A guerra - UNESP Marília

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Precisões sobre o conceito de filosofia da guerra
Précis sur le concept de Philosophie de la Guerre
Felipe Luiz1
Resumo: Distintas disciplinas utilizam-se da noção de guerra como material de reflexão,
evidentemente com objetivos e abordagens em muito distintas. A filosofia ela mesma utilizou-a de
variadas formas ao longo de sua história, e até mesmo a doutrina militar comporta um tópico
chamado “filosofia da guerra”. Em nossas pesquisas constatamos a existência de três grandes
abordagens filosóficas da temática, o que não significa, de modo algum, que são as únicas. A
primeira é a guerra como objeto de reflexão filosófica em sentido duro; a segunda comporta a noção
de guerra como metáfora; por fim, a terceira implica a guerra como princípio imanente ou, senão,
enquanto princípio metodológico. Nosso objetivo no presente trabalho é expor os resultados
parciais desta pesquisa.
Palavras-chave: Filosofia da guerra. Filosofia política. História da guerra.
Résumé: De différentes disciplines utilisent la notion de guerres comme matériel de réflexion,
évidemment avec objectives en tout distinctes. La philosophie elle-même ont utilisée cela de
manière très variée pendant sa histoire et la doctrine militaire comporte même un sujet appelé
"philosophie de la guerre". Dans notre recherche nous avons constatée l'existence de trois grandes
approches de cette thématique, qui sûrement ne sont pas les uniques. Dans la première, nous
trouvons la guerre comme objet de réflexion philosophique dans un sens traditionnel ; dans la
deuxième la notion de guerre en tant que métaphore, image ; enfin, la troisième implique la guerre
entendu tel que principe immanente ou, autrement, comme principe méthodologique. Notre
objective dans le présent travail est d'exposer les résultats partiaux de cette recherche.
Mots-clés: Philosophie de la guerre. Philosophie politique. Histoire de la guerre.
***
Introdução
A guerra. Chaga e sina dos homens, presença constante em inúmeras civilizações,
por vezes tomada como punição, noutras entendida ao modo de um ritual de passagem,
onde a essência das pessoas se mostra e a meninice das crianças se esvai do destino de
sangue a porvir, ou ainda mero instrumental da política (KEEGAN, 2003, p. 19-78).
Qualquer que seja a abordagem pela qual se a tome, ela sempre permaneceu fenômeno
Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus de Marília. Orientador:
Rodrigo Peloso Gelamo. E-mail: [email protected]
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Precisões sobre o conceito de filosofia da guerra
intrigante, ademais fecundo em despertar imaginações e pensamentos. Como se sabe, tratase de objeto interdisciplinar por excelência, aspecto tanto mais acentuado nas modernas
formas de guerra, onde o elemento tecnológico crescentemente tem peso decisivo, ao que
se soma todo aparato de especialistas e conselheiros militares nela imiscuídos; a guerra
moderna não é feita somente com chumbo coragem e estrategistas, envolvendo também
físicos, químicos, biólogos e também psicólogos, sociólogos e outros tantos savants das
humanidades (KEEGAN, 2003, p. 19-78). Neste último domínio do saber, houve mesmo
quem afirmasse a causa bélica como raison d’être de suas respectivas disciplinas, como é
sabidamente o caso da geografia.
Em provocando tanto fascínio, que a ninguém surpreenda o fato de que neste no
campo da filosofia, a guerra tenha sido objeto de diferentes escolas e individualidades, que
buscaram refletir sobre seu caráter, dar-lhe a essência, ou mesmo maldizê-la. Contudo, não
se esgotam as filosofias da guerra em concepções estritas, posto que também se a tomam
enquanto metáfora ou, in extremis, como modelo metodológico, ontológico ou
ontometodológico. Ao longo desta pesquisa, identificamos basicamente três abordagens
relativas à noção de guerra, as quais pincelamos acima: uma, filosofia da guerra
propriamente falando, encontrada sobretudo em reflexões de filosofia e ciência política,
mas também em manuais militares. De forma geral, buscam entender o que é a guerra, suas
origens, seu caráter, seu objetivo, enfim, as formas de sua aparição, funcionamento e
finalidades. A segunda vale-se desta noção como metáfora, isto é, não se trata de guerra
efetivamente, “luta armada e sangrenta entre grupos organizados [...] forma de violência
que tem como característica essencial o ser metódica e organizada quanto aos grupos que a
travam e as maneiras como conduzem” (BOUTHOUL, 1964, p. 34); mas, antes, envolve a
guerra como símbolo ou exemplificação em remissão a outro objetivo. Por fim, a terceira
grande abordagem por nos constatada é precisamente esta na qual a guerra ganha um peso
bastante mais extremado, não aparecendo mais como adorno de construtos filosóficos, ou,
senão, como um objeto de reflexão a mais, gota d’água no oceano do pensamento. Aqui, a
guerra é tomada como principio explicativo em sentido forte, como método ou, também,
nas proposições mais arrojadas, ela ganha profundo caráter ontológico, constituindo-se
como essência do mundo, mistério desvelado do que há.
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Adiante traçaremos um panorama das distintas abordagens sem, como veremos,
pretender nem esgotar o tema nem tratá-lo de forma definitiva. Não há a menor sombra de
dúvida que filósofos e filosofias importantes foram excluídos da presente reflexão, uns de
forma consciente conquanto outras podem ter escapado da peneira de nosso esforço.
Evidentemente, por mais ampla que possa ser a ampla a questão que nos toca, esta
das relações entre guerra e filosofia, sempre poderá assomar a uns e outros que a guerra não
tem dignidade suficiente para ser pensada filosoficamente. Em fato, diante dos grandes
problemas filosóficos sobre os quais debate-se, em duplo sentido, há tantos e tantos anos —
como o conceito de conhecimento, a definição de número ou o fundamento do estado —
que é esta coisa tão pequena, tão mundana, a guerra, para obnubilar mentes ou atrair
esforços? Some-se a isto o fato dos ossos dos mortos ou o pó da destruição sempre se
ligarem à guerra tão logo esta palavra nos seja pronunciada.
Apesar disto, para nós a guerra, por sua presença histórica, já garantiria de per si seu
quinhão nas amplas paragens da reflexão filosófica. O peso da história da filosofia está,
além do que, conosco, posto que desde Platão, passando por Aristóteles e contando
inclusive com um insuspeito Santo Tomás de Aquino, distintos pensadores, de matizes tão
diferentes, tomaram a guerra como elemento nobre, ou vil, o suficiente a ponto de ela dar a
pensar. Como já apontamos, não são as mesmas abordagens, tampouco os mesmos
resultados. Sob o grande guarda-chuva da noção de guerra, perspectivas bastante diversas
se abrigaram. Vamos a elas.
Filosofia da guerra
Por Arte da guerra o pensamento militar compreende a totalidade dos estudos e
concepções relativas a este fenômeno, incluindo aí estratégia e tática, e os fatores
propriamente operacionais, como logística, treinamento da tropa e o moral (ECEME, S/d,
p. 3); ao seu lado, está a Filosofia da guerra, na qual inclui-se o entendimento o mais geral
da guerra e que seria, nestes termos, variável segundo o tempo e o espaço — guerra
entendida como visão de mundo; cite-se ainda a Ciência da guerra, que busca formular-lhe
as leis gerais e universais; por fim, sublinhe-se as Técnicas de guerra¸ disciplina na qual
são os fatores operacionais que estão em jogo e que constantemente imiscui-se com a arte
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da guerra. Este conjunto de elementos constitui o que se chama de Doutrina da guerra, a
qual, se bem leva em conta os aspectos teóricos, tem de confrontar-se com a Realidade
Nacional, objetivando majorar e defender o Poder Nacional e coordenar a ação das Forças
Armadas de determinado país (ECEME, s/d/, p. 66).
Evidentemente estas colocações, retiradas de um manual de instrução do EstadoMaior das Forças Armadas brasileiras, são relativamente contemporâneas, quando a
doutrina militar já está assentada. Em Sun Tzu, por exemplo, embora se inúmeros fatores
sejam considerados como determinantes para a vitória, e seja postulado de maneira clara a
submissão das armas à política, precisamente ao soberano, entendendo-se, pois, o exército
como baluarte deste (SUN TZU, 2011, p. 89); trata-se antes de uma série de máximas,
apresentadas mais como um manual de ação para generais neófitos que como reflexão
sistemática sobre a questão da guerra.
O conceito de filosofia da guerra, nesta acepção que ora trabalhamos, não é
universalmente aceito, mesmo porque a guerra, ela mesma, não é idêntica a si, o que nem
sempre é levado em conta. Bouthoul propõe o nome de polemologia para a ciência da
guerra, cujo objetivo seria estabelecer uma definição universalmente válida da guerra, que
compreendendo cada guerra em especifico, ao lhes abarcar; esforço ao qual soma-se aquele
de traçar a história da arte da guerra, isto é, dos aspectos teóricos e operacionais envolvidos
em distintas eras e
geografias; e, por fim, evidentemente, Bouthoul busca também
perscrutar as relações entre economia, demografia, psicologia e etnologia com a guerra. A
polemologia, assim constituída em ciência, seria capaz de essencializar a guerra,
objetivando entender como seria possível a paz (BOUTHOUL, 1964).
Apesar deste esforço de Bouthoul, outros autores, como Rapoport (1996) pensam de
modo distinto. Para ele, seria difícil propor um conceito positivo de guerra, e o principal
motivo não é a variabilidade das espécies, como se poderia pensar de relance. Ao contrário,
ele parece supor que o entendimento filosófico da guerra determina as maneiras pelas quais
ela se concretiza. Em fato, Bouthoul parece situar-se em um horizonte clausewitziano,
ademais terminando por reforçar o aspecto temporal, em detrimento daqueles espaciais nos
quais a guerra deu-se, posição esta que, de modo geral, é o horizonte das humanidades
desde a revolução francesa ao menos (VESENTINI, sd). Outro fator que joga contra
Bouthoul é que ele parece tomar um objeto-guerra idêntico ao longo da história. Na Grécia,
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distinguia-se claramente entre o pólemos, entendida como o conflito contra o xénos¸ o
estrangeiro ou o bárbaro; da stásis, que caracterizava a luta intestina entre os helenos. Nesta
última modalidade enquadrar-se-ia, por exemplo, as distintas filosofias da guerra que a
compreendem em um marco teórico da revolução socialista (SAINT-PIERRE. 1999, p. 26).
Se fossemos traçar uma história da filosofia da guerra, entendida como busca para
conceituá-la em seus traços gerais, seria forçoso retornar a Platão, onde a guerra e aspectos
nela imbricados, como aqueles éticos, de hoplomaquia ou de sua origem na história da
pólis, ocupam um relevante papel. Em Platão, como também em Aristóteles, a guerra não
possui um caráter nem cosmogônico nem cosmológico, posto que o primeiro, não dará,
diante da pergunta “em que consiste o que sempre existiu e nunca teve princípio? E em que
conste o que devem e nunca é?” (PLATÃO, 1977b, 28a) uma resposta que minimamente
enseje as noções de conflito, mas, sim, uma tal que se remete às noções de belo, de
perfeição, de proporção, de estabilidade, de geometria da esfera; e Aristóteles responderá às
questões cosmogônicas preferencialmente no marco de sua teoria das quatro causas,
componente da philosophía proté, inclusive censurando os filósofos precedentes, incluindo
Platão, por não a terem formulado nestes termos (ARISTÓTELES, 2006, 988a-993a).
Em outros diálogos platônicos, como no Timeu, a guerra ou ocasiões ocorridas em
guerras, como a de Tróia, ensejam o momento ou as temáticas das indagações de Sócrates
(PLATÃO, 1977a, 363a-376c; idem, 1970a, 153a-176d). Contudo, Platão não tinha em alta
conta o combate, e chega a reputar os sofistas como erísticos (PLATÃO, 1979, 216a-268d),
quer dizer, como pessoas que retiravam seu sustento da contradição, ademais associados
aos valores da discórdia, quando, em um universo platônico, é a temperança muito mais
prezada, como se vê no Cármides (PLATÃO, 1970a, 153a-176d) e também em variadas
passagens d’A República (PLATÃO, 2000, 327a-621d). É como se o combate fosse
entendido como imperfeito e desequilibrador, deste modo contrário aos desígnios
estabilizadores do demiurgo. De modo geral, a discórdia, o combate, a guerra enfim, são
ligados ao não-existente (PLATÃO, 1979, 237b-241d), conquanto o ser, isto é, o
verdadeiramente existente, deve ser pensado mais propriamente em termos de unidade e de
indivisibilidade; o combate, consequentemente a guerra, seriam da ordem da doxasta ou da
horasta, mesmo nível dos animais das quais somente seria possível a pistis, crença, ou
mesmo teriam um estatuto ontológico ainda mais inferior, o de imagem, eikones, da qual
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somente se podem ter suposições ou ilusões, eikasía (PLATÃO, 2000, 514a-541b). Enfim,
a guerra è estranha ao eidos, à ideia ordenadora do cosmos.
Apesar disto, há duas fecundas reflexões sobre a guerra em Platão. A primeira
envolve a hoplomaquia, conquanto a segunda envolve a origem da guerra. No Laquete
Platão aborda aspectos da paidéia, a educação dos jovens aristocratas atenienses, debatendo
as possibilidades da hoplomaquia nesta, seus efeitos e se ela constitui-se, ou não, enquanto
ciência. A discussão redunda, como é típico nos textos aporéticos, para um debate ético
sobre o conceito de coragem, que Sócrates, liga à sabedoria, à temperança e à justiça,
quedando, afinal de contas, sem nada definir (PLATÃO, 1970, 178a-201c).
N’A República Platão propõe a origem da guerra ao tratar da origem da polis.
Nascendo esta da impossibilidade de cada indivíduo em se bastar a si mesmo (PLATÃO,
2000, 369b), portanto, de satisfazer todas as suas necessidades, terminam por reunir-se na
polis; como alguns homens não tem talento ou aptidão para os trabalhos físicos, terminam
tornando-se negociantes e, logo, passam a desejar o luxo, fazendo com que a capacidade da
cidade em atender as suas próprias necessidades decaia, restando somente a guerra com
outras cidades para satisfazê-la. Daí Platão passará a tratar detidamente das formas de
educação do guerreiro, uma das três classes existentes em sua cidade ideal, propugnando a
música, a ginástica, etc, retomando vários pontos arrolados no Laquete. Enfim, se bem o
guerreiro cumpra papel importante na teoria de Platão, consequentemente a guerra, esta
última não parece ter lhe interessado especialmente, e parece não haver algo como uma
teoria da guerra em seu pensamento, em beneficio de reflexões sobre a paidéia dos
combatentes e sobre algo que poderíamos chamar de ethos guerreiro, ou seja, tentativa de
definições sobre a coragem, os melhores exercícios, o que é necessário para a alma no
guerreiro, etc.
De maneira geral, o mesmo pode ser dito de Aristóteles, que pensará a guerra
somente de forma colateral, tributária da política, além de também elaborar uma reflexão
que envolve este mesmo ethos guerreiro. Na Ética à Nicômaco, dentre os valores que o
Estagirita pontua e define, conta-se a coragem, meio termo entre medo e confiança, e a
bravura, que ele distingue da primeira e examina detalhadamente (ARISTÓTELES, 1979,
115a-119b). Também na Política a guerra aparece: para Aristóteles, um estado deve ser
temível frente a outro, ou corre o risco de ser invadido em uma guerra. Ele pontua em
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distintos pontos do texto a questão da revolução, incluída por nós como forma de guerra, tal
qual já indicado, e as maneiras de evitá-la ou suas causas; ou seja, de modo geral, se ele
reflete sobre a questão da guerra, esta não é o cerne de seu problema (ARISTÓTELES,
2009, 1252a-1342b). Podemos concluir, pois, que (...) “na filosofia grega não se encontra
uma atitude moral realmente nova para com a questão da guerra” (BOUTHOUL, 2004, p.
16), e este autor, em seu livro, dedica espaço exíguo ao modo de tratamento que os gregos
dispensarão ao nosso objeto de estudo.
Outras filosofias da guerra importantes, que citaremos de passagem, são aquelas de
Tomás de Aquino, preocupado em estabelecer a noção de guerra justa, no período onde se
armavam as cruzadas (BOUTHOUL, 1964, p. 15, WALZER, 2003, p. XXVIII); aliás, a
noção de guerra justa é uma das reflexões mais comuns quanto ao nosso tema no interior
da filosofia (SAINT-PIERRE, 1999, p. 44), assim como a noção de paz, trabalhada em suas
condições por Kant, no famoso opúsculo Projeto de paz perpétua, onde condena a guerra e
tematiza a possibilidade da paz; o argumento de Kant é político, sobretudo, estabelecendo
como condição para a paz perpétua, por exemplo, o compromisso dos governos em não se
agredirem, propondo, ademais, uma confederação de estados não agressores que buscasse
manter a paz (GALLE, 1979, p. 21-45), embora conclua que “a paz perpétua é
impraticável, mas pode ser indefinidamente aproximada” (cit. In BOUTHOUL, 1964, p.
16).
Von Clausewitz é o nome de maior relevo nesta abordagem da guerra como tema
filosófico, e nele encontramos uma filosofia da guerra em sentido forte, posto que em seu
grande tratado Da guerra não há somente a apreciação filosófica do tema, como, também,
colocações efetivamente militares, próprias de um manual de doutrina, onde explica como
proceder uma luta em terreno pantanoso, por exemplo. Para Clausewitz, a guerra é um
instrumento da política, na verdade, a guerra seria a política de estado continuada por
outros meios “um duelo em uma escala mais vasta [...] um ato de violência destinado a
forçar os adversários a submeter-se à nossa vontade” (CLAUSEWITZ, 1996, p. 7). Ao
tornar a guerra um elemento claro da política, Clausewitz sagrou-se clássico das ciências
militares e da ciência política, ponto de referência de reflexões vindouras. De forma geral,
Clausewitz propõe o conceito de guerra abstrata ou guerra absoluta, construto teórico
onde estão presentes todas as características de uma guerra arquetípica, que, no entanto,
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nunca chega a realizar-se, fundamentalmente por conta da fricção, conjunto de fatores que
alteram-na.
Teórico das mudanças militares promovidas por Napoleão, Clausewitz tomava em
conta não os exércitos mercenários, que outrora dominavam a Europa, mas o exército de
conscritos, isto é, cidadãos em armas, lutando por interesses nacionais, contra outros
cidadãos em armas. Neste sentido se fala em um sistema clausewitziano de nações, quer
dizer, estados nacionais, que fazem uma política militarista a partir de um nacionalismo
crescente, cujo resultado foram os confrontos da Primeira Guerra Mundial. Após isto, as
posições clausewitizianas, especialmente o nacionalismo que as marcam, caem em
descrédito, substituídas por filosofias da guerra revolucionária, como a de Lênin, ou, senão,
por posições pacifistas, de modo geral associadas a noções que comumente são
relacionadas a Kant (RAPOPORT, 1996). Ademais, tornou-se pensamento corrente que a
aparição da arma atômica fez envelhecer a teoria de Clausewitz, uma vez que a guerra
nuclear significaria o fim de qualquer política, pela destruição mútua dos beligerantes.
Além disso, sucederam-se críticas: John Keegan, por exemplo, dedica seu volumoso livro
para mostrar como a tese fundamental de Clausewitz, de que a guerra é instrumento da
política de estado, não encontra base histórica e geográfica, visto a diversidade de funções
sociais às quais a guerra liga-se e, mesmo, casos de povos que não guerreiam com o
objetivo de matar ou dominar os adversários (KEEGAN, 2003).
Guerra como metáfora
Analisaremos neste tópico duas grandes abordagens, a de Hobbes e, também, por
mais que isto contrarie alguns, a abordagem marxiana da luta de classes, bem como aquela
de alguns de seus tributários. A perspectiva de Hobbes é sobejamente conhecida: a guerra
de todos contra todos original, decorrente da igualdade natural dos humanos; uma força
superior, um poder comum que aterroriza os homens e os obriga a viver em paz e, assim,
termina com a guerra primeva, ao estabelecer o império da lei e do justo, dando lume ao
estado soberano (HOBBES, 1996). É patente a utilização da guerra como metáfora; Hobbes
não trata do conflito armado realmente existente, mas de sua possibilidade, e afirma mesmo
que o homem tende a paz posto que esta é uma lei de natureza. A soberania surge do medo
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que os homens entre si sentem, surge da aspiração a uma vida confortável; por isso os
homens contratam e estabelecem a soberania política. Em suma, em Hobbes, se há poder
político, é porque já não há guerra. Não se trata, pois, nem de uma filosofia da guerra, em
sentido estrito, nem mesmo de um discurso belicista, como pode parecer de saída, mas de
um discurso pacificador e Michel Foucault apresenta os motivos desta pacificação: Hobbes
escreve em um momento de profundos enfrentamentos e revoltas na Inglaterra, em plena
revolução inglesa, e, com o Leviatã, pretendia legitimar a monarquia (FOUCAULT, 2005,
p. 103-134), frente a sedicionários que diziam, por exemplo, em réplica, que “o governo é a
guerra de uns contra os outros; a revolta significa a guerra dos outros contra os uns”
(FOUCAULT, 2005, p. 129).
Tomar o marxismo enquanto metáfora bélica é certamente abrir polêmica, tanto
mais que a exiguidade de espaço não permite que a discussão aprofunde-se. Some-se a isto
o fato de autores como Bouthoul (1964) e Saint-Pierre (1999) incluírem no rol dos
pensadores da guerra, seja Marx, seja Engels, e Rapoport (1996) escrever um longo texto,
classificando a teoria do imperialismo de Lênin como uma das filosofias da guerra, dandolhe especial relevo. Por fim, a própria noção de que “a história de todas as sociedades que
até hoje existiram até nossos dias tem sido a história da luta de classes” (MARX, ENGELS,
1995, p. 18) parece de saída colocar Marx, e por extensão Friedrich Engels, dentre os
autores que desenvolveram uma filosofia da guerra, ao situá-la como decorrente desta luta
intestina às sociedades.
Nossos argumentos contrários a este entendimento são múltiplos. Primeiramente,
não concordamos com a identificação entre Marx e marxistas, nisto incluso Engels, posto
que não só escreveram em diferentes períodos, e tiveram distintas formações, mas que,
também, tem objetivos diferentes. Parece-nos temerário afirmar, como o faz Trotsky (1995)
que para Marx é a da luta de classes o motor da história, por ser uma questão
demasiadamente eivada de polêmicas; ademais Trotsky não teve acesso a textos
importantes de Marx, como os Manuscritos de Paris. Assim, se Lênin desenvolveu uma
filosofia da guerra consistente, de tipo escatológica (RAPOPORT, 1996) a partir de sua
interpretação de Marx, não se pode imputar esta àquele, assim como não se pode imputar
Clausewtiz à Kant, como faz Leonard (1988, p. 8-10).
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É fato que nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx é categórico ao afirmar
que “o fundamento [...] da conexão entre economia nacional e o Estado, o direito, a moral,
a vida civil, etc.” (MARX, 2006, p. 19) é a economia nacional, quer dizer, a economia
política, de onde decorreria que também a guerra, seja pelo seu aspecto social, seja pelas
relações que entretém com o estado, também encontra seu fundamento nesta mesma
economia política. É esta a tese que, por exemplo, Saint-Pierre e Bouthoul sustentam, o
primeiro por constituir uma filosofia da guerra revolucionária, sublinhando as
considerações de Engels sobre o tema, mas também de variados outros autores de tradição
marxista, como Lênin, Debray, Mao e Trostky (SAINT-PIERRE, 1999); o segundo
apontando a importância das ligações entre economia e guerra, aspecto sobre o qual o
marxismo se debruça sobremaneira (BOUTHOUL, 1964, p. 27), embora Bouthoul, ele
mesmo, dedique-se a desconstruir esta tese (BOUTHOUL, 1964, p. 39-45) defendendo
distintos fatores como beligerantes, assim como também o faz Keegan (2003), para o qual
causas variadas concorrem para a origem da guerra; este autor salienta também a
especificidade ontológica de nosso objeto, pautando-se em farta exemplificação histórica e
etnográfica. Portanto, parece que não há em Marx uma reflexão exclusiva sobre a guerra,
resolvendo-se esta na economia, de modo que seria antes preferível falar de uma filosofia
das relações de produção, e não em uma da guerra.
O mesmo pode ser dito da noção de luta de classes, posto que este conflito, ora
aberto ora não, também se resolve em remissão às relações de produção. Ademais, pela
grade hegeliana onde ela se insere, não se trata de analisar um conflito, mas uma
mesmidade, uma identidade que sobre si se desdobra, enfim, talvez porque (...) “a dialética
é uma maneira de evitar a realidade aleatória e aberta desta inteligibilidade [das lutas, dos
conflitos] reduzindo-a ao esqueleto hegeliano (FOUCAULT, 2010, p. 5) ; e também porque
quando os marxistas abordam a noção de luta de classes “como força motriz da história,
eles se preocupam principalmente em saber o que é a classe, onde ela se situa, quem ela
engloba, e jamais o que concretamente é a luta” (FOUCAULT, 2010, p. 242).
Esse debate teórico, sem dúvida, não se esgota aqui, e envolve problemas distintos.
Em último caso, sustentamos a posição de Michel Foucault, quando este afirma que, por
serem tributários de Hegel, não há uma verdadeira noção de conflito quando se diz “luta de
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classes”, e que seu uso pelos marxistas, por não envolver nem uma polemologia, nem uma
filosofia da guerra, deve ser pensado em um marco estritamente metafórico.
Por fim, para fechar este tópico são necessários ajustes. Reforçamos a posição de
Rapoport (1996), que mostra as relações tributárias entre Clausewitz e Lênin; marquemos
Trotsky como formulador de inúmeras análises acerca da guerra e de processos
revolucionários (por exemplo, TROTSKY, s/d, e TROSKY, 1979); cite-se Debray (1967)
como um analista dos matizes da guerra de guerrilhas; e o primoroso estudo do professor
Hector Luis Saint-Pierre (1999), que trabalha as distintas posições, intentando constituir
uma polemologia stasiológica (SAINT-PIERRE, 1999, p. 26), ou seja, um tratado sobre a
guerra revolucionária. Portanto, é certo que, se há uma reflexão marxista sobre a guerra, o
caso é determinar qual seu calibre e tipo.
Guerra como princípio metodológico ou ontológico
Na Grécia antiga houve um pensador que tomou a guerra em um sentido ontológico,
colocando-a na constituição íntima das coisas. No Fragmento 53 ele assim se expressa: “O
combate é de todas as coisas pai, de todas rei e uns ele revelou deuses, outros homens, de
uns fez escravos de outros livres” (HERÁCLITO, 1979, DK 53). Trata-se de um universo
em perpétua tensão, onde “o divergente consigo mesmo concorda, harmonia de tensões
contrárias” (idem, DK 51). Se Heráclito situa o fogo na arché da phisys (SOUZA et ali,
1979, p. I-XXVIII), ao seu lado, coextensivamente, inclui a guerra: o vir-a-ser segue sendo
mesmo perante o que diverge, e não há uma reunificação, uma suprassunção: o mundo de si
diverge, e, no disparate deste enfrentamento devêm. É bem sabido o quanto estas
colocações de Heráclito influenciaram a história da filosofia, incluso Hegel, logo, os
próprios marxistas — Hegel detêm-se sobre Heráclito, aceitando algumas teses, ao mesmo
tempo em que mostra os pontos de discordância, por exemplo, o fato de Heráclito não
reconhecer o processo do vir-a-ser como um universal ou as problemáticas envoltas entre a
consciência e o objetivo (HEGEL, 1979, p. 99-100), digamos, entre o Logos e o logos. De
todo modo, marque-se a ontologia bélica de Heráclito, questão na qual talvez o Obscuro
nos ilumine, onde o conflito é a essência do mundo, onde não só ele se resolve, mas
também por onde ele se dá.
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Por fim, Foucault, em A verdade e as formas jurídicas elabora uma ontologia
política do saber, da qual já tratamos (LUIZ, 2010). A asserção de que o saber é político,
engendrador-engendrado de relações de poder que permitirá a Foucault constituir uma
metodologia pautada no modelo da guerra, e que visa, fundamentalmente, compreender
como analisar as relações de poder sem derivá-lo da economia, tal como marxistas e
liberais o fazem, de maneiras distintas (FOUCAULT, 2005) e como fugir de uma análise
metafísica em suas variáveis (FOUCAULT, 2010, p. 15-38). Elaborando algumas
preucações de método, Foucault, em fato, está estofando a genealogia que, assim
despregada de universais realistas, trabalha na politização do universal, supondo-o como
mero nome (idem, p. 15-38), com o objetivo de abandonar as metodologias realistas, que
supõe o universal como real, nas duas acepções possíveis — tal como a dialética, entendida
no sentido mais pós-hegeliano, como lógica do mundo — em beneficio da constituição de
outra lógica analítica, a lógica estratégica (FOUCAULT, 2005).
Ao proceder desta maneira, Foucault desembaça o campo de análises, em nosso
entendimento. Não existe nem uma guerra externa nem uma interna, tampouco ela pode ser
suposta como mero epifenômeno estritamente militar. A guerra está no âmago das coisas,
mesmo do conhecimento, e a verdade ela mesma é arma de guerra, não contra as trevas da
fé ou a barbárie dos silvícolas, mas contra si mesmo, porque conhecer é um ato de guerra
(LUIZ, 2010). Radicalizou-se Heráclito; já não há mais “a harmonia invisível à visível
superior” ( HERÁCLITO, 1979, DK 54) ou a necessidade de estar com o-que-é-com, onde
o Logos dá-se com o logos, e o mundo como que se desvela (Idem, DK 2; idem, DK 50),
Resta-nos somente a vertigem, a queda livre (BRUNI, 1989) em um mundo sem eira nem
beira.
Foucault inverte a proposição de Clausewitz: “a política é a guerra, a guerra
continuada por outros meios” (FOUCAULT, 2005) nos marcos de uma compreensão da
política nem como atividade do político, menos ainda enquanto mero negócio de estado:
tudo é politizável, conquanto tenha um sentido, inclusive a politização do não-politizado e,
evidentemente, do politização do politizador. Se na base do método está já uma ontologia,
ele termina por torcer-se sobre si, e a guerra deixa de ser mero exercício: a existência toda
se torna guerreira e cada qual como que um soldado.
Vol. 7, nº 2, 2014.
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Precisões sobre o conceito de filosofia da guerra
Conclusão
Percebe-se, pois, que as relações reflexões filosóficas concernentes à guerra são
multifacetadas, comportando distintas abordagens, que serão aclaradas na continuidade de
nossas pesquisas, notadamente aquelas mais polêmicas, como no caso do entendimento de
vertentes do pensamento de Marx enquanto filosofias metafóricas da guerra. Ademais, a
concepção ontometodológica abre particularmente todo um campo de análises. Neste
sentido, caminharemos objetivando mostrar a filosofia ela mesma no âmbito desta
abordagem, quer dizer, a filosofia, enquanto modalidade de saber, como sendo
fundamentalmente estratégica, o que implica analisar o surgimento da mesma no âmbito
grego, bem como sua démarche. Buscaremos entender se e como a filosofia pode ser
compreendida como arma de guerra, o conflito no qual ela estaria imersa, sua estratégia,
táticas. E seus inimigos.
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