Novos enfoques sobre a flexão verbal em português

Propaganda
FACULDADE DE LETRAS/ UFRJ
VÍTOR DE MOURA VIVAS
NOVOS ENFOQUES SOBRE A FLEXÃO VERBAL EM PORTUGUÊS:
ABORDAGEM FORMAL E SEMÂNTICA DO MECANISMO FUSÃO
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2011
1
FACULDADE DE LETRAS/ UFRJ
NOVOS ENFOQUES SOBRE A FLEXÃO VERBAL EM PORTUGUÊS:
ABORDAGEM FORMAL E SEMÂNTICA DO MECANISMO FUSÃO
Vítor de Moura Vivas
VOLUME ÚNICO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras (Letras Vernáculas), Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras
Vernáculas, na Área de Concentração Língua Portuguesa.
Orientador: Prof. Doutor Carlos Alexandre Victorio Gonçalves
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2011
2
Novos enfoques sobre a flexão verbal em português: abordagem formal e
semântica do mecanismo fusão
Orientador: Prof. Dr. Carlos Alexandre Victorio Gonçalves
Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua
Portuguesa).
Examinada por:
Presidente, Professor Doutor Carlos Alexandre Victorio Gonçalves - UFRJ.
Professora Doutora Maria Lucia Leitão de Almeida - UFRJ
Professora Doutora Mônica de Toledo Piza - UFRRJ
______________________________________________________________________
Professora Doutora Eliete Figueira Batista da Silveira - UFRJ
Professor Doutor Roberto Botelho Rondinini - UFRRJ
3
Nº ?? VIVAS, Vítor de Moura.
Novos enfoques sobre a flexão verbal em português: abordagem formal e
semântica do mecanismo fusão.
Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas - Língua Portuguesa)Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras.
Orientador: Carlos Alexandre Victorio Gonçalves
1. Morfologia. 2 Flexão Verbal. 3. Fusão. 4. Letras – Teses
I. Gonçalves. Carlos Alexandre Victorio. (Orientador) II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós - Graduação em Letras
Vernáculas. III. A fusão de categorias verbais no português.
CDD:
4
SINOPSE
Abordagem dos padrões de fusão na morfologia verbal
portuguesa tendo em vista fundamentação semântica /
formal e a sistematicidade / produtividade do processo .
5
Novos enfoques sobre a flexão verbal em português: abordagem formal e
semântica do mecanismo fusão
Orientador: Carlos Alexandre Victorio Gonçalves
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em
Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
O mecanismo fusão, apesar de sistemático e produtivo, está à margem dos
estudos de morfologia do português. A fusão é uma operação na qual uma modificação
num tema de um vocábulo revela a manifestação de um conteúdo relevante para a base.
Para o enfoque estruturalista, qualquer processo que não envolva encadeamento estrito
de formas constitui um problema.
O foco da Dissertação são as fusões que ocorrem em verbos; demonstramos que
a morfologia flexional portuguesa se organiza não só por concatenação de afixos, mas
também por fusão. Explicitamos diversos expedientes de fusão – ditongação, mudança
consonantal, inserção consonantal, haplologia, alternância vocálica – que manifestam
conteúdos de tempo e de número-pessoa. Damos conta do polo semântico utilizando
Bybee (1985) e Gonçalves (2005) e formalizamos o fenômeno da alternância vocálica
com base em McCarthy (1979, 1981) e Clements & Hume (1995).
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2011
6
New approaches to verbal inflection in portuguese: focus formal and semantic of
the mechanism fusion
Advisor: Carlos Alexandre Victorio Gonçalves
Abstract of Master’s Thesis presented to Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, as
a partial fulfillment of the requirements for the degree of Master of Portuguese.
The mechanism fusion, although systematic and productive, is outside the
morphological studies of Portuguese. The fusion is an operation in which a change in
the stem of a word reveals the manifestation of a content relevant. For the structuralist
approach, any process that does not involve strict chain of forms is a problem.
The focus of the Thesis are the fusions that occur in verbs; we demonstrate that
the Portuguese inflectional morphology is organized not only by concatenation of
affixes, but also by fusion. We evidence various fusion’s expedients – diphtongization,
consonant shift, consonant insertion, haplology, vowel shift – that manifest verbal
content of tense and number. We analyse the semantic pole using Bybee (1985) and
Gonçalves (2005) and we formalize the phenomenon of vowel shift based on McCarthy
(1979, 1981) and Clements and Hume (1995).
Rio de Janeiro
February 2011
7
AGRADECIMENTOS
A Deus, por me abrir sempre os melhores caminhos, permitir-me conhecer as
pessoas certas, guiar a minha trajetória pessoal e profissional.
Ao Carlos Alexandre, por respeitar a minha opinião e ouvir, atentamente, as minhas
ideias desde a Iniciação Científica; por acreditar no meu potencial; por se colocar, em
todos os momentos, como um orientador amigo, por fazer suas revisões sempre
perfeitas e por ter construído uma produção intelectual de valor estimável, que
contribuiu, sobremaneira, à minha Dissertação.
Ao meu pai, por, com a minha mãe, ter dado todo apoio a mim desde a infância; por
ser um exemplo na área das Letras, que sempre me orgulhou, incentivando-me a
enveredar pelos caminhos da Língua Portuguesa.
À minha mãe, pela dedicação, paciência e amor demonstrados em cada momento da
vida; pelo apoio constante e diário; por, assim como o meu pai, ser um grande exemplo
na área do Magistério.
Ao meu irmão, por ser um grande amigo em todas as horas.
Aos meus tios e primos, por se comportarem como pais e irmãos, me fazem sentir
mais seguro e feliz.
Aos meus avós (in memoriam), pelo amor e carinho dedicados, tornando-me uma
pessoa querida.
Aos meus amigos, por, a cada dia, fazerem de mim, uma pessoa melhor nas risadas,
nas críticas e nas festas.
Aos amigos João Vicente e a Hayla, por terem me ajudado a manusear as
ferramentas computacionais ensinando-me a acertar figuras e ajustar traços.
Ao amigo Felipe, quase londrino, por ter realizado a revisão do resumo em inglês.
8
A todos os meus Professores de Português da UFRJ, da Graduação e do Mestrado,
que, com todo o seu conhecimento e atenção, fizeram com que eu me empolgasse, cada
vez mais, com a pesquisa em língua portuguesa e ficasse seguro do caminho a percorrer.
À Professora Silvia Rodrigues Vieira, que, no segundo período da Faculdade, me
fez ter a certeza de que deveria seguir a trajetória acadêmica.
À Professora Maria Lucia Leitão de Almeida, por, numa prova de Monitoria, ter me
incentivado a conhecer o NEMP e a pesquisar sobre Morfologia com o Professor Carlos
Alexandre Gonçalves levando a que eu me encontrasse nos rumos da pesquisa; além de
sempre me dar força e acreditar em mim desde os tempos das aulas de Semântica na
Graduação.
Aos meus alunos da UFRJ, por me fazerem aprender mais e mais sobre o português
com suas dúvidas e interesse, o que muito me auxiliou na elaboração da Dissertação.
Ao Professor Mauro José Rocha do Nascimento, que, ao utilizar, na sua Prova de
Aula para Professor Adjunto de Língua Portuguesa da UFRJ, alguns aspectos da minha
pesquisa sobre fusão, além de me deixar orgulhoso e lisonjeado, incentivou-me a
pesquisar mais e mais esse fenômeno.
A todas as pessoas, que participaram, de alguma forma, da minha trajetória,
ensinando-me lições sobre “viver”.
À CAPES, pelos primeiros dezoito meses de apoio financeiro com a Bolsa de
Mestrado.
À FAPERJ e ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, por terem me
concedido a oportunidade de ser Bolsista FAPERJ Nota 10 nos últimos seis meses do
Mestrado.
9
“Há um tempo em que é preciso abandonar/
As roupas usadas/Que já têm a forma do
nosso corpo/E esquecer os nossos caminhos
que nos levam sempre aos mesmos lugares./É
o tempo da travessia/E se não ousarmos fazêla/Teremos ficado para sempre/À margem de
nós mesmos”
(Fernando Pessoa, Tempo de Travessia)
10
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................. 14
2. ENFOQUES SOBRE A ALTERNÂNCIA VOCÁLICA EM PORTUGUÊS .. 18
2.1. Revisando a modificação na base em português.............................. 18
2.2. Irregularidades no tema de pretérito perfeito do indicativo......................... 28
2.2.1. Quanto à vogal temática ............................................................... 28
2.2.2. Alternância vocálica no radical .................................................... 28
2.2.3. Ditongação no radical .................................................................. 28
2.2.4. Realização ou não da nasal .......................................................... 29
2.3. Irregularidades no tema de presente do indicativo ..................................... 29
2.3.1. Mudança da consoante final do radical ........................................ 29
2.3.2. Alargamento da vogal do radical ................................................. 29
2.3.3. Acréscimo de uma consoante final ao radical .............................. 30
2.3.4. Realização da consoante nasal ..................................................... 30
2.4. Irregularidades no futuro ............................................................................ 31
2.5. Verbos anômalos ......................................................................................... 31
2.6. Acertando pontos a partir da Revisão Teórica ............................................ 32
3. MOTIVAÇÃO ENTRE FORMA E CONTEÚDO........................................... 39
3.1.A relevância semântica................................................................................. 39
3.2. Focalizando a fusão de categorias gramaticais ........................................... 43
4.
A FUSÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA ..................................................... 49
4.1. A informação de tempo presente................................................................. 50
4.1.1. Alternância vocálica: oposição entre presente do indicativo e
pretérito perfeito do indicativo .......................................................................... 52
4.1.2.Vogal média-aberta: informação de presente................................. 52
4.1.2.1. Ditongação na sílaba tônica do radical: informação de
presente .................................................................................................. 63
11
4.1.2.2. Mudança na consoante final do radical: fusão da
informação de presente .......................................................................... 66
4.1.2.3. Expediente morfológico para informação de presente:
fusão ....................................................................................................... 68
4.1.3. Fusão da noção gramatical de pretérito perfeito .......................... 68
4.1.4. Noção de futuro: fusão por haplologia ......................................... 72
4.2. Fusão de número-pessoa ............................................................................ 73
4.2.1. Fusão número-pessoal por ditongação ......................................... 73
4.2.2. Fusão por mudança na consoante final do radical ....................... 75
4.2.3. Fusão número-pessoal por alternância vocálica ........................... 79
4.3. Fusão levada às últimas consequências ...................................................... 83
4.4. Palavras finais ............................................................................................. 90
5. MORFOLOGIA NÃO-LINEAR: FUSÃO POR ALTERNÂNCIA VOCÁLICA
.................................................................................................................................. 92
5.1. Morfologia Autossegmental (MCCARTHY, 1979, 1981): fundamentação
teórica e instrumental de análise .............................................................................. 94
5.2. A fusão por alternância vocálica no português .......................................... 98
5.3. Algumas assunções teóricas da Geometria de Traços ............................... 99
5.3.1. O nó de abertura e a interpretação de altura vocálica ................ 101
5.4. Formalização da operação fusão por alternância vocálica no paradigma
verbal ........................................................................................................................... 103
5.4.1. Fusão por alternância vocálica: conteúdo de presente ............... 104
5.4.2. A fusão número-pessoal no padrão A ........................................ 109
5.4.3. A fusão número-pessoal no padrão B ........................................ 113
5.5. Fusão: operação não-linear sistemática e formalizável ............................ 122
12
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 123
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................... 125
13
I. INTRODUÇÂO
No presente trabalho, pretendemos explicitar que a fusão, aqui entendida como
alteração na constituição fonológica da base (radical + vogal temática), constitui
expoente de informação gramatical, sendo regular e produtiva no português
contemporâneo. A morfologia flexional do português não se estrutura apenas por
concatenação de afixos; no nosso entendimento, há padrões de fusão responsáveis por
manifestar os mesmos conteúdos gramaticais expressos pela adjunção de desinências.
Neste trabalho, focalizamos o verbo; desse modo, analisamos fusões nos conteúdos
veiculados pelos afixos de MTA (modo-tempo-aspecto) e NP (número-pessoa).
A literatura morfológica sobre o português, ao explicar mudanças nos radicais,
focaliza apenas o polo formal. Em geral, faz-se uma apresentação exaustiva de
paradigmas formais, explicitando eventuais regularidades. Todavia, o polo semântico é
desconsiderado. Desse modo, a fusão, produtiva e regular, tende a “escapar” ao olhar do
morfólogo. Os únicos casos de mudança no radical que manifestam conteúdo gramatical
apontados, com certa frequência, são os de alternância vocálica (morfêmica e
submorfêmica): ‘form[o]so’ / ‘form[ɔ]sos’ (submorfema de número plural); ‘form[o]so’
/ ‘form[ɔ]sa’ (submorfema de gênero feminino) e ‘av[o]’ / ‘av[ɔ]’ (morfema de gênero);
‘t[i]ve’ / ‘t[e]ve’ (morfema de NP).
Para a literatura morfológica tradicional, a alternância vocálica é improdutiva em
português e acontece em pouquíssimos casos. Essa visão, apesar de errônea, é comum,
porque mudanças formais no radical constituem um problema para o mapeamento
biunívoco entre morfe e morfema (AZUAGA, 1996; GONÇALVES & ALMEIDA,
2008). Às vezes, uma informação gramatical não se dá por acréscimo de afixos, mas por
reduplicação total ou parcial, encurtamento, mudança na base. Na literatura morfológica
14
de inflexão estruturalista, afixos informam conteúdos; sendo assim, a fusão (assim como
os outros processos não-lineares), apresenta-se como uma dificuldade para a descrição
formal: esse aporte teórico não consegue formalizar uma informação que não seja dada
por encadeamento de formas, além de negligenciar a descrição semântica. O
Estruturalismo não oferece instrumentos eficazes para explicar como uma mudança no
radical, e não um afixo, manifesta um conteúdo, sendo, por isso mesmo, o próprio
expoente da informação morfológica. Pretendemos, nesta Dissertação, explicitar como
esses polos se correlacionam na fusão.
Defendemos a hipótese de que modificações formais na base verbal, mesmo
quando condicionadas fonologicamente, têm uma contraparte semântica: informam
tempo (passado, presente, futuro) e número-pessoa (1ª pessoa do singular; 3ª pessoa do
singular). Fundamentando-nos em Bybee (1985), para quem a forma de superfície é
motivada semanticamente, evidenciamos o aporte que nos permite entender que
modificações formais no radical revelam fusões de conteúdos semânticos (polo
semântico). Quanto ao polo formal, conseguimos formalizar a fusão por alternância
vocálica, principal objeto da nossa Dissertação, através da Morfologia Autossegmental
(McCARTHY, 1979; 1981).
Nossa Dissertação estrutura-se da seguinte maneira: no capítulo 2, Enfoques
sobre a alternância vocálica em português, demonstramos como a literatura
morfológica trata esse tipo de mudança no radical de verbos. Geralmente, os autores
fazem uma análise exaustiva dos padrões formais na conjugação verbal, evidenciando
casos de alternância vocálica (‘fiz’; ‘fez’); mudança da vogal temática (‘ver’; ‘visse’);
ditongação no radical (‘passeio’); realização ou não da nasal (‘vim’; ‘vir’); mudança da
consoante final do radical (‘perco’; ‘perder’); acréscimo de consoante ao radical (‘vejo’;
‘ver’), mas não abordam a contraparte semântica dessas mudanças formais. A
15
alternância vocálica é o único caso de mudança formal que manifesta conteúdo
gramatical geralmente apontado pelos autores: ‘t[i]ve’ / ‘t[e]ve’, ‘f[i]z’ / ‘f[e]z’
(informação número-pessoal); ‘p[o]de’ / ‘p[ɔ]de’ (informação de MTA); ‘t[i]nha’ /
‘t[e]nha’, ‘p[u]nha’ / ‘p[o]nha’ (informação de MTA). Monteiro (1991) explicita
também a alternância consonantal que reforça número-pessoa: ‘faço’ / ‘fazes’, ‘digo’ /
‘dizes’, ‘trago’ / ‘trazes’, ‘peço’ / ‘pedes’. De uma forma geral, esses casos são tratados
como improdutivos.
No capítulo 3, Motivação entre forma e conteúdo, fundamentando-nos em
Bybee (1985) e Gonçalves (2005), apresentamos o aporte teórico que nos permite
considerar que
mudanças
formais têm uma
contraparte
semântica.
Assim,
demonstramos as causas para as mudanças no radical, que, como ressaltamos, seriam
problemas para a abordagem estruturalista. No capítulo 4, A fusão em língua
portuguesa, apresentamos diversos casos de fusão na morfologia do verbo; assim,
demonstramos que esse processo é sistemático e regular tanto na informação de tempo
(passado, presente e futuro) como na informação de número-pessoa (1ª pessoa do
singular; 3ª pessoa do singular). No capítulo 5, Morfologia Não-Linear: fusão por
alternância vocálica, sintetizamos as principais ideias da Morfologia Autossegmental
(McCARTHY, 1979, 1981) e demonstramos como esse modelo oferece instrumental
adequado para a representação de processos morfológicos não-lineares. Com base na
Morfologia Autossegmental (1979, 1981) e nas assunções de Clements & Hume (1995)
para o traço de abertura vocálica, propomos uma formalização para a fusão por
alternância vocálica, principal foco de nosso trabalho. Já no capítulo 6, Considerações
Finais, sintetizamos os principais aspectos apontados na Dissertação e as conclusões a
que chegamos com a pesquisa.
16
Pretendemos, com esta Dissertação, dar conta da sistematização de um processo
regular e produtivo na morfologia verbal do português: a fusão. Objetivamos 1)
explicitar as variadas estratégias formais de fusão (ditongação, alternância vocálica,
mudança consonantal, entre outras); 2) demonstrar como a fusão constitui exemplo de
iconicidade na língua; 3) comprovar que alguns zeros morfológicos são casos de fusão
que passaram despercebidos pela maior parte dos morfólogos do português e 4) propor
uma formalização para a fusão por alternância vocálica.
Esta Dissertação evidencia que fenômenos de morfologia não-linear, apesar de
considerados marginais pelo enfoque estruturalista, podem ser regulares e produtivos.
Esperamos que a pesquisa, mais do que ser uma “semente” para novos trabalhos sobre a
fusão, demonstre a necessidade de um olhar mais cuidadoso para processos dessa
natureza.
17
2. ENFOQUES SOBRE A ALTERNÂNCIA VOCÁLICA EM PORTUGUÊS
Neste capítulo, observamos o tratamento da literatura morfológica sobre o
português para a alternância vocálica ou outra mudança na base dos verbos que expressa
alguma informação gramatical. Começamos analisando o que há de consolidado sobre
esses fenômenos na descrição dessa língua.
2.1. “Passeio” pela tradição morfológica
A maioria dos autores tece considerações gerais apenas sobre a alternância
vocálica. Essa alternância é tratada ao se falar sobre o morfema e o submorfema
alternativo (também chamado substitutivo ou replacitivo). Carone (1999) não apresenta
nenhum comentário sobre alternância vocálica e mudança no radical que estejam a
serviço da flexão. Kehdi (1990) descreve a alternância vocálica ao tratar dos morfemas
alternativos. Distingue o autor três casos de alternância vocálica, afirmando serem
bastante frequentes em português. A primeira é a que ocorre entre [e], [ɛ]; [o], [ɔ].
Kehdi (1990) demonstra que essa diferença de timbre ocorre na oposição singular /
plural, como em ‘[o]lho’; ‘[ɔ]lhos’, e na oposição masculino / feminino, a exemplo de
‘[e]sse’; ‘[ɛ]ssa’. Tal alternância ocorre também nos verbos e, para o autor, serve à
distinção entre a primeira pessoa do singular (b[e]bo) e as outras pessoas que
apresentam acento tônico no radical no presente do indicativo (b[ɛ]bes, b[ɛ]be,
b[ɛ]bem).
A outra alternância apontada por Kehdi (1990) é a que ocorre entre [e], [i]; [o],
[u]. Essa diferença, entre vogal média fechada e vogal alta, estabelece oposição entre
18
pronome animado e pronome neutro: aqu[e]le, aqu[i]lo; t[o]do, t[u]do. Essa mesma
alternância serve também para a distinção entre primeira e terceira pessoa nos verbos,
do pretérito perfeito, com vogal tônica no radical (chamados verbos fortes): ‘f[e]z’,
‘f[i]z’; ‘p[o]s’, ‘p[u]s’. A terceira alternância apontada pelo autor é a que se dá entre [i],
[ɛ]; [u], [ɔ]. Esta ocorre em verbos da terceira conjugação e diferencia, no presente do
indicativo, a primeira pessoa do singular das demais que apresentam acento tônico no
radical: ‘f[i]ro’, ‘f[ɛ]res’, ‘f[ɛ]re’, ‘f[ɛ]rem’. Aponta Kehdi (1990) que a alternância
vocálica, em português, é geralmente redundante. Em outras palavras, reforça uma
noção já expressa por outro morfema1.
Para o autor, os únicos casos em que a alternância é por si só distintiva são os
seguintes: (a) indicação de gênero em exemplos como ‘av[o]’, ‘av[ɔ]’; e (b) indicação
de pessoa na alternância entre [o], [u]; [e], [i] nos verbos fortes (‘f[e]z’; ‘f[i]z’; ‘p[o]s’,
‘p[u]s’). Esses casos, realmente, não têm uma outra marca, além da alternância vocálica,
para auxiliar na oposição funcional. Em outras palavras, não há elemento morfológico
adjungido para expressar gênero (a) e número-pessoa (b). Na alternância entre [i], [ɛ];
[u], [ɔ], diferentemente, há uma desinência também atuando na distinção de númeropessoa: ‘f[i]ro’, ‘f[ɛ]res’; ‘ac[u]do’, ‘ac[ɔ]des’.
Na terceira pessoa, com relação a ‘f[ɛ]re’; ‘ac[ɔ]de’, é importante levantarmos
um questionamento: há uma ausência de marca formal e isso é percebido através da
análise do paradigma verbal. Na expressão do presente do indicativo, ‘-o’ indica
primeira pessoa do singular; ‘-s’, segunda pessoa do singular, ‘-mos’, primeira do
1
Neste capítulo, quando estamos referenciando abordagens estruturalistas, utilizamos o vocabulário
empregado pelos autores e, por isso mesmo, fazemos uso de termos como morfema e submorfema.
19
plural; ‘-is’, segunda do plural; ‘-/N/’2, terceira do plural e, na indicação de 3ª pessoa do
singular, atuaria, segundo a tradição estruturalista, um morfe zero. Quando uma
ausência formal manifesta o conteúdo de 3ª pessoa, a abertura (‘ac[ɔ]de’) seria o único
elemento distintivo ou uma redundância na expressão número-pessoal manifestada,
primariamente, pelo morfema zero? Defendemos a hipótese de que a língua busca meios
de expressar um conteúdo, através de mudança no radical, quando não há um afixo para
realizar a categoria gramatical em questão; a alternância vocálica é um desses meios.
Portanto, a informação de 3ª pessoa, em ‘ac[ɔ]de’ não se dá por concatenação de
constituintes, mas por modificação na qualidade da vogal tônica do radical.
Kehdi (1990) demonstra uma maneira, segundo ele, mais econômica de
formalizar a alternância vocálica. Afirma que, por razão de economia descritiva, a
melhor estratégia seria estabelecer como formas básicas as de vogal mais aberta. Desse
modo, para descrever a alternância na distinção singular / plural dos nomes, bastaria
dizer que a vogal se fecha no singular (‘/ɔ/lhos’ → ‘/o/lho’). Se partisse do singular, o
autor teria de dar conta de exceções como ‘b/o/lso’, ‘b/o/lsos’, em que a abertura não se
faz presente. No paradigma verbal, o mesmo ocorreria, já que, em ‘t/e/mo’; ‘t/e/mes’,
não há abertura na segunda pessoa, mesmo sendo um verbo de segunda conjugação. Na
verdade, a abertura, em ‘t/e/mes’, não acontece porque, antes de consoante nasal, vogais
são realizadas como fechadas e nasalizadas. Partindo da forma com vogal aberta, Kehdi
(1990) defende não ocorrer exceção – ‘t/e/mes’ → ‘t/e/mo’; ‘b/ɛ/bes’ → ‘b/e/bo’.
Nesses termos, a regra seria a seguinte: a vogal tônica fecha-se na primeira pessoa do
singular.
2
Estamos seguindo a proposta de M. Câmara Jr. (1970) para o tratamento da nasalidade vocálica e,
consequentemente, para a marca morfológica de 3ª. pessoa do plural. Em muitas obras (p. ex., Monteiro,
1991), admite-se –m como desinência.
20
A proposta de Kehdi (1990) é bastante questionável. Em primeiro lugar, não se
observa a economia descritiva desejada, visto que há exemplos em que o singular e o
plural têm vogal aberta: ‘s/ɛ/de’, ‘s/ɛ/des’; ‘p/ɔ/rta’, ‘p/ɔ/rtas’; ‘b/ɔ/la’, ‘b/ɔ/las’;
‘m/ɔ/la’, ‘m/ɔ/las’. Além disso, a vogal fechada é o padrão (default): com relação aos
nomes, a abertura da vogal é o expoente secundário da noção de plural, coocorrendo
com o afixo ‘-s’. Quanto aos verbos, se focalizarmos a realização de vogal média na
primeira conjugação, por exemplo, verificamos que a vogal média-fechada (‘/e/’ ou
‘/o/’) é, também, a forma básica (default): ‘s/o/carei’, ‘s/o/quei’, ‘s/o/cava’, ‘s/o/caria’ e
‘s/e/carei’, ‘s/e/quei’, ‘s/e/cava’, ‘s/e/caria’; a vogal aberta (/ɛ/ ou /ɔ/) só ocorre nas
formas rizotônicas (‘s/ɔ/co’, ‘s/ɔ/que’, ‘s/ɔ/ca’; ‘s/ɛ/co’, s/ɛ/que’, s/ɛ/ca’).
Laroca (1994) também só trata de algum tipo de mudança no radical ao abordar
a alternância vocálica; fornece exemplos da alternância vocálica atuando como morfema
em verbos, na indicação de número-pessoa e modo-tempo, como em ‘f[i]z’ / ‘f[e]z’;
‘t[i]ve’ / ‘t[e]ve’; ‘est[i]ve’ / ‘est[e]ve’; ‘p[u]de’ / ‘p[o]de’; ‘p[ɔ]de’ / ‘p[o]de’, e em
nomes, na indicação de gênero: ‘av[o]’ / ‘av[ɔ]’. A autora expõe a alternância opondo
tempos diferentes: ‘p[o]de’ expressa P33 do pretérito perfeito do indicativo e ‘p[ɔ]de’,
P3 do presente do indicativo, dado não demonstrado pelos outros autores até então
citados. Laroca (op. cit.) não explicita casos de alternância vocálica redundante.
Rolim de Freitas (1991) aponta a mudança de vogais em dois momentos de sua
análise: na abordagem de morfemas redundantes e na abordagem de morfemas
suprafixos (morfemas que, segundo o autor, se constituem unicamente de fonemas
suprassegmentais). Para o primeiro tipo de morfema, dá o exemplo de ‘form[ɔ]sas’. Já
3
Utilizaremos, nesta Dissertação, P1, P2, P3, P4, P5 e P6 para nos referirmos às primeira, segunda,
terceira pessoa do singular e às primeira, segunda e terceira pessoa do plural, respectivamente.
21
para o segundo4, aponta a alternância opondo nomes com significados distintos (s[e]de /
s[ɛ]de) e casos de oposição entre P1 e P3 no pretérito perfeito. Essa última situação é a
única apontada por Petter (2003) ao tratar da alternância, explicitada numa seção
chamada Processos Morfológicos. Não concordamos com a oposição por alternância
vocálica em ‘s[e]de’ / ‘s[ɛ]de’, visto que s[e]de e s[ɛ]de são dois itens vocabulares
diferentes com significados também distintos.
Lopes (2003) e Zannoto (1986) também abordam mudança no radical ao
mencionar a alternância vocálica no tratamento dos morfemas alternativos. Lopes
(2003) cita Kehdi (1990) e explicita as três alternâncias vocálicas apontadas pelo autor e
afirma, também reforçando Kehdi (1990), que a alternância vocálica costuma ser
redundante, excetuando a indicação de gênero em ‘av[o]’ / ‘av[ɔ]’ e a indicação de
primeira pessoa do singular e terceira pessoa do singular em alguns verbos irregulares
do pretérito perfeito: ‘f[e]z’ / ‘f[i]z’. Zannoto (1986), ao abordar a alternância vocálica,
mostra que esta pode ser morfêmica ou submorfêmica e dá exemplos em verbos e
nomes. A alternância é morfêmica em casos como ‘av[o]’ / ‘av[ɔ]’, nos nomes, e ‘f[u]i’
/ ‘f[o]i’; ‘t[i]ve’ / ‘t[e]ve’; ‘p[u]nha’ / ‘p[o]nha’, nos verbos. A alternância é
submorfêmica em exemplos como ‘p[o]rto’ / ‘p[ɔ]rtos’; ‘tij[o]lo’ / ‘tij[ɔ]los’, nos
nomes, e ‘f[i]ro’ / ‘f[ɛ]res’; ‘d[u]rmo’ e ‘d[ɔ]rmes’, nos verbos. A alternância opondo
pretérito imperfeito do indicativo e presente do subjuntivo em ‘p[u]nha’ / ‘p[o]nha’ é
um exemplo novo em relação aos autores já citados.
4
O autor trata como um caso de suprafixo a alternância em ‘[o]vo’ / ‘[ɔ]vos’. Na literatura morfológica,
em geral, essa abertura vocálica é tratada como reforço da informação de plural.
22
Sandmann (1991) não explicita a alternância vocálica. A mudança no radical é
abordada numa seção chamada Mudanças na base ou no radical. Nessa seção,
demonstra que, em processos derivacionais, é frequente a mudança de bases ou radicais.
O autor aponta que é comum ocorrer mudanças quando os substantivos terminam em
‘-ção’, ‘-são’ ou ‘–ão’ e cita casos como ‘variacionista’, de ‘variação’; ‘feijoada’, de
‘feijão’. A mudança de base através da passagem de [k] a [s] (‘prático’ [k] →
‘praticidade’ [s]; ‘drástico’ [k]; ‘drasticidade’ [s]) também é explicitada pelo autor.
Sandmann (op. cit.) mostra que há mudança de radical em ‘cruzes’; ‘lugares’; ‘males’.
Diz ser o radical no singular sem ‘–e’ final (cruz-) ou ‘–i’ final (animal) e o radical no
plural com ‘–e’ final (cruze-) ou –i final (animai-). Câmara Jr. (2006) não trataria
‘cruze’; ‘lugare’; ‘male’ como radicais, mas como temas teóricos; outros autores
(LAROCA, 1994) alegam que ‘–es’ é responsável pela indicação de número.
Monteiro (1991) aborda a alternância vocálica ao tratar da alomorfia. Mostra,
então, que a expressão de gênero, nos nomes, pode ser realizada por um morfema
alternativo, assim como a indicação de número-pessoa, nos verbos.
Desse modo,
haveria alomorfia na expressão de gênero e de número-pessoa, pois essas informações
podem ser expressas por desinências ou por mudança no radical. Dois exemplos dados
já foram aqui citados: distinção entre primeira e terceira pessoa no pretérito perfeito
(f[i]z / f[e]z); indicação de gênero em ‘av[o]’ / ‘av[ɔ]’; reforço de número-pessoa:
‘s[u]mo’ / ‘s[o]mes’.
Além disso, Monteiro (1991) fala de reforço de número-pessoa por mudança na
consoante final do radical (chamada alternância consonantal pelo autor): ‘faço’ / ‘fazes’;
‘digo’ / ‘dizes’; ‘trago’ / ‘trazes’; ‘peço’ / ‘pedes’.
Koch & Souza e Silva (1989) apontam para a alternância vocálica ao abordarem
a expressão de gênero e número. Mostram ser a alternância vocálica um caso de
23
alomorfia da expressão dessas noções. Na expressão de gênero, em casos como
‘form[o]so’, ‘form[ɔ]sa’; ‘n[o]vo’, ‘n[ɔ]va’, apontam ser a alternância vocálica
redundante, já que atuariam dois morfemas: o aditivo e o alternativo. Em exemplos
como ‘av[o]’; ‘av[ɔ]’, acontece, para as autoras, alternância vocálica não redundante,
visto que ocorre apenas o morfema alternativo.
Na expressão de número, as autoras também afirmam ser a alternância vocálica
uma alomorfia da expressão de número. Apontam que, na expressão do plural, ocorre
morfema alternativo redundante. Assim, em ‘c[o]rpo’, ‘c[ɔ]rpos’; ‘p[o]vo’, ‘p[ɔ]vos’,
além da marca de plural, ‘–s’, ocorre o morfema alternativo e, por isso, haveria
redundância na informação de número. Como ressaltamos mais acima, Câmara Jr.
(1970) considera a alternância que indica uma informação redundante um submorfema e
a alternância que, por si só, indica uma informação gramatical um morfema. Dá
exemplos em nomes, assim como fazem Koch & Souza e Silva (1989), e mostra a
alternância em verbos no pretérito perfeito indicando P1 e P3. Esse exemplo de
informação de P1 e P3 através de alternância vocálica também é exposto por Cabral
(1982) e a autora chama o morfema realizado por alternância de vogais de replacivo.
Numa outra seção do livro, chamada Alteração do Radical, Koch & Souza e Silva
(1989) tratam de mudanças no radical. Apontam que o radical de verbos sofre uma
alternância vocálica na sílaba tônica, afirmando que essa alternância é regular e ocorre
em condições previsíveis. Na primeira conjugação, observam que as vogais abertas, [ɛ]
e [ɔ], marcam as formas rizotônicas. Apontam as autoras que isso ocorre na primeira
(P1), segunda (P2), terceira (P3) e sexta (P6) pessoa do presente do indicativo e do
presente do subjuntivo e na segunda pessoa (P2) do imperativo: ‘l[ɛ]vo’, ‘l[ɛ]vas’,
24
‘l[ɛ]va’, ‘l[ɛ]vam’ (presente do indicativo) / ‘l[ɛ]ve’, ‘l[ɛ]ves’, ‘l[ɛ]ve’, ‘l[ɛ]vem’
(presente do subjuntivo) / ‘l[ɛ]va’ (imperativo); ‘ch[ɔ]ro’, ‘ch[ɔ]ras’, ‘ch[ɔ]ra’,
‘ch[ɔ]ram’ (presente do indicativo) / ‘ch[ɔ]re’, ‘ch[ɔ]res’, ‘ch[ɔ]re’, ‘ch[ɔ]rem’
(presente do subjuntivo) / ‘ch[ɔ]ra’ (imperativo). No entanto, nada informam sobre a
abertura na P3 e na P6 do imperativo: ‘l[ɛ]ve’ / ‘ch[ɔ]re’; ‘l[ɛ]vem’ / ‘ch[ɔ]rem’. Talvez
não citem a alternância vocálica em P3 e P6 do imperativo devido à sua identidade
formal com o presente do subjuntivo. A abertura da vogal média anterior na sílaba
tônica do radical, [ɛ], ocorre, para Mira Mateus et al. (1983), devido à assimilação. Para
essas autoras, antes da supressão da vogal temática na P1 do presente do indicativo e
nas formas do presente do subjuntivo, há uma assimilação da altura da vogal temática –
a (vogal baixa).
Koch & Souza e Silva (op. cit.) consideram que [e] e [o] marcariam as formas
arrizotônicas. Nessas formas, o acento não se localiza na sílaba tônica do radical, mas
na vogal temática (l[e]vamos, l[e]vais; ch[o]ramos, ch[o]rais) ou na vogal do sufixo
flexional (l[e]varei, ch[o]rarei.) Ainda abordando a primeira conjugação, demonstram
haver alguns verbos que, nas formas rizotônicas do presente do indicativo, do presente
do subjuntivo e do imperativo, sofrem uma ditongação, a exemplo de ‘passeio’,
‘passeias’, ‘passeia’, ‘passeiam’ (presente do indicativo) / ‘passeie’, ‘passeies’,
‘passeie’, ‘passeiem’ (presente do subjuntivo) / ‘passeia’ (imperativo). Não apontam
para a ditongação nas P3 e P6 do imperativo, que se manifesta da mesma forma que em
P3 e P6 do presente do subjuntivo.
Com relação à segunda conjugação, mostram as autoras a mesma alternância
vocálica: [o], [ɔ]; [e], [ɛ]. Todavia, apontam que a abertura só ocorre nas P2, P3 e P6 do
25
presente do indicativo (b[ɛ]bes, b[ɛ]be, b[ɛ]bem; c[ɔ]rres, c[ɔ]rre, c[ɔ]rrem) e na P2 do
imperativo (b[ɛ]be; c[ɔ]rre). A diferença da alternância na segunda conjugação é a
seguinte: não ocorre média aberta, [ɔ], [ɛ], na sílaba tônica do radical na P1 do presente
do indicativo (‘b[e]bo’; ‘c[o]rro’) nem no presente do subjuntivo (‘b[e]ba’, ‘b[e]bas’,
‘b[e]ba’, ‘b[e]bam’; ‘c[o]rra’, ‘c[o]rras’, ‘c[o]rra’, ‘c[o]rram’). A vogal média-alta [e]
só ocorre nas formas em que há síncope da vogal temática – primeira pessoa do singular
do presente do indicativo e formas do presente do subjuntivo. Para Mira Mateus et al.
(1983), a realização de [e] ocorre por assimilação. A vogal tônica do radical assimila a
altura da vogal temática [e], antes de sua supressão.
Na terceira conjugação, a alternância, para Koch & Souza e Silva (op. cit.),
ocorre nas mesmas circunstâncias da alternância na segunda conjugação. Entretanto, a
alternância é entre [o] e [u] / [e] e [i]. Assim P2, P3 e P6 do presente do indicativo e P2
do imperativo possuem vogal [ɛ]: ‘f[ɛ]res’, ‘f[ɛ]re’, ‘f[ɛ]rem’; ‘d[ɔ]rmes’, ‘d[ɔ]rme’,
‘d[ɔ]rmem’ (presente do indicativo) / ‘f[ɛ]re’; ‘d[ɔ]rme’ (imperativo). Já P1 do presente
do indicativo e o presente do subjuntivo têm vogal alta, [i] e [u], na sílaba tônica:
‘f[i]ro’; ‘d[u]rmo’ (presente do indicativo) e ‘f[i]ra’, ‘f[i]ras’, ‘f[i]ra’, ‘f[i]ram’;
‘d[u]rma’, ‘d[u]rmas’, ‘d[u]rma’, ‘d[u]rmam’ (presente do subjuntivo). As autoras não
tecem considerações sobre a alternância vocálica em P3 e P6 do imperativo: ‘d[u]rma’;
‘d[u]rmam’ / ‘f[i]ra’; ‘f[i]ram’. Mira Mateus et al. (1983) também veem, na 3ª
conjugação, a assimilação como responsável por serem a P1 do presente do indicativo e
as formas do imperativo diferentes com relação à vogal tônica do radical. Ocorre, para
as autoras, assimilação da altura da vogal temática ‘–i’, antes de sua supressão. Desse
modo, a vogal tônica do radical passa a ‘–i’.
26
Numa seção chamada O Padrão Especial, Koch & Souza e Silva (1989)
mostram que os chamados verbos irregulares possuem padrões claros que devem ser
explicitados. Os desvios apresentados, nos verbos irregulares, “podem ser, de certa
forma, padronizados, de modo a chegar-se a pequenos grupos de verbos que
apresentam padrões comuns, perfeitamente explicitáveis.” (KOCH & SOUZA E
SILVA, 1989, p.59). Para definir os padrões existentes, nos chamados verbos
irregulares, as autoras indicam ser muito importante focalizar os tempos ou formas
primitivas, que são os tempos dos quais os outros se originam.
Demonstram que as formas primitivas são as seguintes: P2 do pretérito perfeito
do indicativo; P1 do presente do indicativo; P2 e P5 do presente do indicativo e
infinitivo não flexionado. Da P2 do pretérito perfeito do indicativo, originam-se o maisque-perfeito do indicativo, o imperfeito do subjuntivo e o futuro do subjuntivo. Da P1
do presente do indicativo, surgem o presente do subjuntivo e as formas imperativas
deste derivadas. Da P2 e P5 do presente do indicativo, originam-se P2 e P5 do
imperativo afirmativo com apócope do ‘–s’ final. A forma primitiva do infinitivo não
flexionado dá origem aos seguintes tempos: pretérito imperfeito do indicativo; futuro do
presente; futuro do pretérito; infinitivo flexionado; gerúndio e particípio. Sempre que há
irregularidade na forma primitiva, essa irregularidade mantém-se nas formas derivadas.
As autoras acrescentam que a irregularidade pode levar a uma variação do
morfema flexional ou a uma variação do radical. Consideram, seguindo Câmara Jr., que
a variação do radical passa a contribuir para a expressão das noções gramaticais de
tempo, modo e pessoa.
Nesta Dissertação, pretendemos observar o que a literatura morfológica aborda
com relação à mudança na base. Desse modo, demonstraremos apenas as
27
irregularidades verbais, trazidas pelas autoras, que ocorrem nos temas sem focalizarmos
as que ocorrem nos morfemas flexionais ou nas formas nominais de verbos.
2.2. Irregularidades no tema de pretérito perfeito do indicativo
2.2.1. Quanto à vogal temática
A primeira irregularidade apontada pelas autoras é a seguinte: os radicais
terminados em ‘–r’ ou ‘–z’ não apresentam vogal temática na P3 do presente do
indicativo, a exemplo de ‘quer’ (querer); ‘faz’ (fazer); ‘diz’ (dizer); ‘produz’ (produzir).
A vogal temática -e, de segunda conjugação, passa a –i em alguns verbos, como em
‘viste’ (ver); ‘quiseste’ (querer). Essa irregularidade mantém-se nas formas derivadas:
‘vira’, ‘visse’, ‘vir’; ‘quisera’, ‘quisesse’, ‘quiser’.
2.2.2. Alternância vocálica no radical
A P1 e a P3 do pretérito perfeito do indicativo podem sofrer alternância vocálica
nas formas rizotônicas quando não há sufixo flexional. Assim, ocorre [i]; [u] na P1 e
[e]; [o] na P3. Mostram as autoras que é a alternância no radical a responsável por opor
P1 e P3 nesses casos. Afirmam ainda que, quando essa alternância não ocorre, P1 e P3
não se diferenciam formalmente: ‘quis’ (P1 e P3); ‘disse’ (P1 e P3); ‘coube’ (P1 e P3);
‘houve’ (P1 e P3), ‘trouxe’ (P1 e P3), ‘soube’ (P1 e P3).
2.2.3. Ditongação no radical
Há verbos com radical com ‘ou’ em oposição ao radical de infinitivo, como, por
exemplo, ‘soub-’; ‘coub-’; ‘troux-’; ‘houv-’ (de ‘saber’; ‘caber’; ‘trazer’; ‘haver’,
respectivamente). Koch & Souza e Silva (1989) ainda citam ‘prouver’, verbo
28
unipessoal, que só se realiza na P3. Essa irregularidade no radical ocorre não só no
pretérito perfeito, mas também nos tempos derivados: pretérito mais-que-perfeito
(soubera); pretérito imperfeito do subjuntivo (‘soubesse’) e futuro do subjuntivo
(‘souber’).
2.2.4. Realização ou não da nasal
O verbo ‘vir’ é realizado na P1 do pretérito perfeito do indicativo com consoante
nasal: ‘vim’. Ressaltam as autoras que há uma vogal nasal final que não ocorre nas
formas arrizotônicas quando seguida por vogal temática ‘–e’: ‘vieste’, ‘viemos’,
‘vieste’, ‘vieram’. Na P3, ocorre alternância de [i] para [e] seguida de ditongação:
‘veio’.
2.3 Irregularidades no tema de presente do indicativo
2.3.1. Mudança da consoante final do radical
Ocorre, em alguns verbos, mudança da consoante final do radical. Essa mudança
mantém-se no presente do subjuntivo e nas formas de imperativo dele originadas, como
nos seguintes exemplos: ‘valho’ (‘valer’); ‘peço’ (‘pedir’); ‘meço’ (‘medir’); ‘ouço’
(‘ouvir’); ‘faço’ (‘fazer’); ‘trago’ (‘trazer’); ‘digo’ (‘dizer’); ‘posso’ (‘poder’).
2.3.2. Alargamento da vogal do radical
Ocorre alargamento da vogal do radical, segundo as autoras, através da
ditongação de ‘e’ (aberto) para ‘ei’, como em ‘requeiro’ (requerer), e da ditongação de
‘a’ para ‘ai’, a exemplo de ‘caibo’ (caber). Os verbos ‘querer’ e ‘saber’ não apresentam
ditongação na primeira pessoa do singular do presente do indicativo (‘quero’; ‘sei’).
29
Todavia, a ditongação ocorre no presente do subjuntivo e nas formas de imperativo dele
derivadas: ‘saiba’; ‘queira’. Segundo Câmara Jr., a forma ‘sei’ é explicada através de
redução de radical e alternância a~e.
2.3.3. Acréscimo de uma consoante final ao radical
Em algumas formas verbais, ocorre acréscimo de uma consoante final ao radical,
como em ‘vejo’ (ver) e ‘haja’ (haver). O acréscimo em ‘haj-’ não ocorre na forma
primitiva, mas no presente do subjuntivo. Afirmam as autoras que, segundo Câmara Jr.,
também é um exemplo dessa irregularidade o radical ‘hav-’, com a explicação que
vemos a seguir:
“Segundo CÂMARA, também se encaixa aí o verbo haver, cujo
radical é hav- e cujas formas rizotônicas no Id Pr, por serem
atemáticas, perdem o j final: há, hás, há. Já P1(hei), pode ser
explicado da mesma maneira que sei, isto é, como uma forma
radical haj-, com a vocalização do j final e também com uma
alternância a~e” (KOCH & SOUZA e SILVA, 1989, p.62).
As autoras veem, então, na forma ‘vejo’, um acréscimo, que se mantém nas
formas derivadas (presente do subjuntivo e formas do imperativo dele derivadas). No
verbo ‘haver’, percebem duas inserções consonantais: em ‘haj-’ (forma que aparece no
presente do subjuntivo) e em ‘hav-’.
2.3.4. Realização da consoante nasal
Koch & Souza e Silva (1989) salientam que radicais atemáticos terminados em
vogal tônica nasal (‘tens’, ‘vens’, ‘pões’) têm em P1 uma transformação da nasal final
em palatal: ‘venho’, ‘ponho’, ‘tenho’ (que se mantém nas formas derivadas – ‘tenha’,
‘venha’, ‘ponha’). A nasal palatal ocorre também no pretérito imperfeito do indicativo
30
(‘tinha’, ‘vinha’, ‘punha’). No infinitivo (‘ter’, ‘vir’, ‘pôr’) e nas formas futuro do
presente e futuro do pretérito (‘terei’, ‘teria’; ‘virei’, ‘viria’; ‘porei’, ‘poria’), a
consoante nasal não se realiza, mas, no gerúndio, mantém-se (‘tendo’, ‘vindo’,
‘pondo’). Talvez seja mais efetiva a percepção de um arquifonema nasal em casos como
‘pões’, ‘tens’, ‘vens’; essa é a leitura de Câmara Jr. (1970).
2.4. Irregularidades no futuro
Koch & Souza e Silva (1989) mostram que os verbos ‘dizer’, ‘fazer’ e ‘trazer’
apresentam irregularidades no futuro do presente e no futuro do pretérito. Essa
irregularidade consiste na síncope da sílaba final do tema: ‘di(ze)rei’, ‘fa(ze)rei’,
‘tra(ze)rei’; ‘di(ze)ria’, ‘fa(ze)ria’, ‘tra(ze)ria’. O apagamento da sílaba que contém a
vogal temática ocorre devido ao processo fonológico chamado de haplologia e tem,
como consequência, mudança no radical de um verbo. Nesta Dissertação, defendemos a
hipótese de que processos fonológicos podem ter repercussão direta na expressão de
categorias gramaticais. Desse modo, o radical com síncope reforça a noção de futuro,
visto que só ocorre nas formas que expressam essa informação.
2.5. Verbos anômalos
Os verbos anômalos, além de apresentarem irregularidades no radical, possuem
radicais supletivos. Segundo as autoras, as formas derivadas do infinitivo não
flexionado e do presente do indicativo não são realizadas por um radical permanente.
Alguns exemplos são os verbos ‘ser’ e ‘ir’. Com relação ao verbo ser, vemos um radical
31
e- (aberto, [ɛ]) que alterna com se-. O primeiro aparece na P2 e na P3 do presente do
indicativo (‘és’, ‘é’), com uma variante ‘er-’, que ocorre no pretérito imperfeito do
indicativo (‘era’, ‘eras’). Já ‘se-’ é encontrado no infinitivo, no futuro do presente e no
futuro do pretérito (‘ser’, ‘serei’, ‘seria’) e teria as variantes ‘sej-’ (presente do
subjuntivo), ‘so-’, atemática, que aparece nas formas ‘somos’, ‘sois’, e ‘sa-’, que
aparece em ‘são’. Há, ainda, o radical ‘fo-’, com variante ‘fu-’, no pretérito perfeito e
nos tempos originados dele: pretérito mais-que-perfeito, pretérito imperfeito do
subjuntivo, futuro do subjuntivo. Com relação ao verbo ‘ir’, há um radical ‘i-’, que
alterna com ‘va-’. O radical ‘i-’ ocorre no infinitivo, no futuro do presente, no futuro do
pretérito, no gerúndio, na P5 do presente do indicativo e no pretérito imperfeito do
indicativo. O radical ‘va-’ ocorre em P2, P3, P4, P6 do presente do indicativo, no
presente do subjuntivo e no imperativo. O radical ‘va-’, segundo as autoras, possui a
variante ‘vo-’ na P1 do presente do indicativo. Há ainda, para o verbo ‘ir’, um radical
diferente no pretérito perfeito e nos tempos dele derivados: ‘fo-’ com uma variante ‘fu-’.
2.6. Acertando pontos a partir da Revisão Teórica
Monteiro(1991) e Zannoto (2006) fazem, assim como Koch & Souza e Silva
(1989), uma descrição exaustiva dos verbos irregulares em português, criando uma
seção específica para demonstrar como é possível padronizar formalmente as
irregularidades. Mostram, por exemplo, que 1) a irregularidade na P1 do presente do
indicativo é mantida no presente do subjuntivo e nas formas de imperativo dele
originadas e que 2) as irregularidades, no pretérito perfeito, ocorrem nos tempos
32
derivados – pretérito imperfeito do subjuntivo; pretérito mais-que-perfeito do indicativo
e futuro do subjuntivo. Essa padronização, geralmente, só leva em conta a forma.
São esporádicos os casos apontados na literatura morfológica sobre o português
que demonstram informação acarretada pela mudança no radical do verbo. A alternância
vocálica é responsável pela distinção de número-pessoa no pretérito perfeito (f[i]z /
f[e]z), atuando como redundância da distinção de número-pessoa no presente do
indicativo (rep[i]to / rep[ɛ]tes – 3ª conjugação; b[e]bo /b[ɛ]bes – 2ª conjugação) e
distinguindo presente do subjuntivo e pretérito imperfeito do indicativo em ‘p[o]nha’;
‘p[u]nha’ / ‘t[e]nha’; ‘t[i]nha’ / ‘v[e]nha’; ‘v[i]nha’. Em ‘p[o]de’; ‘p[ɔ]de’, a alternância
vocálica distingue presente do indicativo de pretérito perfeito do indicativo. A
modificação consonantal (faço; fazes / digo; dizes / trago; trazes) atua como reforço de
número-pessoa, já que ocorre alomorfia no radical de P1 (MONTEIRO, 1991, p.112).
Monteiro (1991) discute o caso de ‘est/i/ve’ / ‘est/e/ve’. Mostra que há duas
leituras possíveis para esse exemplo. Na primeira, seria a alternância o traço distintivo e,
então, haveria uma flexão interna, já que as desinências e a vogal temática não se
atualizariam. A segunda interpretação possível, preferida pelo autor, apontaria que há
zero de número-pessoa e modo-tempo e, assim, o ‘-e’ final seria vogal temática. O autor
prefere a segunda leitura, porque alega ser esporádico o caso. Todavia, percebemos
outros exemplos semelhantes: p[u]de / p[o]de; t[i]ve / t[e]ve. Como veremos adiante
nesta Dissertação, há dados (‘tr[u]xe’ / ‘tr[o]xe’) que evidenciam a produtividade dessa
alternância.
Vemos, nos exemplos a seguir, alternâncias apontadas por Monteiro (1991) em
que a P1 do presente do indicativo tem uma vogal tônica igual à vogal tônica do
presente do subjuntivo, mas diferente das outras pessoas do presente do indicativo:
33
(01) /e/ ~ /ɛ/: el/e/ja = el/e/jo ~ el/ɛ/ges, el/ɛ/ge, el/ɛ/gem (o mesmo ocorre com ‘dever’,
‘beber’ e ‘erguer’)
(02) /o/ ~ /ɔ/: res/o/lva = res/o/lvo ~ res/ɔ/lves, res/ɔ/lve, res/ɔ/lvem (o mesmo ocorre
com ‘volver’)
(03) /iN/ ~ /eN/: s/iN/ta = s/iN/to ~s/eN/tes, s/eN/te, s/eN/tem
(04) u nasalizado ~ o nasalizado: s/u/ma = s/u/mo ~ s/o/mes, s/o/me, s/o/mem (o mesmo
ocorre com ‘consumir’)
(05) /u / ~/ɔ/: c/u/bra = c/u/bro ~ c/ɔ/bres, c/ɔ/bre, c/ɔ/brem (o mesmo ocorre com
‘dormir’, ‘acudir’, ‘tossir’, ‘cuspir’).
Os dois últimos grupos, (04) e (05), poderiam ser colocados como um só, visto
que a realização de /o/ como vogal fechada, em ‘somes’, ‘some’ e ‘somem’, se deve à
existência da consoante nasal na sílaba seguinte à vogal. As vogais médias que
assimilam a nasalidade da consoante da sílaba seguinte são categoricamente realizadas
como fechadas em português.
Em todos esses casos, há alternância redundante segundo o autor, que não
explicita, na seção intitulada Desvios do Padrão Geral, qual seria a redundância de
informação. Todavia, quando fala sobre alomorfia, observa que a alternância vocálica
serve de reforço à expressão número-pessoal. Assim, a redundância a que se refere deve
ser o reforço de P1 no paradigma de presente do indicativo. Caso esteja mesmo se
referindo à redundância de informação de P1, não demonstra semelhança de alguma
informação gramatical entre P1 do presente do indicativo e as formas do presente do
subjuntivo; desse modo, a identidade do radical, nesses tempos, seria apenas por razões
formais.
Câmara Jr. (1970) demonstra que a mudança no radical dos verbos tem relação
com informações gramaticais de modo-tempo e número-pessoa. Entretanto, não aponta
muitos casos de manifestação de contéudo gramatical através de modificação no radical.
Assim como os outros autores, faz uma padronização dos verbos irregulares, reduzindo
34
o vasto número de verbos irregulares apontados pelas gramáticas a um pequeno número
de grupos com regularidades formais claras. Quanto às irregularidades que trazem
oposição funcional, Câmara Jr. (1970) cita casos de alternância vocálica no pretérito
perfeito e demonstra também a alternância entre /e/ e /i/ opondo primeira e terceira
pessoa em ‘vim’; ‘veio’ (perda do travamento nasal e ditongação). Um outro
submorfema, apontado por Câmara Jr., é a alternância vocálica na segunda e terceira
conjugações, citada acima quando demonstramos a visão de Monteiro (1991). Câmara
Jr. (op.cit.), ao falar dessa alternância, opõe a P1 do presente do indicativo e as formas
do presente do subjuntivo a P2, P3, P6 do presente do indicativo e P2 do imperativo,
ressaltando, ainda, que essa alternância é submorfêmica. Entretanto, não expressa qual a
informação gramatical acarretada por esses grupos que se opõem funcionalmente.
Todos os autores, citados nesta Dissertação, quando abordam alguma espécie de
mudança no radical dos verbos, tratam essa modificação, de um modo geral, apenas
através de argumentos formais. Em algumas obras da literatura morfológica sobre o
português (KOCH & SOUZA e SILVA, 1989; ZANNOTO, 2006; CÂMARA JR.,
1970; GONÇALVES LOPES, 2003; MONTEIRO, 1991), padronizam-se muito bem os
verbos irregulares quanto às semelhanças formais entre os tempos. A explicação das
irregularidades, partindo da observação dos tempos de que derivam (presente do
indicativo; infinitivo ou pretérito perfeito), é muito criteriosa em termos formais.
Não vemos, todavia, nessa padronização de grupos de verbos, o que, em termos
de significado, liga essas formas verbais. Na minoria dos casos, os autores explicitam
uma relação entre irregularidade e informação expressa. Koch & Souza e Silva (1989),
apesar de mostrarem que Câmara Jr. já observara que irregularidades no verbo trazem
informação gramatical, fazem uma descrição quase toda baseada em aspectos formais.
As autoras chegam a afirmar que as alternâncias vocálicas que ocorrem nas formas
35
rizotônicas do presente do indicativo nas segunda e terceira conjugações ou a
ditongação do radical que ocorre nas formas rizotônicas de certos verbos (‘passear’,
‘odiar’) não devem ser tratadas como irregularidades no plano morfológico: são
“simplesmente alterações fonologicamente condicionadas” (KOCH & SOUZA e
SILVA, 1989, p.60).
Azuaga (1996) e Gonçalves & Almeida (2008) mostram que a alternância
vocálica é um dos problemas no mapeamento biunívoco entre morfe e morfema.
Observa Azuaga (1996) que as relações apofônicas (ablaut, umlaut e modificações
morfologicamente significativas em vogais e consoantes) talvez constituam o caso mais
importante na explicitação da dificuldade de identificação e segmentação de morfemas.
Os exemplos apontados pela autora são do inglês: ‘sing’; ‘sang’ (cantar; cantei) /
‘break’; ‘broke’ (partir; partiu) / ‘foot’; ‘feet’ (pé; pés) / ‘man’; ‘men’ (homem;
homens). Segundo a autora, casos de mutação vocálica e consonantal são exemplos de
modificação parcial da base; há, ainda, os casos em que o processo envolve mudança
total da base, como, em português, o verbo ‘ser’ (‘fui’) e, em inglês, o verbo ‘go’
(‘went’).
Defendemos a hipótese de que toda irregularidade formal no radical dos verbos
possui uma contraparte semântica. Mesmo a alternância vocálica condicionada
fonologicamente (causada pela tonicidade na vogal tônica do radical) acarreta alguma
informação gramatical. Em outras palavras, acreditamos, como Bybee (1985) e
Gonçalves (2005), na correlação entre forma e significado; assim, verbos irregulares
formalmente próximos são também relacionados em termos de informação gramatical.
Em português, o processo morfológico que envolve mudança total ou parcial da base,
explicitado por Azuaga (1996), tem regularidade e produtividade.
36
Às vezes, o falante realiza o padrão vogal alta na P1 e na P3 mesmo quando a
realização não condiz com o padrão culto. Por exemplo, para distinguir número-pessoa,
o falante, às vezes, realiza ‘tr[u]xe’ na P1 e ‘tr[o]xe’ na P3, em vez de usar ‘tr[ow]xe’
(ou a forma monotongada ‘tr[o]xe’) em P1 e P3). A realização ‘tr[ow]xe’ (ou ‘tr[o]xe’)
é um exemplo de neutralização entre P1 e P3. Monteiro (1991) demonstra outros casos
de neutralização entre P1 e P3 no pretérito perfeito do indicativo: ‘coube’; ‘soube’;
‘disse’; ‘quis’. Usos como ‘sube’; ‘cube’, na nossa visão, acontecem na língua para
trazer a distinção, assim como vem ocorrendo em ‘tr[u]xe’ e ‘v[ɛ]ve’, ‘corr[ɛ]ge’, em
vez de ‘trouxe’, ‘vive’, ‘corrige’.
No próximo capítulo, apresentaremos o arcabouço teórico que nos permite
entender a modificação no radical como um fenômeno que veicula informação
gramatical. A literatura morfológica tradicional percebe mudanças formais regulares em
radicais. Todavia, tal literatura não dá conta plenamente da contraparte semântica dessas
mudanças, que evidenciam nem sempre serem afixos os expoentes de informações
gramaticais.
Fundamentando-nos em Bybee (1985) e Gonçalves (2005), demonstramos que
mudanças no radical são, muitas vezes, reflexos de informação gramatical que se funde
no conteúdo lexical de vocábulos. Essa fusão de conteúdos é sistemática nas línguas do
mundo e pode explicar o porquê de haver mudanças formais regulares nos verbos da
língua portuguesa. Para demonstrar a regularidade e a motivação dessas mudanças em
radicais verbais, explicitamos, no próximo capítulo, como a expressão de superfície
revela graus de relação semântica. Afixos mais próximos do radical são mais
importantes semanticamente que afixos distantes do radical. Mudanças no radical verbal
são, muitas vezes, reflexos de algum conteúdo flexional relevante ao verbo. Em outras
37
palavras, há motivação entre forma e conteúdo (BYBEE, 1985). Evidenciaremos essa
motivação através da análise dos conceitos relevância e fusão.
38
3. MOTIVAÇÃO ENTRE FORMA E CONTEÚDO
Apresentaremos, neste capítulo, as bases teóricas que nos levam a defender a
hipótese de que modificações formais no radical veiculam conteúdos gramaticais.
Através de Bybee (1985) e Gonçalves (2005), demonstramos que conteúdos relevantes
tendem a se fundir em bases verbais. Alternância vocálica, ditongação e mudança
consonantal são algumas das estratégias que evidenciam que a flexão verbal portuguesa
se organiza por fusão.
3.1. A relevância semântica
Bybee (1985) evidencia haver forte correlação entre forma e significado na
morfologia flexional de línguas naturais. Assim, observa que conteúdos gramaticais
mais relevantes para a base tendem a ocorrer adjacentes a esse constituinte morfológico.
Quando a relevância é muito alta, é frequente a ocorrência de fusão: um conteúdo
mescla-se no outro numa forma muitas vezes indecomponível em partes mínimas
significativas. Bybee (1985: 4) chega a afirmar que a principal hipótese de sua pesquisa
é a de que o grau de fusão morfofonológica de um afixo para com o radical se
correlaciona diretamente com o grau de relevância semântica desse mesmo afixo em
relação ao radical. Portanto, para entender o que é fusão, é fundamental entender o
princípio relevância. Para Bybee (1985), quando dois conteúdos são relevantes entre si,
um deles afeta ou modifica diretamente o outro. Se houver um alto grau de relevância, a
expressão tende a ser morfológica (flexional / derivacional) ou lexical. Já com
conteúdos irrelevantes entre si, é frequente a expressão sintática.
39
Como aponta Gonçalves (2005), o conteúdo direcionalidade é muito importante
para verbos de movimentos. Para o conteúdo mover, é fundamental saber para onde se
move. Desse modo, é provável que encontremos expressão lexical desses conteúdos:
‘subir’ (andar para cima); ‘descer’ (andar para baixo); ‘seguir’ (andar para frente);
‘voltar’ (andar para trás); ‘entrar’ (andar para dentro); ‘sair’ (andar para fora). Já o
conteúdo companhia (com quem se move), como demonstra Gonçalves (2005), não é
tão fundamental para verbos de movimentos. Assim, não vemos fusão dos conteúdos
movimento e companhia. Realmente, quando queremos expressar que nos movemos na
companhia de alguém, utilizamos a expressão sintática: ‘Andamos com Fulano’;
‘Seguimos com Fulano’; ‘Eu e Fulano voltamos de algum lugar’. Para o conteúdo
orientação acadêmica, é importante saber se ela foi em conjunto ou não. Por isso,
apesar de não haver expressão lexical para os conteúdos orientar + companhia,
verificamos expressão morfológica: ‘coorientar’; ‘coorientação’. Para conteúdos como
organizar, chefiar, participar também é relevante o conteúdo companhia. Verificamos
dados no português que comprovam essa previsão: ‘coparticipação’; ‘coorganizar’;
‘cochefiar’. Isso confirma a hipótese de Bybee (1985), segundo a qual conteúdos
relevantes tendem a ser expressos lexical ou morfologicamente. Já conteúdos
irrelevantes entre si tendem a ser expressos sintaticamente.
Aponta Bybee (1985: 13-14) que a relevância depende da saliência cognitiva e
cultural: “dois conteúdos são altamente relevantes, um para o outro, se o resultado da
combinação deles nomeia algo que tem alta saliência cultural ou cognitiva”.
Gonçalves (2005) demonstra que, em português, o conteúdo ritmo que se dança é
relevante para o conteúdo dança. Assim, muitas vezes, há fusão, no radical, desses dois
conteúdos. Em ‘sambar’, há fusão no radical ‘samb-’ dos conteúdos dançar e ritmo. O
mesmo ocorre em ‘pagodear’, ‘valsar’, ‘lambadear’, ‘salsar’, ‘sapatear’. Essa fusão do
40
ritmo que se dança em radicais é indício de que ritmos musicais são elementos
relevantes culturalmente no Brasil. Em outras línguas, a combinação entre os conteúdos
dança e ritmo se dá por expressão sintática, “como ocorre em inglês (‘to dance a jazz’)
e em espanhol (‘danzar el merengue’), o que pode ser indício da baixa proliferação
e/ou importância de estilos musicais e dançantes nessas culturas” (GONÇALVES,
2005: 132).
Cultura, em termos antropológicos, é um conjunto de hábitos de um determinado
grupo social. Sair para dançar é um hábito frequente na cultura brasileira e, desse modo,
é natural que haja fusão dos conteúdos dançar e ritmo no conteúdo lexical (radical). No
Brasil, ninguém sai para dançar rock, mas para ver o show de rock, curtir o ritmo. Desse
modo, não vemos fusão dos conteúdos dança + ritmo (rock). Não ocorre ‘*roquear’ em
português; pelo mesmo motivo, não há mescla dos conteúdos dança + ritmo (música
clássica). Caso haja, nos Estados Unidos ou Inglaterra, algum ritmo musical que leve as
pessoas a sair para dançar, haverá, provavelmente, para esse tipo musical, fusão dos
conteúdos dança e ritmo.
É possível medir a relevância de conteúdos gramaticais com relação a conteúdos
lexicais. Bybee (1985) mostra uma distinção feita por Sapir (1921) entre os conteúdos
relacional e material. O conteúdo material é expresso, geralmente, por palavras ou
radicais e indica ações, objetos, qualidades. Já o conteúdo relacional refere-se a
significados mais gramaticais e se manifesta por afixos ou por mudança no radical. Para
entender a fusão em categorias flexionais, é fundamental medir a relevância do
conteúdo relacional com relação ao conteúdo material.
Para Bybee (1985: 15), “uma categoria é relevante para o verbo na medida que
o sentido dessa categoria afeta diretamente o conteúdo lexical do verbo”. A autora
aponta graus de relevância para categorias verbais. Ao estudar uma amostra de 50
41
línguas, elaborada por Perkins, a autora chega à seguinte ordem decrescente de
relevância para conteúdos gramaticais que mais frequentemente se manifestam por
flexão em verbos:
(01)
valência, voz, aspecto, tempo, modo e concordância.
A autora percebe, então, que o aspecto é uma categoria mais relevante para o
significado verbal que a concordância. Enquanto o aspecto refere-se diretamente à ação
descrita pelo verbo, a concordância faz referência aos participantes da ação. Segundo a
autora, a maior relevância do aspecto sobre a concordância leva a duas previsões: 1) a
ocorrência de mais expressões lexicais de aspecto que de concordância nas línguas do
mundo e 2) a existência de mais línguas com a categoria flexional aspecto que com a
categoria flexional concordância. Essa última previsão, segundo a autora, foi
confirmada por Greenberg (1963), que demonstrou o seguinte: quando há flexão de
número e pessoa nos verbos, há também flexão de tempo, aspecto ou modo. Essa
informação reforça a escala de relevância proposta por Bybee (1985), visto que aponta
serem tempo e modo mais relevantes para o verbo que concordância. No português, há
flexão de número e pessoa, mas, como prevê Greenberg (1963), ocorre também flexão
de modo, tempo e aspecto.
Das categorias expressas nos verbos do português, modo, tempo, aspecto,
número e pessoa, o aspecto é a categoria mais relevante semanticamente. Em português,
há muitos casos de expressão lexical de aspecto, como prevê o princípio relevância.
Como aponta Gonçalves (2005), fundamentando-se em Travaglia (1981) e Borba
(1991), em exemplos como ‘progredir’, ‘desenvolver’, ‘crescer’, há a indicação de
42
aspecto incoativo, já que são colocados em evidência o início e o desenvolvimento do
evento, mas não o seu término. Com relação ao significado aspectual reiteração, que
expressa repetição, hábito, vemos dados como ‘permanecer’, ‘costumar’, ‘fumar’. Um
outro significado aspectual apontado por Gonçalves (2005) é o de pontualidade, com o
qual se coloca em evidência o término de um processo. Verifica-se tal significado em
‘cair’, ‘falecer’, ‘acabar’. Todos esses dados apontam para como é comum a existência
de expressão lexical de aspecto em português, já que inúmeros radicais expressam
noções aspectuais.
3.2. Focalizando a fusão de categorias gramaticais
Bybee (1985: 36) define fusão da seguinte forma: se o significado de um
elemento flexional é altamente relevante para o verbo, frequentemente, as unidades
aparecem fundidas na expressão de superfície. Já elementos menos relevantes têm uma
menor associação com o radical, não se fundindo nele. Segundo a autora, essa hipótese
pode ser testada de duas maneiras. Uma delas é verificar os efeitos que a categoria
flexional tem sobre a base verbal. A outra possibilidade é verificar os efeitos da base na
expressão da categoria flexional. Para os verbos do português, podemos ver a
informação de P1 e P3 em ‘f[i]z’ e ‘f[e]z’ como um exemplo do primeiro caso – efeito
da categoria número-pessoal sobre o radical do verbo. Já para o segundo caso,
verificamos a escolha entre ‘-va’ e ‘–ia’ como marca flexional de pretérito imperfeito,
pois, de acordo com a vogal temática (elemento da base), utiliza-se uma ou outra
variante – a vogal temática ‘-a’ faz com que o elemento utilizado seja ‘–va’; já as vogais
temáticas ‘–e’ e ‘–i’ levam ao uso de ‘–ia’. Como já dissemos no Capítulo 2,
43
focalizamos apenas mudanças na base servindo a informações gramaticais e, por esse
motivo, não pretendemos olhar para efeitos da base sobre expoentes flexionais.
O interesse de Bybee (1985) é na análise de modificações formais
(morfofonológicas) que não são estritamente condicionadas fonologicamente e indicam
informações gramaticais. Segundo a autora, nesses casos, a mudança no radical do
verbo é o principal sinal de uma categoria flexional ou coocorre com um outro expoente
dessa categoria. Nesta Dissertação, pretendemos comprovar que mesmo as
modificações formais na base que têm condicionamento fonológico podem veicular
conteúdos gramaticais.
Fundamentando-se em Bybee (1985), Gonçalves (2005: 143) explicita o
seguinte com relação à fusão:
“Por fusão, devemos entender (1) o uso de raízes supletivas, (2)
os casos em que o radical incorpora noções gramaticais ou,
ainda, (3) a escolha do alomorfe flexional por classes
morfológicas. No primeiro caso, formas inteiramente
dessemelhantes podem amalgamar dois ou mais conteúdos. No
segundo, radicais podem conter informações gramaticais de
natureza variada. No último, afixos flexionais diferentes podem
ser selecionados em função de paradigmas morfológicos.”
Mostra Gonçalves (2005) que a previsão de Bybee (1985) se confirma em
português: afixos mais relevantes tendem a ocorrer mais próximos do radical e
apresentam mais casos de fusões que afixos que estão mais longe do radical na
expressão de superfície. Assim, com relação a substantivos, demonstra que há muitos
casos de fusão de gênero. Em formas como ‘cadela’, ‘mulher’, ‘nora’ ‘égua’, há fusão
no radical dos conteúdos lexicais com o de fêmea; por exemplo, em ‘égua’, fundem-se
os conteúdos cavalo + fêmea. Já a categoria número plural, expressa por um afixo
terminal, ‘-s’, está mais distante da base que a marca de gênero, a vogal ‘-a’. Dessa
44
forma, é menos relevante e parece não se caracterizar por fusão: “o léxico contém
grande contingente de formas com fusão semântica para o gênero e parece não
apresentar amálgamas para o número” (GONÇALVES, 2005: 144-145). Os casos de
fusão de gênero apresentados são do primeiro tipo evidenciado por Bybee (1985) – o
que se atualiza por meio de formas supletivas. Assim, ‘égua’ expressa o animal equino
fêmea e tem uma forma totalmente dessemelhante do vocábulo ‘cavalo’.
Com relação ao verbo, Gonçalves (2005) também afirma que modo, tempo e
aspecto apresentam mais casos de fusão que número e pessoa, o que também confirma a
previsão feita por Bybee (1985). Para exemplificar a fusão em verbos, Gonçalves (2005)
demonstra, inicialmente, o segundo tipo de fusão: o radical incorpora noções
gramaticais. A seguir, em (02), vemos a demonstração feita por Gonçalves (2005: 145)
para o verbo pôr:
(02)
/poN/
/puN/
/puS/
/poR/
ponho, põe, ponha, ponhamos
punha, púnhamos, punham
puséramos, puséssemos, pusesse, puser
porei, poríamos, poremos, poria
Todas as formas de radical acima apontadas expressam o conteúdo lexical pôr,
colocar. Entretanto, em cada uma dessas formas, há fusão desse conteúdo lexical
(material) com algum conteúdo gramatical (relacional) do verbo. Assim, na forma
/poN/, há a indicação de tempo presente (os tempos que expressam essa noção são o
presente do indicativo, o presente do subjuntivo e o imperativo). Em /puN/, existe a
indicação do conteúdo pretérito imperfeito do indicativo; o radical /poR/ informa
futuro. Já a forma /puS/ aparece nos seguinte tempos: pretérito imperfeito do
subjuntivo; pretérito perfeito do indicativo; futuro do subjuntivo e pretérito mais-queperfeito do indicativo.
45
Com relação à fusão de número e pessoa, Gonçalves (2005) demonstra que esta
é mais rara. Além disso, defende ser comum, quando há fusão de número-pessoa, haver
também fusão de modo e de tempo. O autor dá três exemplos – ‘é’, ‘fui’, ‘pôs’. Em ‘é’,
há a fusão de três conteúdos: P3 + presente + indicativo; em ‘fui’, fundem-se as noções
P1 + pretérito perfeito + indicativo. Já em ‘pôs’, expressam-se P3 + pretérito perfeito +
indicativo.
No português, há dois sufixos verbais que se anexam a um tema, expressando,
nessa ordem, modo-tempo-aspecto e número-pessoa, como vemos em (03), a seguir:
(03)
Radical
VT
SMTA1
SNP
Jog
a
va
/N/2
Diferentemente de outras línguas, os conteúdos flexionais de modo, tempo e
aspecto não ocorrem, na manifestação morfológica, separadamente em língua
portuguesa. Há um amálgama de número-pessoa num sufixo e de modo-tempo-aspecto
em outro. Pretendemos, nesta Dissertação, verificar a fusão de conteúdos dos afixos
modo-tempo-aspectual e número-pessoal em radicais verbais. Depois de termos
demonstrado que mudanças formais no radical são plenamente explicáveis pelo
princípio relevância (BYBEE, 1985), podemos analisar quais são as fusões que ocorrem
no português. Todas aquelas regularidades formais verificadas pela literatura
morfológica, demonstradas no capítulo 2, podem ter uma contraparte semântica tendo
em vista a orientação de Bybee (1985) e Gonçalves (2005).
1
Chamamos o sufixo de modo-tempo-aspectual, visto que ele expressa essas três categorias. Em ‘–va’, a
indicação de tempo: pretérito, aspecto: imperfeito e modo: indicativo.
2
Acreditamos, fundamentando-nos em Câmara Jr. (1970), que o sufixo número-pessoal em ‘jogarão’ e
‘jogavam’ é o mesmo: o arquifonema nasal ‘/N/’.
46
Pretendemos demonstrar qual a categoria de MTA que costuma se fundir no
radical do verbo (modo, tempo ou aspecto) e dar conta de qual informação númeropessoal (P1, P3, P6) passa por fusão, geralmente, em língua portuguesa. Demonstramos,
no Capítulo 2, modificações formais em radicais verbais de língua portuguesa. Neste
Capítulo, apresentamos um aporte teórico que nos permite afirmar que tais alterações
são motivadas semanticamente e estão, na maioria das vezes, a serviço de alguma
informação gramatical. Desse modo, conseguimos apontar as causas para essas
modificações formais, que constituem problemas para a literatura morfológica de
inspiração estruturalista. Para esse tipo de enfoque, de forma geral, afixos informam
noções gramaticais, visto que a morfologia sempre busca alcançar uma relação de
univocidade entre unidades formais e conteúdos semânticos.
Fundamentando-nos em uma abordagem que acredita na relação motivada entre
forma e conteúdo (BYBEE, 1985; GONÇALVES, 2005), pretendemos demonstrar que
modificações formais no radical de verbos são exemplos de fusão em português.
Objetivamos confirmar, seguindo Gonçalves (2005), que a língua portuguesa não é
puramente aglutinativa, havendo, desse modo, duas possibilidades de indicar
informações gramaticais na morfologia do verbo: por concatenação de formas ou por
fusão. Como aponta Bybee (1985: 45), “muitas línguas utilizam uma combinação de
aglutinação e fusão”.
No próximo capítulo, fazemos a análise da fusão em verbos, demonstrando
como os conteúdos se manifestam nos radicais. Focalizamos as categorias que se
fundem nos radicais verbais e de que maneira elas se sobrepõem: mudança de
consoante; alternância vocálica; ditongação. Como já mencionado na introdução,
especial relevo será dado aos casos de fusão por alternância vocálica, objeto de
formalização no capítulo 5.
47
Ilustramos, no Capítulo 4, variados casos de fusão explicitando os padrões
formais existentes no paradigma verbal e os respectivos conteúdos que esses padrões
manifestam. Além disso, comprovamos a nossa hipótese de que mesmo as modificações
na base condicionadas fonologicamente veiculam algum conteúdo gramatical.
Demonstramos também que algumas estratégias de fusão, como alternância vocálica e
ditongação, são produtivas.
48
4. A FUSÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Verificamos, no Capítulo 2, que há, em português, estratégias para indicar
noções gramaticais que concorrem ou coocorrem com as marcas aditivas (sufixos
flexionais). Como exemplos dessas estratégias, destacamos, entre outros expedientes
formais, (a) ditongação na sílaba tônica do radical (‘saiba’); (b) a mudança na consoante
final do radical (‘perco’); (c) a alternância vocálica na sílaba tônica do radical (‘est/i/ve’
/ ‘est/e/ve’). Esses fenômenos não são exceções nem irregularidades, mas formas que a
língua encontra ou para expressar uma noção quando não há um afixo isolável (‘tive’)
ou para reforçar determinado conteúdo expresso por marca morfológica adicionada ao
radical (‘acudo’).
Defendemos a ideia de que os referidos fenômenos são demonstrações claras da
motivação entre forma e conteúdo nas estruturas morfológicas do português.
Fundamentando-nos em Bybee (1985) e Gonçalves (2005), acreditamos que essas
mudanças no radical do verbo são exemplos de um padrão ainda não sistematizado na
língua: a fusão.
Como vimos no Capítulo 3, Bybee (1985) evidencia forte motivação entre forma
e conteúdo na morfologia de línguas naturais, defendendo que a expressão de superfície
de um vocábulo aponta graus de importância semântica entre afixos e bases. A ordem
dos afixos, no interior de um verbo, revela a relevância semântica desses elementos para
com o significado verbal. Quanto mais próximo do radical está um afixo, mais relevante
semanticamente para o verbo é o conteúdo desse afixo. Não é por acaso, como
mencionamos, que o sufixo de modo-tempo-aspecto preceda o de número-pessoa na
morfologia do verbo.
Bybee (1985: 36) sistematiza o fenômeno fusão da seguinte maneira:
49
“Conteúdos relevantes semanticamente tendem a se fundir no
radical dos verbos. Desse modo, significados gramaticais
relevantes tendem a aparecer expressos no radical dos verbos.”
Mudanças no radical verbal, muitas vezes, são reflexos de fusão de algum
conteúdo gramatical. Verificamos, em português, fusão de conteúdo do afixo de modotempo-aspecto e do afixo de número-pessoa no radical do verbo. Neste capítulo,
demonstramos alguns tipos de fusão: mudança e inserção consonantal, ditongação,
haplologia, alternância vocálica.
Pretendemos
comprovar
que
informações
flexionais
se
manifestam
morfologicamente não só pelo acréscimo de afixos, mas também por fusão. A expressão
de pessoa ou de tempo gramatical, por exemplo, pode ocorrer através de mudança no
radical do verbo. Neste capítulo, fornecemos uma gama de dados de fusão em língua
portuguesa, evidenciando que as mudanças servem à informação ou ao reforço de
conteúdos também expressos por afixos de número-pessoa e modo-tempo-aspecto.
4.1. A informação de tempo presente
A literatura morfológica de orientação estruturalista postula que uma ausência
formal (um zero) indica presente do indicativo em língua portuguesa. Verificamos que,
na verdade, a língua busca um outro meio, diferente do acréscimo de afixos, para
indicar presente: a modificação no radical do verbo. Um exemplo de modificação é a
alteração da consoante final na 1ª pessoa do presente do indicativo, no presente do
subjuntivo, no imperativo negativo e nas pessoas do imperativo afirmativo provenientes
50
do presente do subjuntivo 1. Observemos, a título de exemplificação, o verbo ‘perder’.
Nas formas verbais acima citadas, há um radical ‘perc-’ em oposição a outras formas,
com radical ‘perd-’. O radical ‘perc-’ informa presente. Assim como o presente do
indicativo e o presente do subjuntivo, o imperativo também indica presente (ROCHA
LIMA, 1975). O verbo ‘valer’ passa pelo mesmo processo: ‘valh-’ na 1ª pessoa do
singular do presente do indicativo e nos tempos ligados a ele semanticamente. Outros
exemplos são os seguintes: ‘ouç-’, ‘meç-’, ‘peç-’, ‘poss-’, ‘dig-’, ‘trag-’ (dos verbos
‘ouvir’, ‘medir’, ‘pedir’, ‘poder’, ‘dizer’, ‘trazer’, respectivamente), nos quais a
mudança na consoante final reforça a noção de presente.
Outra maneira de indicar ou reforçar a noção modo-tempo-aspectual é a
ditongação na sílaba tônica do radical: ‘caib-’; ‘queir-’, ‘saib-’ (de ‘caber’, ‘querer’,
‘saber’) ocorrem apenas nos tempos que expressam presente. A alternância vocálica
também pode indicar ou reforçar modo-tempo-aspecto em português, como verificamos
na análise do verbo ‘pôr’ apresentada no capítulo 3. Nesse verbo, ‘/poN/’ é a forma de
radical usada para o presente do indicativo e os outros tempos que indicam a noção de
presente (cf. GONÇALVES, 2005), enquanto ‘/puN/’ é usado para indicar pretérito
imperfeito do indicativo2. Com o verbo ‘ter’, também há uma mudança vocálica
responsável por informação gramatical: ‘/tiN/’ remete ao pretérito imperfeito e ‘/teN/’ a
tempos que expressam presente (presente do indicativo, presente do subjuntivo,
imperativo). Nos dois verbos, a forma com vogal alta indica pretérito imperfeito do
indicativo e a com vogal média é utilizada no presente do indicativo.
1
Koch & Souza e Silva (1989) mostram que a primeira pessoa do singular do presente do indicativo é
uma forma primitiva que dá origem ao presente do subjuntivo e às formas do imperativo deste originadas.
Acreditamos que essa ligação formal tem uma contraparte semântica, uma vez que todos esses tempos
expressam a noção de presente.
2
Gonçalves (2005) aponta que, além dessas duas formas, ocorrem ainda ‘/poR/’ e ‘/puS/’. A primeira é
utilizada em tempos que expressam futuro: futuro do presente e futuro do pretérito. Já a segunda é
utilizada no pretérito mais-que-perfeito; pretérito perfeito; pretérito imperfeito do subjuntivo e futuro do
subjuntivo.
51
4.1.1. Alternância vocálica: oposição entre presente do indicativo e
pretérito perfeito do indicativo
A literatura morfológica de orientação estruturalista defende a existência de um
zero para indicar presente do indicativo e pretérito perfeito do indicativo. Em outras
palavras, a ausência de marcas seria responsável por informar essas noções modotempo-aspectuais, como se vê em (01) e (02) a seguir, respectivamente, para as formas
‘joga’ (P3 do presente do indicativo) e ‘jogou’ (P3 do pretérito perfeito do indicativo):
(01)
RADICAL
VT
SMTA
SNP
Jog-
-a
∅
∅
RADICAL
VT
SMTA
SNP
Jog-
-a (-o)
∅
-u
(02)
4.1.2. Vogal média-aberta: informação de presente
Observem-se os paradigmas abaixo para as conjugações de ‘jogar’ e ‘pegar’ no
presente do indicativo (03) e no pretérito perfeito do indicativo (04):
(03)
J[ɔ]go
P[ɛ]go
J[ɔ]gas
P[ɛ]gas
J[ɔ]ga
J[o]gamos
J[o]gais
P[ɛ]ga
P[e]gamos
P[e]gais
J[ɔ]gam
P[ɛ]gam
52
(04)
J[o]guei
J[o]gaste
J[o]gou
J[o]gamos
J[o]gastes
J[o]garam
P[e]guei
P[e]gaste
P[e]gou
P[e]gamos
P[e]gastes
P[e]garam
Como se vê em (03), verifica-se uma tendência a abrir a vogal tônica do radical
no presente do indicativo (realização de vogal média-baixa) nos verbos de 1ª
conjugação, única produtiva em português, visto que qualquer neologismo verbal
(‘twittar’, ‘blogar’) é de 1ª conjugação. Defendemos que essa abertura é um exemplo de
fusão através da alternância vocálica. Há, na língua, a estratégia de abrir a vogal tônica
(média) do radical para indicar tempo presente, como vemos, acima, na conjugação dos
verbos ‘jogar’ e ‘pegar’ no presente do indicativo. É importante reforçar que a abertura
de vogal acontece também nas formas do imperativo derivadas do presente do
indicativo e no presente do subjuntivo – tempos que veiculam a noção de presente (cf.
ROCHA LIMA, 1975; VIVAS, 2009).
A abertura da vogal tem motivação fonológica, já que ocorre apenas na sílaba
tônica do radical. Entretanto, essa alternância manifesta informação gramatical: o
conteúdo presente, como formalizamos em (05):
(05)
Vogal Aberta → Presente
Em seu Breviário de Conjugação Verbal, Otelo Reis (1982) demonstra verbos
com vogal ‘e’ na penúltima sílaba que têm, em sílaba tônica, vogal média-baixa: todos
os verbos que terminam em ‘-ebar’, ‘-ecar’, ‘-eçar’, ‘-essar’, ‘-edar’, ‘-efar’, ‘-egar’,
‘-elar’, ‘-epar’, ‘-erar’, ‘-esar’ ou ‘-ezar’, ‘-etar’, ‘-evar’, ‘-erbar’, ‘-ercar’, ‘-erdar’,
‘-ermar’, ‘-ernar’, ‘-ersar’, ‘-ertar’, ‘-ervar’, ‘-escar’, ‘-esgar’, ‘-espar’, ‘-estar’ ou
53
‘-extar’, ‘-eptar’. Assim, ‘pecar’, ‘começar’, ‘apressar’, ‘arredar’, ‘sossegar’, ‘selar’,
‘decepar’, ‘asseverar’, ‘enterrar’, ‘errar’, ‘pesar’, ‘rezar’, ‘levar’, ‘cercar’, ‘internar’,
‘conversar’, ‘consertar’, ‘concertar’, ‘conservar’, ‘pescar’, ‘detestar’, ‘projetar’,
‘interceptar’ teriam ‘e’ tônico realizado como vogal média-baixa: [ɛ].
Com relação à vogal média posterior, diz Otelo Reis (1982) que verbos
terminados em ‘-obar’, ‘-ocar’, ‘-oçar’ e ‘-ossar’, ‘-odar’, ‘-ofar’, ‘-ogar’, ‘-ojar’,
‘-olar’, ‘-opar’, -‘orar’, ‘-orrar’, ‘-osar’, ‘-otar’, ‘-ovar’, ‘-olhar’, ‘-ochar’, ‘-orçar’,
‘-ordar’, ‘-orgar’, ‘-orjar’, ‘-orlar’, ‘-ormar’, ‘-ornar’, ‘-ortar’, ‘-orvar’, ‘-oldar’,
‘-olfar’, ‘-olgar’, ‘-oltar’, ‘-oscar’, ‘-osnar’, ‘-ostar’, ‘-ofrar’, ‘-ograr’ têm as formas
rizotônicas com realização da vogal média-baixa. Realmente, a abertura da vogal média
posterior é muito produtiva em português. Demonstramos, a seguir, dados do Aurélio
Eletrônico de verbos que sofrem abertura de vogal média nas formas rizotônicas:
(06) Abobar, afobar, englobar, esnobar, adoçar, almoçar, brocar, chocar, colocar,
convocar, descaroçar, desembocar, desempoçar, desentocar, deslocar, destocar,
destrocar, destroçar, embocar, emboçar, esboçar, estocar, evocar, focar, fofocar,
invocar, pipocar, provocar, rebocar, retocar, roçar, socar, sufocar, tocar, trocar,
xerocar, desossar, empossar, endossar, engrossar, acomodar, incomodar, podar,
rodar, afofar, filosofar, mofar, advogar, afogar, catalogar, desafogar, dialogar,
drogar, homologar, interrogar, jogar, prorrogar, refogar, revogar, rogar, alojar,
arrojar, desalojar, enojar, amolar, assolar, atolar, bolar, cantarolar, colar, consolar,
controlar, decolar, degolar, desatolar, descolar, descontrolar, desenrolar, desolar,
embolar, encaracolar, engaiolar, enrolar, esfolar, extrapolar, isolar, protocolar,
rebolar, rolar, violar, dopar, ensopar, envelopar, galopar, adorar, aflorar, ancorar,
apavorar, aprimorar, chorar, colaborar, comemorar, condecorar, corar, corroborar,
decorar, demorar, deteriorar, devorar, doutorar, editorar, elaborar, enamorar,
escorar, evaporar, explorar, fatorar, ignorar, implorar, incorporar, melhorar,
monitorar, morar, namorar, piorar, revigorar, torar, vigorar, borrar, forrar,
desforrar, jorrar, torrar, dosar, entrosar, esclerosar, esposar, posar, tosar, abarrotar,
adotar, amarrotar, anotar, arrotar, botar, brotar, capotar, decotar, denotar, derrotar,
desempacotar, desencaixotar, devotar, dotar, empacotar, encaixotar, enxotar,
esgotar, lotar, picotar, pilotar, sabotar, tricotar, trotar, votar, aprovar, comprovar,
desaprovar, desovar, escovar, inovar, provar, renovar, reprovar, desfolhar,
molhar,olhar, arrochar, atochar, brochar, debochar, desabrochar, enforcar, esforçar,
forçar, orçar, reforçar, abordar, acordar, bordar, concordar, discordar, engordar,
recordar, transbordar, outorgar, forjar, conformar, deformar, formar, informar,
reformar, transformar, adornar, amornar, contornar, entornar, retornar, subornar,
54
tornar, abortar, comportar, confortar, cortar, desentortar, entortar, exportar,
importar, portar, reconfortar, recortar, reexportar, reportar, suportar, transportar,
moldar, soldar, toldar, golfar, empolgar, folgar, escoltar, revoltar, soltar, voltar,
desenroscar, enroscar, moscar, rosnar, apostar, desencostar, desgostar, encostar,
gostar, postar, tostar, enxofrar, lograr, malograr.
Defendemos, nesta Dissertação, a hipótese de que a realização da vogal média
como aberta (média-baixa) ocorre justamente para indicar a noção de presente. Mesmo
nos casos em que a realização considerada padrão, por Breviários de Conjugação, é com
vogal média-alta nas formas rizotônicas, verificamos que há uma tendência à abertura
da vogal (realização da vogal média-baixa).
Desse modo, apesar de Otelo Reis explicitar que a pronúncia padrão de verbos
terminados em ‘-ejar’, ‘-exar’ ou ‘-echar’ e ‘-elhar’ é com vogal fechada na sílaba
tônica, não é isso que verificamos na língua; ocorrem também usos com vogal aberta,
como ‘f[ɛ]cho’, ‘boch[ɛ]cho’, ‘entref[ɛ]cho’; ‘esp[ɛ]lho’; ‘ar[ɛ]jo’. O próprio Otelo
Reis (1982, p.80) verifica a realização com vogal aberta, ao afirmar que “pessoas menos
cultas manifestam a errônea tendência de, nas formas rizotônicas, pronunciar o e com
som aberto: fécho, féche, etc.”. Os verbos no infinitivo que têm ‘–ei’, na penúltima
sílaba, também teriam, segundo Reis (1982), vogal fechada em formas rizotônicas,
sendo essa a norma padrão em todos os verbos que terminam em ‘–eifar’, ‘-eigar’, ‘eijar’, ‘-eimar’, ‘-eirar’, ‘-eitar’, ‘-eivar’ e ‘-eixar’. Assim, vocábulos como ‘aleijar’,
‘suspeitar’, ‘deixar’, ‘beijar’, ‘beirar’, ‘empoeirar’, ‘empoleirar’, ‘encarreirar’,
‘enfileirar’, ‘entricheirar’, ‘inteirar’, ‘maneirar’, ‘peneirar’ não teriam, nas formas
rizotônicas, abertura da vogal média. Não são raros ou incomuns, na fala carioca, usos
como al[ɛ]jo; além disso, todos os verbos terminados em –eirar no infinitivo costumam
55
ter uma realização com –ei monotongado para [ɛ]3. Isso leva, inclusive, à ocorrência de
pares mínimos: verbos que expressam presente (com [ɛ] na sílaba tônica) e outras
classes: substantivos ou adjetivos (com [ej] ou [e]), como se vê nos dados em (07):
(07)
Verbo que indica presente
Outra classe
b[ɛ]ra
b[e]ira ou b[e]ra
int[ɛ]ra
int[e]ira ou int[e]ra
man[ɛ]ra
man[e]ira ou man[e]ra
pen[ɛ]ra
pen[e]ira ou pen[e]ra
Reis (1982, p.81-82) também cita a ocorrência de vogal média-baixa nos casos
de penúltima sílaba com ei-:
“Pessoas menos cultas manifestam, porém, uma
tendência a pronunciar o e aberto em alguns destes,
principalmente nos polissilábicos terminados em eirar, no verbo
enfeixar e no verbo aleijar: penéiro, penéire, enféixo, enféixe,
aléijo, aléije, etc. Com o verbo inteirar (completar, perfazer)
nunca ouvimos outras formas que não fossem com e aberto:
intéiro, intéira, etc. A verdade é que a pronúncia viciosa vai
contaminado a linguagem até das pessoas cultas”
Buscamos, no Aurélio Eletrônico, dados de abertura da vogal média anterior a
serviço da informação de presente no contexto de verbos terminados em ‘–ebar’,
‘-ecar’, ‘-eçar’, ‘-essar’, ‘-edar’, ‘-efar’, ‘-egar’4, ‘-elar’, ‘-epar’, ‘-erar’, ‘-esar’, ‘-ezar’,
‘-etar’, ‘-evar’, ‘-erbar’, ‘-ercar’, ‘-erdar’, ‘-ernar’, ‘-ersar’, ‘-ertar’, ‘-ervar’, ‘-escar’, ‘esgar’, ‘-espar’, ‘-estar’, ‘-extar’, ‘-eptar’:
3
A monotongação de [ej] e [ow] é, geralmente, para [e] e [o]: ‘p[ej]xe’→’p[e]xe’, ‘qu[ej]jo’→‘qu[e]jo’,
‘[ow]ro’→‘[o]ro’; ‘c[ow]ro’→‘c[o]ro’. Quando a monotongação tem como resultado uma vogal aberta,
há, geralmente, a indicação de uma informação gramatical: ‘est[ɔ]ro’; ‘int[ɛ]ra’ (informação de tempo
presente).
4
O verbo chegar é o único que não sofre abertura nas formas rizotônicas: *ch[ɛ]go, *ch[ɛ]ga.
56
(08) ensebar, brecar, checar, começar, defecar, desmunhecar, dessecar, dissecar,
embonecar, encabeçar, endereçar, hipotecar, obcecar, pecar, recomeçar, ressecar,
sapecar, secar, tropeçar, acessar, apressar, arremessar, atravessar, cessar, confessar,
engessar, estressar, expressar, ingressar, interessar, processar, professar, regressar,
arredar, azedar, dedar, degredar, depredar, embebedar, emparedar, enredar,
enveredar, hospedar, sedar, vedar, atarefar, blefar, agregar, alegar, apegar, carregar,
cegar, congregar, delegar, desagregar, desapegar, desassossegar, descarregar,
desempregar, despegar, despregar, empregar, encarregar, escorregar, esfregar,
navegar, negar, pegar, recarregar, regar, relegar, renegar, segregar, sobrecarregar,
sonegar, sossegar, subdelegar, trafegar, acautelar, acotovelar, afivelar, amarelar,
atrelar, atropelar, cancelar, congelar, degelar, desafivelar, desatrelar, descabelar,
desnovelar, desmantelar, desnivelar, desvelar, empapelar, empastelar, encastelar,
engabelar ou engambelar, esfacelar, esfarelar, esgoelar, estatelar, estrelar, flagelar,
gelar, interpelar, martelar, melar, modelar, nivelar, parcelar, pelar, pincelar,
protelar, rebelar, remodelar, revelar, selar, tabelar, tagarelar, tutelar, velar, zelar,
decepar, discrepar, entrepar, increpar, trepar, acelerar, adulterar, aglomerar,
asseverar, considerar, cooperar, deliberar, degenerar, dasacelerar, desconsiderar,
desesperar, desencarcerar, desonerar, destemperar, dilacerar, encarcerar, encerar,
enumerar, esperar, exagerar, exasperar, exonerar, gerar, imperar, incinerar, liberar,
liderar, moderar, numerar, obliterar, onerar, operar, paquerar, perseverar, ponderar,
preponderar, proliferar, prosperar, reconsiderar, recuperar, refrigerar, regenerar,
reiterar,remunerar, retemperar, reverberar, temperar, superar, tolerar, venerar,
verberar, zerar, afrancesar, aportuguesar, enviesar, inglesar, lesar, pesar, repesar,
desprezar, embelezar, enfezar, menosprezar, prezar, revezar, rezar, acarretar,
alfinetar, aquietar, arquitetar, coletar, completar, decretar, deletar, desinfetar,
desenquietar, encasquetar, encetar, engavetar, espetar, etiquetar, excretar, fretar,
infetar ou infectar, interpretar, inquietar, marretar, projetar, vetar, xeretar, elevar,
enlevar, levar, nevar, relevar, sobrelevar, sublevar, averbar, exacerbar, alicerçar,
cercar, deserdar, herdar, alternar, consternar, desgovernar, encadernar, externar,
governar, internar, invernar, conversar, desconversar, dispersar, tergiversar, versar,
acertar, acobertar, alertar, apertar, concertar, consertar, desacertar, desapertar,
desconcertar, desconsertar, desertar, despertar, dissertar, enxertar, fletar, libertar,
ofertar, conservar, enervar, observar, preservar, reservar, copidescar, pescar,
refrescar, envesgar, encrespar, desencrespar, interceptar, receptar, atestar,
contestar, desembestar, desflorestar, detestar, embestar, emprestar, encabrestar,
encestar, enfestar, gestar, infestar, manifestar, molestar, prestar, protestar,
reflorestar, restar, testar.
Em todos esses dados, ocorre abertura da vogal média nas formas rizotônicas,
abertura esta responsável por informar tempo presente. Como já abordamos, mesmo nos
casos em que a norma padrão determina que a ocorrência de vogal média-alta, como
‘-ejar’, ‘-exar’, ‘-echar’, ‘-elhar’, ocorrem usos com a abertura da vogal na sílaba tônica
para informar presente, a exemplo do que se vê em (09):
57
(09) almejar: alm[ɛ]ja,
arejar: ar[ɛ]ja,
azulejar: azul[ɛ]jo,
bocejar: boc[ɛ]jo,
invejar: inv[ɛ]ja,
velejar: vel[ɛ]ja,
anexar: an[ɛ]xo,
vexar: v[ɛ]xo,
desindexar: desind[ɛ]xa,
indexar: ind[ɛ]xa,
bochechar: boch[ɛ]cho,
desfechar: desf[ɛ]cha,
entrefechar: entref[ɛ]cha,
fechar: f[ɛ]cha,
flechar: fl[ɛ]cha,
espelhar: esp[ɛ]lho;
aparelhar: apar[ɛ]lho,
destelhar: dest[ɛ]lho.
Não são muito comuns usos como ‘far[ɛ]ja’, ‘fest[ɛ]ja’, ‘gagu[ɛ]ja’, ‘man[ɛ]ja’,
‘plan[ɛ]ja’, ‘assem[ɛ]lha’, ‘acons[ɛ]lha’, mas, se passarem a ocorrer na língua, estarão a
serviço da informação de presente. Mesmo quando a vogal média é modificada por uma
semivogal, há uma tendência a abrir essa vogal. Verificamos essa abertura no ditongo
“eu”: ‘end[ɛ]usa’, ‘end[ɛ]uso’, ‘end[ɛ]use’. No ditongo ‘ei’, essa abertura é vista em
formas terminadas em ‘-eiçar’, como ‘desb[ɛ]iça’, ‘desb[ɛ]iço’, ‘desb[ɛ]ice’;
‘emb[ɛ]iça’, ‘emb[ɛ]iço’, ‘emb[ɛ]ice’. Formas terminadas em ‘–eirar’ também sofrem
abertura, mas acompanhada de monotongação, a exemplo de ‘abrasil[ɛ]ra’,
‘abrasil[ɛ]ro’, ‘abrasil[ɛ]re’; ‘b[ɛ]ra’, ‘b[ɛ]ro’, ‘b[ɛ]re’; ‘emband[ɛ]ra’, ‘emband[ɛ]ro’,
58
‘emband[ɛ]re’; ‘emparc[ɛ]ra’, ‘emparec[ɛ]ro’, ‘emparc[ɛ]re’; ‘empo[ɛ]ra’, ‘empo[ɛ]ro’,
‘empo[ɛ]re’; ‘encarr[ɛ]ra’,
‘encarr[ɛ]ro’, ‘encarr[ɛ]re’; ‘enfil[ɛ]ra’,
‘enfil[ɛ]ro’,
‘enfil[ɛ]re’; ‘entrinch[ɛ]ra’, ‘entrinch[ɛ]ro’, ‘entrinch[ɛ]re’; ‘int[ɛ]ra’, ‘int[ɛ]ro’,
‘int[ɛ]re’; ‘man[ɛ]ra’, ‘man[ɛ]ro’, ‘man[ɛ]re’; ‘pen[ɛ]ra’, ‘pen[ɛ]ro’, ‘pen[ɛ]re’. A
abertura em ‘aleijar’ também é acompanhada de monotongação: ‘al[ɛ]ja’, ‘al[ɛ]jo’,
‘al[ɛ]je’. As formas verbais ‘deixar’, ‘beijar’ e os verbos terminados em ‘–eitar’
(‘deitar’, ‘confeitar’, ‘enfeitar’) não sofrem abertura de vogal média nas formas
rizotônicas, mas, caso ela ocorra, indicará presente.
Nas formas verbais com ‘ou’[ow] na penúltima sílaba do infinitivo, Reis (1982,
p.85) também evidencia ser a realização com vogal média-alta, [o], a pronúncia
conforme a norma padrão, mas também explicita a ocorrência de vogal média-baixa:
“manifestam pessoas menos cultas a errônea tendência para proferir aberto o o nas
formas rizotônicas: róbo em vez de roubo, pópa em vez de poupa, estóra em vez de
estoura, etc.”. Essa realização da vogal média [ɔ] é muito produtiva em português nas
formas rizotônicas, ocorrendo no presente do indicativo, no presente do subjuntivo e
nos imperativos de verbos de 1ª conjugação. Através de busca no Aurélio Eletrônico,
verificamos que alguns verbos com ‘ou’ na penúltima sílaba do infinitivo têm abertura
de vogal nas formas rizotônicas: ‘roubar’, ‘toucar’, ‘tresloucar’, ‘poupar’, ‘enroupar’,
‘agourar’, ‘alourar’, ‘desdourar’, ‘dourar’, ‘entesourar’, ‘estourar’, ‘tesourar’, ‘pousar’,
‘repousar’, ‘louvar’, ‘afrouxar’, ‘entrouxar’. Essa abertura de vogal acarreta pares
mínimos entre verbos que expressam presente e outras classes, como se observa em
(10):
59
(10)
Verbo que indica presente
Outra classe
r[ɔ]bo
r[o]ubo ou r[o]bo
tresl[ɔ]co
tresl[o]uco ou tresl[o]co
ag[ɔ]ro
ag[o]uro ou ag[o]ro
est[ɔ]ro
est[o]uro ou est[o]ro
p[ɔ]so
p[o]uso ou p[o]so
rep[ɔ]so
rep[o]uso ou rep[o]so
Sobre formas infinitivas verbais com ‘oi-’ em sílaba pretônica, afirma Reis
(1982) que se deve, nas formas rizotônicas, realizar vogal aberta quando em seguida não
houver consoante, como em ‘b[ɔ]io’, ‘b[ɔ]ia’. Já nos casos em que ocorre consoante
depois do referido ditongo (-oiçar, -oidar, -oirar, -oisar, -oitar, -oimar), a realização
deve ser com vogal fechada, a exemplo de ‘end[o]ido’, ‘pern[o]ito’, ‘n[o]ivo’. No uso
efetivo da língua, verificamos uma tendência a realizar a vogal aberta também nesses
casos: ‘end[ɔ]ida’, ‘end[ɔ]ido’; ‘pern[ɔ]ito’, ‘pern[ɔ]ite’, ‘n[ɔ]ivo’, ‘n[ɔ]iva’. No
Aurélio Eletrônico, buscamos verbos com ‘oi’ na sílaba pretônica do infinitivo –
‘foiçar’, ‘endoidar’, ‘abiscoitar’, ‘acoitar’, ‘açoitar’, ‘afoitar’, ‘amoitar’, ‘pernoitar’,
‘tresnoitar’, ‘noivar’. Defendemos a hipótese de que, nesses dados, o falante pode optar
por abrir a vogal média. Quando faz isso, está expressando formalmente a noção
gramatical presente. A abertura de vogal cria pares mínimos em que a realização com
vogal aberta indica verbo no presente e com vogal média-alta, outra classe:
(11)
Verbo que indica presente
Outra classe
n[ɔ]iva/n[ɔ]ivo
n[o]iva/n[o]ivo
pern[ɔ]ite
pern[o]ite
f[ɔ]ice
f[o]ice
aç[ɔ]ite
aç[o]ite
af[ɔ]ito
af[o]ito
60
A necessidade de Otelo Reis (1982) explicitar, através de uma visão
preconceituosa, a ocorrência de vogal aberta em verbos cuja realização padrão seria
com vogal fechada num breviário, mesmo tendo breviários verbais o objetivo de
demonstrar a pronúncia padrão do português, deixa claro como a abertura de vogal em
formas rizotônicas é regular e produtiva. Existe uma regularidade que evidencia que
vogal média-baixa em sílaba tônica expressa a noção presente. Em casos como
‘f[ɛ]cho’, ‘f[ɛ]che’ e f[ɛ]cha (de fechar), ‘r[ɔ]bo’, ‘r[ɔ]be’ e ‘r[ɔ]ba’ (de ‘roubar’),
verifica-se que, no uso efetivo da língua, há variação na realização entre ‘f[ɛ]cho’ e
‘f[e]cho’, ‘f[ɛ]cham’ e ‘f[e]cham’, ‘f[ɛ]cha’ e ‘f[e]cha’, ‘f[ɛ]che’ e ‘f[e]che’; ‘r[ɔ]bo’ e
‘r[ow]bo’, ‘r[ɔ]bam’ e ‘r[ow]bam’, ‘r[ɔ]ba’ e ‘r[ow]ba’, ‘r[ɔ]be’ e ‘r[ow]be’, em que as
pronúncias com vogal aberta servem à expressão formal do conteúdo presente.
Podemos, então, comprovar que não é a marca zero que informa presente do
indicativo, uma vez que a noção de presente funde-se no radical do verbo através de
expedientes formais, como a alternância vocálica. Em ‘r[ɔ]bo’; ‘r[ɔ]ba’; ‘r[ɔ]bam’, por
exemplo, o falante monotonga ‘ou’ para ‘o’ na sílaba tônica, abrindo a vogal em prol da
indicação de presente. O mesmo ocorre em ‘est[ɔ]ro’; ‘est[ɔ]ra’; ‘est[ɔ]ram’ (de
‘estourar’), entre outros exemplos. Somente a 4ª pessoa (nós) e a 5ª pessoa (vós) não
sofrem abertura de vogal nos tempos que informam presente, como verificamos, em
(03) acima, na conjugação dos verbos ‘jogar’ e ‘pegar’ no presente do indicativo. A
abertura vocálica em P4 e P5 não ocorre devido à vogal média do radical sempre se
encontrar em posição pretônica. Entretanto, ‘nós’ concorre com ‘a gente’, e o pronome
‘vós’ caiu em desuso no uso efetivo da língua. Os verbos que concordam com ‘vocês’ e
‘a gente’ têm vogal média em sílaba tônica e, por isso, sofrem abertura de vogal: vocês
61
‘p[ɛ]gam’; vocês ‘j[ɔ]gam’; a gente ‘p[ɛ]ga’; a gente ‘j[ɔ]ga’. A título de ilustração,
podemos observar o paradigma de presente do indicativo no quadro pronominal atual:
(12)
Eu
al‘m[ɔ]ço
Você ~ Tu
al‘m[ɔ]ça ~ al‘m[ɔ]ças5
Ele
al‘m[ɔ]ça
Nós ~ A gente
alm[o]‘çamos ~ al‘m[ɔ]ça
Vocês
al‘m[ɔ]çam
Eles
al‘m[ɔ]çam
Como já ilustramos, a alternância vocálica, no paradigma verbal de 1ª
conjugação do português, manifesta o tempo presente. A abertura de vogal média em
posição tônica no presente do indicativo, por exemplo, permite uma oposição funcional
com o pretérito perfeito, que também tem, segundo as abordagens estruturalistas, marca
zero. Na verdade, o pretérito perfeito sempre tem a vogal média fechada na posição
tônica, assim como todos os outros tempos verbais que não expressam a noção de
presente em português: pretérito imperfeito do indicativo; pretérito-mais-que-perfeito;
futuro do presente; futuro do pretérito; pretérito imperfeito do subjuntivo; futuro do
subjuntivo. A vogal média tônica realizada como fechada é o que opõe, então,
funcionalmente o pretérito perfeito ao presente do indicativo.
Com a análise da alternância vocálica no presente do indicativo, demonstramos
como esse caso de fusão é produtivo e passível de sistematização em português. No
presente do indicativo, sempre que houver, na primeira conjugação, vogal média em
5
No uso efetivo do Rio de Janeiro, é frequente o pronome tu com o verbo flexionado em 3ª pessoa do
singular (‘alm[ɔ]ça’). Essa forma não é marcada negativamente pelos falantes e vem se tornando cada
vez mais frequente.
62
posição tônica, haverá uma tendência a abrir essa vogal. A abertura funciona, portanto,
como expediente morfológico que indica informação gramatical.
A abertura da vogal média tem, como enfatizamos, motivação fonológica, pois
só ocorre em sílaba tônica. Essa mudança formal, mesmo tendo condicionamento
fonológico, possui contraparte semântica, estando a serviço da informação de presente.
Isso fundamenta a hipótese de Bybee (1985) de que mudanças formais têm, geralmente,
contraparte semântica. Nesta Dissertação, pretendemos comprovar que isso ocorre até
mesmo quando há explicação fonológica para as mudanças formais.
Na língua, também se buscam formas para indicar a noção modo-tempoaspectual de pretérito perfeito. Assim, verificamos, por exemplo, radicais ‘troux-’;
‘coub-’; ‘pud-’; ‘estiv-’ e ‘est[e]v-’ ; ‘soub-’, que informam noção gramatical de tempo
no paradigma de pretérito perfeito.
4.1.2.1. Ditongação no radical: informação de presente
Outra estratégia para indicar presente é a ditongação no radical do verbo. Na 1ª
conjugação, por exemplo, verbos terminados em ‘-ear’ sofrem ditongação por epêntese
de semivogal [j] no presente do indicativo, presente do subjuntivo, imperativo negativo
e P3 e P6 do imperativo afirmativo. Em outras palavras, a epêntese de [j] ocorre nos
tempos que indicam presente. Desse modo, fica evidente que a ditongação está a serviço
da informação de presente. Alguns exemplos, buscados no Aurélio Eletrônico, são os
seguintes:
(13) alardear, altear, alhear, aperrear, altear, assenhorear, balancear, bambolear, baratear,
barbear, bloquear, bobear, bombardear, bombear, cabecear, cear, cercear, clarear,
custear, delinear, desencadear, despentear, devanear, escanear, estrear, frear, golear,
golpear, homenagear, manusear, mapear, massagear, nocautear, parafrasear,
passear, pentear, permear, presentear, rastrear, rechear, saborear, sapatear, sortear,
zonear.
63
Os verbos ‘odiar’ e ‘incendiar’, terminados em ‘–iar’, também sofrem
ditongação por epêntese de [j], como ‘ode[j]’ e ‘incende[j]’, em formas do presente do
indicativo, do presente do subjuntivo e dos imperativos. A título de exemplificação,
observe-se a conjugação de ‘presentear’ no presente do indicativo:
(14)
Eu presente[j]o
Você presente[j]a ~ Tu presente[j]as ~ Tu presente[j]a
Ele presente[j]a
6
Nós presenteamos ~ Nós presente[j]amos ~A gente presente[j]a
Vocês presente[j]am
Eles presente[j]am
A epêntese de [j] nos radicais dos verbos terminados em ‘-ear’ informa a noção
gramatical presente, como se vê nos dados em (15):
(15)
alarde[j]
alte[j]
aperre[j]
assenhore[j]
balance[j]
bambole[j]
barate[j]
barbe[j]
bloque[j]
bobe[j]
bombarde[j]
bombe[j]
cabece[j]
ce[j]
cerce[j]
clare[j]
custe[j]
deline[j]
desencade[j]
despente[j]
devane[j]
escane[j]
estre[j]
fre[j]
gole[j]
golpe[j]
homenage[j]
manuse[j]
mape[j]
massage[j]
nocaute[j]
parafrase[j]
passe[j]
pente[j]
perme[j]
presente[j]
rastre[j]
reche[j]
sabore[j]
sapate[j]
sorte[j]
zone[j]
Verificamos, então, que radicais com epêntese de [j] expressam tempo presente.
Como esse fenômeno é regular e indica uma informação gramatical, o falante, às vezes,
6
Apesar de essa forma estar em desacordo com a norma padrão, ela é muito realizada pelos falantes.
Segundo a norma padrão, a ditongação ocorre formalmente nas formas rizotônicas do presente do
indicativo Todavia, o falante realiza esse processo morfológico com frequência em P4 na sílaba pretônica:
‘presente[j]‘amos’; ‘estre[j]‘amos’; ‘ ce[j]‘amos’ indicando, dessa forma, a noção presente.
64
realiza-o mesmo quando seu uso está em desacordo com a pronúncia padrão. Desse
modo, é comum realizar ditongação por epêntese de [j] nas formas verbais terminadas
em ‘–iar’. Esse uso é atestado por Reis (1982, p. 63): “Pessoas incultas tendem a
confundir estes verbos com os terminados em ear, e dizem: copeio, vareia, apreceio, etc.
Esta pronúncia incorreta chega, em alguns lugares, a contaminar a própria linguagem
de algumas pessoas cultas”.
A necessidade de citar essa epêntese deve-se à produtividade e à regularidade de
sua ocorrência. Defendemos a hipótese de que esse processo é produtivo por estar a
serviço de uma informação gramatical: a indicação de presente. Há uma série de verbos,
terminados em ‘–iar’, nos quais o falante realiza a ditongação por epêntese de [j].
Quando realiza esse processo, está indicando presente através de uma marca formal: a
mudança no radical do verbo (fusão):
(16)
vare[j]o / vare[j]a
cope[j]o / cope[j]a
aprece[j]o / aprece[j]a
abreve[j]o / abreve[j]a
alume[j]o / alume[j]a
aprope[j]o / aprope[j]a
benefice[j]o / benefice[j]a
chefe[j]o / chefe[j]a
contage[j]o / contage[j]a
desaprece[j]o / desaprece[j]a
deprece[j]o / deprece[j]a
diference[j]o / diference[j]a
distance[j]o / distance[j]a
divorce[j]o / divorce[j]a
esvaze[j]o / esvaze[j]a
evidence[j]o / evidence[j]a
fantase[j]o / fantase[j]a
finace[j]o / finance[j]a
maque[j]o / maque[j]a
negoce[j]o / negoce[j]a
plage[j]o / plage[j]a
presence[j]o / presence[j]a
sace[j]o / sace[j]a
silence[j]o / silence[j]a
Em verbos como ‘caber’, ‘saber’, ‘querer’ (de 2ª conjugação), também ocorre
ditongação por epêntese de [j] para informar presente: ‘ca[j]b-’ ocorre em P1 do
presente do indicativo, no presente do subjuntivo, no imperativo negativo e em P3 e P6
do imperativo afirmativo; já ‘sa[j]b-’ e ‘que[j]r-’ ocorre nas mesmas formas com
exceção da P1 do presente do indicativo. Podemos afirmar que ‘que[j]r-’, ‘sa[j]b-’ e
‘ca[j]b-’ informam presente através de fusão por ditongação. Na 3ª conjugação, o verbo
‘parir’ é um exemplo em que o radical ‘pa[j]r-’ atualiza a noção de presente.
65
A ditongação, nesses casos, tem uma motivação formal, só acontecendo na P1 do
presente do indicativo e nas formas dela originadas: no presente do subjuntivo, na P3 e
na P6 do imperativo afirmativo e no imperativo negativo. Essas coincidências formais
não são fortuitas. As semelhanças formais que ocorrem têm uma contraparte semântica:
estão a serviço da informação de presente. A ditongação, como um expediente
morfológico que manifesta presente, reforça a hipótese de Bybee (1985) de que
alterações formais têm, geralmente, contraparte semântica.
4.1.2.2. Mudança na consoante final do radical: fusão da
informação de presente
Um outro caso de fusão que serve à informação de tempo presente é a mudança
na consoante final do radical do verbo. Na 2ª conjugação, ‘perder’, ‘poder’, ‘valer’,
‘dizer’, ‘contradizer’, ‘fazer’, ‘refazer’ e ‘trazer’ são exemplos de verbos que têm um
radical que informa presente. A P1 do presente do indicativo, o presente do subjuntivo,
o imperativo negativo e P3 e P6 do imperativo têm um radical com mudança na
consoante final que funciona como um expediente para a informação temporal:
(17)
perc- (de ‘perder’)
poss- (de ‘poder’)
valh- (de ‘valer’)
dig- (de ‘dizer’)
contradig- (de ‘contradizer’)
faç- (de ‘fazer’)
refaç- (de ‘refazer’)
trag- (de ‘trazer’)
Nos dados acima, verificamos que uma mudança no último segmento do radical
está a serviço da informação de presente. Em ‘perder’ e ‘poder’, ocorre alteração de [d]
para [k] e para [s], respectivamente. Os radicais com [k], ‘per[k]-’, e [s], ‘po[s]-’,
indicam presente. Em ‘fazer’, a consoante muda de [z] para [s]: de ‘fa[z]er’ para
66
‘fa[s]o’, ‘fa[s]a’, ‘fa[s]amos’. Já em ‘trazer’ e ‘dizer’, a mudança é de [z] para [g]: de
‘tra[z]er’ e ‘di[z]er’ para ‘tra[g]o’, ‘tra[g]a’ e ‘di[g]o’, ‘di[g]a’. No nosso entendimento,
os radicais acima expressam formalmente o conteúdo de tempo presente.
Na 3ª conjugação, também ocorrem casos de mudança na consoante final do
radical em prol da informação de presente. Em ‘pedir’, ‘medir’ e ‘ouvir’, há radicais
específicos, com fusão por alteração da consoante final, para informar presente:
(18)
peç- (de pedir)
meç- (de medir)
ouç- (de ouvir)
Nesses dados, as formas com [s] são casos de expressão formal de presente,
visto que ocorrem em radicais de tempos que indicam presente. Em dados da 2ª
conjugação, como ‘vejo’/’veja’, ‘revejo’/’reveja’, ‘provejo’/’proveja’, não há alteração
na consoante final do radical, mas acréscimo de um segmento após o tema verbal nos
tempos que expressam presente.
Em ‘(re)ver’ e ‘prover’, depois do tema em –e, ocorre acréscimo de consoante,
acréscimo este a serviço da informação de presente, acontecendo em P1 do presente do
indicativo, no presente do subjuntivo, no imperativo negativo e em P3 e P6 do
imperativo afirmativo.
No paradigma verbal do português, existem outros casos de acréscimo
consonantal que funciona como expediente de alguma informação gramatical: ‘ter’,
‘pôr’ (verbos de 2ª conjugação) e ‘vir’ (verbo de 3ª conjugação):
(19)
Presente
Pretérito Imperfeito
te/N/-
ti[ɲ]-
po/N/-
pu[ɲ]-
ve/N/-
vi[ɲ]-
67
Nos casos de ‘ter’, ‘pôr’ e ‘vir’, ocorre acréscimo de nasal. Em todas as formas
dos tempos que informam presente, a nasalidade pode ser realizada de diversas formas:
‘tem’, ‘tens’ (semi-vogal nasalizada); ‘tenho’, ‘tenha’, ‘tenhas’ (nasal palatal); ‘tendes’
(nasal alveolar de pequena duração). Já no pretérito imperfeito do indicativo, ocorre a
nasal palatal [ɲ] no radical. A manutenção da vogal temática como média e o acréscimo
da nasalidade constituem a expressão formal de presente. Quando o acréscimo de uma
nasal, especificada como palatal, se soma a uma passagem da vogal média a alta, ocorre
a indicação de pretérito imperfeito do indicativo.
4.1.2.3. Expediente morfológico para informação de presente: fusão
Demonstramos – com a análise de expedientes morfológicos como alternância
vocálica, ditongação, mudança da consoante final do radical, inserção de consoante na
posição final do radical – que não é uma marca zero que informa presente. Na verdade,
a língua não expressa formalmente presente através de acréscimo de afixos, mas por
meio da fusão. Os expedientes morfológicos aqui analisados são casos evidentes de
fusão da informação de presente no português.
4.1.3. Fusão da noção gramatical de pretérito perfeito
Na 2ª conjugação, verbos como ‘caber’, ‘haver’, ‘querer’, ‘aprazer’, ‘dizer’,
7
‘fazer’, ‘trazer’, ‘poder’, ‘ter’ apresentam fusão da noção de pretérito perfeito . No
7
O radical que expressa formalmente a noção de pretérito perfeito é sempre o mesmo do pretérito maisque-perfeito simples: ‘troux-’ (trouxera e trouxe); ‘pud-’ (pudera e pude); ‘tiv-’ (tivera e tive); ‘fiz-’
(fizera e fiz); ‘diss-’ (dissera e disse); ‘aprouv-’ (aprouvera e aprouve); ‘quis-’ (quisera e quis); ‘houv-’
(houvera e houve); ‘coub-’ (coubera e coube). Todavia, o pretérito mais-que-perfeito simples caiu em
desuso na língua, sendo a estratégia morfológica substituída pela sintática (ter ou haver + particípio
passado): tinha trazido; tinha podido; havia tido; tinha feito; tinha dito, em que não há fusão no radical.
Pelo fato de a forma simples ter caído em desuso, não postulamos a fusão da noção de pretérito mais-que-
68
verbo ‘estar’, de 1ª conjugação, também ocorre fusão da noção de pretérito perfeito.
Nesses exemplos, a informação de pretérito perfeito dá-se por fusão através de
ditongação, mudança consonantal, acréscimo consonantal e alternância vocálica.
Abaixo, vemos exemplos de fusão por ditongação para [ow]:
(20)
coubhouvaprouvtroux-
Nesses dados, as formas com ditongo no radical ocorrem também nos tempos
futuro do subjuntivo, pretérito imperfeito do subjuntivo e pretérito mais-que-perfeito do
indicativo, mas, no pretérito perfeito, o ditongo [ow] é a única marca responsável por
8
atualizar a noção de pretérito perfeito, enquanto nos outros tempos afixos veiculam
noções de MTA: ‘-sse’ informa pretérito imperfeito do subjuntivo; ‘-ra’ e.‘-re’, pretérito
mais-que-perfeito; ‘-r’ e ‘-re’, futuro do subjuntivo. A fusão de pretérito perfeito pode
envolver mudança consonantal acrescida de alternância vocálica, a exemplo do que
ocorre em ‘quis-’, de ‘querer’ (mudança de [e] para [i] acrescida de alteração da
consoante final do radical); em ‘tiv-‘, de ‘ter’, a alternância vocálica soma-se à inserção
da consoante [v]:
perfeito. O pretérito mais-que-perfeito é, muitas vezes, utilizado na língua com categorização e sentido
interjectivos: tomara, pudera, quisera (cf. VIVAS, 2009).
8
Acreditamos que essa ditongação esteja a serviço de alguma informação gramatical, até porque o
pretérito perfeito é chamado pela literatura morfológica de primitivo por dar origem aos tempos pretérito
mais-que-perfeito do indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo e futuro do subjuntivo. Provavelmente,
há algum conteúdo semelhante nos tempos pretérito perfeito do indicativo, pretérito imperfeito e futuro
do subjuntivo e pretérito mais-que-perfeito do indicativo; a coincidência formal deve ter uma contraparte
semântica.
69
(21)
Verbo querer
Verbo ter
qu[i][ʃ]
qu[i][z]este
t[i][v]e
t[i][v]este
qu[i][ʃ]
qu[i][z]emos
qu[i][z]estes
qu[i][z]eram
te[v]e
t[i][v]emos
t[i][v]estes
t[i][v]eram
9
Com relação ao verbo ‘estar’, também há acréscimo consonantal acompanhado
de alternância vocálica: ‘estar’ → ‘estive’ e ‘esteve’. Desse modo, as formas ‘estive’ e
‘esteve’ informam pretérito perfeito, como se vê em (22):
(22)
est[i][v]e
est[i][v]este
est[e][v]e
est[i][v]emos
est[i][v]estes
est[i][v]eram
No verbo ‘dizer’, a mudança consonantal é o único expediente para informar
pretérito perfeito: ‘di[z]-’ alterna para ‘di[s]-’:
(23)
di[s]e
di[s]este
di[s]e
di[s]emos
di[s]estes
di[s]eram
Em outros casos, a informação de pretérito perfeito dá-se por alternância
vocálica no radical:
(24)
9
f[i]z- (verbo ‘fazer’)
f[e]z- (verbo ‘fazer’)
p[u]d- (verbo ‘poder’)
Nesse caso, a mudança consonantal é o único expediente para a informação de pretérito perfeito.
70
Nesses casos, quando se realiza o radical com vogal alta, informa-se pretérito
perfeito. Em outras palavras, quando o falante realiza ou ouve algum verbo com a forma
de radical ‘f[i]z-’ / ‘f[e]z’ ou ‘p[u]d-’, reconhece a informação de tempo passado; os
radicais ‘f[i]z-’ e ‘p[u]d-’ ocorrem em P1, P2, P4, P5 e P6. Já ‘f[e]z’ se realiza em P3 :
(25)
Verbo fazer
f[i]z
f[i]zeste
f[e]z
f[i]zemos
f[i]zestes
f[i]zeram
Verbo poder
p[u]de
p[u]deste
p[o]de
p[u]demos
p[u]destes
p[u]deram
Cabe salientar que, em todos os casos de fusão de pretérito perfeito, a forma de
P4 do pretérito perfeito difere da forma de P4 do presente do indicativo: ‘coubemos’ /
‘cabemos’; ‘houvemos’ / ‘havemos’; ‘quisemos’ / ‘queremos’; ‘aprouvemos’ /
‘aprazemos’; ‘trouxemos’ / ‘trazemos’; ‘tivemos’ / ‘temos’; ‘dissemos’ / ‘dizemos’;
‘fizemos’ / ‘fazemos’; ‘pudemos’ / ‘podemos’; desfaz-se a homonímia. Na primeira
conjugação, paradigma produtivo do português, também existe uma estratégia que
diferencia, na P4, pretérito perfeito e presente do indicativo: muda-se a vogal temática,
que está na sílaba tônica:
(26)
cantamos → cantemos
jogamos → joguemos
amamos → amemos
estudamos → estudemos
andamos → andemos
De acordo com Ilari & Basso (2009: 176):
71
“note-se que a variante subpadrão que distingue nóis cantamo
de nóis cantemo consegue distinguir morfologicamente dois
tempos do verbo (o presente e o pretérito perfeito), uma
diferença importante que o português brasileiro culto não
consegue marcar”.
O fenômeno, apontado por Illari & Basso (2009), demonstra a tendência de
distinguir formalmente dados que remetem a informações gramaticais diferentes. Até
mesmo na primeira conjugação, o falante expressa pretérito perfeito através de fusão.
4.1.4. Noção de futuro: fusão por haplologia
Outra estratégia de fusão é a haplologia, pois a queda de uma sílaba no radical
do verbo pode ter uma contraparte semântica. Nos verbos ‘trazer’, ‘fazer’, ‘pôr’,
‘dizer’, a informação de futuro do presente é expressa pelas marcas ‘-ra’ e ‘-re’.
Todavia, há um reforço dessa informação gramatical por queda de sílaba no radical:
(27)
*trazerei → trarei
*dizerei → direi
Desse modo, o paradigma de futuro do presente estrutura-se da seguinte
maneira:
(28)
Verbo trazer
trarei
trarás
trará
traremos
trareis
trarão
72
O mesmo ocorre no futuro do pretérito com esses verbos (‘trazer’, ‘fazer’, ‘pôr’,
‘dizer’). A queda de sílaba no radical reforça a noção de futuro, primariamente expressa
pelas marcas ‘-ria’ e ‘-re’:
(29)
*trazeria → traria
*dizeria → diria
Vemos abaixo o paradigma de futuro do pretérito:
(30)
Verbo trazer
traria
trarias
traria
traríamos
traríeis
trariam
Esses casos de fusão por haplologia reforçam nossa hipótese: mudanças formais,
mesmo quando condicionadas fonologicamente, podem estar a serviço de alguma
informação gramatical. A haplologia é um processo fonológico, mas, nos casos em
exame, reforça a noção de futuro.
4.2. Fusão de número-pessoa
4.2.1. Fusão número-pessoal por ditongação
A informação de número-pessoa também pode se dar por fusão. Um dos
expedientes formais de fusão número-pessoal é a ditongação. Esse fenômeno ocorre, no
paradigma de presente do indicativo, em favor do reforço da noção de P1 nos verbos
‘caber’, ‘crer’, ‘ler’ (2ª conjugação) e no verbo ‘parir’ (3ª conjugação). Sempre que o
mecanismo fusão coocorre com um afixo, dizemos que o expediente fusional reforça o
73
conteúdo:
(31)
caib- (caibo)
crei- (creio)
lei- (leio)
pair- (pairo)
(32)
Verbo ler
Eu leio
Você lê ~Tu lês ~ Tu lê
Ele lê
Nós lemos ~ A gente lê
Vocês leem
Eles leem
(33)
Verbo crer
Eu creio
Você crê ~ Tu crês ~ Tu crê
Ele crê
Nós cremos ~ A gente crê
Vocês creem
Eles creem
Nesses dados, no presente do indicativo, as formas ‘caib-’, ‘crei-’, ‘lei-’, ‘pair-’,
além de indicarem a informação de presente, reforçam a noção de P1, que tem o afixo -o
como expediente primário. Nem todos os falantes realizam as formas ‘caib-’ e ‘pair-’ na
P1 do presente do indicativo; dessa forma, é comum ouvirmos realizações como ‘cabo’
e ‘paro’ para ‘caber’ e ‘parir’. Entendemos esse caso da seguinte maneira: apesar de
‘caib-’ e ‘pair-’ não serem formas tão produtivas na P1 do presente do indicativo,
quando realizadas, servem como reforço à primeira pessoa do singular.
Só verificamos fusão de NP por ditongação nos quatro dados acima apontados;
outras formas ditongadas servem apenas à informação de presente: os verbos
terminados em ‘-ear’ (‘presenteio’, ‘presenteia’, ‘presenteiam’) e os verbos terminados
74
em ‘-iar’ – nos quais os falantes realizam a ditongação (vareio, vareia, vareiam; saceio,
saceia, saceiam) – são casos em que a epêntese ocorre na maioria das formas do
presente do indicativo, a exemplo de (34) e (35), nessa ordem:
(34)
Verbo presentear
Eu presenteio
Você presenteia ~Tu presenteias ~ Tu presenteia
Ele presenteia
10
Nós presenteamos ~ A gente presenteia
Vocês presenteiam
Eles presenteiam
(35)
Verbo saciar (uso bastante produtivo)
Eu saceio
Você saceia ~ Tu saceias ~ Tu saceia
Ele saceia
Nós saceiamos ~ A gente saceia
Vocês saceiam
Eles saceiam
A ditongação é produtiva para a informação de presente; a informação de P1, no
entanto, reduz-se a pouquíssimos casos. Um outro expediente formal para a informação
de P1 é a mudança consonantal, descrita na próxima seção.
4.2.2. Fusão por mudança ou inserção consonantal
Na segunda conjugação, existem algumas formas em que se dá o reforço da
noção de P1 por fusão através da mudança na última consoante do radical. Dizemos que
acontece reforço, visto que a fusão coocorre com a aglutinação do formativo ‘-o’:
10
É comum e frequente o falante realizar a ditongação em P4 para indicar a noção de presente.
75
(36)
perc- (de ‘perder’)
poss- (de ‘poder’)
valh- (de ‘valer’)
dig- (de ‘dizer’)
contradig- (de ‘contradizer’)
faç- (de ‘fazer’)
refaç- (de ‘refazer’)
trag- (de ‘trazer’)
As formas em (36) servem à informação de presente no paradigma verbal do
português – como visto na seção 4.1.2.2 – e, no presente do indicativo, servem ao
reforço de P1, como se vê em (37), (38) e (39), nas conjugações de ‘perder’, ‘trazer’ e
‘fazer’:
(37)
Eu perco
Você perde ~ Tu perdes ~ Tu perde
Ele perde
Nós perdemos ~ A gente perde
Vocês perdem
Eles perdem
(38)
Eu trago
Você traz ~ Tu trazes ~Tu traz
Ele traz
Nós trazemos ~ A gente traz
Vocês trazem
Eles trazem
(39)
Eu faço
Você faz ~ Tu fazes ~ Tu faz
Ele faz
Nós fazemos ~ A gente faz
Vocês fazem
Eles fazem
A mudança na última consoante do radical reforça o conteúdo P1 e ocorre
também na 3ª conjugação, com as seguintes formas:
76
(40)
peç- (de ‘pedir’)
meç- (de ‘medir’)
ouç- (de ‘ouvir’)
Assim como na 2ª conjugação, as formas ‘peç-’, ‘meç-’ e ‘ouç-’, além de
reforçarem P1 no paradigma de presente, informam a noção presente em português. O
reforço de P1 ocorre porque, nessa pessoa, o radical adquire forma diferente dos outros
radicais do presente do indicativo, como verificamos abaixo, em ‘pedir’ (41) e ‘ouvir’
(42):
(41)
Eu peço
Você pede ~ Tu pedes ~ Tu pede
Ele pede
Nós pedimos ~ A gente pede
Vocês pedem
Eles pedem
(42)
Eu ouço
Você ouve ~ Tu ouves ~ Tu ouve
Ele ouve
Nós ouvimos ~ A gente ouve
Vocês ouvem
Eles ouvem
A mudança consonantal que serve ao reforço de P1, nas 2ª e 3ª conjugações,
ocorre, geralmente, com os segmentos /d/ e /z/: ‘per/d/er’, ‘po/d/er’, ‘pe/d/ir’, ‘me/d/ir’;
‘di/z/er’, ‘contradi/z/er’, ‘fa/z/er’, ‘refa/z/er’, ‘tra/z/er’. A mudança é para /k/, /g/ e /s/:
‘per/k/o’; ‘(contra)di/g/o’, ‘tra/g/o’; ‘po/s/o’, ‘fa/s/o’, ‘refa/s/o’, ‘pe/s/o’.
No verbo ‘ouvir’, a mudança na consoante final é também para /s/, mas o
segmento alterado é /v/. Já em ‘valer’, a mudança é de /l/ para /λ/. Essa transformação
(da lateral alveolar para a lateral palatal) não é tão produtiva, visto que só ocorre nesse
verbo e, além disso, muitos falantes realizam ‘va/l/o’ por ‘va/λ/o’. A modificação de
um segmento consonantal final para /s/, /k/ e /g/ é um expediente para o reforço da
77
noção de P1 no presente do indicativo em língua portuguesa.
Outra estratégia para reforçar a noção de P1 é a inserção de consoante. Isso
ocorre nos seguintes dados:
(43)
vej- (de ver)
revej- (de rever)
provej- (de prover)
tenh- (de ter)
ponh- (de pôr)
venh- (de vir)
(44)
Eu vejo
Você vê ~ Tu vês ~ Tu vê
Ele vê
Nós vemos ~ A gente vê
Vocês veem
Eles veem
45)
Eu tenho
Você tem ~ Tu tens ~ Tu tem
Ele tem
Nós temos ~ A gente tem
Vocês têm
Eles têm
(46)
Eu venho
Você vem ~ Tu vens ~ Tu vem
Ele vem
Nós vimos ~ A gente vem
Vocês vêm
Eles vêm
Em ‘ver’, ‘rever’, ‘prover’, há acréscimo de [Ʒ]: já em ‘ter’ e ‘pôr’, o acréscimo
é de [ɲ]. Em ‘vir’, além do acréscimo de [ɲ], há alternância da vogal tônica de [i] para
[e]. Nesses casos de 2ª conjugação (‘ver’, ‘rever’, ‘prover’, ‘ter’, ‘pôr’) e 3ª conjugação
(‘vir’), as formas acima apontadas, além de reforçarem a noção de P1 indicada por ‘–o’,
informam presente.
Todos os dados de fusão número-pessoal (por ditongação, por mudança na
78
consoante final do radical e por acréscimo consonantal) acima ilustrados são casos em
que há também fusão da categoria tempo presente. Isso reforça a ideia lançada por
Gonçalves (2005): geralmente, quando há fusão de NP, também ocorre fusão de MTA.
4.2.3. Fusão número-pessoal por alternância vocálica
Assim como na informação de presente, a fusão por alternância vocálica também
é regular e sistemática na informação número-pessoal. A informação de P1 e P3 ocorre
não só por acréscimo de afixos (-o; -u), mas também por fusão. A fusão número-pessoal
por alternância vocálica ocorre em dados do pretérito perfeito e do presente do
indicativo. O padrão é o seguinte:
(47)
Vogal alta na sílaba tônica do radical → P1
Vogal média na sílaba tônica do radical → P3
Dividimos o grupo de dados, buscados no Aurélio Eletrônico, em dois padrões:
A e B. No padrão A, encontram-se os casos de fusão de P1 e P3 no pretérito perfeito do
indicativo; a vogal média, nesse caso, é sempre fechada (média-alta). Além disso, a
alternância vocálica é a única responsável pela informação número-pessoal de P1 e P3,
o que mostra que, na expressão de número e pessoa, a fusão concorre com o acréscimo
de afixo. São exemplos desse padrão os verbos ‘ser’, ‘fazer’, ‘ter’, ‘poder’ (2ª
conjugação); ‘estar’ (1ª conjugação) e ‘ir’ (3ª conjugação), como vemos a seguir:
79
(48)
Verbo ser
f[u]i
f[o]i
Verbo fazer
f[i]z
f[e]z
Verbo ter
t[i]ve
t[e]ve
Verbo poder
p[u]de
p[o]de
Verbo estar
est[i]ve
est[e]ve
Verbo ir
f[u]i
f[o]i
Verbo satisfazer
satisf[i]z
satisf[e]z
Verbo refazer
ref[i]z
ref[e]z
As formas ‘f[i]z-’, ‘t[i]v-’, ‘p[u]d-’, ‘est[i]v-’, ‘satisf[i]z-’, ‘ref[i]z-’, ‘f[e]z-’,
‘t[e]v-’, ‘est[e]v-’, ‘satisf[e]z-’, ‘ref[e]z-’ também fundem a noção de tempo passado;
nesses casos, verificamos, além de fusão de número-pessoa, a fusão de uma categoria de
MTA (tempo). Já em ‘p[o]d-‘, não há fusão de tempo, visto que essa forma é a regular
(default) para a grande maioria dos tempos: ‘poderia’, ‘podia’, ‘poderá’ etc. Os verbos
‘ser’ e ‘estar’ são casos em que formas vocabulares acumulam as noções gramaticais de
MTA e NP (cf. GONÇALVES, 2005), como em ‘sou’ (P1, indicativo, presente), ‘é’ (P3,
indicativo, presente); ‘era’ (P1 ou P3, pretérito, indicativo,
imperfeito); ‘fui’ (P1,
pretérito, indicativo, perfeito), ‘foi’ (P3, pretérito, indicativo, perfeito).
Esse padrão – ‘vogal alta → P1 e vogal média → P3’ – é regular e sistemático;
por isso, o falante, em algumas variedades do português, realiza-o para indicar númeropessoa mesmo quando essa realização está em desacordo com a pronúncia padrão:
(49)
Verbo trazer
tr[u]xe
tr[o]xe
Verbo saber
s[u]be
s[o]be
Verbo caber
c[u]be
c[o]be
Essas realizações demonstram que, mesmo na 2ª conjugação, paradigma em que
o falante não cria novos verbos, é possível aplicar-se um processo morfológico
produtivo – fusão por alternância vocálica. Em outras palavras, numa conjugação nãoprodutiva, o falante aplica um processo produtivo. Reis (1982, p. 100) demonstra um
juízo de valor negativo à realização desse padrão fusional, o que evidencia a frequência
80
de sua realização: “São errôneas as formas sube, subeste, suberam, subesse, só usadas
por pessoas de baixa cultura”.
No padrão B de fusão por alternância vocálica, a vogal média é realizada como
aberta (vogal média-baixa), exceto quando antecede uma consoante nasal. Nesse
padrão, a informação de número-pessoa acontece no presente do indicativo: a fusão em
P1 coocorre com o afixo número-pessoal ‘–o’ (em ‘acudo’, reforça-se a noção expressa
pelo afixo); já em P3, a alternância vocálica é a única responsável por informar P3 (a
forma ‘ac[ɔ]de’ revela que, em português, a fusão concorre com o acréscimo de afixo na
manifestação de número e pessoa). Em outras palavras, a fusão é uma outra forma
existente na língua para informar número-pessoa. O padrão B ocorre com bastante
frequência na 3ª conjugação, como verificamos abaixo com exemplificação de verbos
encontrados no Aurélio Eletrônico que consideramos bastante utilizados pelos falantes:
(50)
Verbo acudir
ac[u]do
Verbo aderir
ad[i]ro
Verbo advertir
adv[i]rto
Verbo consumir
cons[u]mo
ac[ɔ]de
ad[ɛ]re
adv[ɛ]rte
cons[o]me
Verbo conseguir
cons[i]go
Verbo consentir
cons[i]nto
Verbo cuspir
c[u]spo
Verbo descobrir
desc[u]bro
cons[ɛ]gue
cons[e]nte
c[ɔ]spe
desc[ɔ]bre
Verbo desencobrir
desenc[u]bro
Verbo desentupir
desent[u]po
Verbo desferir
desf[i]ro
Verbo desmentir
desm[i]nto
desenc[ɔ]bre
desent[ɔ]pe
desf[ɛ]re
desm[e]nte
Verbo desvestir
desv[i]sto
Verbo diferir
dif[i]ro
Verbo divertir
div[i]rto
Verbo dormir
d[u]rmo
desv[ɛ]ste
dif[ɛ]re
div[ɛ]rte
d[ɔ]rme
Verbo cobrir
c[u]bro
Verbo encobrir
enc[u]bro
Verbo engolir
eng[u]lo
Verbo entupir
ent[u]po
c[ɔ]bre
enc[ɔ]bre
eng[ɔ]le
ent[ɔ]pe
81
Verbo ferir
f[i]ro
Verbo fugir
f[u]jo
Verbo inferir
inf[i]ro
Verbo ingerir
ing[i]ro
f[ɛ]re
f[ɔ]ge
inf[ɛ]re
ing[ɛ]re
Verbo inquerir
inqu[i]ro
Verbo inserir
ins[i]ro
Verbo investir
inv[i]sto
Verbo mentir
m[i]nto
inqu[ɛ]re
ins[ɛ]re
inv[ɛ]ste
m[e]nte
Verbo perseguir
pers[i]go
Verbo pressentir
press[i]nto
Verbo preferir
pref[i]ro
Verbo prosseguir
pross[i]go
pers[ɛ]gue
press[e]nte
pref[ɛ]re
pross[ɛ]gue
Verbo recobrir
rec[u]bro
Verbo refletir
refl[i]to
Verbo referir
ref[i]ro
Verbo repetir
rep[i]to
rec[ɔ]bre
refl[ɛ]te
ref[ɛ]re
rep[ɛ]te
Verbo ressentir
ress[i]nto
Verbo revestir
rev[i]sto
Verbo sacudir
sac[u]do
Verbo seguir
s[i]go
ress[e]nte
rev[ɛ]ste
sac[ɔ]de
s[ɛ]gue
Verbo sentir
s[i]nto
Verbo servir
s[i]rvo
Verbo subir
s[u]bo
Verbo sugerir
sug[i]ro
s[e]nte
s[ɛ]rve
s[ɔ]be
sug[ɛ]re
Verbo tossir
t[u]sso
Verbo transferir
transf[i]ro
Verbo travestir
trav[i]sto
Verbo vestir
v[i]sto
t[ɔ]sse
transf[ɛ]re
trav[ɛ]ste
v[ɛ]ste
Além de sistemático e regular, esse padrão (B) é também produtivo. Desse
modo, em algumas variedades do português, o falante realiza-o com frequência – em
desacordo com a pronúncia dita padrão – informando número-pessoa por fusão:
82
(51)
11
Verbo corrigir
corr[i]jo
Verbo dividir
div[i]do
Verbo viver
v[i]vo
corr[ɛ]ge
div[ɛ]de
v[ɛ]ve
Verbo agredir
agr[i]do
Verbo regredir
regr[i]do
Verbo progredir
progr[i]do
agr[ɛ]de
regr[ɛ]de
progr[ɛ]de
Verbo insistir
ins[i]sto
Verbo pulir
p[u]lo
Verbo dirigir
dir[i]jo
ins[ɛ]ste
p[ɔ]le
dir[ɛ]ge
Nesses dados, em ‘corrige’, ‘divide’, ‘vive’, ‘agride’, ‘regride’, ‘progride’,
‘insiste’, ‘pule’, ‘dirige’, não há expediente aglutinativo responsável por informar
número-pessoa. Em outras palavras, não ocorre afixo número-pessoal de P3; assim, o
falante utiliza, muitas vezes, o mecanismo fusão para indicar essa noção gramatical:
realiza a vogal tônica das formas como média. Já nas formas de P1, a vogal alta na
sílaba tônica funciona como reforço de P1, informação indicada primariamente pelo
afixo ‘–o’: ‘corrigo’, ‘divido’, ‘vivo’, ‘agrido’, ‘regrido’, ‘progrido’, ‘insisto’, ‘pulo’,
‘dirijo’; a fusão coocorre com o acréscimo afixal.
4.3. Fusão levada às últimas consequências
Gonçalves (2005: 143) afirma que a fusão se dá de três maneiras: “(1) o uso de
raízes supletivas, (2) os casos em que o radical incorpora noções gramaticais ou,
ainda, (3) a escolha do alomorfe flexional por classes morfológicas”. O segundo tipo é
o que está sendo analisado com maior ênfase nesta Dissertação; os casos de alternância
vocálica, mudança consonantal, inserção consonantal, ditongação, mudança de vogal
temática, haplologia, explicitados neste capítulo, são exemplos claros em que radicais
11
É o único caso de 2ª conjugação de fusão do tipo ‘vogal alta na sílaba tônica do radical → P1; vogal
média na sílaba tônica do radical’ → P3 do padrão B.
83
incorporam noções gramaticais, quer de tempo, quer de número-pessoa. O terceiro caso
pode ser exemplificado em português pelo uso de ‘–va’ em verbos de 1ª conjugação e
de ‘–ia’ em verbos de 2ª e 3ª na indicação de pretérito imperfeito. Esse tipo de fusão não
foi analisado nesta Dissertação, porque nos focamos nas mudanças ocorridas na base
por influência de conteúdos gramaticais e não nas mudanças no afixo condicionadas
pela base.
O primeiro caso citado por Gonçalves (2005) consiste na existência de raízes
totalmente diferentes na expressão de categorias gramaticais distintas. O autor cita o
verbo ‘pôr’ como exemplo desse tipo de fusão. Há, segundo o autor, para o verbo ‘pôr’,
as raízes ‘/puN/’, que expressa pretérito imperfeito; ‘/poN/’ que sempre expressa
presente, ocorrendo nos tempos presente do indicativo, presente do subjuntivo e nos
imperativos; ‘/poR/’, que veicula a noção de futuro ocorrendo no futuro do presente e
no futuro do pretérito e ‘/puS/’, que aparece nos tempos pretérito mais-que-perfeito do
indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo, pretérito perfeito do indicativo e futuro do
subjuntivo12.
Gonçalves (2005) detalha a fusão por raízes supletivas em verbos, mas não
explicita muitos casos desse tipo de fusão, porque tem como foco os nomes. Tentaremos
descrever, nesta seção, outros casos dessa fusão, também chamada por Gonçalves
(2005) de fusão levada às últimas consequências. Nossa descrição será bastante
resumida, visto que o foco da Dissertação é nos casos de fusão em que radicais
incorporam noções gramaticais através de processos fonológicos. O verbo ‘ser’ é um
excelente exemplo para casos de fusão levada às últimas consequências, como
verificamos abaixo no paradigma flexional atual para o presente do indicativo:
12
Defendemos a ideia de que ‘puser’ é a forma que marca, atualmente, futuro do subjuntivo, visto que
ocorre em todas as pessoas do paradigma. Assim, o falante reconhece essa forma como de futuro
diferenciando-a da forma pu/S/ que marca a noção de pretérito.
84
(52)
Eu
Você ~ Tu
Ele
Nós ~ A gente
Vocês
Eles
sou
é ~ és
é
somos ~ é
são
são
O presente do indicativo tem formas de raízes específicas: ‘sou’, ‘so’, ‘são’ e ‘é’,
como evidenciam nossos grifos. Veja-se, a seguir, a conjugação de ‘ser’ no pretérito
mais-que-perfeito, no pretérito perfeito do indicativo e no imperfeito do subjuntivo,
respectivamente:
(53)
Eu
Você ~ Tu
Ele
Nós ~ A gente
Vocês
Eles
fora
fora ~ foras
fora
fôramos ~ fora
foram
foram
(54)
Eu
Você ~ Tu
Ele
Nós ~ A gente
Vocês
Eles
fui13
foi ~ foste
foi
fomos ~foi
foram
foram
(55)
Eu
Você ~ Tu
Ele
Nós ~ A gente
Vocês
Eles
fosse
fosse ~fosseis
fosse
fôssemos ~ fosse
fossem
fossem
13
Descrevemos apenas ‘fu-’ como a forma de radical, visto que ‘–i’ é considerado o afixo númeropessoal de P1 no pretérito perfeito do indicativo pela literatura morfológica.
85
Para os tempos que expressam pretérito, também há formas específicas: ‘fo-’,
‘fu-’, ‘foi’; ‘fo-’ ocorre nos tempos pretérito mais-que-perfeito do indicativo; pretérito
imperfeito do subjuntivo, já ‘foi’ e ‘fu’ ocorrem apenas no pretérito perfeito do
indicativo. Para expressar futuro, ocorre a forma ‘se/R/’. Apesar de sabermos que a
vibrante não faz parte do radical, sendo, na verdade, o primeiro segmento dos afixos de
futuro do presente e do pretérito, defendemos a hipótese de que o que marca futuro é a
forma ‘se/R/’, porque acreditamos que a vibrante auxilie o falante no reconhecimento
de tempo futuro e na distinção com relação à forma ‘sê’, de tempo presente. Abaixo,
verificamos o paradigma flexional de ‘ser’ no futuro do presente e no futuro do
pretérito:
(56)
Eu
Você ~ Tu
Ele
Nós ~ A gente
Vocês
Eles
serei
será ~serás
será
seremos
sereis
serão
(57)
Eu
Você ~ Tu
Ele
Nós ~ A gente
Vocês
Eles
seria
seria ~ serias
seria
seríamos ~ seria
seriam
seriam
Nas formas verbais do imperativo e do presente do subjuntivo, a forma ‘seja’
ocorre na maior parte do paradigma alternando com ‘sê’, realizada apenas na P2 do
imperativo afirmativo. Observem-se abaixo as conjugações do presente do subjuntivo,
imperativo negativo e imperativo afirmativo, respectivamente:
86
(58)
Eu
Você ~ Tu
Ele
Nós ~ A gente
Vocês
Eles
seja
seja ~ sejas
seja
sejamos ~ seja
sejam
sejam
(59)
Você ~ tu
Nós
Vocês
não seja ~ não sejas tu
não sejamos
não sejam
(60)
Você ~ tu
Nós
Vocês
seja ~ sê
sejamos
sejam
Como apontam Illari & Basso (2009, p. 169), na maior parte do Brasil, ‘você’ é
o pronome de P2:
“Há, no total, em PB, três formas de expressar a segunda
pessoa: (i) pronome tu + verbo de segunda pessoa: tu és / tu
vais; (ii) pronome tu + verbo de terceira pessoa: tu é / tu vai;
(iii) pronome você e verbo de terceira pessoa: você é / você vai.
Uma ou outra das duas primeiras soluções prevalece conforme
a região nos três estados da região Sul. Na fala carioca,
encontramos a segunda e a terceira. Nas regiões Norte e
Nordeste, também encontramos (i) e (ii). A solução com você +
verbo de terceira pessoa prevalece no restante do país.”
Nas variedades em que prevalecem as estratégias (ii) e (iii), só há uma forma de
radical: ‘seja’, para o verbo ‘ser’, no presente do subjuntivo e nos imperativos, pois a P2
do imperativo afirmativo fica da seguinte maneira: (i) ‘seja você’ ou (ii) ‘seja tu’. Vejase, por fim, o paradigma do futuro do subjuntivo:
87
(61)
Eu
Você ~ Tu
Ele
Nós ~ A gente
Vocês
Eles
for
for ~ fores
for
formos ~ for
forem
forem
A forma ‘fo/R/’ marca a noção de futuro do subjuntivo. O falante do português,
ao ouvir essa sequência, reconhece a noção temporal expressa. O verbo ‘ter’ é um outro
exemplo de fusão por raízes supletivas; nesse verbo, os conteúdos amalgamados são os
mesmos do verbo ‘pôr’:
(62)
(i) ‘te/N/’: ocorre nos tempos que expressam presente: presente, dos modos indicativo e
subjuntivo, e imperativo;
(ii) ‘ti/N/’: forma de radical do pretérito imperfeito do indicativo;
(iii) ‘tiv’: formas de radical dos tempos pretérito perfeito do indicativo, pretérito
imperfeito do subjuntivo, pretérito mais-que-perfeito do indicativo. Na P3 do pretérito
perfeito, ocorre ‘teve’;
(iv) ‘tive/R/’: forma que marca o futuro do subjuntivo. Defendemos ser esta forma que
marca futuro do subjuntivo, mesmo sabendo, que, historicamente, a forma de radical é
‘tiv-’. Acreditamos que o falante, hoje em dia, distingue, em sua gramática
internalizada, ‘tiv-’, expressando passado e ‘tive/R/’, indicando futuro do subjuntivo.
Acreditamos na hipótese de que conteúdos diferentes costumam ter expressões formais
também diferentes;
(v) ‘te/R/’: forma que marca futuro do presente e do futuro do pretérito.
88
No verbo ‘ver’, a fusão ocorre da seguinte forma: ‘vej-’ indica tempo presente,
ocorrendo no presente do indicativo, no presente do subjuntivo e nos imperativos. Essa
forma alterna com ‘ve’ (vês, vê, veem); os tempos que expressam pretérito (pretérito
imperfeito do indicativo, pretérito perfeito do indicativo, pretérito mais-que-perfeito do
indicativo e pretérito imperfeito do subjuntivo) têm uma forma de radical específica,
‘vi-’, o que mostra que a noção de tempo passado é amalgamada no paradigma verbal
do verbo ‘ver’. No futuro do presente e no futuro do pretérito, ocorre a forma ‘ve/R/’.
Mesmo sabendo que o segmento ‘r’ faz parte das desinências ‘-re’, ‘-ra’ (futuro do
presente) e ‘-ria’, ‘-rie’ (futuro do pretérito), formalizamos ‘ve/R/’ indicando futuro,
assim como Gonçalves faz com o verbo ‘pôr’. Como o falante sempre verifica a
realização da vibrante em todo o paradigma verbal do português, esse segmento passa a
auxiliar na expressão de futuro. Já no futuro do subjuntivo, a forma é ‘vi/R/’.
Todos os casos de fusão levada às últimas consequências demonstrados são de
2ª conjugação. Na 3ª, há dois verbos que também passam por esse tipo de fusão: ‘ir’ e
‘vir’. O verbo ‘ir’ apresenta, nos tempos que indicam presente, as formas ‘vou’, ‘vai’,
‘va-’ e ‘vão’, sendo que ‘vou’ só ocorre no presente do indicativo; no pretérito
imperfeito do indicativo, ocorre a forma ‘ia’, o que demonstra ser a noção desse tempo
amalgamada ao radical. Os outros tempos que expressam passado (pretérito mais-queperfeito do indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo e pretérito perfeito do
indicativo) apresentam as formas de radical ‘fo-’, ‘foi’ e ‘fu-’, sendo que a última só
ocorre na P1 do pretérito perfeito do indicativo. Nos tempos que expressam futuro, é
realizada a forma ‘i/R/’: ‘irei’, ‘irá’; ‘iria’, ‘iríamos’; já a noção de futuro do subjuntivo
é marcada pela forma ‘fo/R/’.
No verbo ‘ir’, verificamos fusão de presente através da forma ‘ve/N/-’ no
presente do indicativo, no imperativo e no presente do subjuntivo. O futuro do presente
89
e o futuro do pretérito são marcados por ‘vi/R/’: ‘virei’, ‘virá’; ‘viria’, ‘viríamos’. No
pretérito imperfeito do indicativo, ocorre ‘vi/N/’, forma que também ocorre na P1 do
pretérito perfeito do indicativo. A noção de pretérito ainda é amalgamada nos tempos
pretérito perfeito do indicativo, pretérito mais-que-perfeito do indicativo e pretérito
imperfeito do subjuntivo por ‘vie-’. A forma ‘veio’, que ocorre na P3 do pretérito
perfeito, amalgama os conteúdos pretérito perfeito + indicativo + P3. A noção de futuro
do subjuntivo é marcada pela forma ‘vie/R/’.
Os seis casos de fusão por raízes supletivas explicitados nesta seção – ‘pôr’,
‘ser’, ‘ter’, ‘ver’, ‘ir’ e ‘vir’ – são exemplos de verbos monossilábicos. Defendemos a
ideia de que a fusão levada às últimas consequências só ocorre com formas infinitivas
monossilábicas, o que reforça a uma hipótese defendida por Gonçalves: quanto menor
uma forma, maior a probabilidade de haver distinção formal, já que a aplicação de
afixos a um monossílabo torna muito provável a ocorrência de uma grande alteração
formal.
4.4. Palavras finais
Neste capítulo, demonstramos os variados tipos de fusão de conteúdos verbais
que ocorrem no português. Houve ênfase na abordagem da fusão por alternância
vocálica, mas também foram analisadas outras inúmeras formas de fusão acarretadas
por processos fonológicos. Esperamos ter comprovado nossa hipótese de que mesmo as
mudanças formais condicionadas fonologicamente estão a serviço de indicar um
conteúdo.
No próximo capítulo, formalizaremos a fusão por alternância vocálica através da
Morfologia Autossegmental (McCARTHY, 1979, 1981; GONÇALVES, 2009) e da
90
Geometria de Traços (CLEMENTS & HUME, 1995). Optamos pela fusão por
alternância vocálica, visto que a consideramos muito produtiva em português, além de
extremamente regular. Nesta Dissertação, já explicitamos o aporte teórico que
fundamenta a operação fusão e os variados casos de fusão no português; desse modo,
comprovamos que a morfologia portuguesa se organiza não só por aglutinação, mas
também por fusão. No próximo capítulo, o objetivo é demonstrar ser possível formalizar
a fusão através do aporte da Morfologia Não-Linear. Dessa maneira, evidenciamos que
os polos formal e semântico do mecanismo fusão são sistematizáveis.
91
5. MORFOLOGIA NÃO-LINEAR: FUSÃO POR ALTERNÂNCIA VOCÁLICA
Como afirma McCarthy (1981), existem dois tipos de morfologia: concatenativa
e não-concatenativa. A morfologia concatenativa consiste no acréscimo de prefixos e
sufixos a bases; nesse tipo de morfologia, os elementos morfológicos são facilmente
recuperáveis: “morfemas concatenativos podem ser recuperados por uma análise de
vocábulos na direção esquerda-direita ou direita-esquerda buscando-se constituintes
recorrentes, possivelmente com constante sentido ou função” (McCARTHY, 1981:
373). Essa estratégia de buscar partes recorrentes com determinado sentido ou função é
também chamada de comutação (CÂMARA JR., 1970).
Já a morfologia não-concatenativa sempre foi colocada à margem dos estudos
estruturalistas. As operações não-lineares são consideradas, segundo McCarthy (1981),
como resíduos das operações que podem ser analisadas por comutação: “esse status de
resíduo atribuído à morfologia não-concatenativa nas análises estruturalistas se
estende às teorias gerativistas também” (MCCARTHY, 1981: 373). Há vários
exemplos dessas operações consideradas como resíduos pela literatura – reduplicação,
infixação, fusão, entre outros.
Como afirma McCarthy (1981), o status de resíduo dado às operações nãolineares não ocorre por escassez de dados; algumas línguas têm processos nãoconcatenativos como modo de organização prioritário ou até mesmo como o único
modo de organização. A morfologia verbal portuguesa, apesar de considerada
aglutinativa, organiza-se também por fusão, como demonstramos nesta Dissertação.
Esse processo sempre foi deixado à margem dos estudos morfológicos. A alternância
vocálica, por exemplo, geralmente, é considerada como um processo que se reduz a
pouquíssimos casos. A improdutividade atribuída à alternância vocálica é um exemplo
92
de como operações não-concatenativas são consideradas resíduos. No Capítulo 4,
evidenciamos que a fusão por alternância vocálica é frequente na informação temporal
de presente (‘j[ɔ]go’) e na informação número-pessoal de P1 (‘f[i]z’) e de P3 (‘f[e]z’;
‘ac[ɔ]de’) ou no reforço número-pessoal de P1 (‘ac[u]do’). Além disso, esse padrão
vocálico é produtivo, como atestamos no Capítulo precedente através da observação de
vários dados de uso.
Depois de apresentarmos a regularidade e a produtividade da fusão em
português, cabe propor uma formalização para essa operação morfológica. Ao contrário
do acréscimo afixal, por exemplo, não é possível formalizar operações não-lineares por
comutação. De acordo com Gonçalves (2009a), “nos processos concatenativos, a
sucessão linear dos elementos morfológicos pode ser rompida por fusões, intercalações
ou repetições, de modo que uma informação morfológica não se inicia no ponto em que
a outra termina” (GONÇALVES, 2009a: 211-212). Optamos por formalizar a fusão por
alternância vocálica neste Capítulo devido a esse tipo de fusão ser o foco principal da
nossa Dissertação1. Formalizaremos a fusão por alternância vocálica através do aporte
teórico da Morfologia Autossegmental. Na próxima seção, apresentamos algumas
importantes assunções da Morfologia Autossegmental (McCARTHY, 1979, 1981),
para, a seguir, apresentarmos nossa proposta de formalização para o fenômeno ora
priorizado.
1
A fusão por alternância vocálica é a priorizada nesta Dissertação por dois motivos: 1) essa operação
apresenta alta produtividade em português e 2) é o único tipo de fusão que, mesmo como resíduo, é
tratada pela maioria dos autores da literatura morfológica portuguesa, conforme observamos no Capítulo
2.
93
5.1. Morfologia Autossegmental (MCCARTHY, 1979, 1981): fundamentação
teórica e instrumental de análise
A Morfologia Autossegmental surge da necessidade de se solucionarem
problemas na análise das línguas semíticas. McCarthy (1979) propõe essa teoria para
dar conta de processos não-lineares muito comuns nessas línguas, visto que estava
“insatisfeito com as abordagens gerativistas precedentes, as quais requeriam
transformações extremamente complexas para justificar as diferentes formas de
superfície” (GONÇALVES, 2009b: 15-16). A Morfologia Autossegmental fundamentase nas bases da Fonologia Autossegmental (GOLDSMITH, 1976).
A Fonologia Autossegmental surge com a finalidade de descrever o tom nas
línguas tonais. Afirma Gonçalves (2009b) que, “nas línguas tonais, o tom, como o
acento, nas línguas acentuais, é prosódia independente, ou seja, não constitui parte
integrante de segmentos (vogais e consoantes), como analisado em SPE2”
(GONÇALVES, 2009b: 12-13). Desse modo, o tom é representado num tier (camada)
diferente do tier das consoantes e vogais: há, portanto, o tier tonal e o tier segmental.
Mudanças no tier segmental podem não ter nenhuma influência sobre o tier tonal; sendo
assim, é possível que um segmento seja apagado e não haja qualquer mudança em
termos de tom. Gonçalves (2009b: 13) demonstra um exemplo da língua luganda, em
que há apagamento de vogal, mas o tom a ela associada não é afetado:
(01)
kus a e b y o
L
HL
H
k us e b y o
L
H L
H
2
The Sound Pattern of English, de Chomsky & Halle (1968), obra em que se encontram as principais
ideias da Fonologia Gerativa Clássica.
94
Apesar de a vogal ‘a’ de ‘kusa’ (‘comprar’) ser deletada, o tom associado a ela
manteve-se linkado à vogal inicial de ‘ebyo’ (‘aqueles’). Se o tom pertencesse
inerentemente a segmentos, a elisão da vogal levaria ao apagamento do tom H (alto). Na
Fonologia Autossegmental, considera-se que há diferentes tiers, que são organizados e
independentes, mas “associam-se numa estrutura hierárquica e são passíveis de
interação” (GONÇALVES, 2009b: 13). A interação de tiers ocorre através de ligações
(links) dos diferentes tiers com o tier esqueletal (molde esqueletal) por meio de linhas
de associação. No estudo das línguas tonais, afirma-se que vogais e consoantes
pertencem ao tier segmental, enquanto os tons localizam-se no tier tonal. Entre esses
dois tiers, localiza-se o tier esqueletal, ao qual as camadas segmentais e tonais se linkam
através de linhas de associação. Os links são de “via dupla”: assim como os tiers
segmental e tonal se linkam ao molde esqueletal, o molde esqueletal também se linka
aos tiers segmental e tonal. Utilizada inicialmente para pesquisas sobre o tom e,
posteriormente, para estudos de harmonia nasal e harmonia vocálica, a Fonologia
Autossegmental comprova que não é possível dar conta plenamente de fenômenos
fonológicos observando apenas segmentos; há, certamente, outras camadas, além da
segmental, atuando no estrato fonológico. Abaixo, em (02), observamos a interação
entre os tiers segmental, tonal e esqueletal (GONÇALVES, 2009b: 14):
(02)
Tier Tonal
L
H
Tier Esqueletal
C
V
C
V
Tier Segmental
k
u
z
a
95
Com relação ao estrato morfológico, em processos concatenativos, é possível
focalizar apenas a cadeia segmental, porém, em operações não-lineares, lançar mão de
outras camadas enriquece a análise e torna a formalização dos fenômenos possível.
McCarthy (1979), a fim de analisar plenamente os processos não-lineares da morfologia
de línguas semíticas, propõe a Morfologia Autossegmental, um aporte teórico que aplica
as bases da Fonologia Autossegmental à morfologia. As noções, acima explicitadas, de
tiers organizados e independentes que se associam ao molde esqueletal através de links
de associação são incorporadas à descrição do componente morfológico. Através desse
enfoque, McCarthy (1979, 1981) consegue, por exemplo, analisar plenamente a
morfologia do árabe.
A Morfologia Autossegmental segue algumas assunções importantes realizadas
pela Fonologia Autossegmental; uma delas é “a rejeição à restrição de bijetividade,
segundo a qual um segmento se relaciona a uma matriz de traços e cada matriz de
traços representa um – e somente um segmento” (GONÇALVES, 2009b: 14). Como
explicita Gonçalves (2009b: 14), a restrição de bijetividade autoriza apenas a
representação a), abaixo, proibindo as outras quatro:
(03)
a.
X
b. X
x
r
d.
X
0
X
e.
c.
X
r
r
0
X
96
A Morfologia Autossegmental (MCCARTHY, 1979, 1981) rejeita a restrição de
bijetividade; isso faz com que o apagamento de um segmento não leve,
necessariamente, ao desaparecimento dos traços a ele pertencentes; além disso, traços
podem pertencer a mais ou a menos de um segmento. Assim como na Fonologia
Autossegmental, duas restrições atuam no link entre tiers: 1) Princípio de NãoCruzamento de Linhas de associação (PNC) e 2) Princípio de Contorno Obrigatório
(PCO). Segundo o PCO, num mesmo tier, não podem dois elementos idênticos ficarem
adjacentes. Já com relação à PNC, defende-se que, no link entre tiers, não pode ocorrer
cruzamento de linhas de associação.
Apesar de independentes e autônomos, os diferentes tiers associam-se; quatro
princípios regem a ligação entre tiers (GONÇALVES, 2009b: 20):
1. cada posição C e V do tier esqueletal deve associar-se a, pelo menos, uma posição do
tier consonantal e vocálico, respectivamente; assim como cada posição do tier vocálico
e do tier consonantal deve vincular-se a, pelo menos, uma posição do molde esqueletal.
Esse princípio mostra que os tiers consonantal e vocálico precisam vincular-se ao molde
esqueletal, e o molde esqueletal deve vincular-se aos tiers consonantal e vocálico, a
ligação não é de “mão única”, mas de “via dupla”.
2. Elementos melódicos podem ser linkados da direita para a esquerda ou vice-versa.
3. Depois de ocorrer a associação entre tiers, ocorre um princípio chamado Tier
Conflation (Conflação de Camadas), que gera um output, uma forma linearizada.
97
4. Não pode ocorrer cruzamento entre linhas de associação, como prevê o PNC
(Princípio de Não-Cruzamento de Linhas de Associação).
A Morfologia Autossegmental (1979, 1981) possibilita que operações
morfológicas não-lineares sejam descritas e formalizadas de maneira satisfatória. A
noção de camadas independentes (tiers) atuando no estrato morfológico faz com que se
possa verificar a influência de elementos como tom, nasalidade e mutação vocálica em
fenômenos morfológicos. Esses elementos são interpretados como autossegmentos,
pertencentes a tiers que se linkam a outros tiers numa estrutura complexa.
Demonstramos abaixo as palavras de McCarthy (1981: 411) para explicitar a
importância do uso da Morfologia Autossegmental (Root-and-pattern morphology) em
operações morfológicas não-lineares:
“Nós percebemos que o modelo prosódico de morfologia
não somente fornece uma descrição reveladora das
complexidades do verbo em árabe, mas também fornece uma
grande variedade de resultados com relação às propriedades
universais de fenômenos de morfologia não-concatenativa”
5.2. A fusão por alternância vocálica no português
Utilizamos o aporte teórico da Morfologia Autossegmental (1979, 1981) para
tornar possível a formalização da fusão por alternância vocálica no português3, operação
não-linear sistemática e produtiva no paradigma verbal. A mudança na qualidade da
vogal tônica do radical é um expediente morfológico produtivo na informação de tempo
e de número-pessoa, como explicitamos no Capítulo 4. Com relação a número-pessoa, a
3
Gonçalves (2009b) utilizou o aporte teórico da Morfologia Autossegmental para formalizar a alternância
vocálica atuando na oposição entre nomes e verbos e funcionando como expoente secundário de gênero.
98
vogal alta na posição tônica é o expediente de informação de P1 (‘p/u/de’; ‘t/i/ve’), mas
também atua como reforço de P1 (‘ac/u/do’; ‘cons/i/go’). As vogais médias, tanto as
altas como as baixas, informam P3: ‘p/o/de’, ‘t/e/ve’; ‘ac/ɔ/de’ e ‘cons/ɛ/gue’.
Verificamos, então, que diferentes qualidades de altura de vogal: alta, média-alta e
média-baixa atuam na distinção entre P1 e P3. A vogal média-baixa também é
responsável por informar tempo presente: ‘j/ɔ/go’, ‘p/ɛ/go’. Com a finalidade de
representarmos, de forma satisfatória, esses diferentes graus de altura na expressão de
categorias gramaticais, utilizaremos o tratamento de altura vocálica de Clements &
Hume (1995). Esses autores demonstram que é possível tratar as diversas alturas das
vogais fundamentando-se apenas na noção de abertura vocálica. Na próxima seção,
sintetizaremos algumas noções teóricas de Clements & Hume (1995) para,
posteriormente, apresentarmos o seu tratamento para a abertura vocálica.
5.3. Algumas assunções teóricas da Geometria de Traços
Como explicitam Clements & Hume (1995), em modelos lineares da teoria
gerativista, segmentos são representados como conjuntos de traços não-ordenados. Cada
segmento corresponde a uma matriz de traços, assim como cada matriz corresponde a
um segmento; em outras palavras, ocorrem relações bijetivas (de um para um) entre
conjunto não-ordenado de traços e unidade sonora. Dessa forma, traços não se associam
a domínios menores ou maiores que um segmento. Clements & Hume (1995)
evidenciam que a noção de bijetividade não se mostra efetiva, visto que ocorrem
relações não-lineares (não-bijetivas) entre traços e sons nas línguas. Utilizando o
exemplo de línguas tonais, os autores afirmam que dois ou mais tons podem se ligar a
99
uma sílaba; um tom pode espraiar-se por mais de uma sílaba ou mesmo não se associar
a nenhum segmento.
Os autores afirmam que, devido a essas evidências, surgem teorias não-lineares,
como a de Goldsmith (1976). Essa teoria, já explicitada nesta Dissertação, elimina a
restrição de bijetividade, afirmando que traços que se associam a mais ou menos de um
segmento devem se organizar em camadas autossegmentais próprias (tiers). Outra teoria
não-linear que surge é a Geometria de Traços (CLEMENTS, 1985). Como evidencia
Gonçalves (2009b), essa teoria origina-se da Fonologia Autossegmental em
consequência de estudos sobre fenômenos como a harmonia nasal e a harmonia
vocálica. Na Geometria de Traços, também são utilizados os Princípios de NãoCruzamento de Linhas de Associação (PNC) e de Contorno Obrigatório (PCO),
originados na Fonologia Autossegmental (GOLDSMITH, 1976).
Em Clements & Hume (1995), demonstra-se que conjuntos de traços formam
constituintes; comprova-se que determinado grupo de traços é um constituinte quando
se verifica ocorrência de regras fonológicas. Operações como espraiamento ou
desligamento de regras fonológicas são evidências da existência de um conjunto
organizado de traços: as regras só se espraiam, por exemplo, para os traços que fazem
parte do constituinte. Os traços são formalizados por nós; nos vocoides (vogais), por
exemplo, o constituinte vocálico é um nó, que se divide em outros dois nós: local de V e
abertura, como vemos abaixo, em (04):
(04)
vocálico
abertura
local de V
100
5.3.1. O nó de abertura e a interpretação de altura vocálica
Clements & Hume (1995), fundamentando-se em trabalhos anteriores de
Clements, propõem que a altura seja entendida através de abertura vocálica. Os autores
postulam um traço [aberto] – [+aberto] ou [-aberto] – para indicar os variados graus de
altura. O traço [aberto] é organizado em várias camadas numa escala. A camada 1 é
responsável por atribuir às vogais um registro primário de altura, sendo [-aberto]
relativamente alto e [+ aberto] relativamente baixo. Aplicando as ideias de Clements &
Hume (1995) ao quadro vocálico do português, assumimos que as vogais /i/ e /u/ têm a
camada 1 como [-aberta] ([-aberto 1]), já /a/ recebe [+aberto] na camada 1. As vogais
médias (/e/ e /o/) também são [-aberto1]. Abaixo, verificamos como a abertura vocálica
fica na camada 1:
(05) Camada 1:
Altas (/i/ e /u/)
Médias (/e/ e /o/)
Baixa (/a/)
-
-
+
Não basta a camada 1 para expressar as diferentes alturas vocálicas; o traço
[aberto] precisa organizar-se em outras camadas secundárias a fim de indicar a diferença
entre médias (/e/, /ɛ/, /o/ e /ɔ/) e altas (/i/ e /u/) e entre médias-baixas (/ɛ/ e /ɔ/) e
médias-altas (/e/ e /o/). Clements & Hume (1995) demonstram que, na camada 2, as
vogais altas são novamente [-aberto] e as baixas novamente [+aberto]; as vogais médias
(/e/ e /o/), refletindo o seu caráter intermediário entre baixas e altas, recebem [+aberto]:
101
(06)
Abertura
Camada 1
Camada 2
Altas (/i/, /u/)
-
Médias (/e/ e /o/)
+
Baixa (/a/)
+
+
Com a organização do traço [aberto] em duas camadas, é possível distinguir as
vogais médias das altas e das baixas. Todavia, não é possível fazer distinções entre
graus nas vogais médias. No português, as vogais médias subdividem-se nos tipos
média-alta e média baixa; precisamos, então, demonstrar a ligação de [aberto] em uma
nova camada. Será a distinção na camada 3 que diferenciará as vogais médias-baixas
das médias-altas. Através das assunções de Clementz & Hume (1995), postulamos que,
na camada 3, as vogais altas recebem o traço [-aberto] e as baixas, [+aberto]. Sendo
assim, as vogais altas definem-se como [-aberto 1, -aberto 2, -aberto 3] e as vogais
baixas como [+aberto 1, + aberto 2, +aberto 3]. As vogais médias-altas, com [-aberto]
na camada 1 e [+aberto] na camada 2, tem traço [-aberto] na camada 3 distinguindo-se
das médias-baixas, com [+aberto] na camada 3. Dessa forma, através do link do traço
[aberto] em três camadas diferentes, é possível dar conta dos quatro níveis de altura do
português: baixo, médio-baixo, médio-alto e alto. Isso torna evidente que, através da
noção de traço de abertura e sua ligação em camadas, é possível abrir mão da ideia de
altura vocálica.
Vieira e Battisti (2005, p. 181), fundamentadas em Wetzels (1992, p. 22),
expõem um quadro vocálico do português segundo as assunções da Fonologia
Autossegmental. O quadro vocálico apontado é idêntico ao que acabamos de explicar
acima:
102
(07)
Abertura
i/u
e/o
ɛ/ɔ
a
aberto 1
-
-
-
+
aberto 2
-
+
+
+
aberto 3
-
-
+
+
Verificamos, então, que, em português, o traço [+aberto 1] é responsável por
indicar a altura baixa e [-aberto 2] diferencia o nível alto. Para reconhecer as alturas
médias, é preciso observar a ligação de [aberto] na camada 3. Desse modo, verificamos
que a altura média-baixa é indicada pelo traço [+aberto 3] e a média-alta por [-aberto 3].
5.4. Formalização da operação fusão por alternância vocálica no paradigma
verbal
No modelo item-e-arranjo (estruturalista), não é possível formalizar a mudança
na qualidade da vogal atuando como expoente de informação gramatical, já que o
conteúdo gramatical, nesse caso, não é disposto linearmente através de afixos, mas por
mudança fonológica no radical. Utilizando o instrumental de análise da Morfologia
Autossegmental (1979, 1981), demonstramos que a mudança na qualidade vocálica
como expoente de conteúdo gramatical ocorre porque a abertura vocálica pertence a
uma camada autônoma (tier), diferente, por exemplo, do tier de radical4, que é
responsável por manifestar conteúdo lexical.
4
Optamos por ‘tier de radical’ em detrimento de ‘tier de raiz’, pois, em toda a Dissertação, ao
descrevermos mudanças na base, utilizamos o termo ‘radical’.
103
Para demonstrar como diferentes graus de altura podem manifestar conteúdos
gramaticais (grau médio-baixo: presente; alto: P1; médio-baixo e médio-alto: P3),
utilizaremos noções referentes ao traço [aberto] expostas por Clements & Hume (1995).
Links da vogal tônica com diferentes especificações do traço [aberto], do tier de
abertura, são responsáveis por manifestar conteúdos gramaticais de NP ou tempo.
5.4.1. Fusão por alternância vocálica: conteúdo de presente
Nesta Dissertação, formalizamos a informação de presente por alternância
vocálica em formas do presente do indicativo. Quatro tiers atuam na fusão de presente
por alternância vocálica. O tier de radical é responsável por informar o conteúdo lexical
do verbo e é plenamente especificado para todos os seus segmentos, exceto para a vogal
(V), que se encontra na sílaba tônica, referenciada como [-aberto 1, +aberto 2], por se
tratar de uma média. A vogal em questão não é previamente especificada para [aberto
3], pois é essa indicação que diferencia os dois tipos de médias em português. Além dos
tiers de radical e de abertura vocálica, também é relevante o tier do formativo final (tier
da vogal da borda direita). Esse tier representa diferentes elementos morfológicos na
estrutura do verbo no presente do indicativo: vogal temática (joga), afixo númeropessoal (jogo). A outra camada autônoma existente é o tier esqueletal, ao qual os demais
tiers devem se linkar. A direção do mapeamento é esquerda-direita; os diferentes
segmentos da raiz linkam-se, um a um, ao tier esqueletal. A vogal média
subespecificada (doravante indicada pelo símbolo V) linka-se, no molde esqueletal, ao
traço [aberto 3] da camada de abertura vocálica5. Assim, a vogal tônica do radical
assume a altura média-baixa para indicar presente, especificando, portanto, como
[+aberto 3] nessa camada. O tier borda direita não atua como expoente de informação
5
A vogal especifica-se como média-baixa quando [+aberto 3], da camada de abertura, e V, do radical, são
linkados na mesma posição do tier esqueletal.
104
de presente, já que esse conteúdo tem como expoente único a especificação positiva de
[aberto 3]. Apresentamos, abaixo, o modelo de formalização para a informação de
presente por alternância vocálica. Os quatro expoentes morfológicos em questão são
representados por quatro tiers diferentes, como se vê em (08), formalização na qual a
letra grega µ representa estrutura morfológica:
(08)
abertura
(verbo no presente)
µ
[+aberto 3]
borda direita
µ
tier esqueletal
x x x
radical
a V b
V
µ
No modelo acima, utilizamos ‘a’, ‘b’, a fim de representar genericamente os
segmentos do radical; V representa a vogal subespecificada quanto ao traço [aberto 3].
Abaixo, em (09), representamos dados como j/ɔ/go, j/ɔ/ga:
105
(09)
abertura
(verbo no presente)
µ
[+aberto 3]
borda direita
tier esqueletal
radical
µ
x x x
V
/Ʒ/ V /g/
µ
O link da vogal da sílaba tônica do radical com [+aberto 3], da camada de
abertura vocálica, também ocorre com a série anterior, como demonstramos abaixo, em
(10), o que confirma o fato de especificações como [labial], [coronal] e [dorsal] não
serem diretamente relevantes à expressão morfológica ora em foco, pois tanto as médias
recuadas (posteriores) quanto as não-recuadas (anteriores), caso linkadas a [+aberto 3],
expressam presente:
106
(10)
abertura
(verbo no presente)
µ
[+aberto 3]
borda direita
tier esqueletal
radical
µ
x x x
V
/p/ V /g/
µ
Essa formalização demonstra a atuação de [+aberto 3] em dados como ‘p/ɛ/go’ e
‘p/ɛ/ga’. A informação de presente através do link da vogal subespecificada com
[+aberto 3] é uma estratégia produtiva e isso é comprovado pelo uso corrente de formas
como ‘r/ɔ/bo’ e ‘r/ɔ/ba’, ‘p/ɔ/so’ e ‘p/ɔ/sa’, ‘ag/ɔ/ro’ e ‘ag/ɔ/ra’, ‘est/ɔ/ro’ e ‘est/ɔ/ra’,
‘rep/ɔ/so’ e ‘rep/ɔ/sa’, ‘n/ɔ/ivo’ e ‘n/ɔ/iva’, ‘pern/ɔ/ito’ e ‘pern/ɔ/ita’, ‘end/ɛ/uso’ e
‘end/ɛ/usa’, ‘esp/ɛ/lho’ e ‘esp/ɛ/lha’, ‘vel/ɛ/jo’, ‘vel/ɛ/ja’, ‘b/ɛ/ro’ e ‘b/ɛ/ra’, ‘int/ɛ/ro’ e
‘int/ɛ/ra’, ‘pen/ɛ/ro’ e ‘pen/ɛ/ra’, entre outros exemplos explicitados no Capítulo 4.
Demonstramos, abaixo, como ficaria o link entre camadas no dado ‘p/o/sa’ e a
consequente linearização através de TC (tier conflation – conflação de camadas):
107
(11)
abertura
(verbo no presente)
[+aberto 3]
borda direita
tier esqueletal
radical
/a/
x x x
/p/ V /z/
V
TC
→
x x x
V
/p/ /ɔ/ /z/ /a/
Os segmentos do tier de radical ligam-se, na direção esquerda-direita, ao tier
esqueletal; /p/ associa-se ao primeiro elemento ‘x’ do tier esqueletal; a vogal liga-se à
segunda posição ‘x’ do molde. Nessa mesma posição do molde esqueletal, linka-se
[+aberto 3], do tier de abertura vocálica, fazendo com que a vogal seja especificada
como média-baixa. A vogal /a/, do tier borda direita, linka-se à última posição do molde
esqueletal (V). Após o link entre as quatro camadas, ocorre a atuação de TC, gerando
uma forma linearizada (output). A forma linearizada é ‘/pɔza/’, mas poderia também ser
‘/pɛza/’, visto que o link da vogal com a camada de abertura só especifica graus de
altura vocálica. Tanto a vogal média-baixa anterior como a posterior, em posição tônica,
são expoentes da informação de presente; ‘/pɛza/’ é uma forma atestada na língua e
manifesta esse conteúdo.
Apresentamos abaixo uma formalização – da informação de presente por
alternância vocálica – que serve aos dados ‘p/ɔ/so’, ‘p/ɔ/sa’, ‘p/ɛ/so’ e ‘p/ɛ/sa’:
108
(12)
µ
abertura
(verbo no presente)
[+aberto 3]
borda direita
µ
tier esqueletal
radical
x x x
V
/p/ V /z/
µ
A formalização serve aos quatro dados por dois motivos. O primeiro já foi
demonstrado acima: quando a vogal (V), do tier de radical, e a especificação [+aberto
3], do tier de abertura, são associados na segunda posição do tier esqueletal, a vogal
tônica do radical pode ser anterior (/ɛ/) ou posterior (/ɔ/). O segundo motivo relacionase ao fato de o tier borda direita poder representar diferentes elementos morfológicos:
vogal temática –a (/a/) ou afixo número-pessoal -o(/U/).
5.4.2. A fusão número-pessoal no padrão A
Como demonstramos no Capítulo 4, no padrão A, a alternância vocálica ocorre
no pretérito perfeito do indicativo e é o único expoente de informação número-pessoal:
‘t/i/ve’ e ‘t/e/ve’, ‘f/i/z’ e ‘f/e/z’, ‘p/u/de’ e ‘p/o/de’. Nesse padrão, a vogal da sílaba
tônica do radical é alta em P1 e média-alta em P3. A vogal tônica do radical é
previamente especificada para [-aberto 1, -aberto 3], sendo [aberto 2] responsável por
109
definir a vogal como alta ou média-alta. Ilustramos, abaixo, o modelo de formalização
para a alternância vocálica nesse padrão A para P1:
(13)
abertura
(P1)
µ
[-aberto 2]
tier esqueletal
x x x x
radical
a V b c
µ
Na informação de P1 no padrão A, atuam três tiers: radical, abertura e molde
esqueletal. Da esquerda para a direita, ‘a’ linka-se à primeira posição do tier esqueletal;
na segunda posição do molde, onde se encontra, no modelo acima, a vogal em sílaba
tônica, linkam-se a posição V, do radical, e [-aberto 2], da camada de abertura. Dessa
forma, a vogal, previamente especificada como [-aberto1, -aberto 3], atualiza-se como
alta. Como demonstrado na formalização, é a camada de abertura a responsável por
manifestar o conteúdo número-pessoal. Posteriormente, o link do radical com o tier
esqueletal continua, fazendo com que ‘b’ se anexe à terceira posição do molde
esqueletal e ‘c’, à quarta posição. Caso haja mais segmentos no radical, mantém-se a
ligação com o molde esqueletal. O modelo acima evidencia que os segmentos do
radical são especificados, exceto a vogal tônica, que, antes da associação com [aberto
110
2], pode ser alta ou média-alta; a ligação da vogal com a camada de abertura no tier
esqueletal especifica a vogal como alta e, consequentemente, manifesta a informação de
P1. Demonstramos, abaixo, a formalização de ‘t/i/ve’:
(14)
abertura
(P1)
µ
[-aberto 2]
tier esqueletal
x x x x
radical
/t/ V /v/ /I/
µ
Com a formalização de ‘t/i/ve’, fica evidente que a especificação da vogal como
alta é o expediente da informação de P1, ocorrendo também com a série posterior (p.
ex., ‘p/u/de’), o que novamente confirma serem as especificações de Ponto-deV
([coronal], [labial], [dorsal]) irrelevantes nesse caso. [-aberto 2], da camada de abertura,
ao se linkar com a vogal (V) no tier esqueletal, faz com que ela se especifique como alta
– /u/ ou /i/ – e essa altura manifesta a noção de P1. A formalização para P3 no padrão A
é semelhante à de P1; a única alteração é o traço presente no tier de abertura. Como é a
vogal média (t/e/ve ou p/o/de) a responsável por informar P3, a especificação na camada
111
de abertura que se linka à vogal (V) tônica do radical é [+aberto 2], como ilustramos a
seguir, em (15):
(15)
µ
abertura
[+aberto 2]
(P3)
tier esqueletal
x x x x
radical
a V b c
µ
Os segmentos do radical associam-se ao tier esqueletal. O link no tier esqueletal
da vogal (V), na sílaba tônica do radical, com [+aberto 2], do tier de abertura, é o
expoente da informação de P3. Observe-se baixo o dado abaixo o dado ‘t/e/ve’:
(16)
abertura
[+aberto 2]
(P3)
tier esqueletal
x x x x
radical
/t/ V /v/ /I/
TC
→
x
x
x x
/t/ /e/ /v/ /I/
112
Representamos, em (16) os links entre as três camadas autônomas (abertura,
molde esqueletal e radical) e a consequente linearização através de TC. As estruturas
morfológicas de abertura e de radical, devidamente representadas por µ, linkam-se ao
tier esqueletal. Esse padrão A é produtivo em língua portuguesa; verificamos usos como
‘tr/u/xe’ (P1) e ‘tr/o/xe’ (P3); ‘c/u/be’ (P1) e ‘c/o/be’ (P3); ‘s/u/be’ (P1) e ‘s/o/be’ (P3).
Ilustramos abaixo a formalização em ‘tr/u/xe’ e ‘tr/o/xe’ respectivamente. Observe-se
que a especificação negativa de [aberto 2] manifesta P1 e a positiva, P3, o que confirma
a relevância desse traço na expressão de número-pessoa em português:
abertura
[aberto 2]
µ
[-] P1
abertura
[aberto 2]
µ
[+]P3
tier esqueletal
x x x x x
tier esqueletal
x x x
radical
/t/ /ɾ/ V /s/ /I/
radical
/t/ /ɾ/ V /s/ /I/
µ
µ
5.4.3. A fusão número-pessoal no padrão B
Como demonstramos no Capítulo 4, o padrão B de fusão por alternância
vocálica ocorre no presente do indicativo. Nesse padrão, vogal média-baixa na sílaba
tônica do radical manifesta o conteúdo P3 (‘cons/ɛ/gue’, ‘desc/ɔ/bre’) e vogal alta na
sílaba tônica do radical é o expoente secundário de informação número-pessoal,
113
x x
reforçando a noção de P1, também indicada pelo afixo –o (/U/), como em ‘cons/i/go’,
‘desc/u/bro’. Nesse caso, verificamos a existência de três tiers: radical, abertura e molde
esqueletal6. Todos os segmentos do radical, representados por a, b, c, d, são plenamente
especificados, com exceção da vogal, localizada na sílaba tônica do radical. Como essa
vogal pode ser alta ou média-baixa, especifica-se previamente como [-aberto 1].
Portanto, o traço de abertura manipulado nesse padrão é [aberto 2]. É a especificação
(positiva ou negativa) desse traço a responsável por indicar o conteúdo de númeropessoa.
Representamos abaixo, em (18), o link entre tiers e a consequente linearização
de camadas que gera o output ‘ac/ɔ/de’:
(17)
abertura
[+aberto 2]
(P3)
tier esqueletal
x x
radical
/a/ /k/ V /d/ /I/
x x x
TC
→
x
x x
x x
/a/ /k/ /ɔ/ /d/ /I/
6
Representamos as posições do tier esqueletal como ‘x’ nesta Dissertação, porque não há, em português,
modelos predeterminados de posições CV com determinados conteúdos, como ocorre no árabe. A última
posição – quando linkada a segmentos vocálicos, do tier número-pessoal (como P1 do presente do
indicativo), ou associada ao tier borda direita – é indicada por V (vogal).
114
Há três expoentes de informação morfológica atuando em ‘ac/ɔ/de’: o radical,
que manifesta conteúdo lexical; a abertura vocálica, que manifesta o conteúdo
gramatical de P3, e o tier esqueletal, responsável pelo link entre radical e abertura:
(18)
µ
abertura
[+aberto 2]
(P3)
tier esqueletal
radical
x x
x x x
/a/ /k/ V /d/ /I/
µ
A informação de P3 através do link com [+aberto 2] com a vogal também ocorre
com a série anterior, como se vê em ‘cons/ɛ/gue’:
115
(19)
µ
abertura
[+aberto 2]
(P3)
tier esqueletal
x
radical
/k/ /o/ /N/ /s/ V /g/ /I/
x x x
x x x
µ
A informação de P3 no padrão B é uma estratégia produtiva na língua como
evidenciam dados do tipo ‘v/ɛ/ve’, ‘div/ɛ/de’, ‘corr/ɛ/ge’, expostos no Capítulo 4.
Demonstramos abaixo a formalização de v/ɛ/ve:
116
(20)
abertura
(P3)
µ
[+aberto 2]
tier esqueletal
x x
radical
/v/ V /v/ /I/
x x
µ
Na informação de P1 do padrão B, a manipulação do traço [aberto 2], na
associação com a vogal da sílaba tônica do radical, também é um expoente de
informação morfológica, mas secundário. O conteúdo de P1 manifesta-se pelo afixo –o
e é reforçado pela vogal alta na sílaba tônica do radical. Ilustramos abaixo o modelo de
formalização para o reforço de P1 no padrão B:
117
(21)
µ
abertura
[-aberto 2]
(expoente secundário de P1)
número-pessoa
µ
tier esqueletal
x x x x
radical
a
V
b V c
µ
Na formalização de P1 no padrão B, existem quatro tiers; o radical tem seus
segmentos plenamente especificados (‘a’, ‘b’, ‘c’); apenas a vogal (V), na sílaba tônica
do radical, é subespecificada, ou seja, é previamente especificada para [aberto 1], mas
não-especificada para [aberto 2] . Quando a vogal e [-aberto 2] se linkam na mesma
posição no tier esqueletal, a vogal assume o grau alto, atualizando-se /i/ ou /u/. Além
dos tiers de radical, de abertura e esqueletal, há também o tier de número-pessoa. O link
do formativo –o (/U/), do tier número-pessoal, é o principal expoente da informação de
P1. Como verificamos em ‘ac/u/do’, ‘c/u/bro’, ‘d/u/rmo’, ‘eng/u/lo’, ‘f/u/jo’, ‘pers/i/go’,
‘s/i/rvo’, ‘pref/i/ro’, ‘rep/i/to’, ‘ref/i/ro’, a vogal alta na sílaba tônica do radical atua
118
como um reforço da noção de P1. Isso evidencia um espraiamento7 da noção de P1 do
tier de número-pessoa para o tier de abertura, fazendo com que a vogal alta seja o
expoente secundário do conteúdo de P1. Ilustramos abaixo, em (23), o link entre tiers e
a consequente conflação de camadas (TC) em ‘ac/u/do’:
(22)
abertura
[-aberto 2]
(expoente secundário de P1)
número-pessoa
/U/
tier esqueletal
x x x
radical
/a/ /k/ V /d/
x
V
TC
→
x x x x V
/a/ /k/ /u/ /d/ /U/
Os segmentos do tier de radical linkam-se, um a um, da esquerda para a direita
ao tier esqueletal. /a/ associa-se à primeira posição do molde esqueletal e /k/, à segunda.
A vogal subespecificada vincula-se à terceira posição do tier esqueletal. Nessa mesma
posição, linka-se [-aberto 2], do tier de abertura. Isso leva a que a vogal seja
especificada como alta. Depois, /d/ associa-se à quarta posição do tier esqueletal; na
quinta posição do molde, ocorre o link de /U/, do tier número-pessoal, levando à
manifestação de P1. Devido a um espraiamento do tier de número-pessoa para o tier de
7
O espraiamento é representado na Morfologia Autossegmental (1979, 1981) por linhas pontilhadas. Em
(23) , /U/, do tier número-pessoal, associa-se à vogal final do molde e espraia o conteúdo de P1 para o tier
de abertura.
119
abertura, a qualidade alta da vogal tônica do radical passa a ser o expoente secundário, o
reforço do conteúdo de P1. Depois do link entre camadas, ocorre a atuação de TC,
trazendo à tona a forma linearizada ‘ac/u/do’. Demonstramos abaixo, em (24), os quatro
expoentes morfológicos existentes em ‘ac/u/do’:
(23)
abertura
µ
[-aberto 2]
(expoente secundário de P1)
número-pessoa
µ
/U/
tier esqueletal
x x x x
radical
/a/ /k/ V /d/
V
µ
O padrão B também ocorre com a série anterior como verificamos abaixo, em
(24) e (25):
120
(24)
µ
abertura
[-aberto 2]
(expoente secundário de P1)
número-pessoa
µ
/U/
tier esqueletal
x
radical
/k/ /o/ /N/ /s/ V /g/
x x x x
x
V
µ
(25)
abertura
(expoente secundário de P1)
µ
[-aberto 2]
número-pessoa
µ
/U/
tier esqueletal
x x
radical
/v/ V /v/
x
V
µ
Ilustramos acima a formalização de ‘cons/i/go’ e ‘v/i/vo’, respectivamente em
(24) e (25). É evidente que o link entre camadas com a série anterior se dá da mesma
121
maneira: a vogal assume a característica alta devido ao link com [-aberto 2] no tier de
abertura. Posteriormente, devido a um espraiamento do tier número-pessoal para a
camada de abertura vocálica, a vogal alta, na sílaba tônica do radical, passa a atuar
como reforço de P1.
5.5. Fusão: operação não-linear sistemática e formalizável
Como evidenciamos nesta Dissertação, a fusão (mecanismo não-linear) é uma
operação frequente no paradigma verbal do português. Alterações na base
condicionadas fonologicamente – alternância vocálica, mudança consonantal, inserção
consonantal, ditongação, haplologia – manifestam conteúdos gramaticais na morfologia
do verbo em português.
A fusão, assim como outros processos de Morfologia Não-Linear, são colocados
à margem nos estudos de morfologia de base estruturalista. Um dos motivos para esse
estatuto residual é a impossibilidade de formalizar tais processos através de comutação.
Demonstramos, neste Capítulo, que é possível formalizar a fusão através de um
embasamento teórico que dá conta de fenômenos não-lineares. Utilizando a Morfologia
Autossegmental (1979, 1981) e a manipulação das várias camadas do traço [aberto] de
Clements & Hume (1995), formalizamos um expediente sistemático e muito produtivo
no português: a alternância vocálica.
122
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A operação fusão – que consiste em modificações na base para veicular
conteúdos gramaticais – é muito pouco estudada na literatura morfológica sobre o
português. No enfoque estruturalista, são raríssimos os casos de mudanças formais na
base em que se descreve, também, o polo semântico. Essa contraparte semântica, em
geral, só é explicitada nos casos de alternância vocálica, que, mesmo assim, é tratada
como improdutiva, reduzida a pouquíssimos casos. Os outros casos de modificação na
base são descritos apenas formalmente; os teóricos mencionam todas as regularidades
formais verificadas no paradigma verbal. Verificamos que não só a alternância vocálica,
mas quaisquer mudanças formais na base verbal têm regularidade e sistematicidade e
apresentam uma contraparte semântica: veiculam conteúdos gramaticais. Algumas
dessas mudanças formais, como a ditongação e a alternância vocálica – esta última a
estratégia de fusão priorizada na pesquisa – são produtivas: os falantes aplicam-nas
mesmo quando essas estratégias não estão presentes na norma padrão devido à
necessidade de expressarem formalmente alguma informação gramatical.
Objetivamos demonstrar que a morfologia verbal portuguesa se organiza não só
pela concatenação de afixos a bases, mas também por fusão. Como demonstramos no
Capítulo 4, a fusão é produtiva e regular na língua. Mudanças formais na base verbal,
muitas vezes, motivadas por processos fonológicos – alternância vocálica, ditongação,
mudança consonantal, inserção consonantal, haplologia – indicam informações
semânticas, como tempo (presente, passado e futuro) e número-pessoa (P1 e P3). Em
outras palavras, a morfologia cria padrões de fusão através da fonologia; esses padrões
formais manifestam conteúdos semânticos, o que reforça o pressuposto de que
morfologia e fonologia não são estanques, podendo ser descritas a partir de um
123
continuum (BYBEE, 1985). Outro aspecto observado no trabalho é que alguns dos
chamados zeros morfológicos (ausências formais que indicam significados gramaticais)
postulados pela literatura de inflexão estruturalista são casos de flexão verbal por fusão
que sempre passaram despercebidos.
Com base em Bybee (1985) e Gonçalves (2005), demonstramos como é possível
dar conta do polo semântico do processo morfológico não-linear, a fusão, aqui ententida
como consequência de um alto grau de relevância semântica: conteúdos como tempo e
número-pessoa se fundem no radical por serem relevantes para o significado do verbo.
Com relação ao polo formal da fusão, fundamentando-nos no enfoque da Morfologia
Autossegmental (1979, 1981) e na ideia de que o grau de altura vocálica é definido pelo
link dos traços de abertura (os vários níveis de [aberto]) (CLEMENTS & HUME, 1995),
postulamos uma formalização para os casos de fusão por alternância vocálica.
124
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZUAGA, Luísa. “Morfologia”. In: FARIA, I. H., PEDRO, Emília Ribeiro, DUARTE,
I., GOUVEIA, Carlos A. M. Introdução à Linguística Geral e Portuguesa. 1 ed. ,
capítulo 5, Lisboa, Caminho, 1996.
BATTISTI, Elisa & VIEIRA, Maria José Blaskovski. “O sistema vocálico do
português”. In: BISOL, Leda. Introdução a estudos de fonologia do português
brasileiro. 4 ed., capítulo 5, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2005.
BORBA, Sônia Costa. O aspecto em português. 1 ed. São Paulo, Editora Contexto,
1991.
BYBEE, Joan L. Morphology: a study of the relation between meaning and form. 1 ed.,
v. 9, Amsterdam; Philadelphia, John Publishing Company,1985.
CABRAL, Leonor Scliar. Introdução à Linguística. 5 ed. Porto Alegre, Editora Globo,
1982.
CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da Língua Portuguesa. 1 ed. Petrópolis,
Vozes, 1970.
CARONE, Flávia de Barros. Morfossintaxe. 8 ed. São Paulo, Editora Ática, 1999.
CLEMENTS, G. N. “The geometry of phonological features”. Phonology Yearbook,
London, 2, pp. 225-252, 1985.
CLEMENTS, G. N. & HUME, E. V. “The Internal Organization of Speech Sounds”. In:
GOLDSMITH, J. A. (ed.). The Handbook of Phonological Theory. Oxford, Blackwell
Publishers, pp. 245-306, 1995.
FREITAS, Horácio Rolim de. Princípios de Morfologia. 3 ed. Rio de Janeiro, Presença,
1991.
GOLDSMITH, J. The aims of autosegmental phonology. Bloomington, Indiana, Indiana
University Press, 1976.
GONÇALVES, Carlos Alexandre Victorio. Flexão e Derivação em Português. Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras/UFRJ, 2005.
GONÇALVES, Carlos Alexandre Victorio. “Uma abordagem autossegmental para a
morfologia”. Caderno de Letras da UFF, v. 39, pp. 211-231, 2009a.
GONÇALVES, Carlos Alexandre Victorio. Introdução à morfologia Não-Linear. Rio
de Janeiro, Publit, 2009b.
GONÇALVES, Carlos Alexandre & ALMEIDA, Maria Lucia Leitão de. “Das relações
entre forma e conteúdo nas estruturas morfológicas do português”. In: _____________.
Revista de Estudos Linguísticos e Literários Diadorim. Rio de Janeiro, Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas, UFRJ, pp. 27-55, 2008.
125
GREENBERG, Joseph. “Some universals of grammar with particular reference to the
order of meaningful elements”. 1 ed. In: GREENBER, J. Universals of language.
Cambridge, MA, MIT Press, 1963.
HENRIQUES, Claudio Cezar. Morfologia. 2 ed. Rio de Janeiro, Campus, 2007.
ILARI, Rodolfo & BASSO, Renato. O português da gente: a língua que estudamos, a
língua que falamos. São Paulo, Contexto, 2009.
KEHDI, Valter. Morfemas do Português. 1 ed. São Paulo, Editora Ática, 1990.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça & SOUZA E SILVA, Maria Cecília Pérez de.
Linguística aplicada ao português: morfologia. 5 ed. São Paulo, Cortez, 1989.
LAROCA, Maria de Nazaré carvalho. Manual de Morfologia do português. 1 ed.
Campinas, Pontes; Juiz de Fora, UFJF, 1994.
LOPES, Carlos Alberto Gonçalves. 1 ed. Lições de Morfologia de Língua Portuguesa.
Jacobina, Tipô-Carimbos, 2003.
MCCARTHY, J. Formal problems in semitic phonology and morphology. Ph. D.
Dissertation, MIT, Cambridge, MA, 1979.
MCCARTHY, J. A prosodic theory of nonconcatenative morphology. Linguistic
Inquiry 12, Cambridge, MA, MIT, 1981, pp. 373-418.
MIRA MATEUS; M. H.; BRITO, A. M; DUARTE, I. et al. Gramática da Língua
Portuguesa. 1 ed. Coimbra, Livraria Almedina, 1983.
MONTEIRO, José Lemos. Morfologia Portuguesa. 3 ed. São Paulo, Pontes, 1991.
PETTER, Margarida Maria Taddoni Petter. “Morfologia”. In: FIORIN, José Luiz.
Introdução à Linguística: II Princípios de Análise. 1 ed., capítulo 4, São Paulo, Editora
Contexto, 2003.
REIS, Otelo. Breviário de Conjugação verbal. 41 ed. Rio de Janeiro, Livraria Francisco
Alves S. A, 1982.
RIO-TORTO, Graça Maria. Morfologia Derivacional: teoria e aplicação ao português.
1 ed. Porto, Porto Editora, 1998.
ROCHA, Luiz Carlos de Assis. Estruturas Morfológicas do Português. 2 ed. São Paulo,
WMF Martins fontes, 2008.
ROCHA LIMA, Luiz. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro,
José Olympio, 1975.
SANDALO, Maria Filomena Spatti. “Morfologia”. In: MUSSALIN, F.; BENTES, A.C.
Introdução à Linguística. 2 ed., capítulo 5, v. 1, São Paulo, Editora Cortez, 2000.
126
SANDMANN, Antônio José. Morfologia Geral. 1 ed. São Paulo, Editora Contexto,
1991.
SAPIR, Edward. Language. 1 ed. New York, Harcourt, Brace and World, 1921.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. O aspecto verbal no português. 1 ed. Uberlândia,
Universidade Federal de Uberlândia, 1981.
VILLALVA, Ana. “Estrutura morfológica básica”. In: MIRA MATEUS, M. H; BRITO,
A. M; DUARTE, I. et al. Gramática da Língua Portuguesa. 7 ed. , capítulo 22, Lisboa,
Caminho, 2003.
VIVAS, Vítor de Moura. “Relendo as categorias verbais”. XIII Congresso Nacional de
Linguística e Filologia, 209, Rio de Janeiro, 2009.
VIVAS, Vítor de Moura. “A alternância vocálica no português: regularidade e
sistematização”. Cadernos do NEMP, vol. 1, n. 1, pp.33-44, 2010.
ZANNOTO, Normelio. Estrutura mórfica da língua portuguesa. 5 ed. Rio de Janeiro,
Lucerna; Caxias do sul, Educs, 2006.
WETZELS, W. L. Mid vowel neutralization in Brazilian Portuguese. Cadernos de
Estudos Linguísticos, Campinas, n. 23 , pp. 19-55, 1992.
127
Download