Félix Guattari: o capitalismo mundial integrado

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Félix Guattari: o capitalismo mundial integrado
André Campos de Camargo*
RESUMO
O presente trabalho está apoiado em dois textos de Félix Guattari publicados no Brasil em 1981
(O Capital como integral das formações de poder e O capitalismo mundial integrado e a
revolução molecular), que se encontram no livro Revolução Molecular: pulsações do desejo,
assim como em algumas passagens de outras obras do autor. Neste trabalho pretendemos
mostrar algumas considerações de Guattari sobre o capitalismo contemporâneo e sua
capacidade de controlar e organizar produtivamente não só as atividades econômicas
tradicionais, mas também as que formalmente escapam da definição econômica de trabalho.
Além de apontarmos algumas possibilidades de resistência a esse processo.
PALAVRAS-CHAVE: capitalismo mundial integrado, produção capitalista, resistência.
A subjetividade como matéria-prima do capitalismo mundial integrado
Em dois textos esclarecedores, O capital como integral das formações de poder e O
capitalismo mundial integrado e a revolução molecular, publicados em 1981 no Brasil, o filósofo
francês Félix Guattari, problematizou as relações de produção do capitalismo contemporâneo,
apresentando sua dimensão econômica e subjetiva. Para Guattari, da mesma forma que o
capitalismo contemporâneo utiliza-se da produção econômica para se expandir, ele necessita
também de certo tipo de subjetividade.
Para o autor, as antigas formas de capitalismo sempre se utilizaram do par
economia/subjetividade para se reproduzir. Entretanto, as antigas formas de produção de
*
Mestrando do Programa de Filosofia e História da Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
E-mail: [email protected].
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subjetividade capitalista não eram hegemônicas. Havia outras formas de se subjetivar que
escapavam da padronização capitalista. Foi apenas com o capitalismo contemporâneo, das três
últimas décadas do século xx, que a produção da subjetividade capitalista ganhou vocação
universal.
A dependência econômica do capitalismo contemporâneo, em relação à produção de
subjetividade, pode ser constatada historicamente pela necessidade do capitalismo em
incorporar, mesmo que lentamente, todos os tipos de atividades que formalmente escapavam
da definição clássica de trabalho. Só foi no final desse mesmo século, que as atividades da vida
doméstica, do esporte, da cultura, do turismo, da religião e da educação, por exemplo, foram
investidas por certo modo de subjetividade que procurou fazer com que todos os setores, se
tornassem duplamente produtivos. A própria produção de subjetividade gerada por esses
setores asseguraram sua reprodução econômica.
O capitalismo mundial integrado, no final do século XX, não só incorporou as atividades
humanas não produtivas ao setor de produção, mas ainda, inclui os países que pareciam
historicamente ter escapado desse processo. Alguns de forma completa, como foi o caso dos
países do antigo bloco soviético e a China e outros que, apesar de resistirem, se encontram em
um processo de amoldamento, como Cuba e Coréia do Norte. 1
A hegemonização dos valores capitalistas, por meio da produção de subjetividade, só é
possível quando uma série de equipamentos coletivos - a escola, a igreja, a família, a mídia, os
partidos políticos, as empresas, sindicatos, revistas, programas de televisão, centros de saúde,
etc.- prepara a subjetividade do indivíduo para se apropriar dos valores capitalistas.
O equipamento coletivo que melhor realiza, involuntariamente ou não, essa preparação,
pelo menos do nosso ponto de vista, é o equipamento escolar. Mas, seria a maior parte das
escolas uma espécie de empresa capitalista com postos de trabalho não assalariados? Caso a
resposta seja afirmativa, outras questões aparecem, como por exemplo: o que ela produz e
para quê?
1 GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely Rolnik. 3° edição, São Paulo: Brasiliense, 1986. p.212.
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Em seu livro Revolução Molecular Félix Guattari afirma que a noção de empresa
capitalista deveria se estender aos Equipamentos Coletivos 2, e a de posto de trabalho, à maioria
das atividades não assalariadas. E acrescenta:
De certa maneira, a dona-de-casa ocupa um posto de trabalho em seu
domicílio; a criança ocupa um posto de trabalho na escola, o consumidor no
supermercado, o telespectador diante de seu vídeo... Quando as máquinas
parecem trabalhar sozinhas, na verdade o conjunto da sociedade é adjacente a
elas. 3
Dessa forma, o capitalismo busca fazer com que todos os setores não produtivos da
sociedade tornem-se adjacentes ao setor produtivo e que de certo modo possam também
produzir. O que ocorre na escola, como também em outros equipamentos coletivos, é um
investimento do capital em forma de produção de subjetividade sobre o desejo.
Na medida em que um aluno se encontra a tempo vinculado a um sistema de
representação escolar capitalista, o seu desejo cai sob a dependência da máquina capitalista
levando-o a se relacionar através dos valores capitalistas. Esse processo pode ser caracterizado
como um assujeitamento dos fluxos desejante aos valores capitalistas.
Por isso, quanto mais cedo à criança decifrar os diferentes códigos do poder, melhor ela
estará preparada para fazer parte do sistema capitalista.
Essa iniciação ao capital, dizia
Guattari, consiste em arrancar da criança, o quanto antes, sua capacidade especifica de
expressão e adaptá-la aos valores dominantes.
A subjetividade capitalizada, produzida pelos equipamentos coletivos, tem a função de
tornar homogêneos os valores do capitalismo, preparando os indivíduos para a produção
econômica e subjetiva. Mesmo que um indivíduo, que passou pelos equipamentos coletivos,
não consiga ser inserido no mundo do trabalho para produzir, ele estará apto para reproduzir
as relações subjetivas capitalizadas. Frente a essas observações, surgem duas questões
2 Félix Guattari no livro Revolução Molecular fez uma adaptação do conceito de Aparelhos ideológicos de Estado de Louis Althusser, acrescentando a esse conceito o
componente maquínico. A preocupação do pensador francês, portanto, não estava em superar ou negar o conceito utilizado por Althusser, mas em ampliá-lo.
3 GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely Rolnik. 3° edição, São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 199.
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fundamentais: Como esse processo se realiza? Como o indivíduo se subjetiva a partir dos
valores capitalistas?
A captura da produção desejante pelo capitalismo
Para Guattari, o capitalismo mundial integrado estimula a produção desejante dos
indivíduos por meio das relações sociais, para depois capturá-las a partir de seus próprios
valores de mercado. Ao manipular o desejo, o capitalismo procura desassociar a produção
desejante da produção social. O que ocorre de fato é apropriação dos fluxos desejante para
reproduzir materialmente a sociedade (produção social). Assim, aquilo que chamamos de nosso
desejo, não é exclusivamente nosso, não é algo interior ao homem e muito menos sublimável,
ele é produzido nos encontros que ocorrem no campo social, portanto, exterior ao próprio
homem. Podemos dizer que os fluxos desejante produzidos em nossa sociedade passam antes
por uma axiomatização capitalista, para depois, e só depois, ser sentido por cada um de nós.
Nas palavras de Guattari e Deleuze:
Dizemos que o campo social é imediatamente percorrido pelo desejo, que ele
é seu produto historicamente determinado, e que a libido não precisa de
nenhuma mediação ou sublimação, nenhuma operação psíquica, nenhuma
transformação, para investir as forças produtivas e as relações de produção.
Não há senão desejo e o social, e nada mais.4
Não podemos, portanto, separar de um lado, a produção social e, de outro, uma
produção desejante porque toda produção desejante é produção social. Gilles Deleuze no
prefácio do livro: Psicanálise e Transversalidade, escrito por Félix Guattari, comenta o
posicionamento de Guattari frente ao desejo e ao inconsciente:
4 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. p. 46
.
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Veremos que Guattari teve muito cedo o sentimento de que o inconsciente
está antes diretamente vinculado com todo um campo social, econômico e
político do que com as coordenadas míticas e familiares tradicionalmente
invocadas pela psicanálise. Trata-se da libido propriamente dita, como essência
de desejo e de sexualidade: ela investe e desinveste os fluxos de toda natureza
que permeiam o campo social, efetua cortes desses fluxos, bloqueios, fugas,
retenções.5
Para Guattari, o capitalismo desenvolveu uma capacidade inovadora de combinar
espaços nacionais, culturas, religiões, sistemas políticos, temporalidades desiguais em função
das necessidades do mercado mundial integrado. Nessa nova fase o capitalismo investiu mais
na produção de subjetividade do que em qualquer outro momento da história, tornando-se
assim um sistema produtor de mercadorias e subjetividades. O capitalismo desta terceira
revolução industrial, do ponto de vista de Guattari, foi capaz de criar e integrar um mercado
subjetivo mundial, sem conseguir, por certo, fazê-lo do ponto de vista social.
Ao analisar a subjetividade pela ótica da produção, o pensador francês procurou ampliar
a definição de subjetividade para ultrapassar a oposição clássica entre individuo e sociedade.
Ao invés de sujeito, deveríamos dizer componentes de subjetivação, isso ocorria porque apesar
da subjetividade estar no inconsciente do indivíduo, ela é construído na exterioridade. 6 Logo,
teríamos que renunciar a idéia de que os fenômenos de expressão social são resultados de um
aglomerado, de uma somatória de subjetividades individuais, mas sim, pelo contrario, que a
subjetividade individual resulta de um emaranhado de agenciamentos coletivos extraídos do
social.
Assim, a subjetividade não poderia ser entendida como parte de uma identidade fixa e
individual, como geralmente se compreende, mas como um resultado da junção de diferentes
experiências da realidade. Quando falamos de subjetividade procuramos não confundi-la com o
sentido que comumente damos a subjetivismo7 nem a subjetivo8, mas buscamos compreendê5 GUATTARI. Félix. Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise institucional. Tradução de Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. Aparecida: Idéias & Letras, 2004. p.
08.
6 GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. 12º Edição, Campinas: Papirus Editora, 2001.p. 17.
7 Como preferências individuais.
8 Como o oposto a algo objetivo. Essa definição e a anterior aparecem no dicionário de filosofia Nicola Abbagnano. ABBAGNANO. Nicola. Dicionário de Filosofia, 2° Edição, São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
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la como um aglomerado de inúmeros fluxos desejantes, axiomatizados ou não pelo capital, que
se cruzam instaurando uma interioridade que o “sujeito” relaciona e chama de seu.
A forma pelo qual o indivíduo vive essa subjetividade, de acordo com Guattari, pode
oscilar entre: viver a subjetividade da forma tal como a processaram por meio de uma relação
de alienação e opressão ou através de uma relação de expressão e criação, na qual o indivíduo
se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo de singularização. 9
O primeiro modo aprisiona, o segundo liberta. Escolher o primeiro posicionamento, só nos
manteria na servidão voluntária, para usar parte do título da obra de La Boétie 10, que nos
parece exprimir a maior parte das ações dos indivíduos atualmente. Optar pelo segundo modo
significa, para o filósofo francês, combater qualquer produção de subjetividade que objetive
desenvolver relações de exploração e de dominação.
Por singularização o pensador francês compreendia um processo de rompimento com
os desejos axiomatizados pelo capital. Tal rompimento levaria a outras maneiras de ser, de
sentir, de perceber e de se relacionar coletivamente. Apesar do processo de singularização
parecer à melhor opção para os indivíduos em sociedade, por que ela não ocorre com maior
freqüência? O que impede uma pessoa de se singularizar?
No esforço de pensar as problemáticas vinculadas às questões acima, como também de
pensar o funcionamento do inconsciente, Guattari desenvolveu uma analítica das formações do
desejo no campo social, mais conhecida como micropolítica, e para instrumentalizá-la criou
dois conceitos, a saber: o conceito de molar e molecular. O primeiro conceito se refere à
realidade constituída, lugar de excelência do registro e controle dos corpos no social, local
gerido preferencialmente pelas instituições reprodutoras das relações sociais dominantes. O
segundo a realidade em vias de se constituir (territorialização) e, ao mesmo momento, em vias
de se desmanchar (desterritorializar), lugar de produção onde os fluxos de desejo se relacionam
através de inúmeras conexões. Apesar de não existir entre os planos uma diferença de valor, o
movimento operado por eles poderia resultar em uma organização diferenciada dos planos,
9 GUATTARI, Félix, ROLNIK Suely. Micropolítica: Cartografias do Desejo. 6º edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2000. p. 34.
10 LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução de Laymert Garcia dos Santos. Comentários de Lefort; Claude; Clastres; Pierre; Chauí, Marielena. Coleção
Elogio da Filosofia. Edição Bilingüe: São Paulo: Brasiliense, 1990.
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segundo modelos reacionários ou emancipatórios. Para o pensador francês, uma mesma
pessoa ou instituição, poderia operar nos dois planos de formas distintas. Nos seus dizeres:
Assim, por exemplo, um grupo de trabalho comunitário pode ter uma ação
nitidamente emancipadora a nível molar, mas a nível molecular ter toda uma
série de mecanismos de liderança falocrática, reacionária, etc. Isso, por
exemplo, pode ocorrer com a igreja. Ou, o inverso: ela pode se mostrar
reacionária, conservadora, a nível das estruturas visíveis de representação
social, a nível do discurso tal como ele se articula no plano político, religioso,
etc., ou seja, a nível molar. E, ao mesmo tempo a nível molecular, podem
aparecer componentes de expressão de desejo, de expressão de singularidade,
que não conduzem, de maneira alguma, a uma política reacionária e de
conformismo.11
A singularização não ocorreria facilmente, porque o movimento molar e molecular
dependeria também de uma revolução molecular, mas não como as que ocorrem de forma
reacionária. E acrescenta: ‘não foi uma revolução molecular que precedeu o advento do
Nacional-Socialismo na Alemanha’.12
A revolução molecular só alcançaria um resultado progressista, segundo o pensador
francês, desde que tivesse a capacidade de articular os agenciamentos moleculares
explicitamente revolucionários com as lutas molares de interesse social. Caso essa articulação
não ocorresse, saberíamos quem são as pessoas que trabalham para que os processos
moleculares revolucionários entrem em conformidade com as estratificações molares
capitalistas.13
O desafio está lançado, ou criamos diferentes resistências aos processos micropolíticos
de subjetivação ou estaremos fadados ao controle constante do capitalismo mundial integrado
em nossas vidas.
11 GUATTARI, Félix, ROLNIK Suely. Micropolítica: Cartografias do Desejo. 6º edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2000. p. 133.
12 GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely Rolnik. 3° edição, São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 213.
13 Ibdem. p. 221.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1976.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. 12. ed. Campinas:
Papirus Editora, 2001.
______. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana de Oliveira e Lúcia Cláudia
Leão. São Paulo: Ed. 34, 2ª reimpressão, 1993.
______. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise. Tradução de Constança
Marcondes César e Lucy Moreira César. Campinas: Papirus, 1988.
______. Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise institucional. Tradução de Adail
Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. Aparecida: Idéias & Letras, 2004.
______. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely Rolnik. 3. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1986.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 6. ed. Petrópolis: Editora
Vozes, 2000.
LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução de Laymert Garcia dos
Santos. Comentários de Lefort; Claude; Clastres; Pierre; Chauí, Marilena. Coleção Elogio da
Filosofia. Edição Bilíngüe: São Paulo: Brasiliense, 1990.
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