II Colóquio da Pós-Graduação em Letras UNESP – Campus de Assis ISSN: 2178-3683 www.assis.unesp.br/coloquioletras [email protected] O USO DA METÁFORA NOS ROMANCES DE ANTONIO DA FONSECA SOARES Luís Fernando Campos D’Arcadia (Mestrando – UNESP/Assis – CAPES) RESUMO: A poesia do século XVII é conhecida por seus “clichês” e o tratamento “exagerado” dado a eles. Procuraremos demonstrar que os clichês na verdade são marcas de uma prática de escrita extensiva a todos os seus praticantes, em que a emulação (não cópia) de um modelo e a adequação ao gênero são os elementos mais valorizados. Visando a apresentar elementos para uma revisão da poesia desse período, debatemos o seu uso e a sua construção a partir do exame das metáforas “cristalizadas”, construídas em torno de “conceitos” e desenvolvidas a partir deles de modo engenhoso. O manuscrito 2998 da Sala de Reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra contém 104 romances atribuídos a Antonio da Fonseca Soares que são bons exemplos desse tipo de poesia. PALAVRAS-CHAVE: Antônio da Fonseca Soares; barroco; metáfora. A poesia portuguesa conhecida como “barroca” é notória pelas críticas que sofreu durante os três últimos séculos. Principalmente a poesia de circunstância, produzida nas cortes do século XVII, cujos melhores exemplos povoam as publicações tais quais a Fenix Renascida e o Postilhão de Apolo. O ambiente cortesão de sua recepção, o trabalho engenhoso do conceito e a assimilação de modelos forneceram argumentos para que se apontassem seus vários “defeitos”: falta de originalidade, frivolidade, excesso de ornamentação, “gongorismo” (mal visto após a Restauração), etc. O manuscrito 2998 da Sala de Reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC) contém 104 romances atribuídos a Antonio da Fonseca Soares, os quais são bons exemplos desse tipo de poesia. Os romances são em sua maioria de poesia erótica, nos quais o eu-lírico se dirige a suas várias musas, desde sublimes ninfas bucólicas até lavadeiras e vendedoras de frutas, às vezes de maneira séria, às vezes de maneira jocosa. Nosso enfoque aqui são as técnicas de descrição dessas mulheres, dando especial atenção às poesias de “retrato”. Os retratos enchem as publicações de poesia do século XVII. Sendo uma prática de produção de poesia genérica, ela possui seus modelos a serem imitados e certos elementos são considerados “obrigatórios”. Os letrados do período são guiados 737 por uma prática intertextual que incentiva a variação de elementos consagrados pela tradição, e as variações possíveis são em si também dadas pela tradição, a partir de princípios das disciplinas de Retórica e Poética e ainda o trabalho com o conceito baseado na Dialética escolástica contra-reformista. O trabalho com o conceito, o “conceptismo”, é essencial para a compreensão da técnica descritiva que dá luz aos retratos: deixando de lado as acusações de “excesso de ornamentação”, é preciso compreender que o conceptismo é signo do engenho do poeta, quando esse expõe semelhanças inusitadas entre conceitos, por meio de sua “agudeza”, base do processo metafórico de então. A metáfora é a figura principal da literatura produzida no século XVII. O preceptista Emanuele Tesauro dedica-lhe todo o seu tratado Il cannochiale aristotelico, e, no âmbito da escrita sacra, a analogia é o centro da questão do intelecto angélico: [...] o Anjo é capaz de conceber um poema, uma empresa alegórica, um sermão? e, se o for, também será capaz de comunicá-los a outros? Como então se dizia, o Anjo é puro espírito, por isso fala com os próprios conceitos, e não com os signos deles. Angelicamente, uma mesma coisa é significante e significada, de modo que, sem nenhum instrumento, o Anjo pode produzir diretamente a imagem espiritual de seu pensamento em outro espírito, tornando-se um e outro pintor e pintura. [...] Todo Anjo é terrível porque conhece a representação, diversamente do intelecto humano, que só se comunica por meios indiretos, quando substitui a significação de uma coisa por outra, como representação. (HANSEN, 1999, p. 30) Os retratos de Antonio da Fonseca são verdadeiras listas de metáforas construídas para descrever partes do rosto e do corpo feminino. Estando num contexto de uma composição genérica, entretanto, Fonseca obtém essas metáforas de um repertório já fixado por uma tradição. Daí a repetição exaustivas de certas comparações, as quais, entretanto, não são cópias umas das outras, mas emulações, num sentido em que competem entre si para atingir a perfeição do modelo ou até mesmo superá-lo. Nessa breve comunicação enfocaremos o uso que Fonseca faz da metáfora cristalizada que compara os atributos do rosto a flores. A imagem da flor é frequente nos 104 romances do nosso corpus, ocorrendo tanto esporadicamente, em vocativos cristalizados como ‘minha flor’ (3, 16, 49, 54, 84, 91, 95, 104), quanto desenvolvida em metáforas como ‘açucena’ (6, 76, 103) para representar a brancura e delicadeza; nos usos de ‘cravo’ (6, 11, 77) como figura dos lábios; ‘jasmim’ como a brancura da face (11, 61); ou ‘rosa’ usada em inúmeros contextos. Um exemplo melhor da cristalização 738 dessa metaforização está no Romance 6, no qual a persona amorosa oferece flores, as quais, não podem ser mais belas que sua interlocutora: Perdoai-me a confiança dessas plantas cuja oferta vai deitar-se a vossas plantas por ver-se na primavera E com razão pois conhecem que serão flores mais belas da vossa boca os craveiros do vosso rosto as roseiras Procedimento similar também acontece no romance 21, Clory dar-vos boas festas: Dar-vos as páscoas de flores parece bem escusava, que quem é tão linda flor o dar lhe flores é nada Giuseppe Arcimboldo, pintor italiano do século XVI, é notório por seus retratos de pessoas a partir da junção de objetos inanimados. A figura é geralmente uma entidade alegórica; no caso da primavera, ela é construída a partir de várias figuras relacionadas à botânica, sendo a maior arte flores. É nesse mesmo espírito de engenhosidade pictórica que Fonseca Soares faz uso das imagens das flores, entretanto, deve-se considerar que por se tratar de uma poesia vulgar a clareza própria do gênero exige um uso diferente da metáforas, alegorias, metonímias e equívocos. Podemos observar vários aspectos recorrentes, como a metonímia das faces (termo que Fonseca parece usar sempre que se refere às maçãs do rosto) faces como flor e o rosto como primavera, e também, ainda a imagem da pessoa que se fere no espinho, lugar comum da poesia amorosa no período. O romance 28 constitui um poema de 12 quadras em redondilhos maiores, cujo primeiro verso é De chança quero pintar. Trata-se do exemplo bem acabado de um retrato, com elementos como uma primeira estrofe que remete ao ut pictura poesis horaciano, verdadeira tópica “obrigatória” do gênero: De chança quero pintar Izabel essa beleza e quero zombar de graça já que tu zombas deveras [...] A flor da cara tais flores te quis por a natureza que esses de rosas teu rosto para ser a primavera [...] E sem que mal te deseja 739 tal amor tenho a pobreza que melhor te vira nua que rica de tantas prendas. O romance 32 faz uso da mesma imagem do rosto como flor, porém num contexto menos jocoso. Nesse romance o eu-lírico narra a memória de sua amada, e a descrição da mulher ocorre como amplificação do sentimento de saudade: [...] Quando na idéia retrato os rasgados olhos negros negros qual minha ventura rasgados como meu peito Quando as flores imagino das faces, donde o Deus cego já qual abelha mel tira já qual áspide [põe] em veneno Quando o nariz bem composto meta da beleza e jeito, lírio branco em jardim culto, Láctea via em Céu sereno Quando considero a boca mas quando a não considero quanto florida na cores tanto florida em conceitos [...] Nesse trecho é possível observar uma variação importante da metáfora com uma ligação engenhosa beleza-flores-virtudes. A brancura da face é mote para comparação com o lírio, situado em um jardim “culto”, sendo a ligação beleza física/ beleza espiritual concentrada na figura do equívoco; a metaforização se repete na estrofe em que se descreve a boca, florida em cores e em conceitos. Na segunda estrofe há referência ao mito de que Cupido ferido por uma abelha. Esse mito foi exposto numa ode anacreôntica, na qual Eros, ao ser picado por uma abelha ao colher flores, vai se lamentar a sua mãe, Afrodite, que lhe diz “[...] A agulhazinha/ de uma abelha te dói tanto.../ Julga, ó Eros, os que feres/ Como hão de sofrer e quanto!”1 (ANACREONTE, 1983). O tema é aproveitado em várias oportunidades por Fonseca, sendo o espinho representação dos achaques do amor. No romance 77 personifica a flor, invertendo os papéis, que se enrubesce ao ver a mulher que a colhe, ‘inovando’, no sentido em que há uma emulação do tema da tradição: Enfim desemascarando [sic] a frase em bom português 1 Tradução poética de Almeida Cousin. 740 indo colher uma rosa mui vermelha de vos ver Que vos metera o ferrão certa abelha ouvi dizer quase que era abelha mestra abelha que isto vos fez No romance 66, ao narrar Nize, uma de suas várias costureiras, numa situação banal - chupando o dedo após feri-lo com uma agulha: Deste dano à fiel boca remédio pede cortes de onde queixas de um jasmim picadas de um cravo tem Note-se o uso da metáfora cristalizada e do equívoco no uso das imagens, procedimento repetido à exaustão na poesia de retrato. Ao colher flores ainda, no romance 25, o eu-poemático alerta, de (maneira jocosa, aliás, pela desmistificação em “confusões”) para a existência de espinhos: Tende lástima de quem entre confusões metido como vos conhece Rosa receia muitos espinhos. No romance 42, ao narrar a mulher ferindo-se no espinho, esse é colocado como representação da esquivança da própria mulher, uma rosa cheia de espinhos que, ao ferir-se nos espinhos da outra rosa, prova do próprio veneno: Mas vos sois muito espinhada, e é bem que pagueis a pena pois sem bulirem convosco vos fostes picar co’ela De vos picaresca espinha não sei que motivos tenha se não é ver que a tempos na espinha vossa beleza A rosa é muito usada como caracterização do rosto, muitas vezes comparando a mulher à primavera, estação das flores, como no romance 13, O rostinho era composto de rosa, e branca sem çem, tão mimoso que acusava ao Zerifo de cruel E o romance 75 As duas Rosas das faces sendo de amor primaveras condessas de Vila Flor me parece qualquer delas 741 Ao lado da comparação da mulher à primavera, está o uso da flor como caracterização de um prado, como nos romances 29, 60, 83, 97 e 100. Neste último, assim como nos romances 61 e 65, a caracterização do prado é paralela à caracterização do céu. No romance 61 prado e céu se ressentem dos achaques da mulher, e no romance 65, o eu-poemático compara a mulher ao sol e à primavera, os quais, entretanto, perdem sua graça na mesma medida em que a mulher perde a graça ao rejeitá-lo. Outras imagens mais inventivas são criadas, como a imagem do rosto do vendedor, tanto de maçãs, quanto de rosas, no romance 94: Maçãs o rostinho vende e flores tão preciosas pois é barata de tudo sendo mui cara de Rosas No romance 2, Fonseca explora o contraste entre flor e peste, sendo a primeira figuração da beleza e a segunda da esquivança amorosa: A que d’El Rei que me mata Maricas essa cachopa que nasceu flor em Colares para ser peste Em Lisboa Por ser a flor desta terra e mostrar que as mais são folhas fez na rua do carvalho inveja a rua fermosa No romance 48, um natalício, o autor joga engenhosamente com as noções de flor e primavera, numa espécie de metonímia dentro da metonímia, onde os anos incluem a primavera e essa inclui as flores: Quem viu anos tão fermozos pois quando o tempo os cobra duma beleza em um dia são todos uma beleza Se nelas a flor da idade tanto em flor se manifesta que podem ser se não flores anos que são primaveras No romance 4, a comparação entre mulher e flor é utilizada em conjunto com uma metáfora bélica: Amor Tisbe sai ao campo tocai arma, e vide amor que vem Tisbe em som de guerra por mais que a paz lhe deis vós Como uma flor posta em campo fez com que Abril se transpôs 742 porque caindo-lhe a folha não pode dar nesta flor De hum chamalote de prata verde nuvem a seu candor E a que d’El Rei no valor Beleza tão valorosa Nesse romance, Amor Tisbe sai ao campo, após narrar a entrada num campo de batalha de sua musa e do ‘amor’, a persona descreve a retirada de “Abril”, (“Abril se transpos”), também numa figuração do outono. A flor-mulher é então descrita como “[...] chamalote de prata/ verde nuvem [...]” conceitos que misturam a elegância do tecido, a cor prata das armas e o verde das plantas, misturando a beleza da mulher, metaforizada em planta, e sua nobreza (“Beleza tão valeroza”). A metáfora da flor é então desenvolvida de maneira dialética, mesclando predicados da flor e das armas, figurando a persistência da mulher-primavera face ao outono, amplificando o argumento que justificará a interrogação seguinte, que serve a louvar a ‘beleza-valor na batalha’ de sua musa: donaire tão brilhador de armas pode ter medo? de que almas pode ter-do? Como pudemos mostrar, todo um universo de imagens foi criado em torno da imagem da flor e suas variações; e isso é ainda somente uma pequena parte da diversidade imagética da poesia de retrato seiscentista a qual ainda está por ser descoberta, lida, fruída e explorada por leitores contemporâneos. Mesmo com todas as críticas, o que é aparentemente um divertimento frívolo de um cortesão do século XVII, pode se mostrar uma maneira complexa e rica de compreender e praticar literatura. Referências bibliográficas ANACREONTE. Odes de Anacreonte. Tradução de Almeida Cousin. 4 ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983. Ms. 2998 da Sala de Reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra HANSEN, J. A. Vieira e a agudeza. In: PÉCORA A. [et al]. Antônio Vieira: o imperador do púlpito. Coordenação Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros; USP, 1999. p. 25-38. 743