que causa uma angústia constante de não se saber o que acontecerá a qualquer momento. Esse imaginário ao qual More se refere será notado em praticamente em todo o desenrolar do século XX e será importantíssimo para melhor compreensão do assunto, sempre levando em conta essa questão do mundo polarizado entre Capitalismo e Socialismo. Se, com apoio dos EUA, o sistema capitalista ganhava terreno na Europa Ocidental, no Japão, no Oriente Médio e na América Latina, as propostas socialistas eram defendidas, além do Leste Europeu, sobretudo em países como China (1949) e Cuba (1959). 22 Para polarizar ainda mais o mundo, teremos a criação da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), em 1949, que será uma aliança militar, uma ajuda mútua no caso de agressão por outro país, formada exclusivamente por países ocidentais capitalistas, tendo como seu principal nome os Estados Unidos. O principal intuito dessa organização será inibir o avanço do bloco socialista sobre o continente europeu. Assim, era fundamental para os EUA a preservação de sua influência na Europa Ocidental. Leonardo Dall Evedove (2004), em pesquisa feita na Unesp, define que a ordem capitalista deveria ser preservada ―seja em termos de distribuição do poder mundial, seja pela preservação das relações econômicas entre as partes que incidiam diretamente sobre a existência de ambas enquanto países democráticos e capitalistas‖. Em 1955, a URSS criará o Pacto de Varsóvia, formado pela URSS e os países socialistas do Leste Europeu que tinham como objetivo uma aliança militar, ou seja, ajuda mútua também para inibir a expansão do capitalismo no Leste Europeu. Figura 2: Desenho geopolítico da Guerra Fria Disponível em: <http://megaarquivo.files.wordpress.com/2012/04/guerra_fria_1980.png>. Acesso em: 12 out. 2014. Agora que temos clara a divisão entre Capitalismo (EUA) e Socialismo (URSS), OTAN e Pacto de Varsóvia, vamos passar a nos concentrar em quais países teremos essas ―brigas de braços‖, ora apoiando o capitalismo, ora o comunismo. Como já foi mencionado, em nenhum momento teremos uma guerra declarada entre EUA e URSS. No entanto, eles utilizavam da ameaça nuclear para forçar outros países a aceitar suas imposições, havendo vários confrontos 23 não declarados entre essas duas potências, como a Guerra do Vietnã (1964-1975), a Guerra da Coreia (1950-1953) e a Guerra do Afeganistão (1979-1989). Além dos conflitos militares e das disputas econômicas, a polarização da Guerra Fria implicava também um confronto cultural e ideológico. Diversos grupos sociais e partidos políticos no mundo capitalista ocidental, por exemplo, buscavam inspiração em formas alternativas ao sistema capitalista: nesse sentido, movimentos estudantis, artísticos e intelectuais agitavam a cultura no período. Uma radical mudança nos costumes começava a ganhar corpo nos anos 1960. 24 2 OS ANOS 1960: A DÉCADA QUE NÃO QUER CALAR Começaremos esse capítulo apresentando possíveis agentes causadores de uma década que ficou marcada na história, com peculiaridades até então não vistas em todo processo histórico anterior. A geração pós-guerra começa a levantar-se e fazer voz perante a sociedade que ―causou a guerra‖. A sociedade na qual essa geração está inserida ainda continua a mesma em sua estrutura conservadora e repressiva. Essa geração dos jovens possuía reivindicações fortes perante essa sociedade caduca: reivindicações relacionadas ao aspecto da liberdade sexual e da despatronização do indivíduo perante a sociedade capitalista, que exaltava o individualismo. Deve-se levar em consideração que os jovens propõem uma modificação no aspecto cultural e não político. Segundo Cidreira (2012, p 96), o descaso com a política está atribuído a [...] Adorno e Horkheimer (1985) defenderam a tese que os indivíduos voltaram às costas para a política em virtude da exacerbação de personalidades narcisísticas dedicadas ao consumo e a individuação. É interessante notar que a própria sociedade capitalista, individualista e de consumo tenha criado seu oposto: a coletividade e a comunidade de compartilhamento. Na década de 60 nasce um novo modo de ser, que buscava sua afirmação longe do aspecto do ter bens materiais, longe da padronização repressiva sexual imposta pela religião. Figura 3: Ilustração que representa a repressão sexual Disponível em: < http://www.ronaud.com/wp-content/uploads/2011/05/no-sex.jpg >. Acesso em: 01 nov. 2014. 25 Sobre o aspecto repressivo sexual, o filósofo Nietzsche (1957, p.72) nos apresenta uma provocação diante da castidade, do ―casar virgem‖: [...] A pregação da castidade é excitação pública contra a natureza. Todo o desprezo da vida sexual, toda a sua adulteração através da noção de «impureza» constitui delito de lesa-vida,verdadeiro pecado contra o espírito santo da vida. Nietzsche enxerga que a própria repressão instiga em si uma excitação, ou seja, ela cria um desejo maior e impulsiona o individuo a cometer aquilo que se considera ―proibido‖ ou ―errado‖ pela sociedade. Digamos que os jovens foram instigados a ir na contramão do que se considerava o ―certo‖ e de boa conduta pela sociedade vigente da época. Não por menos, Nietzsche será um dos pensadores mais influentes nos círculos intelectuais dos anos 1960 e 1970, entre esses intelectuais estão: Michel Foucault, Jean-Paul Sartre e Marcuse. Na década de 60 os jovens vão criar uma contracultura, um novo modo de existir. Luís Carlos Maciel Pereira (1984, p.13), definiu contracultura como: [...] O termo ―contracultura‖ foi inventado pela imprensa norte-americana, nos anos 60, para designar um conjunto de manifestações culturais novas que floresceram, não só nos Estados Unidos, como em vários outros países, especialmente na Europa e, embora com menor intensidade e repercussão, na América latina. Na verdade, é um termo adequado porque uma das características básicas do fenômeno é o fato de se opor, de diferentes maneiras, à cultura vigente e oficializada pelas principais instituições das sociedades do ocidente. Contracultura é a cultura marginal, independente do reconhecimento oficial. No sentido universitário do termo é uma anticultura. Nos movimentos organicistas, a individualidade se dissolve na massa. Os hippies são o grande exemplo da quebra de paradigma com o individualismo capitalista, porém devemos entender que a dissolução na massa não faz do individuo inexistentes ou sem importância, pelo contrário, o que se procura construir é uma identidade única fora dos padrões individuais, apresentando como o novo modo de vida a coletividade e em seu cerne teremos como características da ruptura com o velho mundo, o fator musical (rock), o fator corporal (sexo) e o fator substancial (drogas). Segundo Cidreira (2008, p. 38), a música é dada como pertencimento a uma dada tribo, onde o som ―converte-se numa religião elétrica em que os músicos de rock revivem a função mágica do xamã das antigas tribos, transmitindo à comunidade o poder de suas experiências através do ritual da música‖. Cidreira (2008, p. 41) nos apresenta uma informação mais objetiva sobre esse aspecto: 26 [...] Por isso mesmo a força da aparência na constituição e solidificação de grupos específicos; a indumentária é acolhida como um dos mais significativos emblemas de uma série de transformações que os jovens almejavam, uma vez que é um elemento visual e um artifício que se cola ao corpo, a própria pele, como uma verdadeira extensão do ser humano. Como ―xamã‖ do rock and roll teremos Jim Morrison, nascido em 1943, vocalista do grupo The Doors, que influenciará toda uma juventude das décadas de 60-70, com seus shows teatrais no palco e posteriormente com suas poesias. Parte de toda uma geração de músicos importantes nos anos 1960-70 (Jimi Hendrix, Janis Joplin etc.), parecia que tanto na música como em suas poesias, Jim não queria criar modelos, fórmulas de como viver, mas sim apenas aumentar o leque de possibilidades de vidas. Jim morre em 03 de julho de 1971, Rosangela Patriota (2005, p. 12) atribui a morte de Morrison a um mistério: [...] O atestado de óbito revelou problemas cardíacos. No entanto, outras versões falam de uma overdose, em um bar da cidade, que o deixou em coma e,nesse estado, fora levado para casa. Essa morte mal explicada deu origem a lendas acerca do xamã dos anos 1960. Entre essas lendas destaca-se uma possível aparição de Morrison em alguma parte do mundo e ―em New Orleans onde um romance bizarro foi mesmo (mal) escrito sob o seu nome‖ (PATRIOTA, 2005, p.12), este rumor e fato, alavancou ainda mais o título de xamã a Morrison. Figura 4: Foto de Jim Morrison em seu show Disponível em: < https://warosu.org/data/fa/img/0082/24/1400055315452.jpg >. Acesso em: 01 nov. 2014. 27 Morrison está entre os ídolos do rock dos adolescentes que possui um estereótipo de conduta contrária a valores padronizados pela sociedade, de modo que será incorporado pelos jovens como o patrão fora dos patrões. Os jovens viam a seus ídolos do rock como o novo, como o diferente, inspiraram-se neles e adotaram seu estilo, tanto de vestimenta quanto de comportamento. Entre esses ídolos estão: Elvis Presley, John Lennon, Jerry Garcia, Janis Joplin, Jim Morrison, Jimi Hendrix e Kurt Cobain. Voltando aos aspectos de ruptura com o velho mundo, teremos uma despatronização nas vestimentas. O ―movimento hippie‖ surge como um grande despatronizador de vestimentas, aderindo a roupas leves e coloridas. O terno e gravata, roupas típicas de status social masculino, características da sociedade conservadora, vão perdendo espaço, dando lugar a roupas mais leves, soltas e largar. Cidreira (2008, p.36) nos apresenta um dado sobre como teria surgido à primeira comunidade hippie: [...] De acordo com as pesquisas de Daufouy e Sarton, atualizadas por Tupã Correia, teria sido um grupo de professores e estudantes de arquitetura, psicologia e ciências sociais que,numa ruptura frontal com o sistema de ensino que eles chamavam de esclerosado e decadente, teria fundado a primeira comunidade hippie de que se tem conhecimento. A comunidade foi batizada de Drop City e tinha como meta fomentar a criatividade de seus membros através do contato direto coma natureza, bem como buscavam eliminar todos os padrões hierárquicos de chefia ou de governo e toda forma de trabalho organizado. Esse é um dado importante, a busca de um modo de vida diferente parte de pessoas com uma formação intelectual significativa. Causada esta pela insatisfação com o sistema de ensino vigente. Uma hipótese seria que essas pessoas tivessem a consciência da padronização dos indivíduos e não queriam fazer parte dessa sociedade controladora e repressiva, adotando assim um modo de vida alternativo. O movimento hippie apresenta uma mudança de mentalidade: as roupas, as músicas e as drogas são apenas expressões desse modo diferente de encarar a realidade, dessa mudança de romper com o velho e criar o novo. Nesse sentido, o movimento hippie não apenas cria um modo diferente de viver em contato com a natureza: na paz, no amor, na passividade, na busca do equilíbrio consigo mesmo, na preocupação ambiental, na liberdade corporal e sexual, como também apresenta a naturalização desses comportamentos e radicaliza a impossibilidade de viver de outro modo, fora deste proposto por eles, qualquer adesão a outra forma de viver, está intimamente relacionada aos aspectos da velha sociedade repressiva, controladora, capitalista e padronizadora. 28 O capitalismo possui uma peculiaridade surpreendente: ele naturaliza até mesmo modos de vida que estão na contramão de sua padronização inicial. No entanto, o ―ser hippie‖ também foi padronizado, todo idealismo que se tinha antes, capaz de colocar a sociedade vigente em risco sucumbiu. Mas esta perda de força não está no movimento em si, mas sim no quesito surpresa que o mesmo continha inicialmente. Encarando o modo de vida alternativo de forma natural pertencente à própria sociedade, o instigamento do ―proibido‖ e do ―errado‖ se dissolve e com ele também adesão para esse modo de vida. Digamos que a surpresa de um movimento a par da sociedade fez mais ―barulho‖ do que o próprio movimento em si. Porém é inegável disser que o movimento hippie não trouxe mudanças significativas no aspecto cultural para o processo histórico. Apesar do que foi apresentado acima, não podemos diminuir o valor de um movimento contracultural. O movimento hippie não tomou essas proporções por acaso, não foi apenas por diversão ou uma ideia qualquer e sim à recusa ao modo de viver capitalista, como bem expõe Guy Debord (2003, p. 32): [...] O espetáculo é o momento em que a mercadoria chega à ocupação total da vida social. Tudo isso é perfeitamente visível com relação à mercadoria, pois nada mais se vê senão ela: à mercadoria, pois nada mais se vê senão ela: o mundo visível é o seu mundo. Esse trecho de Debord causa uma angústia, pois nada existe além da mercadoria, tudo é mercadoria, a sociedade que os hippies estão recusando é esta sociedade que padroniza e vende ideais de beleza, do melhor emprego, da família perfeita, do modo de se vestir e se portar correto, das crenças e exposições públicas aceitas, do pai e mãe perfeitos, vendendo até mesmo a felicidade – enfim nascer, crescer, trabalhar, casar, envelhecer e morrer. Era justamente essa vida padronizada, sem emoção e ―certinha‖ que foi recusada pelos jovens da década de 60-70. Como atitudes que faziam um divisor de águas entre o velho que estava se deteriorando e o novo mundo que estava nascendo, estão o sexo na juventude e a utilização de drogas. Debord continua (2003, p. 50): [...] sem dúvida, a pseudo-necessidade imposta no consumo moderno não se opõe a nenhuma necessidade ou desejo autêntico, que não seja, ele próprio, modelado pela sociedade e pela sua história. Em outras palavras todo desejo é modelado pela ―Sociedade do Espetáculo‖, em que as estruturas de produção capitalistas prendem os indivíduos a uma relação de alienação com a sociedade e a mercadoria, no contexto de uma ―massificação‖ dos objetos culturais. No 29 entanto, seguindo o raciocínio de Guy Debord, o indivíduo não percebe que esse desejo foi criado nele por um agente terceiro (as estruturas de produção e reprodução capitalistas) e acaba adotando esse desejo como uma necessidade, algo que deve ser suprido. Figura 5: Foto que representa a ―Sociedade do espetáculo‖ onde o indivíduo é apenas um telespectador Disponível em: < http://www.ojornalista.com/wp-content/uploads/2011/03/sociedade_espetaculo.jpg >. Acesso em: 01 nov. 2014. Esse tipo de ―lavagem cerebral‖ é perfeito, principalmente em uma sociedade capitalista, onde se vende uma infinidade de produtos inúteis, porém vendidos ideologicamente como necessidades existenciais de status, de poder, de ―boa pessoa‖. Debord (2003, p. 73) afirma que ―uma coisa é conhecer uma necessidade, e outra é pôrse ao serviço desta necessidade‖. Nesse sentido, os indivíduos sempre consumiram: o que marca o capitalismo do século XX, no entanto, é a construção de uma vida dedicada apenas ao consumo. A existência deve valer mais do que um potencial de compra, afinal, ―como diria Millôr Fernandes, o importante é ter sem o que ter te tenha‖ (CORTELLA, 2012, p. 52). Trata-se de uma forte reivindicação, pois essa é uma questão individual, pois não há necessidade de protestos ou de uma revolução para atacá-la ou reconhecê-la. É apenas uma questão de consciência. Abordemos agora a questão fundamental para o entendimento das mudanças radicais de mentalidade e de comportamento, alterando os gostos e os ideais dos jovens nos anos 1960. As reivindicações ocorrem em torna da ―liberdade‖: liberdade no modo de existir e viver, liberdade nas escolhas e nos anseios do corpo. A sociedade inibia a liberdade individual, 30 controlando e dominando o coletivo para que essa liberdade não se expressasse, ou que não chegasse ao âmbito público. No entanto essa tentativa de prender o individuo, padronizandoo, não durou muito. Os jovens logo se voltaram contra essa repressão do Estado, da Igreja e dos pais. Criaram por si próprios um modo diferente de viver, um modo coletivo, onde poderiam se expressar como se sentiam. As vestimentas que eles usavam eram fieis aos seus sentimentos, o branco e preto dão lugar ao colorido – vermelho, verde, azul e amarelo, cores alegres, cores vivas, era assim que os jovens queriam se sentir, vivos, poder respirar o ar puro da liberdade (ALONSO, 2009, p.49). ―Faça amor, não faça guerra‖: os hippies apresentavam essa frase de aspecto pacifista contra a Guerra do Vietnã, na qual milhares de jovens americanos estavam lutando na década de 60. A reivindicação era para o não alistamento desses jovens para a guerra. Já foi discutido anteriormente que a Guerra do Vietnã dividiu a população americana e fez os EUA perder sua legitimidade perante os demais países no período da Guerra Fria, justamente pelos EUA, uma potência mundial, possuir vantagens enormes perante um país pequeno e com um armamento deficitário como o do Vietnã. O sexo passa a ser naturalizado desde sedo, o consumo de drogas é um escapismo do mundo que ainda não via as condutas dos jovens como uma forma alternativa de viver, mas sim como pessoas loucas, doentes, depravadas e fracas. Cidreira irá nos apresentar a ideia que o sociólogo Michel Maffesoli defende, enfatizando que o surgimento do movimento hippie marcou o início do que ficou conhecido como pós-modernidade, de modo que esse neotribalismo ―seria o novo modo de agregação social cujo vínculo se estabelece a partir do ponto de vista afetivo‖ (CIDREIRA, 2008, p.37). Diante dos aspectos levantados, das questões propostas e das possíveis causas que levaram posteriormente às mudanças radicais na década de 60, observemos o resumo que Cidreira (2008, p. 36) apresenta sobre este período, evidenciando, entre os anos 1960 e 1970, a existência de Movimentos como o psicodelismo, o feminismo, uma certa revitalização da volta à natureza, festivais de música que se transformam em verdadeiros happenings de liberação, vertigem, a proposição de uma nova forma de relação, em que se privilegia o amor livre, movimentos estudantis e as comunidades hippies, entre outros. Uma sensação de instabilidade e a consequente necessidade de escapismo – própria de momentos de grande reviravolta de valores –, promovem, na grande maioria dos jovens, a necessidade de uma vida mais saudável, simples, natural. Podemos abrir um destaque para o que Cidreira apresenta, com relação à reivindicação do simples. A sociedade complexa não mais interessava aos jovens. O excesso de 31 responsabilidades é visto de uma perspectiva de controle da própria liberdade individual. Os jovens tem um grande anseio pela liberdade e vão contra tudo que os impeça te ter essa liberdade do ser, do se expressar como se é. 32 3 MAIO DE 1968: PROTESTO, JUVENTUDE E HISTÓRIA A França nas décadas que se prosseguem após a Segunda Guerra encontra-se muito bem economicamente e parecia que politicamente e socialmente também. Apesar da recuperação da economia francesa, muitos jovens buscavam alternativas ao consumo e à ordem capitalista. Além disso, diversas mudanças nos comportamentos e na cultura começavam a agitar os anos 1960. Para o historiador Eric Hobsbawm (2011, p. 263), ―o crescimento repentino dos números da educação, especialmente do ensino superior, são um dos motivos que explica as mudanças da década‖. Segundo ele ―no final da Segunda Guerra Mundial, havia mais de 100 mil estudantes na França. Em 1960 eram mais de 200 mil e, os dez anos seguintes, esse número triplicou para 651 mil‖. Voltemos nossa atenção para aqueles que construíram o movimento, os assim chamados ―filhos da burguesia‖, aqueles que nasceram com privilégios e desfrutam do que a sociedade tem a oferecer de melhor. Essa afirmação nos remete a uma grande questão: por que os ―filhos da burguesia‖ fizeram tal movimento com tamanha violência? E a resposta mais provável é a do filósofo Herbert Marcuse (apud MATOS, 1981, p. 38), pois segundo ele [...] Esta questão, ao mesmo tempo em que silencia o fato de que muitos estudantes são obrigados a trabalhar para prosseguir com seus estudos, recobre um erro fundamental: a ideia de que só a miséria material justifica a revolta e de que um homem ‗que tem tudo que precise‘ (no plano material) deve se encontrar igualmente satisfeito no plano moral. Na sociedade atual, o intelectual é por essência insatisfeito. A televisão, a imprensa, os bens de consumo utilizados como meio sistemático de opressão contribuem para criar um universo material e espiritual no qual o intelectual não consegue fazer compreender sua exigência de verdade e liberdade. É imprescindível tamanha reflexão sobre essa questão. Marcuse aponta de forma magnífica que a pobreza moral é gerada por uma essência de insatisfação e aqueles que atribuem a revolta legítima apenas daqueles que possuem miséria material realmente não entendem a essência do homem.Ter riqueza material não necessariamente garante satisfação moral, como bem atribui Marcuse. O filósofo alemão, assim, argumenta, (apud MATOS, 1981, p. 37) [...] as minorias oprimidas tem o direito natural de resistir e de recorrer a meios extralegais se os meios legais se revelam inúteis. Se utilizam a violência não é para engendrar uma nova cadeia de violência, mas para por fim a violência estabelecida. 33 A violência à qual Marcuse se refere é a violência contra a moral, um sentimento desesperador por mudança que inunda os jovens da década de 60. Sobre essa questão veremos que os jovens tinham, sim, motivos pelo qual se movimentarem. E não só isso: os jovens acreditavam realmente em uma revolução ideológica, como bem disse Olgária Matos (1981, p. 21): ―O desejo revolucionário será muito mais marcante do que a situação revolucionária. Talvez por isso o movimento foi muito mais capaz de contestar do que vencer, de imaginar do que transformar, de se exprimir do que se organizar‖. O movimento de 1968 nas ruas de Paris foi uma revolta e uma revolução. Figura 6: Foto da manifestação Maio de 1968 Disponível em: < http://www.photos-mai68.com/images/20071129015127_1968_mai_paris_manif_0794r.jpg >. Acesso em: 09 nov. 2014. Constataremos os pormenores dessa afirmação ao longo desta reflexão. Comecemos pela frase de Claude Lefort (apud MATOS, 1981, p. 21): segundo ele a ―revolução mobiliza sempre aqueles que veem arruinadas suas esperanças‖. Nesse sentido, ―aqueles que em maio de 68 se sublevaram estavam recusando muito mais uma certa forma de existência social do que a impossibilidade material de subsistir nesta sociedade.‖ 34 Quais esperanças dos ―filhos da burguesia‖ teriam sido arruinadas? Constatamos agora pouco a legitimidade de tal revolta/revolução perante a insatisfação moral, gerada claro por uma utopia, de que as coisas poderiam ser diferentes do que são. Lefort também nos apresenta dados importantes com relação à finalidade da revolta: de forma alguma constatamos que a revolta era contra o sistema regente na França e muito menos que o movimento de maio de 68 levanta alguma bandeira ideológica homogênea, senão a da felicidade, como está bem exposto nesse grafite parisiense: ―a felicidade é uma ideia nova na escola da ciência política‖ (ARQUIVO N.., 2008). O movimento maio de 68 exemplifica bem o que expõe Matos (1981, p. 08) em seu livro: ―maio de 68 continua rebelde à interpretação, pois revela a incongruência das teorias e das doutrinas que procuram dar conta da sociedade‖. O movimento se apresenta como ―metamarxismo e metacartesiano‖, não levantando propriamente uma bandeira ideológica, seja de cunho marxista ou socialista. Não podemos nos esquecer de um dado importante: a Guerra Fria estava a pleno vapor, tanto que muitos autores vão atribuir incongruência ao movimento devido a essa ―imparcialidade‖ ideológica. Observemos essa declaração de um panfleto de paris no mês de maio: [...] Vocês não são coerentes com vocês mesmos, ao pretender aproximar os acontecimentos de Paris dos de Praga. Em Praga, os estudantes querem se livrar das estruturas socialistas para ir a um regime liberal, enquanto que em Paris é exatamente o contrário, os estudantes querem se livrar de estruturas capitalistas por um regime da tendência socialista. (MATOS, 1981, p. 32) A ambiguidade entre capitalismo e socialismo contínua na Guerra Fria, influência profundamente para acusar determinado movimento de anticapitalista ou anticomunista. Percebemos aqui a impossibilidade de mudança dentro do mesmo sistema: ao longo da nossa reflexão deste trabalho constataremos que é justamente o que os estudantes estão tentando criar. Outro dado importante que Lefort (apud MATOS, 1981, p. 21) nos apresenta para o entendimento das manifestações estudantis será: [...] os estudantes perceberam que a formação técnica que lhes é oferecida só permitirá a um número reduzido alcançar funções de responsabilidade que queriam iniciativa, que a maior parte das funções que disputarão pedem uma qualificação inferior aquela que recebem na universidade e finalmente que muitos não escaparam ao desemprego. Trata-se de uma questão realmente interessante, pois é muito plausível essa reflexão de que os jovens poderiam ter se movimentado antes de entrarem no mercado de trabalho, 35 propondo mudanças significativas. No entanto, a questão pode ser bem mais profunda, pois se assim não fosse teríamos inúmeras revoltas. Essa consciência de ―vai me faltar emprego‖ por si só não mobiliza uma grande massa. A questão é bem mais contingente com relação a uma mudança de melhoramento do que já existe, propondo mudanças bem mais amplas, abrangendo diversos aspectos do que uma simples revolta. De qualquer forma, é uma questão pequena a ―falta de emprego‖ quando comparada aos ideais de mundo que os jovens propuseram com seus movimentos. ―Nenhum incêndio começa grande‖ (Cortella, 2014, p. 15), começamos com essa frase para podemos ir mais profundo nas questões de como se dá o processo de uma revolta/revolução. Nesse sentido, Lefort (apud MATOS, 1981, p. 09-10) irá atribuir à revolução a seguinte exposição [...] toda revolução tem o seguinte singular, de paradoxal: ela mobiliza as paixões a ponto de fazer a alguns perder – qualquer que seja seu campo - o sentido de distinção do real e imaginário, do possível e do impossível, e, por outro lado, libera, mesmo aqueles que pouco antes não duvidaram de suas prerrogativas, mas sobretudo naqueles que estavam habituados a submeter-se e calar-se, a vontade de se afirmarem e estabelecer uma ruptura entre o verdadeiro e o mentiroso. E como é preciosa essa reflexão: aqueles que já estiveram em uma manifestação entendem bem o que Lefort está expondo. É como se você fosse algo maior, como se tudo que você sempre sonhou pudesse ser concretizado apenas se manifestando. Assim, a distinção entre o que é imaginário e o real não existe, como bem expõe Lefort, pois o sentimento de pertencimento a massa é extraordinário. É importante saber que aquele que está ao seu lado luta pelas mesmas causas que você. É gratificante até mesmo morrer por essa causa, como ocorrerá com alguns jovens que se manifestaram. ―Indivíduos que se unem, como diz La Boetie, por amizade e não por cumplicidade, unem-se sem poder.‖ (MATOS, 1981, p. 15) Observando as informações que coletamos até agora, constatamos que não é necessário que exista uma pobreza material para que existam movimentos de mudança. A questão é bem mais profunda do que ―ficar desempregado‖, quanto de se ingressar no mercado de trabalho. Outro dado está na questão da violência: é legitima uma violência para coibir outra violência, como expõe Marcuse. Não esqueçamos também que em uma revolução as fronteiras entre o real e o imaginário não existem e que números maiores de estudantes na universidade fomentam condições propícias para movimentos de mudança. Os jovens também não estavam recusando o sistema capitalista como se pensava, mas sim tentando melhorá-lo. 36 Por vezes acreditou-se que os jovens estavam recusando todas as formas de autoridade e todas as normas de moral. No entanto, Henri Weber (ARQUIVO N.., 2008) nos dará um respaldo melhor a esse respeito, afirmando que ―nós recusamos o autoritarismo e não a autoridade, a moral hipócrita, repressiva, tradicional e não todas as formas de moral.‖ Henri Weber era um dos principais líderes do movimento de maio de 1968. E numa tentativa desesperadora de mudar aquilo que ―sempre foi‖, os jovens vestem a camisa de revolucionário e rompem definitivamente com o velho mundo. Eles diziam que ―o mundo é organizado pela geração que fez a guerra, que viveu coisas terríveis, não era o nosso mundo‖. E continuam: ―professores, vocês são velhos, assim como a cultura de vocês‖ (ARQUIVO N.., 2008). ―O que nos sentíamos é que nós queríamos ser donos do nosso futuro, queríamos fazer o mundo tal como amaríamos viver‖. (ARQUIVO N.., 2008) Trata-se de uma reivindicação forte, complementada pela seguinte: ―queríamos fazer do mundo tal como amaríamos viver‖. Esse era o espírito os jovens que se dispuseram a lutar para ter esse futuro, como Tom Hayden, ativista político, (ARQUIVO N.., 2008), irá apresentar: [...] A maior parte da imprensa diz que 68 era selvageria, uma loucura, rua, rock‘n roll, sexo, drogas, agitação, confusão, policias com cassetetes e você fica com a impressão que o mundo ficou louco, mas havia uma lógica por trás disso, que não ainda não foi explicada.Se fosse só insanidade teria terminado, mas foi uma grande mudança e foi também o começo de mudanças de longo prazo. Uma ideia interessante que podemos extrair do texto exposto acima é referente ao ―fim‖ do movimento de maio de 68. O movimento continua uma incógnita: afinal, como ele apresenta uma gama de pluralidade, torna-se complicado apontar seu inicio ou seu término. Zuenir Ventura (1988), por exemplo, apresenta a frase ―maio de 68 ainda não terminou‖: diante desde pensamento podemos ter a visão de que o movimento pode ter apenas adormecido e que hora ou outra poderá se expressar novamente com força total. Ou podemos dizer, também, que o movimento tenha sucumbido diante das mudanças que foram já conquistadas. Discutiremos mais sobre essa questão no final do trabalho. Contrapondo a discussão acima, constataremos que, apesar de todas as conquistas pretendidas no campo ideológico não terem sido alcançadas no campo material, Marcuse (apud SANTOS, 2005, p. 64) nos apresentará a ideia de que, ―a dominação e o controle chegam a tal ponto que uma revolta serviria apenas para substituir um grupo dominante por outro, ou até mesmo para estabelecer um novo e melhor sistema de dominação‖. 37 É inegável que ninguém esperava que acontecesse um movimento tal como o de maio de 68, porém ele aconteceu e agora a sociedade do controle tampará todos os buracos possíveis para que esse tipo de movimento não se repita, criando se assim meios mais eficientes de controle imperceptíveis. O sociólogo Pierre Bourdieu (1989) viveu durante esse período, de modo que expõe claramente em seu livro O poder simbólico esses mecanismos de dominação – e, pior, a naturalização deles nas sociedades contemporâneas. Lutando contra formas de dominação e de autoridade, os jovens de 68 criticavam, em muitos momentos, a própria estrutura burocrática de partidos tradicionais: [...] Quando as cartas estão na mesa, o Partido Comunista Francês e os trabalhadores sob sua influência provaram ser o último e mais efetivo ―freio‖ do desenvolvimento da atividade revolucionária da classe trabalhadora. (SOLIDARYTI, 2003, p. 09) Como bem exposto na colocação acima, os sindicatos atrapalharam e praticamente boicotaram a ―revolução‖ de 1968, principalmente por causa da desconfiança que tinham nos estudantes e por quererem que os próprios sindicalistas fossem os líderes da revolução. Pelas manifestações de 68 os sindicalistas não moveram um dedo a favor. Pelo contrário, pareciam totalmente contra o movimento de 68. Segundo Henri Weber (ARQUIVO N.. 2008), líder estudante influente, podemos indicar que: [...] O general De Gaulle não compreendia, não compreendia nada mesmo. Ele estava muito afetado com esse grito da juventude e os movimentos sociais que se seguiram e ele pensou em deixar o poder de fato. Deu ordem a Pompidou, seu primeiro-ministro, de reprimir o movimento, de retomar a Sorbonne e o Tetro de I‘Odeon. ―A reforma sim, o caos não.‖ O historiador Eric Hobsbawm, em um texto importante sobre as lutas de 68, aponta um aspecto interessante sobre seus significados políticos mais profundos. Embora Maio de 68 não fosse uma ―revolução clássica‖ (nos moldes de uma revolução operária ou camponesa), os movimentos expuseram a fragilidade e alçaram diversas insatisfações contra o sistema político e econômico: [...] A crise de maio não era uma situação revolucionária clássica, embora as condições para tal situação pudessem ter se desenvolvido muito rapidamente como consequência de uma ruptura repentina e inesperada em um regime que mostrou ser muito mais frágil do que qualquer um previra (HOBSBAWM, 1985, p. 240). Como afirmamos, o presidente da França de Gaulle, vendo a situação fugindo de seu controle, dá ordens para reprimir o movimento estudantil, tanto na Sorbonne quanto no Tetro 38 de L‘Odeon. Os estudantes na Sorbonne iriam enfrentar uma verdadeira guerra de gás lacrimogêneo e cassetetes. Os policiais iram reprimir o movimento estudantil duramente: o que ficará conhecido como ―noite das barricadas‖. Olgária Matos confere especial atenção para essa noite cunhada de ―Barricadas do desejo‖, uma luta da liberdade pretendida, contra a repressão policial. Figura 7: Foto que mostra a barricada que os estudantes criaram para fazerem resistência perante a ação policial. Disponível em: < http://www.photosmai68.com/images/20071128183257_1968_mai_paris_manif_etudiants_barricade_0904r.jpg >. Acesso em: 09 nov. 2014. Apesar dos esforços, os polícias conseguem expulsar e prender os estudantes da Sorbonne. Vendo que a situação estava controlada, o presidente De Gaulle prefere dar anistia aos estudantes que estavam presos, com a intenção de recomeçar, como se o movimento estudantil, fosse um erro, e que esse erro estaria perdoado. O presidente De Gaulle pensou que assim as coisas voltariam a se normatizar e que aquele seria um movimento que nem deveria ter acontecido. Porém a história prega peças, momentos inesperados acontecem, e maio de 68 ainda não havia mostrado toda sua força naquele ano. Concomitantemente a isso, teremos uma organização da CGT (Confederação Geral do Trabalho), que irá organiza uma greve com alcance de âmbito nacional. O professor Alain Geismar (ARQUIVO N.. 2008), que vivenciou o movimento estudantil em maio de 68, nos apresenta uma visão complementar sobre a importância de 68: 39 [...] O que aconteceu na França de 68 e que faz da França algo de diferente do que se passava no resto do mundo é que o movimento estudantil abriu uma brecha em que veio junto um movimento operário muito poderoso que teve mais de 10 milhões de grevistas durante semanas. E esse cruzamento dos movimentos estudantil e operário criou uma situação revolucionária incrível. A combinação desses dois movimentos deu à França uma particularidade incomum. A greve afetará o país como um todo. A França irá parar economicamente. A revolução parecia certa, mas como já foi mencionado anteriormente, os sindicatos olham para o movimento estudantil com desconfiança, e com isso não se aliam a eles, tentam criar um movimento a parte, onde os sindicatos seriam os porta-vozes da revolução. Uma união entre esses dois movimentos possivelmente desencadearia numa revolução completa da sociedade, apesar que o movimento estudantil se apresente como apartidário, ou seja, não havia um partido político no comando de todo o processo. O movimento é voltado para as mudanças de hábitos e costumes, portanto culturais. Em contraposição, o movimento dos trabalhadores é por natureza partidário, pois não só tinham ideias fixas das mudanças que deveriam ocorrer como também à organização e os passos que deveriam ser dados dali por diante. Nesse sentido, podemos perceber que o movimento estudantil era um ―obstáculo‖ para o movimento operário e vise-versa, ainda que os estudantes apresentassem grande motivação em se unir aos trabalhadores. Sob essas circunstâncias não poderíamos deixar de citar a influência da Guerra Fria, ou seja, a ambiguidade entre Capitalismo e Socialismo controlando, mesmo que simbolicamente, as manifestações e repressões dos movimentos. O movimento tanto operário quanto estudantil vai perdendo força e acaba sucumbindo. Henry Weber (ARQUIVO N.. 2008) nos apresenta uma perspectiva com relação a isso: [...] No plano político o movimento de 68 foi desfeito. Em junho a direita ganhou as eleições com grande folga.Isso era normal que ele tivesse sido derrotado por que as suas perspectivas não eram realistas.Mas no plano dos costumes e no plano das relações de autoridade isso trouxe muita novidade. Depois de 68, as relações de poder se modificaram em todos os lugares, na família, entre homens e mulheres, entre pais e filhos, nas escolas entre professores e alunos, nas empresas entre chefes e empregados, no Estado entre funcionários e os cidadãos e mesmo na sociedade inteira, entre poder político e as pessoas. Os movimentos de 68 como um todo trouxeram algumas mudanças políticas, ligadas a aumento salarial, melhores condições e menos horas de trabalho e modificação nas matérias universitárias. Mas foi no campo cultural que o movimento de 68 ficará marcado para a história, não apenas de forma física, como também de forma ideológica. O chamado ―É Proibido proibir‖ (MATOS, 1981, p. 35) tornou-se uma reivindicação fortíssima dos estudantes perante os hábitos e os costumes decadentes da sociedade que fez a guerra. Trouxe 40 uma ruptura, mudança radical dos mesmos. Os movimentos de 68, nesse sentido, podem ser entendidos como uma grande crise de autoridade: O Maio francês significou uma crise de autoridade generalizada. Se em 1968 a velha sociedade não morreu, ou melhor, se a nova não chegou a nascer, ela não deixa de ser uma grande e generosa explosão revolucionária [...] A juventude parisiense representou a insatisfação com a ordem conservadora, capitalista e consumidora, numa explosão de espontaneidade, sua virtude e ao mesmo tempo seu defeito (SOARES; PETARNELLA, 2009, p. 349). Figura 8: Ilustração da reivindicação estudantil ―É proibido proibir‖. Disponível em: < http://www.hellcity.blogger.com.br/probido1logofotosim.jpg >. Acesso em: 09 nov. 2014. Por toda a França havia pichações em muros, praças e universidades. Os estudantes expressam nas ruas e nas paredes seus ideais de mundo, suas reivindicações, seus anseios, seus desejos, suas vontades. A rua e os muros tornaram-se páginas em branco, onde os jovens poderiam pintar e escrever, serem artistas e poetas, se expressarem como quisessem. Os jovens, tais como os hippies, reivindicavam a liberdade, a liberdade sexual primeiramente. Os estudantes em um primeiro momento pediam a liberação sexual onde meninos poderiam visitar quarto de meninas e vice-versa. Percebendo que eles não teriam êxito apenas pedindo, os jovens tomam a universidade e a partir daí fazem suas próprias regras. 41 Figura 9: Foto de jovem estudante protestando a favor da liberdade sexual (maio de 1968) Disponível em: < http://acasadevidro.files.wordpress.com/2013/08/la-rc3a9volution-sexuelle-de-mai-68-libreet-spontanc3a9e.jpeg >. Acesso em: 09 nov. 2014. O ato de mostrar os seios indica ―um grito por liberdade‖, já que o nu expressa como viemos ao mundo, representa a pureza e a inocência, uma forma de protestar perante a repressão sexual que a sociedade impunha. O ato de 68, simbolicamente, remete a um quadro famosíssimo de Delacroix sobre as manifestações que varreram a França, desde a Revolução Francesa até as barricadas de 1830, onde uma mulher expõe os seios carregando a bandeira tricolor da França. Movidos pelo impossível, os jovens estudantes, conseguiram mudanças rápidas e incorporadas pela sociedade com facilidade, porém ainda com alguma resistência por parte das pessoas mais tradicionais. O sociólogo Edgar Morin (2008), um dos principais analistas dos movimentos de 68, afirma que as manifestações e a tomada das ruas significaram uma verdadeira ―crise de civilização‖. Morin indica que [...] a civilização ocidental ou burguesa estava muito segura de si mesma até 1968. A tese sociológico-histórica era que a sociedade industrial desenvolvida diminuiria ao máximo as desigualdades, resolveria o problema da pobreza e consequentemente generalizaria a boa vida. Era a menos má ou a melhor sociedade possível. 42 Evidentemente, no Leste Europeu se dizia que era o sistema comunista que iria criar um futuro mais radiante. O filósofo Jean-Pierre Le Goff (ARQUIVO N.., 2008) faz atualmente uma crítica radical aos jovens estudantes de 68, que agora são pais e não conseguem transmitir os valores tradicionais de pai e filho. Sobre essa questão, ele expõe: [...] Essa geração tem problemas em transmitir seus valores aos jovens. É uma geração muito narcisista. Ela saturou a imagem de ―toda poderosa‖, da juventude através dos seus discursos. (...) ―É você o autor da história‖, e os jovens que veem depois, vão ter dificuldade em se situar em relação à geração de 68. Por que eles vão ter a impressão de que tudo que fazem é consequência do que viveu o pai deles. Sobretudo quando os pais não querem envelhecer, não agem como pais e sim como amigos.E falam com os filhos como amigos e põem abaixo a autoridade paifilho.Por que a herança impossível de maio de 68 tem esse culto á juventude. É interessante notar as possíveis consequências de maio de 68 nos dias atuais. Como já foi dito, não só a relação pai e filho mudou, como todo o restante das relações, como já nos apresentou Henry Weber. A liberdade que era pedida pelos jovens não era apenas sexual, como também na forma de se vestir, de dançar, de cantar. Foi uma mistura que culminou em 68, mas que diz respeito a todas as mudanças socioculturais em curso nos anos 60, contribuindo para a mudança a longo prazo de hábitos e costumes que estavam na sociedade há séculos. Figura 10: Foto de estudantes manifestando na Bastilha em Paris ( maio de 1968) Disponível em: < http://www.photosmai68.com/images/20071128182740_1968_mai_paris_manif_bastille_0391r.jpg >. Acesso em: 09 nov. 2014. 43 Houve também todo um processo musical que modificou a forma de se vestir e de se portar. As drogas tiveram seu lugar como uma forma de fugir do mundo real: o que, segundo os jovens, não era aquilo que eles desejavam. A mudança nas vestimentas com roupas provocantes e excitantes criaram todo um clima contraposto pelo preto e branco tradicional das saias e ternos. As mulheres começaram a utilizar calças, e pela primeira vez as roupas e os sapatos deveriam ser confortáveis para aqueles que os utilizavam. A pluralidade de 68 fascina: seria errôneo apontar um fator único que desencadeou todos os demais, assim como também seria errôneo dizer quando o movimento terminou, caso ele tenha terminado. Toda a geração atual é fruto desse movimento de 68. A história como processo nos apresenta pontos, movimentos, datas marcantes, mas como o filósofo Nietzsche (2005, p.287) já nos avisou, o que se diz importante na história são apenas ―bolhas que se tornam visíveis sobre a torrente das águas‖. Nesse sentido é importante, sim, levar em consideração os grandes fatos e feitos na História, porém não podemos desconsiderar aquilo que está obscuro e que, por fazer parte de um processo maior, acaba não aparecendo com nitidez e passa despercebido. Maio de 1968 é uma dessas bolhas da torrente das águas: tornou-se visível na história, porém devemos entender Maio de 68 como um processo histórico dotado de uma particularidade única cujos efeitos, muitas vezes subterrâneos, encontram eco e estendem as influências dos anos 1960 até os dias de hoje, essa luta por mais liberdade. 44 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho teve como objetivo apresentar a importância dos eventos de Maio de 1968 na França, enfatizando as particularidades de que essa é apenas uma parte visível dentro de um processo histórico maior, em que, devido a suas pluralidades e particularidades, seria errôneo apontar seu início ou seu término, já que seus efeitos podem ser percebidos e analisados ao longo dos anos 1970, 1980... Discutimos os aspectos imaginários propiciados pela Guerra Fria durante esse período, sem a qual seria impossível entender essa particularidade histórica que é 1968. Levantamos o questionamento em torno da não união do movimento dos estudantes e do movimento dos operários. Destacamos, também, a sociedade do consumo e do espetáculo que cria contraposições de seus modelos e padrões, contextualizando, por exemplo, os hippies e os jovens de maneira geral. Analisamos como as guerras e o militarismo da Guerra Fria marcam profundamente as discussões culturais e políticas dos anos 1960. As fotos complementam o trabalho como um todo e as provocações filosóficas durante ele são colocadas propositalmente para a curiosidade e a reflexão do leitor. O objetivo não era limitar o campo de pesquisa sobre Maio de 1968 em um único ponto de vista. Pelo contrário, o objetivo era expandir o campo de visão apresentando principalmente os aspectos culturais e ideológicos mais amplos, tomando-os como agentes principais da ocorrência desse movimento. A História tem a particularidade de criar situações que as teorias de dado momento não conseguem pontuar seus motivos e muito menos explicar suas causas. Maio de 1968 na França, assim como os jovens estudantes da época, parece rebelde a interpretações prontas e padrões determinantes. 45 REFERÊNCIAS ALBERT Einstein: documentário. Produção: The History Channel. [S.l.]: A & E Television Networks, 2008. ALONSO, A. As teorias dos movimentos sociais: um balanço do debate. Lua Nova, São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n76/n76a03.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2014. ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ARQUIVO N: Maio de 1968. Produção: Globo News. Rio de Janeiro: Globo News, 2008. BIAGI, O. L. O imaginário da guerra fria. Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 6, n. 1, 2001. Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/rhr/article/viewFile/2119/1600>. Acesso em: 15 out. 2014. BOURDIEU, P. O poder simbólico. 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