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OLHARES PLURAIS
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A ACEPÇÃO DURKHEIMEANA DO CRIME
Rossana Maria Marinho Albuquerque 1
RESUMO
O artigo analisa a concepção de crime a partir da abordagem sociológica de Émile Durkheim.
Para discorrer sobre o tema em questão, apresentamos, inicialmente, os pressupostos
metodológicos de Durkheim, além de conceitos-chave do seu pensamento, que nos permitem
melhor compreender sua noção de crime como fato social.
Palavras-chave: Sociologia. Durkheim. Crime.
INTRODUÇÃO
Quando tratamos da abordagem sociológica dos fenômenos sociais, o nome de
Durkheim aparece como um consolidador dessa área do conhecimento, tornando-se um
clássico da Sociologia, em decorrência do seu esforço em abordar os fatos da vida social com
o mesmo rigor das demais ciências positivas.
Um dos legados do pensamento durkheimeano, que reaparece em algumas abordagens
sociológicas contemporâneas, é a constatação dos aspectos coletivos que compõem a vida
social. Ao optar, metodologicamente, pela prioridade do social, Durkheim conseguia revelar
como o indivíduo carregava, ao longo do seu processo de socialização, marcas da influência
da sociedade em suas condutas individuais. Caso se tratasse de atos considerados socialmente
adequados ou condutas padronizadas como inadequadas, há sempre a presença da
anterioridade da sociedade em relação ao indivíduo.
No caso do objeto analisado no presente artigo, o crime na acepção durkheimeana,
apresentamos a argumentação do sociólogo para definir o caráter de normalidade do crime e a
presença, de acordo com Durkheim, dos padrões sociais na delimitação do que é considerado
crime em um dado contexto.
Para facilitar o entendimento da lógica durkheimeana, apresentamos, ao longo da
exposição, sua concepção teórica e metodológica, assim como os conceitos-chave que nos
permitem abordar o tema em questão, mostrando as conclusões às quais chega o autor.
1 – O LUGAR DE DURKHEIM NA SOCIOLOGIA
1
Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas. Email: [email protected]
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Émile Durkheim é considerado o consolidador da Sociologia. E não por acaso ocupa
tal lugar na constituição da disciplina, como área específica do conhecimento. É Durkheim
quem confere à Sociologia a delimitação de um objeto e um método próprio para a abordagem
dos fenômenos sociais. Ao conferir objeto e método próprios para a área, Durkheim buscava
localizar a Sociologia entre as ciências modernas e atribuir-lhe o mesmo rigor que visualizava
nas demais ciências, sobretudo nas ciências naturais.
Em As Etapas do Pensamento Sociológico, Raymond Aron (2003) aponta
Montesquieu e Auguste Comte como antecessores de Durkheim no desenvolvimento de uma
perspectiva sociológica. Embora aqueles pensadores tenham se destacado no pensamento
filosófico, lançaram um olhar sobre a realidade social que acaba por influenciar na
necessidade de se constituir uma ciência positiva para buscar as causas dos fenômenos
sociais.
Montesquieu, que escreve Do Espírito das Leis (2006) um século antes do surgimento
da Sociologia, é apontado como um dos primeiros a desenvolver um olhar sociológico da
realidade, quando percebe, através da análise dos fenômenos jurídicos, que há uma estreita
relação entre estrutura social e direito. Nesse sentido, a forma do direito varia na medida em
que as sociedades, também, apresentam variadas estruturas. Montesquieu observa a relevância
dos costumes na constituição e efetivação das leis. Cada sociedade adota um corpo de regras
específicas e estas variam conforme a constituição daquela sociedade.
Ao perceber a articulação entre as leis e as relações sociais, Montesquieu desenvolve
os rudimentos de um raciocínio que, posteriormente, será considerado sociológico. Nas
Cartas Persas, obra em que Montesquieu (2009) opera uma crítica da França de seu tempo, o
desenvolvimento das idéias é elaborado a partir da tentativa de um distanciamento daquele
que analisa tal realidade social. Ao adotar, no sentido figurado, personagens persas que se
correspondem tecendo comentários sobre uma sociedade que possuía costumes, política e
organização diferentes das suas, Montesquieu constrói, metodologicamente, um olhar de
quem tenta analisar de fora um contexto social que lhe é próximo. Embora critique a França
de seu tempo, as Cartas Persas conseguem provocar na época menos reação negativa se
comparadas ao Espírito das Leis (FREIRE et alli, 2009).
Auguste Comte, mencionado quando se fala do surgimento da Sociologia, influencia o
pensamento sociológico a partir da sua perspectiva positivista. Situado entre os teóricos que
vivenciam as transformações ocorridas entre os séculos XVIII-XIX, entre elas a maior
revolução burguesa, a Revolução Francesa, Comte vivenciará uma nova ordem social na qual
se dava a consolidação do capitalismo e o surgimento de novas contradições sociais. Diante
daquela realidade social, que apresentava os progressos científicos e industriais, mas também
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os contrastes da sociabilidade burguesa, Comte fará parte da reação conservadora, defendendo
o desenvolvimento da ciência como uma ferramenta para a manutenção da ordem.
Em seu Curso de Filosofia Positiva, Comte (1983) analisa as áreas do conhecimento já
constituídas e aponta a necessidade da delimitação de uma área para abordar os fenômenos
sociais, que vai considerar a mais complexa, por tratar do objeto mais complexo, ou seja, o ser
humano em sociedade. Em seu pensamento, quanto mais o pensamento científico se
desenvolvesse, mais proporcionaria o entendimento humano.
Se a Comte se atribui a demarcação de uma área para estudar os fenômenos sociais, a
Durkheim se aponta a consolidação da disciplina. Em contraste com as explicações que
partiam do indivíduo para entender os fenômenos sociais, Durkheim estabelece uma inversão
metodológica e começa por analisar os fenômenos sociais pelos seus aspectos coletivos.
Afirmava, nas Regras do Método Sociológico: “a mentalidade dos grupos não é a dos
particulares; tem suas leis próprias” (DURKHEIM, 2005, p. 21). Sua concepção de método
obedecia à tradição do pensamento científico moderno, que transferia ao pesquisador a
responsabilidade pela garantia da objetividade da explicação científica. É na obra As Regras
do Método Sociológico (2005) que expõe sua concepção de método científico, amparada nas
noções empiristas clássicas, a exemplo de Bacon.
Para atribuir à Sociologia o mesmo rigor existente em outras áreas, Durkheim começa
por delimitar um objeto próprio para essa ciência. Identifica o fato social como sendo o objeto
próprio da Sociologia e, seguindo a tradição formalista do pensamento positivista, define
aquele como:
[...] toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo
uma coerção exterior: ou então, que é geral no âmbito de uma dada sociedade tendo,
ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações
individuais (DURKHEIM, 2005, p. 40).
O fato social, que na concepção durkheimeana é essencialmente coletivo, apresenta
características que atestam seu caráter de manifestação coletiva, ou apontam que a realidade
se mostra como um complexo sui generis, para utilizar um termo de Durkheim. As
características fato social, que são, segundo Durkheim, a coercitividade, a exterioridade e a
generalidade, revelam que os fatos são produzidos socialmente e revestem-se de um conteúdo
moral capaz de garantir o respeito às instituições sociais.
O fato social exerce uma coercitividade sobre o indivíduo, de modo que este, embora
tenha sua margem limitada de ação individual, se sente impelido a reproduzir padrões sociais.
A respeito das obrigações sociais, segundo Durkheim (2005, p. 26):
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O indivíduo encontra-as já completamente formadas e não pode impedir que existam
ou fazer que existam de modo diferente; é obrigado a tê-las em consideração, e lhes
é tanto mais difícil (não dizemos impossível) modificá-las quanto elas participam,
em diversos graus, da supremacia material e moral que a sociedade tem sobre os
seus membros.
Os padrões sociais, que existem independentemente da aprovação individual em
relação a eles, comprovam, ainda de acordo com a elaboração durkheimeana, que eles
possuem um traço de exterioridade; ou seja, não são os indivíduos isoladamente que
estabelecem os padrões sociais. Cada um assimila o fato social à sua maneira, aponta
Durkheim, mas há sempre uma delimitação social que impede uma completa ruptura do
indivíduo em relação às regras sociais.
Por apresentarem um caráter coletivo e se manifestarem na maior parte daquele tipo de
sociedade, os fatos sociais, tem, segundo o sociólogo, um caráter de generalidade. O caráter
de generalidade implica na constatação de que os fatos não se repetem num tipo social
espontaneamente, são antes convenções sociais.
A definição de fato social de Durkheim, que reflete sua concepção de sociedade
baseada na noção positivista, foi bastante influenciada pelas ciências naturais. Daí porque,
embora diferencie os objetos das ciências, utiliza uma linguagem emprestada da biologia e
explica os fatos sociais segundo uma concepção funcionalista. Em Da Divisão do Trabalho
Social, Durkheim (2004, p. 13) define sua concepção funcionalista da seguinte maneira: “[...]
perguntar-se qual é a função da divisão social do trabalho é, portanto, procurar a que
necessidade ela corresponde”.
Ao se deparar com a sociedade e compará-la a um organismo, que Durkheim chama
de “organismo social”, vê os fatos desempenhando funções úteis ao funcionamento do
organismo, tal qual poderíamos encontrar em um organismo natural, órgãos desempenhando
funções específicas e interferindo no bom funcionamento do todo. Buscar a função de
determinado fato, portanto, no sentido durkheimeano, significa explicar a qual necessidade
esse fenômeno atende. A necessidade, por sua vez, é encontrada se considerada a causa a
partir da própria sociedade.
Seguindo o entendimento funcionalista de Durkheim, os fatos, na medida em que
desempenham funções úteis ao organismo social, podem ser considerados normais ou
patológicos. Essa distinção, que expressa bem a concepção positivista do autor, é explicada da
seguinte maneira, nas Regras do Método Sociológico: o fato normal é aquele encontrado
regularmente num determinado tipo social e exerce função útil no organismo social; o fato
patológico, por sua vez, ocorre excepcionalmente e, quando surge, tende a provocar alterações
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sociais 2. Para comprovar se determinado fato encontrava-se dentro da normalidade social,
Durkheim indicava o uso das estatísticas como forma de atestar a freqüência daquele fato num
determinado decurso de tempo e tipo de sociedade.
Outro traço do pensamento positivista de Durkheim é a sua noção de objetividade.
Segundo o autor, a garantia da objetividade se obtém mediante o distanciamento valorativo do
pesquisador em relação ao objeto estudado. Várias passagens nas Regras do Método indicam
a postura metodológica defendida pelo sociólogo, a exemplo do prefácio redigido à 1ª edição,
em que afirma:
Se há uma ciência das sociedades, é de se esperar que ela não consista simplesmente
numa paráfrase dos preconceitos tradicionais, mas que nos apresente as coisas de um
modo diferente do que aparenta ao vulgo, pois o objeto de qualquer ciência é
descobrir, e qualquer descobrimento desconcerta mais ou menos as opiniões
estabelecidas (DURKHEIM, 2005, p. 11).
Em sua preocupação de separar o julgamento científico das noções do senso comum,
Durkheim defendia que o cientista tratasse o fato social como coisa. Ao defender tal conduta,
espelhava-se nos cientistas naturais, que tratavam seus objetos de estudo como algo
desconhecido. Tratar o fato social como coisa significava, por sua vez, livrar-se das prénoções do pesquisador:
O que é, então, uma coisa? A coisa opõe-se à idéia como o que se conhece de fora
ao que se conhece de dentro. É coisa todo objeto de conhecimento que não é
naturalmente apreendido pela inteligência, tudo aquilo de que não podemos adquirir
uma noção adequada por um simples processo de análise mental, tudo o que o
espírito só consegue compreender na condição de sair de si próprio, por via de
observações e de experimentações, passando progressivamente das características
mais exteriores e mais imediatamente acessíveis às menos visíveis e às mais
profundas. (DURKHEIM, 2005, p. 16-7).
Ao defender tal conduta, Durkheim também indicava que os fatos sociais deveriam ser
observados começando pelos seus traços coletivos e exteriores. Dessa maneira, o cientista
poderia apreender as causas sociais das quais derivavam aquele fenômenos, assim como a
quais necessidades do organismo social aqueles fatos atendiam.
2 – CONCEITOS-CHAVE DO PENSAMENTO DURKHEIMEANO
Para Durkheim, a vida social se constitui de representações mentais que são
produzidas socialmente e exercem influência sobre as atitudes individuais. A fixidez da vida
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Essa classificação será importante para caracterizar o entendimento de Durkheim sobre o crime.
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social, no seu entendimento, é garantida mediante a força que as instituições sociais exercem
e do respeito do qual se revestem tais instituições. O termo instituição encontra o seguinte
entendimento em Durkheim (2005, p. 26):
Pode-se, com efeito, sem desnaturar o sentido desta expressão, chamar instituição a
todas as crenças e a todos os modos de comportamento instituídos pela coletividade;
a sociologia pode então ser definida como: a ciência das instituições, da sua gênese e
do seu funcionamento.
Toda a lógica do pensamento durkheimeano se volta para perceber quais fatores
colaboram na manutenção da ordem social. Isso explica porque o autor busca entender a
coercitividade social, a força moral que a sociedade exerce sobre o indivíduo, além de outros
aspectos que aparecem na obra durkheimeana, com o intuito de revelar a força das instituições
na preservação daquilo que considerava como a saúde do organismo social e na concepção
funcionalista de que cada órgão desempenhava função útil no bom ordenamento do todo. A
visão da sociedade como um organismo harmônico é um traço do pensamento do autor em
questão.
A coesão social, que está expressa na força de cada instituição social, reflete o que
Durkheim entende por consciência coletiva. A consciência coletiva, que está diluída entre as
consciências individuais, expressa os padrões estabelecidos em determinados tipos de
sociedade. Segundo o entendimento de Durkheim (2004, p. 50),
O conjunto de crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma
mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida própria; podemos
chamá-lo de consciência coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato
um órgão único; ela é, por definição, difusa em toda a extensão da sociedade, mas
tem, ainda assim, características específicas que fazem dela uma realidade distinta.
A consciência coletiva expressa a média dos valores aceitos socialmente e pode
exercer maior ou menor influência sobre as consciências individuais. A variação depende do
tipo de sociedade e do tipo de coesão existente. Para explicar as formas de coesão e, ao
mesmo tempo, compará-las, Durkheim formula os conceitos de solidariedade mecânica e
orgânica. A solidariedade, que deve entendida no sentido de coesão social, está presente tanto
nas sociedades simples, quanto nas complexas.
A solidariedade mecânica ou por similitudes, como denomina Durkheim na Divisão do
Trabalho Social, é típica as sociedades pré-capitalistas, tipos sociais caracterizados pela forte
presença dos costumes e tradições, que se tornam suficientes para garantir a coesão social.
Nas sociedades marcadas pela solidariedade mecânica, segundo o autor, o peso da
coletividade recai mais fortemente sobre o indivíduo, havendo pouco espaço para o
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desenvolvimento das individualidades. As regras e padrões sociais se impõem mais
facilmente sobre o indivíduo. É por este motivo que Durkheim afirma que o traço
característico da solidariedade mecânica é a semelhança entre os membros.
A solidariedade orgânica é típica da sociedade capitalista, em que a esfera das
atividades econômicas ganha maior dimensão e, pelo próprio tipo de formação social
complexa, o peso das tradições se afrouxa e a coesão é transferida progressivamente para a
esfera jurídica. Esse tipo de solidariedade é caracterizado não pela semelhança entre os
membros e sim pela diferença. A noção positivista de conceber a sociedade como algo
harmônico também aparece nessa explicação sobre a sociedade industrial. Onde o marxismo,
por exemplo, vai constatar o antagonismo social, Durkheim vai visualizar as diferenças como
órgãos diferentes desempenhando funções diferentes e uma maior ou menor distribuição de
recursos, variando conforme a necessidade de cada órgão. O recurso figurativo emprestado da
biologia – ao comparar a sociedade com um organismo – acaba por tratar com naturalidade
diferenças que são essencialmente sociais.
Nas sociedades marcadas pela solidariedade orgânica, a diferença é o traço marcante.
E, na medida em que o peso dos costumes tende a perder força, a esfera do Direito é a
responsável pela coercitividade social. A consciência coletiva se fixa, nesses tipos sociais, nas
leis, nos estatutos, na divisão do trabalho, e são essas convenções sociais que, segundo
Durkheim, criam os laços de solidariedade nas sociedades complexas. São tipos sociais nas
quais o simples apelo moral não é capaz de regrar e manter a regularidade da vida social.
Não por acaso, na análise durkheimeana sobre as sociedades complexas, o direito é
alvo de investigação, por se tratar de uma instituição dotada de legitimidade moral, capaz de
se impor nas consciências individuais. Aliás, no entendimento de Durkheim, na Divisão do
Trabalho Social, a regulamentação das atividades sociais pelo direito é uma fonte de
solidariedade social.
3 – O CRIME COMO FATO SOCIAL
De acordo com sua classificação sobre os fatos sociais, Durkheim vai considerar o
crime como fato social normal. A definição causou polêmica, quando da publicação das
Regras do Método Sociológico, a ponto de Durkheim ter de esclarecer sua noção em edições
posteriores.
Há pelo menos duas formas de conceber o crime, segundo a noção durkheimeana.
Uma está ligada à manutenção da ordem, expressando o repúdio da força social em relação a
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determinado ato. A outra está ligada à transformação social, que embora não seja a tônica do
pensamento durkheimeano, é tratada por ele quando da abordagem do crime como fato social.
Por que Durkheim entende o crime como um fato social normal? Sua resposta está
ligada às características do fato social. O crime, segundo o autor, existe em todo tipo de
sociedade. Variam as formas, mas há em comum o fato de que toda sociedade estabelece
padrões do que é considerado aceitável ou não. O crime, nesse sentido, é sinônimo de algo
repudiado pela consciência coletiva. Afirma, nas Regras do Método Sociológico:
O crime não se observa só na maior parte das sociedades desta ou daquela espécie,
mas em todas as sociedades de todos os tipos. Não há nenhuma em que não haja
criminalidade. Muda de forma, os atos assim qualificados não são os mesmos em
todo o lado; mas sempre e em toda a parte existiram homens que se conduziam de
modo a incorrer na repressão penal (DURKHEIM, 2005, p. 82).
O indivíduo em sociedade está sujeito a pelo menos dois tipos de sanções, segundo
Durkheim: as sanções espontâneas e as sanções jurídicas. As sanções espontâneas são as
reprovações de atitudes consideradas inadequadas, mas que não causam tanto horror quando
ocorrem. As sanções espontâneas acontecem informalmente e servem como modelos de
condutas cotidianas.
As sanções jurídicas são aquelas fixadas formalmente e refletem desvios de condutas
considerados mais graves. Para Durkheim, as sanções jurídicas cristalizam o sentimento de
repúdio da sociedade em relação a determinado ato.
O caráter de normalidade, portanto, não está ligado à condição de aceitabilidade e sim
ao fato de acontecer com frequência. Nas Regras do Método Sociológico, Durkheim (2005, p.
83) faz a seguinte observação, a respeito do caráter de normalidade do crime:
Pelo fato de o crime ser um fenômeno de sociologia normal não se deduz que o
criminoso seja um indivíduo normalmente constituído do ponto de vista biológico e
psicológico. As duas questões são independentes uma da outra. Compreender-se-á
melhor esta independência quando mostrarmos mais adiante a diferença existente
entre os fatos psíquicos e os fatos sociológicos.
E, por que, para Durkheim, o crime é considerado normal? Dada a freqüência com que
ocorrem os crimes e dado o fato de que as sanções já prevêem que o crime pode ocorrer – pois
estas são estabelecidas previamente -, esta atitude é considerada como um fato dentro da
normalidade social. Para atestar o índice de normalidade, Durkheim vai indicar o uso das
estatísticas, como forma de comprovar a taxa média de crimes esperados naquela sociedade.
Caso essa taxa varie significativamente, o crime perdeu sua condição de normalidade. As
causas da disfunção, na lógica durkheimeana, são sempre encontradas na própria sociedade.
Pela lógica funcionalista, os fatos desempenham funções úteis no organismo social.
No caso do crime, qual seria a sua função? Ao definir a função social do crime, Durkheim
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teve de enfrentar polêmicas, pois a ele se atribuiu uma apologia ao crime. De acordo com a
lógica do sociólogo, a função social do crime consiste em manter vivo o sentimento de
repúdio social àquele ato. Todas as vezes que o crime ocorre, segundo essa interpretação, a
sociedade repudia aquele ato e é nisso que consiste o caráter de normalidade do crime. Diz
Durkheim: o crime é normal, na condição de ser repudiável.
Afirma Durkheim que, sempre que o indivíduo comete uma atitude considerada crime,
a sociedade resgata aqueles valores considerados mais caros e, nessas situações, fica evidente
a coercitividade social em relação àquele ato. Tal acepção do crime está ligada à conservação
da ordem social. Parte-se do princípio que, quando a sociedade exerce a coerção repudiando o
crime, mantém-se o quadro de normalidade social. A metáfora com a biologia mais uma vez é
feita, quando se compara tais atitudes com a presença de corpos estranhos em um organismo
natural. Quando estes aparecem, o corpo tende a produzir a defesa e expulsar o corpo
estranho, garantindo a saúde do organismo.
A outra noção de crime está ligada à transformação social. A existência de atitudes
que sejam consideradas crimes, explica Durkheim, pode servir para operar mudanças sociais.
Já que as instituições tendem a reforçar o ordenamento social, os desvios podem servir como
estímulo às mudanças.
O exemplo emblemático dado por Durkheim nas Regras do Método é elucidativo para
compreendermos essa acepção do crime. Durkheim lembra que Sócrates, de acordo com o
direito ateniense, foi considerado um criminoso. Seu crime: ser contra as idéias de seu tempo.
Tal crime, ou seja, a posição contrária de Sócrates naquele contexto, serviu de base para o que
hoje entendemos como liberdade de pensamento. Que as sociedades possuam a presença de
criminosos, a exemplo de Sócrates, é um impulso para que seus valores sejam renovados, em
outro contexto. Mencionamos aqui o trecho inteiro, pois ele nos parece interessante para
pensarmos nessa interpretação do crime e do papel do indivíduo mesmo diante da
coercitividade social:
[...] o crime chega a desempenhar um papel útil nesta evolução. Não só implica que
o caminho fique aberto às modificações necessárias, como ainda, em certos casos,
prepara diretamente essas mudanças. Onde ele existe, não só os sentimentos
coletivos estão no estado de maleabilidade, necessária para tomar uma nova forma,
como também contribui, por vezes, para predeterminar a forma que estes tomarão.
Quantas vezes, com efeito, não é ele uma simples antecipação da moral futura, um
encaminhamento para o porvir! Segundo o direito ateniense, Sócrates era um
criminoso, e a sua condenação nada tinha de injusto. Contudo, o seu crime, a saber,
a independência do seu pensamento, era útil não só à humanidade mas também à sua
pátria: servia para preparar uma moral e uma fé novas de que os atenienses
necessitavam naquele momento [...] A liberdade de pensamento de que gozamos
hoje nunca poderia ter sido proclamada se as regras que a proibiam não tivessem
sido violadas antes de serem solenemente abolidas. [...] A livre filosofia teve como
precursores os heréticos os heréticos de toda a espécie que o braço secular
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justamente abrangeu durante toda a Idade Média e até a véspera da época
contemporânea (DURKHEIM, 2005, p. 86-87).
A compreensão dessa noção de crime ajuda a explicar porque, em determinados
contextos, indivíduos que, por estarem à frente de seu tempo, são rejeitados socialmente,
numa situação futura suas atitudes são lembradas como necessárias para a evolução daquela
sociedade. Ajuda a perceber também que, embora a tônica durkheimeana seja a análise da
reprodução da ordem social a partir da força que a sociedade exerce sobre o indivíduo, não foi
excluída, em seu pensamento, a possibilidade da margem de ação individual se defrontando
com os padrões estabelecidos.
CONCLUSÃO
Fizemos um rápido percurso no pensamento durkheimeano com o intuito de discorrer
sobre o seu entendimento a respeito do crime como fato social, tema que interessa tanto à
Sociologia Geral quanto a Jurídica. Ao abordar a temática, fizemos referência à sua
concepção de sociedade, de método e apresentamos conceitos que são chave para a
compreensão do objeto tratado neste artigo. Constatamos, na seção destinada a tratar do
assunto, que há pelo menos duas formas de se entender o crime na concepção durkheimeana:
uma está ligada à manutenção da ordem social, ao passo que a outra se refere às mudanças
sociais.
Durkheim é considerado um clássico da Sociologia e isso, em muito, se deve pela sua
insistência em atentar para o caráter coletivo dos fenômenos sociais, instaurando uma maneira
nova de explicar os fenômenos sociais dentro da perspectiva das ciências positivas. A
perspectiva positivista, no entanto, hoje é criticada em vários aspectos, incluindo o referencial
metodológico e a concepção de objetividade ligada à neutralidade do cientista.
Consideramos, a fim de concluir nossa exposição, que a crítica deve ser feita ao se
apontar os limites dessa proposição teórica ao se lançar na tarefa de explicar os fenômenos
sociais. A crítica, nesse sentido, não significa uma descaracterização do autor em questão, que
se torna clássico pelas suas afirmações teóricas. Uma crítica ao pensamento positivista, de
maneira geral, e do pensamento de Durkheim, em particular, deve apontar que, embora sejam
constatadas afirmações empiricamente verificáveis, elas não conseguem apanhar a dinâmica
da realidade social na sua totalidade. O pensamento durkheimeano, que, sem dúvidas,
apresenta uma contribuição ao olhar sociológico da realidade, situa-se dentro do campo de
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produção do conhecimento que expressa aquilo que Kosik (2002) denomina de
pseudoconcreticidade.
REFERÊNCIAS
ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. In: MORAES FILHO, Evaristo (Org.)
Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2005.
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FREIRE, Silene de Morais et alli. Montesquieu: a centralidade da moderação na política. In:
FERREIRA, Lier Pires; GUANABARA, Ricardo e JORGE, Vladimyr Lombardo (orgs).
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KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Cartas Persas. São Paulo: Martin Claret, 2009.
______. Do Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2006.
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