FACULDADE DE LETRAS/ UFRJ VÍTOR DE MOURA VIVAS NOVOS ENFOQUES SOBRE A FLEXÃO VERBAL EM PORTUGUÊS: ABORDAGEM FORMAL E SEMÂNTICA DO MECANISMO FUSÃO Rio de Janeiro Fevereiro de 2011 1 FACULDADE DE LETRAS/ UFRJ NOVOS ENFOQUES SOBRE A FLEXÃO VERBAL EM PORTUGUÊS: ABORDAGEM FORMAL E SEMÂNTICA DO MECANISMO FUSÃO Vítor de Moura Vivas VOLUME ÚNICO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras (Letras Vernáculas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas, na Área de Concentração Língua Portuguesa. Orientador: Prof. Doutor Carlos Alexandre Victorio Gonçalves Rio de Janeiro Fevereiro de 2011 2 Novos enfoques sobre a flexão verbal em português: abordagem formal e semântica do mecanismo fusão Orientador: Prof. Dr. Carlos Alexandre Victorio Gonçalves Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Examinada por: Presidente, Professor Doutor Carlos Alexandre Victorio Gonçalves - UFRJ. Professora Doutora Maria Lucia Leitão de Almeida - UFRJ Professora Doutora Mônica de Toledo Piza - UFRRJ ______________________________________________________________________ Professora Doutora Eliete Figueira Batista da Silveira - UFRJ Professor Doutor Roberto Botelho Rondinini - UFRRJ 3 Nº ?? VIVAS, Vítor de Moura. Novos enfoques sobre a flexão verbal em português: abordagem formal e semântica do mecanismo fusão. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas - Língua Portuguesa)Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. Orientador: Carlos Alexandre Victorio Gonçalves 1. Morfologia. 2 Flexão Verbal. 3. Fusão. 4. Letras – Teses I. Gonçalves. Carlos Alexandre Victorio. (Orientador) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós - Graduação em Letras Vernáculas. III. A fusão de categorias verbais no português. CDD: 4 SINOPSE Abordagem dos padrões de fusão na morfologia verbal portuguesa tendo em vista fundamentação semântica / formal e a sistematicidade / produtividade do processo . 5 Novos enfoques sobre a flexão verbal em português: abordagem formal e semântica do mecanismo fusão Orientador: Carlos Alexandre Victorio Gonçalves Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). O mecanismo fusão, apesar de sistemático e produtivo, está à margem dos estudos de morfologia do português. A fusão é uma operação na qual uma modificação num tema de um vocábulo revela a manifestação de um conteúdo relevante para a base. Para o enfoque estruturalista, qualquer processo que não envolva encadeamento estrito de formas constitui um problema. O foco da Dissertação são as fusões que ocorrem em verbos; demonstramos que a morfologia flexional portuguesa se organiza não só por concatenação de afixos, mas também por fusão. Explicitamos diversos expedientes de fusão – ditongação, mudança consonantal, inserção consonantal, haplologia, alternância vocálica – que manifestam conteúdos de tempo e de número-pessoa. Damos conta do polo semântico utilizando Bybee (1985) e Gonçalves (2005) e formalizamos o fenômeno da alternância vocálica com base em McCarthy (1979, 1981) e Clements & Hume (1995). Rio de Janeiro Fevereiro de 2011 6 New approaches to verbal inflection in portuguese: focus formal and semantic of the mechanism fusion Advisor: Carlos Alexandre Victorio Gonçalves Abstract of Master’s Thesis presented to Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, as a partial fulfillment of the requirements for the degree of Master of Portuguese. The mechanism fusion, although systematic and productive, is outside the morphological studies of Portuguese. The fusion is an operation in which a change in the stem of a word reveals the manifestation of a content relevant. For the structuralist approach, any process that does not involve strict chain of forms is a problem. The focus of the Thesis are the fusions that occur in verbs; we demonstrate that the Portuguese inflectional morphology is organized not only by concatenation of affixes, but also by fusion. We evidence various fusion’s expedients – diphtongization, consonant shift, consonant insertion, haplology, vowel shift – that manifest verbal content of tense and number. We analyse the semantic pole using Bybee (1985) and Gonçalves (2005) and we formalize the phenomenon of vowel shift based on McCarthy (1979, 1981) and Clements and Hume (1995). Rio de Janeiro February 2011 7 AGRADECIMENTOS A Deus, por me abrir sempre os melhores caminhos, permitir-me conhecer as pessoas certas, guiar a minha trajetória pessoal e profissional. Ao Carlos Alexandre, por respeitar a minha opinião e ouvir, atentamente, as minhas ideias desde a Iniciação Científica; por acreditar no meu potencial; por se colocar, em todos os momentos, como um orientador amigo, por fazer suas revisões sempre perfeitas e por ter construído uma produção intelectual de valor estimável, que contribuiu, sobremaneira, à minha Dissertação. Ao meu pai, por, com a minha mãe, ter dado todo apoio a mim desde a infância; por ser um exemplo na área das Letras, que sempre me orgulhou, incentivando-me a enveredar pelos caminhos da Língua Portuguesa. À minha mãe, pela dedicação, paciência e amor demonstrados em cada momento da vida; pelo apoio constante e diário; por, assim como o meu pai, ser um grande exemplo na área do Magistério. Ao meu irmão, por ser um grande amigo em todas as horas. Aos meus tios e primos, por se comportarem como pais e irmãos, me fazem sentir mais seguro e feliz. Aos meus avós (in memoriam), pelo amor e carinho dedicados, tornando-me uma pessoa querida. Aos meus amigos, por, a cada dia, fazerem de mim, uma pessoa melhor nas risadas, nas críticas e nas festas. Aos amigos João Vicente e a Hayla, por terem me ajudado a manusear as ferramentas computacionais ensinando-me a acertar figuras e ajustar traços. Ao amigo Felipe, quase londrino, por ter realizado a revisão do resumo em inglês. 8 A todos os meus Professores de Português da UFRJ, da Graduação e do Mestrado, que, com todo o seu conhecimento e atenção, fizeram com que eu me empolgasse, cada vez mais, com a pesquisa em língua portuguesa e ficasse seguro do caminho a percorrer. À Professora Silvia Rodrigues Vieira, que, no segundo período da Faculdade, me fez ter a certeza de que deveria seguir a trajetória acadêmica. À Professora Maria Lucia Leitão de Almeida, por, numa prova de Monitoria, ter me incentivado a conhecer o NEMP e a pesquisar sobre Morfologia com o Professor Carlos Alexandre Gonçalves levando a que eu me encontrasse nos rumos da pesquisa; além de sempre me dar força e acreditar em mim desde os tempos das aulas de Semântica na Graduação. Aos meus alunos da UFRJ, por me fazerem aprender mais e mais sobre o português com suas dúvidas e interesse, o que muito me auxiliou na elaboração da Dissertação. Ao Professor Mauro José Rocha do Nascimento, que, ao utilizar, na sua Prova de Aula para Professor Adjunto de Língua Portuguesa da UFRJ, alguns aspectos da minha pesquisa sobre fusão, além de me deixar orgulhoso e lisonjeado, incentivou-me a pesquisar mais e mais esse fenômeno. A todas as pessoas, que participaram, de alguma forma, da minha trajetória, ensinando-me lições sobre “viver”. À CAPES, pelos primeiros dezoito meses de apoio financeiro com a Bolsa de Mestrado. À FAPERJ e ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, por terem me concedido a oportunidade de ser Bolsista FAPERJ Nota 10 nos últimos seis meses do Mestrado. 9 “Há um tempo em que é preciso abandonar/ As roupas usadas/Que já têm a forma do nosso corpo/E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares./É o tempo da travessia/E se não ousarmos fazêla/Teremos ficado para sempre/À margem de nós mesmos” (Fernando Pessoa, Tempo de Travessia) 10 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................. 14 2. ENFOQUES SOBRE A ALTERNÂNCIA VOCÁLICA EM PORTUGUÊS .. 18 2.1. Revisando a modificação na base em português.............................. 18 2.2. Irregularidades no tema de pretérito perfeito do indicativo......................... 28 2.2.1. Quanto à vogal temática ............................................................... 28 2.2.2. Alternância vocálica no radical .................................................... 28 2.2.3. Ditongação no radical .................................................................. 28 2.2.4. Realização ou não da nasal .......................................................... 29 2.3. Irregularidades no tema de presente do indicativo ..................................... 29 2.3.1. Mudança da consoante final do radical ........................................ 29 2.3.2. Alargamento da vogal do radical ................................................. 29 2.3.3. Acréscimo de uma consoante final ao radical .............................. 30 2.3.4. Realização da consoante nasal ..................................................... 30 2.4. Irregularidades no futuro ............................................................................ 31 2.5. Verbos anômalos ......................................................................................... 31 2.6. Acertando pontos a partir da Revisão Teórica ............................................ 32 3. MOTIVAÇÃO ENTRE FORMA E CONTEÚDO........................................... 39 3.1.A relevância semântica................................................................................. 39 3.2. Focalizando a fusão de categorias gramaticais ........................................... 43 4. A FUSÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA ..................................................... 49 4.1. A informação de tempo presente................................................................. 50 4.1.1. Alternância vocálica: oposição entre presente do indicativo e pretérito perfeito do indicativo .......................................................................... 52 4.1.2.Vogal média-aberta: informação de presente................................. 52 4.1.2.1. Ditongação na sílaba tônica do radical: informação de presente .................................................................................................. 63 11 4.1.2.2. Mudança na consoante final do radical: fusão da informação de presente .......................................................................... 66 4.1.2.3. Expediente morfológico para informação de presente: fusão ....................................................................................................... 68 4.1.3. Fusão da noção gramatical de pretérito perfeito .......................... 68 4.1.4. Noção de futuro: fusão por haplologia ......................................... 72 4.2. Fusão de número-pessoa ............................................................................ 73 4.2.1. Fusão número-pessoal por ditongação ......................................... 73 4.2.2. Fusão por mudança na consoante final do radical ....................... 75 4.2.3. Fusão número-pessoal por alternância vocálica ........................... 79 4.3. Fusão levada às últimas consequências ...................................................... 83 4.4. Palavras finais ............................................................................................. 90 5. MORFOLOGIA NÃO-LINEAR: FUSÃO POR ALTERNÂNCIA VOCÁLICA .................................................................................................................................. 92 5.1. Morfologia Autossegmental (MCCARTHY, 1979, 1981): fundamentação teórica e instrumental de análise .............................................................................. 94 5.2. A fusão por alternância vocálica no português .......................................... 98 5.3. Algumas assunções teóricas da Geometria de Traços ............................... 99 5.3.1. O nó de abertura e a interpretação de altura vocálica ................ 101 5.4. Formalização da operação fusão por alternância vocálica no paradigma verbal ........................................................................................................................... 103 5.4.1. Fusão por alternância vocálica: conteúdo de presente ............... 104 5.4.2. A fusão número-pessoal no padrão A ........................................ 109 5.4.3. A fusão número-pessoal no padrão B ........................................ 113 5.5. Fusão: operação não-linear sistemática e formalizável ............................ 122 12 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 123 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................... 125 13 I. INTRODUÇÂO No presente trabalho, pretendemos explicitar que a fusão, aqui entendida como alteração na constituição fonológica da base (radical + vogal temática), constitui expoente de informação gramatical, sendo regular e produtiva no português contemporâneo. A morfologia flexional do português não se estrutura apenas por concatenação de afixos; no nosso entendimento, há padrões de fusão responsáveis por manifestar os mesmos conteúdos gramaticais expressos pela adjunção de desinências. Neste trabalho, focalizamos o verbo; desse modo, analisamos fusões nos conteúdos veiculados pelos afixos de MTA (modo-tempo-aspecto) e NP (número-pessoa). A literatura morfológica sobre o português, ao explicar mudanças nos radicais, focaliza apenas o polo formal. Em geral, faz-se uma apresentação exaustiva de paradigmas formais, explicitando eventuais regularidades. Todavia, o polo semântico é desconsiderado. Desse modo, a fusão, produtiva e regular, tende a “escapar” ao olhar do morfólogo. Os únicos casos de mudança no radical que manifestam conteúdo gramatical apontados, com certa frequência, são os de alternância vocálica (morfêmica e submorfêmica): ‘form[o]so’ / ‘form[ɔ]sos’ (submorfema de número plural); ‘form[o]so’ / ‘form[ɔ]sa’ (submorfema de gênero feminino) e ‘av[o]’ / ‘av[ɔ]’ (morfema de gênero); ‘t[i]ve’ / ‘t[e]ve’ (morfema de NP). Para a literatura morfológica tradicional, a alternância vocálica é improdutiva em português e acontece em pouquíssimos casos. Essa visão, apesar de errônea, é comum, porque mudanças formais no radical constituem um problema para o mapeamento biunívoco entre morfe e morfema (AZUAGA, 1996; GONÇALVES & ALMEIDA, 2008). Às vezes, uma informação gramatical não se dá por acréscimo de afixos, mas por reduplicação total ou parcial, encurtamento, mudança na base. Na literatura morfológica 14 de inflexão estruturalista, afixos informam conteúdos; sendo assim, a fusão (assim como os outros processos não-lineares), apresenta-se como uma dificuldade para a descrição formal: esse aporte teórico não consegue formalizar uma informação que não seja dada por encadeamento de formas, além de negligenciar a descrição semântica. O Estruturalismo não oferece instrumentos eficazes para explicar como uma mudança no radical, e não um afixo, manifesta um conteúdo, sendo, por isso mesmo, o próprio expoente da informação morfológica. Pretendemos, nesta Dissertação, explicitar como esses polos se correlacionam na fusão. Defendemos a hipótese de que modificações formais na base verbal, mesmo quando condicionadas fonologicamente, têm uma contraparte semântica: informam tempo (passado, presente, futuro) e número-pessoa (1ª pessoa do singular; 3ª pessoa do singular). Fundamentando-nos em Bybee (1985), para quem a forma de superfície é motivada semanticamente, evidenciamos o aporte que nos permite entender que modificações formais no radical revelam fusões de conteúdos semânticos (polo semântico). Quanto ao polo formal, conseguimos formalizar a fusão por alternância vocálica, principal objeto da nossa Dissertação, através da Morfologia Autossegmental (McCARTHY, 1979; 1981). Nossa Dissertação estrutura-se da seguinte maneira: no capítulo 2, Enfoques sobre a alternância vocálica em português, demonstramos como a literatura morfológica trata esse tipo de mudança no radical de verbos. Geralmente, os autores fazem uma análise exaustiva dos padrões formais na conjugação verbal, evidenciando casos de alternância vocálica (‘fiz’; ‘fez’); mudança da vogal temática (‘ver’; ‘visse’); ditongação no radical (‘passeio’); realização ou não da nasal (‘vim’; ‘vir’); mudança da consoante final do radical (‘perco’; ‘perder’); acréscimo de consoante ao radical (‘vejo’; ‘ver’), mas não abordam a contraparte semântica dessas mudanças formais. A 15 alternância vocálica é o único caso de mudança formal que manifesta conteúdo gramatical geralmente apontado pelos autores: ‘t[i]ve’ / ‘t[e]ve’, ‘f[i]z’ / ‘f[e]z’ (informação número-pessoal); ‘p[o]de’ / ‘p[ɔ]de’ (informação de MTA); ‘t[i]nha’ / ‘t[e]nha’, ‘p[u]nha’ / ‘p[o]nha’ (informação de MTA). Monteiro (1991) explicita também a alternância consonantal que reforça número-pessoa: ‘faço’ / ‘fazes’, ‘digo’ / ‘dizes’, ‘trago’ / ‘trazes’, ‘peço’ / ‘pedes’. De uma forma geral, esses casos são tratados como improdutivos. No capítulo 3, Motivação entre forma e conteúdo, fundamentando-nos em Bybee (1985) e Gonçalves (2005), apresentamos o aporte teórico que nos permite considerar que mudanças formais têm uma contraparte semântica. Assim, demonstramos as causas para as mudanças no radical, que, como ressaltamos, seriam problemas para a abordagem estruturalista. No capítulo 4, A fusão em língua portuguesa, apresentamos diversos casos de fusão na morfologia do verbo; assim, demonstramos que esse processo é sistemático e regular tanto na informação de tempo (passado, presente e futuro) como na informação de número-pessoa (1ª pessoa do singular; 3ª pessoa do singular). No capítulo 5, Morfologia Não-Linear: fusão por alternância vocálica, sintetizamos as principais ideias da Morfologia Autossegmental (McCARTHY, 1979, 1981) e demonstramos como esse modelo oferece instrumental adequado para a representação de processos morfológicos não-lineares. Com base na Morfologia Autossegmental (1979, 1981) e nas assunções de Clements & Hume (1995) para o traço de abertura vocálica, propomos uma formalização para a fusão por alternância vocálica, principal foco de nosso trabalho. Já no capítulo 6, Considerações Finais, sintetizamos os principais aspectos apontados na Dissertação e as conclusões a que chegamos com a pesquisa. 16 Pretendemos, com esta Dissertação, dar conta da sistematização de um processo regular e produtivo na morfologia verbal do português: a fusão. Objetivamos 1) explicitar as variadas estratégias formais de fusão (ditongação, alternância vocálica, mudança consonantal, entre outras); 2) demonstrar como a fusão constitui exemplo de iconicidade na língua; 3) comprovar que alguns zeros morfológicos são casos de fusão que passaram despercebidos pela maior parte dos morfólogos do português e 4) propor uma formalização para a fusão por alternância vocálica. Esta Dissertação evidencia que fenômenos de morfologia não-linear, apesar de considerados marginais pelo enfoque estruturalista, podem ser regulares e produtivos. Esperamos que a pesquisa, mais do que ser uma “semente” para novos trabalhos sobre a fusão, demonstre a necessidade de um olhar mais cuidadoso para processos dessa natureza. 17 2. ENFOQUES SOBRE A ALTERNÂNCIA VOCÁLICA EM PORTUGUÊS Neste capítulo, observamos o tratamento da literatura morfológica sobre o português para a alternância vocálica ou outra mudança na base dos verbos que expressa alguma informação gramatical. Começamos analisando o que há de consolidado sobre esses fenômenos na descrição dessa língua. 2.1. “Passeio” pela tradição morfológica A maioria dos autores tece considerações gerais apenas sobre a alternância vocálica. Essa alternância é tratada ao se falar sobre o morfema e o submorfema alternativo (também chamado substitutivo ou replacitivo). Carone (1999) não apresenta nenhum comentário sobre alternância vocálica e mudança no radical que estejam a serviço da flexão. Kehdi (1990) descreve a alternância vocálica ao tratar dos morfemas alternativos. Distingue o autor três casos de alternância vocálica, afirmando serem bastante frequentes em português. A primeira é a que ocorre entre [e], [ɛ]; [o], [ɔ]. Kehdi (1990) demonstra que essa diferença de timbre ocorre na oposição singular / plural, como em ‘[o]lho’; ‘[ɔ]lhos’, e na oposição masculino / feminino, a exemplo de ‘[e]sse’; ‘[ɛ]ssa’. Tal alternância ocorre também nos verbos e, para o autor, serve à distinção entre a primeira pessoa do singular (b[e]bo) e as outras pessoas que apresentam acento tônico no radical no presente do indicativo (b[ɛ]bes, b[ɛ]be, b[ɛ]bem). A outra alternância apontada por Kehdi (1990) é a que ocorre entre [e], [i]; [o], [u]. Essa diferença, entre vogal média fechada e vogal alta, estabelece oposição entre 18 pronome animado e pronome neutro: aqu[e]le, aqu[i]lo; t[o]do, t[u]do. Essa mesma alternância serve também para a distinção entre primeira e terceira pessoa nos verbos, do pretérito perfeito, com vogal tônica no radical (chamados verbos fortes): ‘f[e]z’, ‘f[i]z’; ‘p[o]s’, ‘p[u]s’. A terceira alternância apontada pelo autor é a que se dá entre [i], [ɛ]; [u], [ɔ]. Esta ocorre em verbos da terceira conjugação e diferencia, no presente do indicativo, a primeira pessoa do singular das demais que apresentam acento tônico no radical: ‘f[i]ro’, ‘f[ɛ]res’, ‘f[ɛ]re’, ‘f[ɛ]rem’. Aponta Kehdi (1990) que a alternância vocálica, em português, é geralmente redundante. Em outras palavras, reforça uma noção já expressa por outro morfema1. Para o autor, os únicos casos em que a alternância é por si só distintiva são os seguintes: (a) indicação de gênero em exemplos como ‘av[o]’, ‘av[ɔ]’; e (b) indicação de pessoa na alternância entre [o], [u]; [e], [i] nos verbos fortes (‘f[e]z’; ‘f[i]z’; ‘p[o]s’, ‘p[u]s’). Esses casos, realmente, não têm uma outra marca, além da alternância vocálica, para auxiliar na oposição funcional. Em outras palavras, não há elemento morfológico adjungido para expressar gênero (a) e número-pessoa (b). Na alternância entre [i], [ɛ]; [u], [ɔ], diferentemente, há uma desinência também atuando na distinção de númeropessoa: ‘f[i]ro’, ‘f[ɛ]res’; ‘ac[u]do’, ‘ac[ɔ]des’. Na terceira pessoa, com relação a ‘f[ɛ]re’; ‘ac[ɔ]de’, é importante levantarmos um questionamento: há uma ausência de marca formal e isso é percebido através da análise do paradigma verbal. Na expressão do presente do indicativo, ‘-o’ indica primeira pessoa do singular; ‘-s’, segunda pessoa do singular, ‘-mos’, primeira do 1 Neste capítulo, quando estamos referenciando abordagens estruturalistas, utilizamos o vocabulário empregado pelos autores e, por isso mesmo, fazemos uso de termos como morfema e submorfema. 19 plural; ‘-is’, segunda do plural; ‘-/N/’2, terceira do plural e, na indicação de 3ª pessoa do singular, atuaria, segundo a tradição estruturalista, um morfe zero. Quando uma ausência formal manifesta o conteúdo de 3ª pessoa, a abertura (‘ac[ɔ]de’) seria o único elemento distintivo ou uma redundância na expressão número-pessoal manifestada, primariamente, pelo morfema zero? Defendemos a hipótese de que a língua busca meios de expressar um conteúdo, através de mudança no radical, quando não há um afixo para realizar a categoria gramatical em questão; a alternância vocálica é um desses meios. Portanto, a informação de 3ª pessoa, em ‘ac[ɔ]de’ não se dá por concatenação de constituintes, mas por modificação na qualidade da vogal tônica do radical. Kehdi (1990) demonstra uma maneira, segundo ele, mais econômica de formalizar a alternância vocálica. Afirma que, por razão de economia descritiva, a melhor estratégia seria estabelecer como formas básicas as de vogal mais aberta. Desse modo, para descrever a alternância na distinção singular / plural dos nomes, bastaria dizer que a vogal se fecha no singular (‘/ɔ/lhos’ → ‘/o/lho’). Se partisse do singular, o autor teria de dar conta de exceções como ‘b/o/lso’, ‘b/o/lsos’, em que a abertura não se faz presente. No paradigma verbal, o mesmo ocorreria, já que, em ‘t/e/mo’; ‘t/e/mes’, não há abertura na segunda pessoa, mesmo sendo um verbo de segunda conjugação. Na verdade, a abertura, em ‘t/e/mes’, não acontece porque, antes de consoante nasal, vogais são realizadas como fechadas e nasalizadas. Partindo da forma com vogal aberta, Kehdi (1990) defende não ocorrer exceção – ‘t/e/mes’ → ‘t/e/mo’; ‘b/ɛ/bes’ → ‘b/e/bo’. Nesses termos, a regra seria a seguinte: a vogal tônica fecha-se na primeira pessoa do singular. 2 Estamos seguindo a proposta de M. Câmara Jr. (1970) para o tratamento da nasalidade vocálica e, consequentemente, para a marca morfológica de 3ª. pessoa do plural. Em muitas obras (p. ex., Monteiro, 1991), admite-se –m como desinência. 20 A proposta de Kehdi (1990) é bastante questionável. Em primeiro lugar, não se observa a economia descritiva desejada, visto que há exemplos em que o singular e o plural têm vogal aberta: ‘s/ɛ/de’, ‘s/ɛ/des’; ‘p/ɔ/rta’, ‘p/ɔ/rtas’; ‘b/ɔ/la’, ‘b/ɔ/las’; ‘m/ɔ/la’, ‘m/ɔ/las’. Além disso, a vogal fechada é o padrão (default): com relação aos nomes, a abertura da vogal é o expoente secundário da noção de plural, coocorrendo com o afixo ‘-s’. Quanto aos verbos, se focalizarmos a realização de vogal média na primeira conjugação, por exemplo, verificamos que a vogal média-fechada (‘/e/’ ou ‘/o/’) é, também, a forma básica (default): ‘s/o/carei’, ‘s/o/quei’, ‘s/o/cava’, ‘s/o/caria’ e ‘s/e/carei’, ‘s/e/quei’, ‘s/e/cava’, ‘s/e/caria’; a vogal aberta (/ɛ/ ou /ɔ/) só ocorre nas formas rizotônicas (‘s/ɔ/co’, ‘s/ɔ/que’, ‘s/ɔ/ca’; ‘s/ɛ/co’, s/ɛ/que’, s/ɛ/ca’). Laroca (1994) também só trata de algum tipo de mudança no radical ao abordar a alternância vocálica; fornece exemplos da alternância vocálica atuando como morfema em verbos, na indicação de número-pessoa e modo-tempo, como em ‘f[i]z’ / ‘f[e]z’; ‘t[i]ve’ / ‘t[e]ve’; ‘est[i]ve’ / ‘est[e]ve’; ‘p[u]de’ / ‘p[o]de’; ‘p[ɔ]de’ / ‘p[o]de’, e em nomes, na indicação de gênero: ‘av[o]’ / ‘av[ɔ]’. A autora expõe a alternância opondo tempos diferentes: ‘p[o]de’ expressa P33 do pretérito perfeito do indicativo e ‘p[ɔ]de’, P3 do presente do indicativo, dado não demonstrado pelos outros autores até então citados. Laroca (op. cit.) não explicita casos de alternância vocálica redundante. Rolim de Freitas (1991) aponta a mudança de vogais em dois momentos de sua análise: na abordagem de morfemas redundantes e na abordagem de morfemas suprafixos (morfemas que, segundo o autor, se constituem unicamente de fonemas suprassegmentais). Para o primeiro tipo de morfema, dá o exemplo de ‘form[ɔ]sas’. Já 3 Utilizaremos, nesta Dissertação, P1, P2, P3, P4, P5 e P6 para nos referirmos às primeira, segunda, terceira pessoa do singular e às primeira, segunda e terceira pessoa do plural, respectivamente. 21 para o segundo4, aponta a alternância opondo nomes com significados distintos (s[e]de / s[ɛ]de) e casos de oposição entre P1 e P3 no pretérito perfeito. Essa última situação é a única apontada por Petter (2003) ao tratar da alternância, explicitada numa seção chamada Processos Morfológicos. Não concordamos com a oposição por alternância vocálica em ‘s[e]de’ / ‘s[ɛ]de’, visto que s[e]de e s[ɛ]de são dois itens vocabulares diferentes com significados também distintos. Lopes (2003) e Zannoto (1986) também abordam mudança no radical ao mencionar a alternância vocálica no tratamento dos morfemas alternativos. Lopes (2003) cita Kehdi (1990) e explicita as três alternâncias vocálicas apontadas pelo autor e afirma, também reforçando Kehdi (1990), que a alternância vocálica costuma ser redundante, excetuando a indicação de gênero em ‘av[o]’ / ‘av[ɔ]’ e a indicação de primeira pessoa do singular e terceira pessoa do singular em alguns verbos irregulares do pretérito perfeito: ‘f[e]z’ / ‘f[i]z’. Zannoto (1986), ao abordar a alternância vocálica, mostra que esta pode ser morfêmica ou submorfêmica e dá exemplos em verbos e nomes. A alternância é morfêmica em casos como ‘av[o]’ / ‘av[ɔ]’, nos nomes, e ‘f[u]i’ / ‘f[o]i’; ‘t[i]ve’ / ‘t[e]ve’; ‘p[u]nha’ / ‘p[o]nha’, nos verbos. A alternância é submorfêmica em exemplos como ‘p[o]rto’ / ‘p[ɔ]rtos’; ‘tij[o]lo’ / ‘tij[ɔ]los’, nos nomes, e ‘f[i]ro’ / ‘f[ɛ]res’; ‘d[u]rmo’ e ‘d[ɔ]rmes’, nos verbos. A alternância opondo pretérito imperfeito do indicativo e presente do subjuntivo em ‘p[u]nha’ / ‘p[o]nha’ é um exemplo novo em relação aos autores já citados. 4 O autor trata como um caso de suprafixo a alternância em ‘[o]vo’ / ‘[ɔ]vos’. Na literatura morfológica, em geral, essa abertura vocálica é tratada como reforço da informação de plural. 22 Sandmann (1991) não explicita a alternância vocálica. A mudança no radical é abordada numa seção chamada Mudanças na base ou no radical. Nessa seção, demonstra que, em processos derivacionais, é frequente a mudança de bases ou radicais. O autor aponta que é comum ocorrer mudanças quando os substantivos terminam em ‘-ção’, ‘-são’ ou ‘–ão’ e cita casos como ‘variacionista’, de ‘variação’; ‘feijoada’, de ‘feijão’. A mudança de base através da passagem de [k] a [s] (‘prático’ [k] → ‘praticidade’ [s]; ‘drástico’ [k]; ‘drasticidade’ [s]) também é explicitada pelo autor. Sandmann (op. cit.) mostra que há mudança de radical em ‘cruzes’; ‘lugares’; ‘males’. Diz ser o radical no singular sem ‘–e’ final (cruz-) ou ‘–i’ final (animal) e o radical no plural com ‘–e’ final (cruze-) ou –i final (animai-). Câmara Jr. (2006) não trataria ‘cruze’; ‘lugare’; ‘male’ como radicais, mas como temas teóricos; outros autores (LAROCA, 1994) alegam que ‘–es’ é responsável pela indicação de número. Monteiro (1991) aborda a alternância vocálica ao tratar da alomorfia. Mostra, então, que a expressão de gênero, nos nomes, pode ser realizada por um morfema alternativo, assim como a indicação de número-pessoa, nos verbos. Desse modo, haveria alomorfia na expressão de gênero e de número-pessoa, pois essas informações podem ser expressas por desinências ou por mudança no radical. Dois exemplos dados já foram aqui citados: distinção entre primeira e terceira pessoa no pretérito perfeito (f[i]z / f[e]z); indicação de gênero em ‘av[o]’ / ‘av[ɔ]’; reforço de número-pessoa: ‘s[u]mo’ / ‘s[o]mes’. Além disso, Monteiro (1991) fala de reforço de número-pessoa por mudança na consoante final do radical (chamada alternância consonantal pelo autor): ‘faço’ / ‘fazes’; ‘digo’ / ‘dizes’; ‘trago’ / ‘trazes’; ‘peço’ / ‘pedes’. Koch & Souza e Silva (1989) apontam para a alternância vocálica ao abordarem a expressão de gênero e número. Mostram ser a alternância vocálica um caso de 23 alomorfia da expressão dessas noções. Na expressão de gênero, em casos como ‘form[o]so’, ‘form[ɔ]sa’; ‘n[o]vo’, ‘n[ɔ]va’, apontam ser a alternância vocálica redundante, já que atuariam dois morfemas: o aditivo e o alternativo. Em exemplos como ‘av[o]’; ‘av[ɔ]’, acontece, para as autoras, alternância vocálica não redundante, visto que ocorre apenas o morfema alternativo. Na expressão de número, as autoras também afirmam ser a alternância vocálica uma alomorfia da expressão de número. Apontam que, na expressão do plural, ocorre morfema alternativo redundante. Assim, em ‘c[o]rpo’, ‘c[ɔ]rpos’; ‘p[o]vo’, ‘p[ɔ]vos’, além da marca de plural, ‘–s’, ocorre o morfema alternativo e, por isso, haveria redundância na informação de número. Como ressaltamos mais acima, Câmara Jr. (1970) considera a alternância que indica uma informação redundante um submorfema e a alternância que, por si só, indica uma informação gramatical um morfema. Dá exemplos em nomes, assim como fazem Koch & Souza e Silva (1989), e mostra a alternância em verbos no pretérito perfeito indicando P1 e P3. Esse exemplo de informação de P1 e P3 através de alternância vocálica também é exposto por Cabral (1982) e a autora chama o morfema realizado por alternância de vogais de replacivo. Numa outra seção do livro, chamada Alteração do Radical, Koch & Souza e Silva (1989) tratam de mudanças no radical. Apontam que o radical de verbos sofre uma alternância vocálica na sílaba tônica, afirmando que essa alternância é regular e ocorre em condições previsíveis. Na primeira conjugação, observam que as vogais abertas, [ɛ] e [ɔ], marcam as formas rizotônicas. Apontam as autoras que isso ocorre na primeira (P1), segunda (P2), terceira (P3) e sexta (P6) pessoa do presente do indicativo e do presente do subjuntivo e na segunda pessoa (P2) do imperativo: ‘l[ɛ]vo’, ‘l[ɛ]vas’, 24 ‘l[ɛ]va’, ‘l[ɛ]vam’ (presente do indicativo) / ‘l[ɛ]ve’, ‘l[ɛ]ves’, ‘l[ɛ]ve’, ‘l[ɛ]vem’ (presente do subjuntivo) / ‘l[ɛ]va’ (imperativo); ‘ch[ɔ]ro’, ‘ch[ɔ]ras’, ‘ch[ɔ]ra’, ‘ch[ɔ]ram’ (presente do indicativo) / ‘ch[ɔ]re’, ‘ch[ɔ]res’, ‘ch[ɔ]re’, ‘ch[ɔ]rem’ (presente do subjuntivo) / ‘ch[ɔ]ra’ (imperativo). No entanto, nada informam sobre a abertura na P3 e na P6 do imperativo: ‘l[ɛ]ve’ / ‘ch[ɔ]re’; ‘l[ɛ]vem’ / ‘ch[ɔ]rem’. Talvez não citem a alternância vocálica em P3 e P6 do imperativo devido à sua identidade formal com o presente do subjuntivo. A abertura da vogal média anterior na sílaba tônica do radical, [ɛ], ocorre, para Mira Mateus et al. (1983), devido à assimilação. Para essas autoras, antes da supressão da vogal temática na P1 do presente do indicativo e nas formas do presente do subjuntivo, há uma assimilação da altura da vogal temática – a (vogal baixa). Koch & Souza e Silva (op. cit.) consideram que [e] e [o] marcariam as formas arrizotônicas. Nessas formas, o acento não se localiza na sílaba tônica do radical, mas na vogal temática (l[e]vamos, l[e]vais; ch[o]ramos, ch[o]rais) ou na vogal do sufixo flexional (l[e]varei, ch[o]rarei.) Ainda abordando a primeira conjugação, demonstram haver alguns verbos que, nas formas rizotônicas do presente do indicativo, do presente do subjuntivo e do imperativo, sofrem uma ditongação, a exemplo de ‘passeio’, ‘passeias’, ‘passeia’, ‘passeiam’ (presente do indicativo) / ‘passeie’, ‘passeies’, ‘passeie’, ‘passeiem’ (presente do subjuntivo) / ‘passeia’ (imperativo). Não apontam para a ditongação nas P3 e P6 do imperativo, que se manifesta da mesma forma que em P3 e P6 do presente do subjuntivo. Com relação à segunda conjugação, mostram as autoras a mesma alternância vocálica: [o], [ɔ]; [e], [ɛ]. Todavia, apontam que a abertura só ocorre nas P2, P3 e P6 do 25 presente do indicativo (b[ɛ]bes, b[ɛ]be, b[ɛ]bem; c[ɔ]rres, c[ɔ]rre, c[ɔ]rrem) e na P2 do imperativo (b[ɛ]be; c[ɔ]rre). A diferença da alternância na segunda conjugação é a seguinte: não ocorre média aberta, [ɔ], [ɛ], na sílaba tônica do radical na P1 do presente do indicativo (‘b[e]bo’; ‘c[o]rro’) nem no presente do subjuntivo (‘b[e]ba’, ‘b[e]bas’, ‘b[e]ba’, ‘b[e]bam’; ‘c[o]rra’, ‘c[o]rras’, ‘c[o]rra’, ‘c[o]rram’). A vogal média-alta [e] só ocorre nas formas em que há síncope da vogal temática – primeira pessoa do singular do presente do indicativo e formas do presente do subjuntivo. Para Mira Mateus et al. (1983), a realização de [e] ocorre por assimilação. A vogal tônica do radical assimila a altura da vogal temática [e], antes de sua supressão. Na terceira conjugação, a alternância, para Koch & Souza e Silva (op. cit.), ocorre nas mesmas circunstâncias da alternância na segunda conjugação. Entretanto, a alternância é entre [o] e [u] / [e] e [i]. Assim P2, P3 e P6 do presente do indicativo e P2 do imperativo possuem vogal [ɛ]: ‘f[ɛ]res’, ‘f[ɛ]re’, ‘f[ɛ]rem’; ‘d[ɔ]rmes’, ‘d[ɔ]rme’, ‘d[ɔ]rmem’ (presente do indicativo) / ‘f[ɛ]re’; ‘d[ɔ]rme’ (imperativo). Já P1 do presente do indicativo e o presente do subjuntivo têm vogal alta, [i] e [u], na sílaba tônica: ‘f[i]ro’; ‘d[u]rmo’ (presente do indicativo) e ‘f[i]ra’, ‘f[i]ras’, ‘f[i]ra’, ‘f[i]ram’; ‘d[u]rma’, ‘d[u]rmas’, ‘d[u]rma’, ‘d[u]rmam’ (presente do subjuntivo). As autoras não tecem considerações sobre a alternância vocálica em P3 e P6 do imperativo: ‘d[u]rma’; ‘d[u]rmam’ / ‘f[i]ra’; ‘f[i]ram’. Mira Mateus et al. (1983) também veem, na 3ª conjugação, a assimilação como responsável por serem a P1 do presente do indicativo e as formas do imperativo diferentes com relação à vogal tônica do radical. Ocorre, para as autoras, assimilação da altura da vogal temática ‘–i’, antes de sua supressão. Desse modo, a vogal tônica do radical passa a ‘–i’. 26 Numa seção chamada O Padrão Especial, Koch & Souza e Silva (1989) mostram que os chamados verbos irregulares possuem padrões claros que devem ser explicitados. Os desvios apresentados, nos verbos irregulares, “podem ser, de certa forma, padronizados, de modo a chegar-se a pequenos grupos de verbos que apresentam padrões comuns, perfeitamente explicitáveis.” (KOCH & SOUZA E SILVA, 1989, p.59). Para definir os padrões existentes, nos chamados verbos irregulares, as autoras indicam ser muito importante focalizar os tempos ou formas primitivas, que são os tempos dos quais os outros se originam. Demonstram que as formas primitivas são as seguintes: P2 do pretérito perfeito do indicativo; P1 do presente do indicativo; P2 e P5 do presente do indicativo e infinitivo não flexionado. Da P2 do pretérito perfeito do indicativo, originam-se o maisque-perfeito do indicativo, o imperfeito do subjuntivo e o futuro do subjuntivo. Da P1 do presente do indicativo, surgem o presente do subjuntivo e as formas imperativas deste derivadas. Da P2 e P5 do presente do indicativo, originam-se P2 e P5 do imperativo afirmativo com apócope do ‘–s’ final. A forma primitiva do infinitivo não flexionado dá origem aos seguintes tempos: pretérito imperfeito do indicativo; futuro do presente; futuro do pretérito; infinitivo flexionado; gerúndio e particípio. Sempre que há irregularidade na forma primitiva, essa irregularidade mantém-se nas formas derivadas. As autoras acrescentam que a irregularidade pode levar a uma variação do morfema flexional ou a uma variação do radical. Consideram, seguindo Câmara Jr., que a variação do radical passa a contribuir para a expressão das noções gramaticais de tempo, modo e pessoa. Nesta Dissertação, pretendemos observar o que a literatura morfológica aborda com relação à mudança na base. Desse modo, demonstraremos apenas as 27 irregularidades verbais, trazidas pelas autoras, que ocorrem nos temas sem focalizarmos as que ocorrem nos morfemas flexionais ou nas formas nominais de verbos. 2.2. Irregularidades no tema de pretérito perfeito do indicativo 2.2.1. Quanto à vogal temática A primeira irregularidade apontada pelas autoras é a seguinte: os radicais terminados em ‘–r’ ou ‘–z’ não apresentam vogal temática na P3 do presente do indicativo, a exemplo de ‘quer’ (querer); ‘faz’ (fazer); ‘diz’ (dizer); ‘produz’ (produzir). A vogal temática -e, de segunda conjugação, passa a –i em alguns verbos, como em ‘viste’ (ver); ‘quiseste’ (querer). Essa irregularidade mantém-se nas formas derivadas: ‘vira’, ‘visse’, ‘vir’; ‘quisera’, ‘quisesse’, ‘quiser’. 2.2.2. Alternância vocálica no radical A P1 e a P3 do pretérito perfeito do indicativo podem sofrer alternância vocálica nas formas rizotônicas quando não há sufixo flexional. Assim, ocorre [i]; [u] na P1 e [e]; [o] na P3. Mostram as autoras que é a alternância no radical a responsável por opor P1 e P3 nesses casos. Afirmam ainda que, quando essa alternância não ocorre, P1 e P3 não se diferenciam formalmente: ‘quis’ (P1 e P3); ‘disse’ (P1 e P3); ‘coube’ (P1 e P3); ‘houve’ (P1 e P3), ‘trouxe’ (P1 e P3), ‘soube’ (P1 e P3). 2.2.3. Ditongação no radical Há verbos com radical com ‘ou’ em oposição ao radical de infinitivo, como, por exemplo, ‘soub-’; ‘coub-’; ‘troux-’; ‘houv-’ (de ‘saber’; ‘caber’; ‘trazer’; ‘haver’, respectivamente). Koch & Souza e Silva (1989) ainda citam ‘prouver’, verbo 28 unipessoal, que só se realiza na P3. Essa irregularidade no radical ocorre não só no pretérito perfeito, mas também nos tempos derivados: pretérito mais-que-perfeito (soubera); pretérito imperfeito do subjuntivo (‘soubesse’) e futuro do subjuntivo (‘souber’). 2.2.4. Realização ou não da nasal O verbo ‘vir’ é realizado na P1 do pretérito perfeito do indicativo com consoante nasal: ‘vim’. Ressaltam as autoras que há uma vogal nasal final que não ocorre nas formas arrizotônicas quando seguida por vogal temática ‘–e’: ‘vieste’, ‘viemos’, ‘vieste’, ‘vieram’. Na P3, ocorre alternância de [i] para [e] seguida de ditongação: ‘veio’. 2.3 Irregularidades no tema de presente do indicativo 2.3.1. Mudança da consoante final do radical Ocorre, em alguns verbos, mudança da consoante final do radical. Essa mudança mantém-se no presente do subjuntivo e nas formas de imperativo dele originadas, como nos seguintes exemplos: ‘valho’ (‘valer’); ‘peço’ (‘pedir’); ‘meço’ (‘medir’); ‘ouço’ (‘ouvir’); ‘faço’ (‘fazer’); ‘trago’ (‘trazer’); ‘digo’ (‘dizer’); ‘posso’ (‘poder’). 2.3.2. Alargamento da vogal do radical Ocorre alargamento da vogal do radical, segundo as autoras, através da ditongação de ‘e’ (aberto) para ‘ei’, como em ‘requeiro’ (requerer), e da ditongação de ‘a’ para ‘ai’, a exemplo de ‘caibo’ (caber). Os verbos ‘querer’ e ‘saber’ não apresentam ditongação na primeira pessoa do singular do presente do indicativo (‘quero’; ‘sei’). 29 Todavia, a ditongação ocorre no presente do subjuntivo e nas formas de imperativo dele derivadas: ‘saiba’; ‘queira’. Segundo Câmara Jr., a forma ‘sei’ é explicada através de redução de radical e alternância a~e. 2.3.3. Acréscimo de uma consoante final ao radical Em algumas formas verbais, ocorre acréscimo de uma consoante final ao radical, como em ‘vejo’ (ver) e ‘haja’ (haver). O acréscimo em ‘haj-’ não ocorre na forma primitiva, mas no presente do subjuntivo. Afirmam as autoras que, segundo Câmara Jr., também é um exemplo dessa irregularidade o radical ‘hav-’, com a explicação que vemos a seguir: “Segundo CÂMARA, também se encaixa aí o verbo haver, cujo radical é hav- e cujas formas rizotônicas no Id Pr, por serem atemáticas, perdem o j final: há, hás, há. Já P1(hei), pode ser explicado da mesma maneira que sei, isto é, como uma forma radical haj-, com a vocalização do j final e também com uma alternância a~e” (KOCH & SOUZA e SILVA, 1989, p.62). As autoras veem, então, na forma ‘vejo’, um acréscimo, que se mantém nas formas derivadas (presente do subjuntivo e formas do imperativo dele derivadas). No verbo ‘haver’, percebem duas inserções consonantais: em ‘haj-’ (forma que aparece no presente do subjuntivo) e em ‘hav-’. 2.3.4. Realização da consoante nasal Koch & Souza e Silva (1989) salientam que radicais atemáticos terminados em vogal tônica nasal (‘tens’, ‘vens’, ‘pões’) têm em P1 uma transformação da nasal final em palatal: ‘venho’, ‘ponho’, ‘tenho’ (que se mantém nas formas derivadas – ‘tenha’, ‘venha’, ‘ponha’). A nasal palatal ocorre também no pretérito imperfeito do indicativo 30 (‘tinha’, ‘vinha’, ‘punha’). No infinitivo (‘ter’, ‘vir’, ‘pôr’) e nas formas futuro do presente e futuro do pretérito (‘terei’, ‘teria’; ‘virei’, ‘viria’; ‘porei’, ‘poria’), a consoante nasal não se realiza, mas, no gerúndio, mantém-se (‘tendo’, ‘vindo’, ‘pondo’). Talvez seja mais efetiva a percepção de um arquifonema nasal em casos como ‘pões’, ‘tens’, ‘vens’; essa é a leitura de Câmara Jr. (1970). 2.4. Irregularidades no futuro Koch & Souza e Silva (1989) mostram que os verbos ‘dizer’, ‘fazer’ e ‘trazer’ apresentam irregularidades no futuro do presente e no futuro do pretérito. Essa irregularidade consiste na síncope da sílaba final do tema: ‘di(ze)rei’, ‘fa(ze)rei’, ‘tra(ze)rei’; ‘di(ze)ria’, ‘fa(ze)ria’, ‘tra(ze)ria’. O apagamento da sílaba que contém a vogal temática ocorre devido ao processo fonológico chamado de haplologia e tem, como consequência, mudança no radical de um verbo. Nesta Dissertação, defendemos a hipótese de que processos fonológicos podem ter repercussão direta na expressão de categorias gramaticais. Desse modo, o radical com síncope reforça a noção de futuro, visto que só ocorre nas formas que expressam essa informação. 2.5. Verbos anômalos Os verbos anômalos, além de apresentarem irregularidades no radical, possuem radicais supletivos. Segundo as autoras, as formas derivadas do infinitivo não flexionado e do presente do indicativo não são realizadas por um radical permanente. Alguns exemplos são os verbos ‘ser’ e ‘ir’. Com relação ao verbo ser, vemos um radical 31 e- (aberto, [ɛ]) que alterna com se-. O primeiro aparece na P2 e na P3 do presente do indicativo (‘és’, ‘é’), com uma variante ‘er-’, que ocorre no pretérito imperfeito do indicativo (‘era’, ‘eras’). Já ‘se-’ é encontrado no infinitivo, no futuro do presente e no futuro do pretérito (‘ser’, ‘serei’, ‘seria’) e teria as variantes ‘sej-’ (presente do subjuntivo), ‘so-’, atemática, que aparece nas formas ‘somos’, ‘sois’, e ‘sa-’, que aparece em ‘são’. Há, ainda, o radical ‘fo-’, com variante ‘fu-’, no pretérito perfeito e nos tempos originados dele: pretérito mais-que-perfeito, pretérito imperfeito do subjuntivo, futuro do subjuntivo. Com relação ao verbo ‘ir’, há um radical ‘i-’, que alterna com ‘va-’. O radical ‘i-’ ocorre no infinitivo, no futuro do presente, no futuro do pretérito, no gerúndio, na P5 do presente do indicativo e no pretérito imperfeito do indicativo. O radical ‘va-’ ocorre em P2, P3, P4, P6 do presente do indicativo, no presente do subjuntivo e no imperativo. O radical ‘va-’, segundo as autoras, possui a variante ‘vo-’ na P1 do presente do indicativo. Há ainda, para o verbo ‘ir’, um radical diferente no pretérito perfeito e nos tempos dele derivados: ‘fo-’ com uma variante ‘fu-’. 2.6. Acertando pontos a partir da Revisão Teórica Monteiro(1991) e Zannoto (2006) fazem, assim como Koch & Souza e Silva (1989), uma descrição exaustiva dos verbos irregulares em português, criando uma seção específica para demonstrar como é possível padronizar formalmente as irregularidades. Mostram, por exemplo, que 1) a irregularidade na P1 do presente do indicativo é mantida no presente do subjuntivo e nas formas de imperativo dele originadas e que 2) as irregularidades, no pretérito perfeito, ocorrem nos tempos 32 derivados – pretérito imperfeito do subjuntivo; pretérito mais-que-perfeito do indicativo e futuro do subjuntivo. Essa padronização, geralmente, só leva em conta a forma. São esporádicos os casos apontados na literatura morfológica sobre o português que demonstram informação acarretada pela mudança no radical do verbo. A alternância vocálica é responsável pela distinção de número-pessoa no pretérito perfeito (f[i]z / f[e]z), atuando como redundância da distinção de número-pessoa no presente do indicativo (rep[i]to / rep[ɛ]tes – 3ª conjugação; b[e]bo /b[ɛ]bes – 2ª conjugação) e distinguindo presente do subjuntivo e pretérito imperfeito do indicativo em ‘p[o]nha’; ‘p[u]nha’ / ‘t[e]nha’; ‘t[i]nha’ / ‘v[e]nha’; ‘v[i]nha’. Em ‘p[o]de’; ‘p[ɔ]de’, a alternância vocálica distingue presente do indicativo de pretérito perfeito do indicativo. A modificação consonantal (faço; fazes / digo; dizes / trago; trazes) atua como reforço de número-pessoa, já que ocorre alomorfia no radical de P1 (MONTEIRO, 1991, p.112). Monteiro (1991) discute o caso de ‘est/i/ve’ / ‘est/e/ve’. Mostra que há duas leituras possíveis para esse exemplo. Na primeira, seria a alternância o traço distintivo e, então, haveria uma flexão interna, já que as desinências e a vogal temática não se atualizariam. A segunda interpretação possível, preferida pelo autor, apontaria que há zero de número-pessoa e modo-tempo e, assim, o ‘-e’ final seria vogal temática. O autor prefere a segunda leitura, porque alega ser esporádico o caso. Todavia, percebemos outros exemplos semelhantes: p[u]de / p[o]de; t[i]ve / t[e]ve. Como veremos adiante nesta Dissertação, há dados (‘tr[u]xe’ / ‘tr[o]xe’) que evidenciam a produtividade dessa alternância. Vemos, nos exemplos a seguir, alternâncias apontadas por Monteiro (1991) em que a P1 do presente do indicativo tem uma vogal tônica igual à vogal tônica do presente do subjuntivo, mas diferente das outras pessoas do presente do indicativo: 33 (01) /e/ ~ /ɛ/: el/e/ja = el/e/jo ~ el/ɛ/ges, el/ɛ/ge, el/ɛ/gem (o mesmo ocorre com ‘dever’, ‘beber’ e ‘erguer’) (02) /o/ ~ /ɔ/: res/o/lva = res/o/lvo ~ res/ɔ/lves, res/ɔ/lve, res/ɔ/lvem (o mesmo ocorre com ‘volver’) (03) /iN/ ~ /eN/: s/iN/ta = s/iN/to ~s/eN/tes, s/eN/te, s/eN/tem (04) u nasalizado ~ o nasalizado: s/u/ma = s/u/mo ~ s/o/mes, s/o/me, s/o/mem (o mesmo ocorre com ‘consumir’) (05) /u / ~/ɔ/: c/u/bra = c/u/bro ~ c/ɔ/bres, c/ɔ/bre, c/ɔ/brem (o mesmo ocorre com ‘dormir’, ‘acudir’, ‘tossir’, ‘cuspir’). Os dois últimos grupos, (04) e (05), poderiam ser colocados como um só, visto que a realização de /o/ como vogal fechada, em ‘somes’, ‘some’ e ‘somem’, se deve à existência da consoante nasal na sílaba seguinte à vogal. As vogais médias que assimilam a nasalidade da consoante da sílaba seguinte são categoricamente realizadas como fechadas em português. Em todos esses casos, há alternância redundante segundo o autor, que não explicita, na seção intitulada Desvios do Padrão Geral, qual seria a redundância de informação. Todavia, quando fala sobre alomorfia, observa que a alternância vocálica serve de reforço à expressão número-pessoal. Assim, a redundância a que se refere deve ser o reforço de P1 no paradigma de presente do indicativo. Caso esteja mesmo se referindo à redundância de informação de P1, não demonstra semelhança de alguma informação gramatical entre P1 do presente do indicativo e as formas do presente do subjuntivo; desse modo, a identidade do radical, nesses tempos, seria apenas por razões formais. Câmara Jr. (1970) demonstra que a mudança no radical dos verbos tem relação com informações gramaticais de modo-tempo e número-pessoa. Entretanto, não aponta muitos casos de manifestação de contéudo gramatical através de modificação no radical. Assim como os outros autores, faz uma padronização dos verbos irregulares, reduzindo 34 o vasto número de verbos irregulares apontados pelas gramáticas a um pequeno número de grupos com regularidades formais claras. Quanto às irregularidades que trazem oposição funcional, Câmara Jr. (1970) cita casos de alternância vocálica no pretérito perfeito e demonstra também a alternância entre /e/ e /i/ opondo primeira e terceira pessoa em ‘vim’; ‘veio’ (perda do travamento nasal e ditongação). Um outro submorfema, apontado por Câmara Jr., é a alternância vocálica na segunda e terceira conjugações, citada acima quando demonstramos a visão de Monteiro (1991). Câmara Jr. (op.cit.), ao falar dessa alternância, opõe a P1 do presente do indicativo e as formas do presente do subjuntivo a P2, P3, P6 do presente do indicativo e P2 do imperativo, ressaltando, ainda, que essa alternância é submorfêmica. Entretanto, não expressa qual a informação gramatical acarretada por esses grupos que se opõem funcionalmente. Todos os autores, citados nesta Dissertação, quando abordam alguma espécie de mudança no radical dos verbos, tratam essa modificação, de um modo geral, apenas através de argumentos formais. Em algumas obras da literatura morfológica sobre o português (KOCH & SOUZA e SILVA, 1989; ZANNOTO, 2006; CÂMARA JR., 1970; GONÇALVES LOPES, 2003; MONTEIRO, 1991), padronizam-se muito bem os verbos irregulares quanto às semelhanças formais entre os tempos. A explicação das irregularidades, partindo da observação dos tempos de que derivam (presente do indicativo; infinitivo ou pretérito perfeito), é muito criteriosa em termos formais. Não vemos, todavia, nessa padronização de grupos de verbos, o que, em termos de significado, liga essas formas verbais. Na minoria dos casos, os autores explicitam uma relação entre irregularidade e informação expressa. Koch & Souza e Silva (1989), apesar de mostrarem que Câmara Jr. já observara que irregularidades no verbo trazem informação gramatical, fazem uma descrição quase toda baseada em aspectos formais. As autoras chegam a afirmar que as alternâncias vocálicas que ocorrem nas formas 35 rizotônicas do presente do indicativo nas segunda e terceira conjugações ou a ditongação do radical que ocorre nas formas rizotônicas de certos verbos (‘passear’, ‘odiar’) não devem ser tratadas como irregularidades no plano morfológico: são “simplesmente alterações fonologicamente condicionadas” (KOCH & SOUZA e SILVA, 1989, p.60). Azuaga (1996) e Gonçalves & Almeida (2008) mostram que a alternância vocálica é um dos problemas no mapeamento biunívoco entre morfe e morfema. Observa Azuaga (1996) que as relações apofônicas (ablaut, umlaut e modificações morfologicamente significativas em vogais e consoantes) talvez constituam o caso mais importante na explicitação da dificuldade de identificação e segmentação de morfemas. Os exemplos apontados pela autora são do inglês: ‘sing’; ‘sang’ (cantar; cantei) / ‘break’; ‘broke’ (partir; partiu) / ‘foot’; ‘feet’ (pé; pés) / ‘man’; ‘men’ (homem; homens). Segundo a autora, casos de mutação vocálica e consonantal são exemplos de modificação parcial da base; há, ainda, os casos em que o processo envolve mudança total da base, como, em português, o verbo ‘ser’ (‘fui’) e, em inglês, o verbo ‘go’ (‘went’). Defendemos a hipótese de que toda irregularidade formal no radical dos verbos possui uma contraparte semântica. Mesmo a alternância vocálica condicionada fonologicamente (causada pela tonicidade na vogal tônica do radical) acarreta alguma informação gramatical. Em outras palavras, acreditamos, como Bybee (1985) e Gonçalves (2005), na correlação entre forma e significado; assim, verbos irregulares formalmente próximos são também relacionados em termos de informação gramatical. Em português, o processo morfológico que envolve mudança total ou parcial da base, explicitado por Azuaga (1996), tem regularidade e produtividade. 36 Às vezes, o falante realiza o padrão vogal alta na P1 e na P3 mesmo quando a realização não condiz com o padrão culto. Por exemplo, para distinguir número-pessoa, o falante, às vezes, realiza ‘tr[u]xe’ na P1 e ‘tr[o]xe’ na P3, em vez de usar ‘tr[ow]xe’ (ou a forma monotongada ‘tr[o]xe’) em P1 e P3). A realização ‘tr[ow]xe’ (ou ‘tr[o]xe’) é um exemplo de neutralização entre P1 e P3. Monteiro (1991) demonstra outros casos de neutralização entre P1 e P3 no pretérito perfeito do indicativo: ‘coube’; ‘soube’; ‘disse’; ‘quis’. Usos como ‘sube’; ‘cube’, na nossa visão, acontecem na língua para trazer a distinção, assim como vem ocorrendo em ‘tr[u]xe’ e ‘v[ɛ]ve’, ‘corr[ɛ]ge’, em vez de ‘trouxe’, ‘vive’, ‘corrige’. No próximo capítulo, apresentaremos o arcabouço teórico que nos permite entender a modificação no radical como um fenômeno que veicula informação gramatical. A literatura morfológica tradicional percebe mudanças formais regulares em radicais. Todavia, tal literatura não dá conta plenamente da contraparte semântica dessas mudanças, que evidenciam nem sempre serem afixos os expoentes de informações gramaticais. Fundamentando-nos em Bybee (1985) e Gonçalves (2005), demonstramos que mudanças no radical são, muitas vezes, reflexos de informação gramatical que se funde no conteúdo lexical de vocábulos. Essa fusão de conteúdos é sistemática nas línguas do mundo e pode explicar o porquê de haver mudanças formais regulares nos verbos da língua portuguesa. Para demonstrar a regularidade e a motivação dessas mudanças em radicais verbais, explicitamos, no próximo capítulo, como a expressão de superfície revela graus de relação semântica. Afixos mais próximos do radical são mais importantes semanticamente que afixos distantes do radical. Mudanças no radical verbal são, muitas vezes, reflexos de algum conteúdo flexional relevante ao verbo. Em outras 37 palavras, há motivação entre forma e conteúdo (BYBEE, 1985). Evidenciaremos essa motivação através da análise dos conceitos relevância e fusão. 38 3. MOTIVAÇÃO ENTRE FORMA E CONTEÚDO Apresentaremos, neste capítulo, as bases teóricas que nos levam a defender a hipótese de que modificações formais no radical veiculam conteúdos gramaticais. Através de Bybee (1985) e Gonçalves (2005), demonstramos que conteúdos relevantes tendem a se fundir em bases verbais. Alternância vocálica, ditongação e mudança consonantal são algumas das estratégias que evidenciam que a flexão verbal portuguesa se organiza por fusão. 3.1. A relevância semântica Bybee (1985) evidencia haver forte correlação entre forma e significado na morfologia flexional de línguas naturais. Assim, observa que conteúdos gramaticais mais relevantes para a base tendem a ocorrer adjacentes a esse constituinte morfológico. Quando a relevância é muito alta, é frequente a ocorrência de fusão: um conteúdo mescla-se no outro numa forma muitas vezes indecomponível em partes mínimas significativas. Bybee (1985: 4) chega a afirmar que a principal hipótese de sua pesquisa é a de que o grau de fusão morfofonológica de um afixo para com o radical se correlaciona diretamente com o grau de relevância semântica desse mesmo afixo em relação ao radical. Portanto, para entender o que é fusão, é fundamental entender o princípio relevância. Para Bybee (1985), quando dois conteúdos são relevantes entre si, um deles afeta ou modifica diretamente o outro. Se houver um alto grau de relevância, a expressão tende a ser morfológica (flexional / derivacional) ou lexical. Já com conteúdos irrelevantes entre si, é frequente a expressão sintática. 39 Como aponta Gonçalves (2005), o conteúdo direcionalidade é muito importante para verbos de movimentos. Para o conteúdo mover, é fundamental saber para onde se move. Desse modo, é provável que encontremos expressão lexical desses conteúdos: ‘subir’ (andar para cima); ‘descer’ (andar para baixo); ‘seguir’ (andar para frente); ‘voltar’ (andar para trás); ‘entrar’ (andar para dentro); ‘sair’ (andar para fora). Já o conteúdo companhia (com quem se move), como demonstra Gonçalves (2005), não é tão fundamental para verbos de movimentos. Assim, não vemos fusão dos conteúdos movimento e companhia. Realmente, quando queremos expressar que nos movemos na companhia de alguém, utilizamos a expressão sintática: ‘Andamos com Fulano’; ‘Seguimos com Fulano’; ‘Eu e Fulano voltamos de algum lugar’. Para o conteúdo orientação acadêmica, é importante saber se ela foi em conjunto ou não. Por isso, apesar de não haver expressão lexical para os conteúdos orientar + companhia, verificamos expressão morfológica: ‘coorientar’; ‘coorientação’. Para conteúdos como organizar, chefiar, participar também é relevante o conteúdo companhia. Verificamos dados no português que comprovam essa previsão: ‘coparticipação’; ‘coorganizar’; ‘cochefiar’. Isso confirma a hipótese de Bybee (1985), segundo a qual conteúdos relevantes tendem a ser expressos lexical ou morfologicamente. Já conteúdos irrelevantes entre si tendem a ser expressos sintaticamente. Aponta Bybee (1985: 13-14) que a relevância depende da saliência cognitiva e cultural: “dois conteúdos são altamente relevantes, um para o outro, se o resultado da combinação deles nomeia algo que tem alta saliência cultural ou cognitiva”. Gonçalves (2005) demonstra que, em português, o conteúdo ritmo que se dança é relevante para o conteúdo dança. Assim, muitas vezes, há fusão, no radical, desses dois conteúdos. Em ‘sambar’, há fusão no radical ‘samb-’ dos conteúdos dançar e ritmo. O mesmo ocorre em ‘pagodear’, ‘valsar’, ‘lambadear’, ‘salsar’, ‘sapatear’. Essa fusão do 40 ritmo que se dança em radicais é indício de que ritmos musicais são elementos relevantes culturalmente no Brasil. Em outras línguas, a combinação entre os conteúdos dança e ritmo se dá por expressão sintática, “como ocorre em inglês (‘to dance a jazz’) e em espanhol (‘danzar el merengue’), o que pode ser indício da baixa proliferação e/ou importância de estilos musicais e dançantes nessas culturas” (GONÇALVES, 2005: 132). Cultura, em termos antropológicos, é um conjunto de hábitos de um determinado grupo social. Sair para dançar é um hábito frequente na cultura brasileira e, desse modo, é natural que haja fusão dos conteúdos dançar e ritmo no conteúdo lexical (radical). No Brasil, ninguém sai para dançar rock, mas para ver o show de rock, curtir o ritmo. Desse modo, não vemos fusão dos conteúdos dança + ritmo (rock). Não ocorre ‘*roquear’ em português; pelo mesmo motivo, não há mescla dos conteúdos dança + ritmo (música clássica). Caso haja, nos Estados Unidos ou Inglaterra, algum ritmo musical que leve as pessoas a sair para dançar, haverá, provavelmente, para esse tipo musical, fusão dos conteúdos dança e ritmo. É possível medir a relevância de conteúdos gramaticais com relação a conteúdos lexicais. Bybee (1985) mostra uma distinção feita por Sapir (1921) entre os conteúdos relacional e material. O conteúdo material é expresso, geralmente, por palavras ou radicais e indica ações, objetos, qualidades. Já o conteúdo relacional refere-se a significados mais gramaticais e se manifesta por afixos ou por mudança no radical. Para entender a fusão em categorias flexionais, é fundamental medir a relevância do conteúdo relacional com relação ao conteúdo material. Para Bybee (1985: 15), “uma categoria é relevante para o verbo na medida que o sentido dessa categoria afeta diretamente o conteúdo lexical do verbo”. A autora aponta graus de relevância para categorias verbais. Ao estudar uma amostra de 50 41 línguas, elaborada por Perkins, a autora chega à seguinte ordem decrescente de relevância para conteúdos gramaticais que mais frequentemente se manifestam por flexão em verbos: (01) valência, voz, aspecto, tempo, modo e concordância. A autora percebe, então, que o aspecto é uma categoria mais relevante para o significado verbal que a concordância. Enquanto o aspecto refere-se diretamente à ação descrita pelo verbo, a concordância faz referência aos participantes da ação. Segundo a autora, a maior relevância do aspecto sobre a concordância leva a duas previsões: 1) a ocorrência de mais expressões lexicais de aspecto que de concordância nas línguas do mundo e 2) a existência de mais línguas com a categoria flexional aspecto que com a categoria flexional concordância. Essa última previsão, segundo a autora, foi confirmada por Greenberg (1963), que demonstrou o seguinte: quando há flexão de número e pessoa nos verbos, há também flexão de tempo, aspecto ou modo. Essa informação reforça a escala de relevância proposta por Bybee (1985), visto que aponta serem tempo e modo mais relevantes para o verbo que concordância. No português, há flexão de número e pessoa, mas, como prevê Greenberg (1963), ocorre também flexão de modo, tempo e aspecto. Das categorias expressas nos verbos do português, modo, tempo, aspecto, número e pessoa, o aspecto é a categoria mais relevante semanticamente. Em português, há muitos casos de expressão lexical de aspecto, como prevê o princípio relevância. Como aponta Gonçalves (2005), fundamentando-se em Travaglia (1981) e Borba (1991), em exemplos como ‘progredir’, ‘desenvolver’, ‘crescer’, há a indicação de 42 aspecto incoativo, já que são colocados em evidência o início e o desenvolvimento do evento, mas não o seu término. Com relação ao significado aspectual reiteração, que expressa repetição, hábito, vemos dados como ‘permanecer’, ‘costumar’, ‘fumar’. Um outro significado aspectual apontado por Gonçalves (2005) é o de pontualidade, com o qual se coloca em evidência o término de um processo. Verifica-se tal significado em ‘cair’, ‘falecer’, ‘acabar’. Todos esses dados apontam para como é comum a existência de expressão lexical de aspecto em português, já que inúmeros radicais expressam noções aspectuais. 3.2. Focalizando a fusão de categorias gramaticais Bybee (1985: 36) define fusão da seguinte forma: se o significado de um elemento flexional é altamente relevante para o verbo, frequentemente, as unidades aparecem fundidas na expressão de superfície. Já elementos menos relevantes têm uma menor associação com o radical, não se fundindo nele. Segundo a autora, essa hipótese pode ser testada de duas maneiras. Uma delas é verificar os efeitos que a categoria flexional tem sobre a base verbal. A outra possibilidade é verificar os efeitos da base na expressão da categoria flexional. Para os verbos do português, podemos ver a informação de P1 e P3 em ‘f[i]z’ e ‘f[e]z’ como um exemplo do primeiro caso – efeito da categoria número-pessoal sobre o radical do verbo. Já para o segundo caso, verificamos a escolha entre ‘-va’ e ‘–ia’ como marca flexional de pretérito imperfeito, pois, de acordo com a vogal temática (elemento da base), utiliza-se uma ou outra variante – a vogal temática ‘-a’ faz com que o elemento utilizado seja ‘–va’; já as vogais temáticas ‘–e’ e ‘–i’ levam ao uso de ‘–ia’. Como já dissemos no Capítulo 2, 43 focalizamos apenas mudanças na base servindo a informações gramaticais e, por esse motivo, não pretendemos olhar para efeitos da base sobre expoentes flexionais. O interesse de Bybee (1985) é na análise de modificações formais (morfofonológicas) que não são estritamente condicionadas fonologicamente e indicam informações gramaticais. Segundo a autora, nesses casos, a mudança no radical do verbo é o principal sinal de uma categoria flexional ou coocorre com um outro expoente dessa categoria. Nesta Dissertação, pretendemos comprovar que mesmo as modificações formais na base que têm condicionamento fonológico podem veicular conteúdos gramaticais. Fundamentando-se em Bybee (1985), Gonçalves (2005: 143) explicita o seguinte com relação à fusão: “Por fusão, devemos entender (1) o uso de raízes supletivas, (2) os casos em que o radical incorpora noções gramaticais ou, ainda, (3) a escolha do alomorfe flexional por classes morfológicas. No primeiro caso, formas inteiramente dessemelhantes podem amalgamar dois ou mais conteúdos. No segundo, radicais podem conter informações gramaticais de natureza variada. No último, afixos flexionais diferentes podem ser selecionados em função de paradigmas morfológicos.” Mostra Gonçalves (2005) que a previsão de Bybee (1985) se confirma em português: afixos mais relevantes tendem a ocorrer mais próximos do radical e apresentam mais casos de fusões que afixos que estão mais longe do radical na expressão de superfície. Assim, com relação a substantivos, demonstra que há muitos casos de fusão de gênero. Em formas como ‘cadela’, ‘mulher’, ‘nora’ ‘égua’, há fusão no radical dos conteúdos lexicais com o de fêmea; por exemplo, em ‘égua’, fundem-se os conteúdos cavalo + fêmea. Já a categoria número plural, expressa por um afixo terminal, ‘-s’, está mais distante da base que a marca de gênero, a vogal ‘-a’. Dessa 44 forma, é menos relevante e parece não se caracterizar por fusão: “o léxico contém grande contingente de formas com fusão semântica para o gênero e parece não apresentar amálgamas para o número” (GONÇALVES, 2005: 144-145). Os casos de fusão de gênero apresentados são do primeiro tipo evidenciado por Bybee (1985) – o que se atualiza por meio de formas supletivas. Assim, ‘égua’ expressa o animal equino fêmea e tem uma forma totalmente dessemelhante do vocábulo ‘cavalo’. Com relação ao verbo, Gonçalves (2005) também afirma que modo, tempo e aspecto apresentam mais casos de fusão que número e pessoa, o que também confirma a previsão feita por Bybee (1985). Para exemplificar a fusão em verbos, Gonçalves (2005) demonstra, inicialmente, o segundo tipo de fusão: o radical incorpora noções gramaticais. A seguir, em (02), vemos a demonstração feita por Gonçalves (2005: 145) para o verbo pôr: (02) /poN/ /puN/ /puS/ /poR/ ponho, põe, ponha, ponhamos punha, púnhamos, punham puséramos, puséssemos, pusesse, puser porei, poríamos, poremos, poria Todas as formas de radical acima apontadas expressam o conteúdo lexical pôr, colocar. Entretanto, em cada uma dessas formas, há fusão desse conteúdo lexical (material) com algum conteúdo gramatical (relacional) do verbo. Assim, na forma /poN/, há a indicação de tempo presente (os tempos que expressam essa noção são o presente do indicativo, o presente do subjuntivo e o imperativo). Em /puN/, existe a indicação do conteúdo pretérito imperfeito do indicativo; o radical /poR/ informa futuro. Já a forma /puS/ aparece nos seguinte tempos: pretérito imperfeito do subjuntivo; pretérito perfeito do indicativo; futuro do subjuntivo e pretérito mais-queperfeito do indicativo. 45 Com relação à fusão de número e pessoa, Gonçalves (2005) demonstra que esta é mais rara. Além disso, defende ser comum, quando há fusão de número-pessoa, haver também fusão de modo e de tempo. O autor dá três exemplos – ‘é’, ‘fui’, ‘pôs’. Em ‘é’, há a fusão de três conteúdos: P3 + presente + indicativo; em ‘fui’, fundem-se as noções P1 + pretérito perfeito + indicativo. Já em ‘pôs’, expressam-se P3 + pretérito perfeito + indicativo. No português, há dois sufixos verbais que se anexam a um tema, expressando, nessa ordem, modo-tempo-aspecto e número-pessoa, como vemos em (03), a seguir: (03) Radical VT SMTA1 SNP Jog a va /N/2 Diferentemente de outras línguas, os conteúdos flexionais de modo, tempo e aspecto não ocorrem, na manifestação morfológica, separadamente em língua portuguesa. Há um amálgama de número-pessoa num sufixo e de modo-tempo-aspecto em outro. Pretendemos, nesta Dissertação, verificar a fusão de conteúdos dos afixos modo-tempo-aspectual e número-pessoal em radicais verbais. Depois de termos demonstrado que mudanças formais no radical são plenamente explicáveis pelo princípio relevância (BYBEE, 1985), podemos analisar quais são as fusões que ocorrem no português. Todas aquelas regularidades formais verificadas pela literatura morfológica, demonstradas no capítulo 2, podem ter uma contraparte semântica tendo em vista a orientação de Bybee (1985) e Gonçalves (2005). 1 Chamamos o sufixo de modo-tempo-aspectual, visto que ele expressa essas três categorias. Em ‘–va’, a indicação de tempo: pretérito, aspecto: imperfeito e modo: indicativo. 2 Acreditamos, fundamentando-nos em Câmara Jr. (1970), que o sufixo número-pessoal em ‘jogarão’ e ‘jogavam’ é o mesmo: o arquifonema nasal ‘/N/’. 46 Pretendemos demonstrar qual a categoria de MTA que costuma se fundir no radical do verbo (modo, tempo ou aspecto) e dar conta de qual informação númeropessoal (P1, P3, P6) passa por fusão, geralmente, em língua portuguesa. Demonstramos, no Capítulo 2, modificações formais em radicais verbais de língua portuguesa. Neste Capítulo, apresentamos um aporte teórico que nos permite afirmar que tais alterações são motivadas semanticamente e estão, na maioria das vezes, a serviço de alguma informação gramatical. Desse modo, conseguimos apontar as causas para essas modificações formais, que constituem problemas para a literatura morfológica de inspiração estruturalista. Para esse tipo de enfoque, de forma geral, afixos informam noções gramaticais, visto que a morfologia sempre busca alcançar uma relação de univocidade entre unidades formais e conteúdos semânticos. Fundamentando-nos em uma abordagem que acredita na relação motivada entre forma e conteúdo (BYBEE, 1985; GONÇALVES, 2005), pretendemos demonstrar que modificações formais no radical de verbos são exemplos de fusão em português. Objetivamos confirmar, seguindo Gonçalves (2005), que a língua portuguesa não é puramente aglutinativa, havendo, desse modo, duas possibilidades de indicar informações gramaticais na morfologia do verbo: por concatenação de formas ou por fusão. Como aponta Bybee (1985: 45), “muitas línguas utilizam uma combinação de aglutinação e fusão”. No próximo capítulo, fazemos a análise da fusão em verbos, demonstrando como os conteúdos se manifestam nos radicais. Focalizamos as categorias que se fundem nos radicais verbais e de que maneira elas se sobrepõem: mudança de consoante; alternância vocálica; ditongação. Como já mencionado na introdução, especial relevo será dado aos casos de fusão por alternância vocálica, objeto de formalização no capítulo 5. 47 Ilustramos, no Capítulo 4, variados casos de fusão explicitando os padrões formais existentes no paradigma verbal e os respectivos conteúdos que esses padrões manifestam. Além disso, comprovamos a nossa hipótese de que mesmo as modificações na base condicionadas fonologicamente veiculam algum conteúdo gramatical. Demonstramos também que algumas estratégias de fusão, como alternância vocálica e ditongação, são produtivas. 48 4. A FUSÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA Verificamos, no Capítulo 2, que há, em português, estratégias para indicar noções gramaticais que concorrem ou coocorrem com as marcas aditivas (sufixos flexionais). Como exemplos dessas estratégias, destacamos, entre outros expedientes formais, (a) ditongação na sílaba tônica do radical (‘saiba’); (b) a mudança na consoante final do radical (‘perco’); (c) a alternância vocálica na sílaba tônica do radical (‘est/i/ve’ / ‘est/e/ve’). Esses fenômenos não são exceções nem irregularidades, mas formas que a língua encontra ou para expressar uma noção quando não há um afixo isolável (‘tive’) ou para reforçar determinado conteúdo expresso por marca morfológica adicionada ao radical (‘acudo’). Defendemos a ideia de que os referidos fenômenos são demonstrações claras da motivação entre forma e conteúdo nas estruturas morfológicas do português. Fundamentando-nos em Bybee (1985) e Gonçalves (2005), acreditamos que essas mudanças no radical do verbo são exemplos de um padrão ainda não sistematizado na língua: a fusão. Como vimos no Capítulo 3, Bybee (1985) evidencia forte motivação entre forma e conteúdo na morfologia de línguas naturais, defendendo que a expressão de superfície de um vocábulo aponta graus de importância semântica entre afixos e bases. A ordem dos afixos, no interior de um verbo, revela a relevância semântica desses elementos para com o significado verbal. Quanto mais próximo do radical está um afixo, mais relevante semanticamente para o verbo é o conteúdo desse afixo. Não é por acaso, como mencionamos, que o sufixo de modo-tempo-aspecto preceda o de número-pessoa na morfologia do verbo. Bybee (1985: 36) sistematiza o fenômeno fusão da seguinte maneira: 49 “Conteúdos relevantes semanticamente tendem a se fundir no radical dos verbos. Desse modo, significados gramaticais relevantes tendem a aparecer expressos no radical dos verbos.” Mudanças no radical verbal, muitas vezes, são reflexos de fusão de algum conteúdo gramatical. Verificamos, em português, fusão de conteúdo do afixo de modotempo-aspecto e do afixo de número-pessoa no radical do verbo. Neste capítulo, demonstramos alguns tipos de fusão: mudança e inserção consonantal, ditongação, haplologia, alternância vocálica. Pretendemos comprovar que informações flexionais se manifestam morfologicamente não só pelo acréscimo de afixos, mas também por fusão. A expressão de pessoa ou de tempo gramatical, por exemplo, pode ocorrer através de mudança no radical do verbo. Neste capítulo, fornecemos uma gama de dados de fusão em língua portuguesa, evidenciando que as mudanças servem à informação ou ao reforço de conteúdos também expressos por afixos de número-pessoa e modo-tempo-aspecto. 4.1. A informação de tempo presente A literatura morfológica de orientação estruturalista postula que uma ausência formal (um zero) indica presente do indicativo em língua portuguesa. Verificamos que, na verdade, a língua busca um outro meio, diferente do acréscimo de afixos, para indicar presente: a modificação no radical do verbo. Um exemplo de modificação é a alteração da consoante final na 1ª pessoa do presente do indicativo, no presente do subjuntivo, no imperativo negativo e nas pessoas do imperativo afirmativo provenientes 50 do presente do subjuntivo 1. Observemos, a título de exemplificação, o verbo ‘perder’. Nas formas verbais acima citadas, há um radical ‘perc-’ em oposição a outras formas, com radical ‘perd-’. O radical ‘perc-’ informa presente. Assim como o presente do indicativo e o presente do subjuntivo, o imperativo também indica presente (ROCHA LIMA, 1975). O verbo ‘valer’ passa pelo mesmo processo: ‘valh-’ na 1ª pessoa do singular do presente do indicativo e nos tempos ligados a ele semanticamente. Outros exemplos são os seguintes: ‘ouç-’, ‘meç-’, ‘peç-’, ‘poss-’, ‘dig-’, ‘trag-’ (dos verbos ‘ouvir’, ‘medir’, ‘pedir’, ‘poder’, ‘dizer’, ‘trazer’, respectivamente), nos quais a mudança na consoante final reforça a noção de presente. Outra maneira de indicar ou reforçar a noção modo-tempo-aspectual é a ditongação na sílaba tônica do radical: ‘caib-’; ‘queir-’, ‘saib-’ (de ‘caber’, ‘querer’, ‘saber’) ocorrem apenas nos tempos que expressam presente. A alternância vocálica também pode indicar ou reforçar modo-tempo-aspecto em português, como verificamos na análise do verbo ‘pôr’ apresentada no capítulo 3. Nesse verbo, ‘/poN/’ é a forma de radical usada para o presente do indicativo e os outros tempos que indicam a noção de presente (cf. GONÇALVES, 2005), enquanto ‘/puN/’ é usado para indicar pretérito imperfeito do indicativo2. Com o verbo ‘ter’, também há uma mudança vocálica responsável por informação gramatical: ‘/tiN/’ remete ao pretérito imperfeito e ‘/teN/’ a tempos que expressam presente (presente do indicativo, presente do subjuntivo, imperativo). Nos dois verbos, a forma com vogal alta indica pretérito imperfeito do indicativo e a com vogal média é utilizada no presente do indicativo. 1 Koch & Souza e Silva (1989) mostram que a primeira pessoa do singular do presente do indicativo é uma forma primitiva que dá origem ao presente do subjuntivo e às formas do imperativo deste originadas. Acreditamos que essa ligação formal tem uma contraparte semântica, uma vez que todos esses tempos expressam a noção de presente. 2 Gonçalves (2005) aponta que, além dessas duas formas, ocorrem ainda ‘/poR/’ e ‘/puS/’. A primeira é utilizada em tempos que expressam futuro: futuro do presente e futuro do pretérito. Já a segunda é utilizada no pretérito mais-que-perfeito; pretérito perfeito; pretérito imperfeito do subjuntivo e futuro do subjuntivo. 51 4.1.1. Alternância vocálica: oposição entre presente do indicativo e pretérito perfeito do indicativo A literatura morfológica de orientação estruturalista defende a existência de um zero para indicar presente do indicativo e pretérito perfeito do indicativo. Em outras palavras, a ausência de marcas seria responsável por informar essas noções modotempo-aspectuais, como se vê em (01) e (02) a seguir, respectivamente, para as formas ‘joga’ (P3 do presente do indicativo) e ‘jogou’ (P3 do pretérito perfeito do indicativo): (01) RADICAL VT SMTA SNP Jog- -a ∅ ∅ RADICAL VT SMTA SNP Jog- -a (-o) ∅ -u (02) 4.1.2. Vogal média-aberta: informação de presente Observem-se os paradigmas abaixo para as conjugações de ‘jogar’ e ‘pegar’ no presente do indicativo (03) e no pretérito perfeito do indicativo (04): (03) J[ɔ]go P[ɛ]go J[ɔ]gas P[ɛ]gas J[ɔ]ga J[o]gamos J[o]gais P[ɛ]ga P[e]gamos P[e]gais J[ɔ]gam P[ɛ]gam 52 (04) J[o]guei J[o]gaste J[o]gou J[o]gamos J[o]gastes J[o]garam P[e]guei P[e]gaste P[e]gou P[e]gamos P[e]gastes P[e]garam Como se vê em (03), verifica-se uma tendência a abrir a vogal tônica do radical no presente do indicativo (realização de vogal média-baixa) nos verbos de 1ª conjugação, única produtiva em português, visto que qualquer neologismo verbal (‘twittar’, ‘blogar’) é de 1ª conjugação. Defendemos que essa abertura é um exemplo de fusão através da alternância vocálica. Há, na língua, a estratégia de abrir a vogal tônica (média) do radical para indicar tempo presente, como vemos, acima, na conjugação dos verbos ‘jogar’ e ‘pegar’ no presente do indicativo. É importante reforçar que a abertura de vogal acontece também nas formas do imperativo derivadas do presente do indicativo e no presente do subjuntivo – tempos que veiculam a noção de presente (cf. ROCHA LIMA, 1975; VIVAS, 2009). A abertura da vogal tem motivação fonológica, já que ocorre apenas na sílaba tônica do radical. Entretanto, essa alternância manifesta informação gramatical: o conteúdo presente, como formalizamos em (05): (05) Vogal Aberta → Presente Em seu Breviário de Conjugação Verbal, Otelo Reis (1982) demonstra verbos com vogal ‘e’ na penúltima sílaba que têm, em sílaba tônica, vogal média-baixa: todos os verbos que terminam em ‘-ebar’, ‘-ecar’, ‘-eçar’, ‘-essar’, ‘-edar’, ‘-efar’, ‘-egar’, ‘-elar’, ‘-epar’, ‘-erar’, ‘-esar’ ou ‘-ezar’, ‘-etar’, ‘-evar’, ‘-erbar’, ‘-ercar’, ‘-erdar’, ‘-ermar’, ‘-ernar’, ‘-ersar’, ‘-ertar’, ‘-ervar’, ‘-escar’, ‘-esgar’, ‘-espar’, ‘-estar’ ou 53 ‘-extar’, ‘-eptar’. Assim, ‘pecar’, ‘começar’, ‘apressar’, ‘arredar’, ‘sossegar’, ‘selar’, ‘decepar’, ‘asseverar’, ‘enterrar’, ‘errar’, ‘pesar’, ‘rezar’, ‘levar’, ‘cercar’, ‘internar’, ‘conversar’, ‘consertar’, ‘concertar’, ‘conservar’, ‘pescar’, ‘detestar’, ‘projetar’, ‘interceptar’ teriam ‘e’ tônico realizado como vogal média-baixa: [ɛ]. Com relação à vogal média posterior, diz Otelo Reis (1982) que verbos terminados em ‘-obar’, ‘-ocar’, ‘-oçar’ e ‘-ossar’, ‘-odar’, ‘-ofar’, ‘-ogar’, ‘-ojar’, ‘-olar’, ‘-opar’, -‘orar’, ‘-orrar’, ‘-osar’, ‘-otar’, ‘-ovar’, ‘-olhar’, ‘-ochar’, ‘-orçar’, ‘-ordar’, ‘-orgar’, ‘-orjar’, ‘-orlar’, ‘-ormar’, ‘-ornar’, ‘-ortar’, ‘-orvar’, ‘-oldar’, ‘-olfar’, ‘-olgar’, ‘-oltar’, ‘-oscar’, ‘-osnar’, ‘-ostar’, ‘-ofrar’, ‘-ograr’ têm as formas rizotônicas com realização da vogal média-baixa. Realmente, a abertura da vogal média posterior é muito produtiva em português. Demonstramos, a seguir, dados do Aurélio Eletrônico de verbos que sofrem abertura de vogal média nas formas rizotônicas: (06) Abobar, afobar, englobar, esnobar, adoçar, almoçar, brocar, chocar, colocar, convocar, descaroçar, desembocar, desempoçar, desentocar, deslocar, destocar, destrocar, destroçar, embocar, emboçar, esboçar, estocar, evocar, focar, fofocar, invocar, pipocar, provocar, rebocar, retocar, roçar, socar, sufocar, tocar, trocar, xerocar, desossar, empossar, endossar, engrossar, acomodar, incomodar, podar, rodar, afofar, filosofar, mofar, advogar, afogar, catalogar, desafogar, dialogar, drogar, homologar, interrogar, jogar, prorrogar, refogar, revogar, rogar, alojar, arrojar, desalojar, enojar, amolar, assolar, atolar, bolar, cantarolar, colar, consolar, controlar, decolar, degolar, desatolar, descolar, descontrolar, desenrolar, desolar, embolar, encaracolar, engaiolar, enrolar, esfolar, extrapolar, isolar, protocolar, rebolar, rolar, violar, dopar, ensopar, envelopar, galopar, adorar, aflorar, ancorar, apavorar, aprimorar, chorar, colaborar, comemorar, condecorar, corar, corroborar, decorar, demorar, deteriorar, devorar, doutorar, editorar, elaborar, enamorar, escorar, evaporar, explorar, fatorar, ignorar, implorar, incorporar, melhorar, monitorar, morar, namorar, piorar, revigorar, torar, vigorar, borrar, forrar, desforrar, jorrar, torrar, dosar, entrosar, esclerosar, esposar, posar, tosar, abarrotar, adotar, amarrotar, anotar, arrotar, botar, brotar, capotar, decotar, denotar, derrotar, desempacotar, desencaixotar, devotar, dotar, empacotar, encaixotar, enxotar, esgotar, lotar, picotar, pilotar, sabotar, tricotar, trotar, votar, aprovar, comprovar, desaprovar, desovar, escovar, inovar, provar, renovar, reprovar, desfolhar, molhar,olhar, arrochar, atochar, brochar, debochar, desabrochar, enforcar, esforçar, forçar, orçar, reforçar, abordar, acordar, bordar, concordar, discordar, engordar, recordar, transbordar, outorgar, forjar, conformar, deformar, formar, informar, reformar, transformar, adornar, amornar, contornar, entornar, retornar, subornar, 54 tornar, abortar, comportar, confortar, cortar, desentortar, entortar, exportar, importar, portar, reconfortar, recortar, reexportar, reportar, suportar, transportar, moldar, soldar, toldar, golfar, empolgar, folgar, escoltar, revoltar, soltar, voltar, desenroscar, enroscar, moscar, rosnar, apostar, desencostar, desgostar, encostar, gostar, postar, tostar, enxofrar, lograr, malograr. Defendemos, nesta Dissertação, a hipótese de que a realização da vogal média como aberta (média-baixa) ocorre justamente para indicar a noção de presente. Mesmo nos casos em que a realização considerada padrão, por Breviários de Conjugação, é com vogal média-alta nas formas rizotônicas, verificamos que há uma tendência à abertura da vogal (realização da vogal média-baixa). Desse modo, apesar de Otelo Reis explicitar que a pronúncia padrão de verbos terminados em ‘-ejar’, ‘-exar’ ou ‘-echar’ e ‘-elhar’ é com vogal fechada na sílaba tônica, não é isso que verificamos na língua; ocorrem também usos com vogal aberta, como ‘f[ɛ]cho’, ‘boch[ɛ]cho’, ‘entref[ɛ]cho’; ‘esp[ɛ]lho’; ‘ar[ɛ]jo’. O próprio Otelo Reis (1982, p.80) verifica a realização com vogal aberta, ao afirmar que “pessoas menos cultas manifestam a errônea tendência de, nas formas rizotônicas, pronunciar o e com som aberto: fécho, féche, etc.”. Os verbos no infinitivo que têm ‘–ei’, na penúltima sílaba, também teriam, segundo Reis (1982), vogal fechada em formas rizotônicas, sendo essa a norma padrão em todos os verbos que terminam em ‘–eifar’, ‘-eigar’, ‘eijar’, ‘-eimar’, ‘-eirar’, ‘-eitar’, ‘-eivar’ e ‘-eixar’. Assim, vocábulos como ‘aleijar’, ‘suspeitar’, ‘deixar’, ‘beijar’, ‘beirar’, ‘empoeirar’, ‘empoleirar’, ‘encarreirar’, ‘enfileirar’, ‘entricheirar’, ‘inteirar’, ‘maneirar’, ‘peneirar’ não teriam, nas formas rizotônicas, abertura da vogal média. Não são raros ou incomuns, na fala carioca, usos como al[ɛ]jo; além disso, todos os verbos terminados em –eirar no infinitivo costumam 55 ter uma realização com –ei monotongado para [ɛ]3. Isso leva, inclusive, à ocorrência de pares mínimos: verbos que expressam presente (com [ɛ] na sílaba tônica) e outras classes: substantivos ou adjetivos (com [ej] ou [e]), como se vê nos dados em (07): (07) Verbo que indica presente Outra classe b[ɛ]ra b[e]ira ou b[e]ra int[ɛ]ra int[e]ira ou int[e]ra man[ɛ]ra man[e]ira ou man[e]ra pen[ɛ]ra pen[e]ira ou pen[e]ra Reis (1982, p.81-82) também cita a ocorrência de vogal média-baixa nos casos de penúltima sílaba com ei-: “Pessoas menos cultas manifestam, porém, uma tendência a pronunciar o e aberto em alguns destes, principalmente nos polissilábicos terminados em eirar, no verbo enfeixar e no verbo aleijar: penéiro, penéire, enféixo, enféixe, aléijo, aléije, etc. Com o verbo inteirar (completar, perfazer) nunca ouvimos outras formas que não fossem com e aberto: intéiro, intéira, etc. A verdade é que a pronúncia viciosa vai contaminado a linguagem até das pessoas cultas” Buscamos, no Aurélio Eletrônico, dados de abertura da vogal média anterior a serviço da informação de presente no contexto de verbos terminados em ‘–ebar’, ‘-ecar’, ‘-eçar’, ‘-essar’, ‘-edar’, ‘-efar’, ‘-egar’4, ‘-elar’, ‘-epar’, ‘-erar’, ‘-esar’, ‘-ezar’, ‘-etar’, ‘-evar’, ‘-erbar’, ‘-ercar’, ‘-erdar’, ‘-ernar’, ‘-ersar’, ‘-ertar’, ‘-ervar’, ‘-escar’, ‘esgar’, ‘-espar’, ‘-estar’, ‘-extar’, ‘-eptar’: 3 A monotongação de [ej] e [ow] é, geralmente, para [e] e [o]: ‘p[ej]xe’→’p[e]xe’, ‘qu[ej]jo’→‘qu[e]jo’, ‘[ow]ro’→‘[o]ro’; ‘c[ow]ro’→‘c[o]ro’. Quando a monotongação tem como resultado uma vogal aberta, há, geralmente, a indicação de uma informação gramatical: ‘est[ɔ]ro’; ‘int[ɛ]ra’ (informação de tempo presente). 4 O verbo chegar é o único que não sofre abertura nas formas rizotônicas: *ch[ɛ]go, *ch[ɛ]ga. 56 (08) ensebar, brecar, checar, começar, defecar, desmunhecar, dessecar, dissecar, embonecar, encabeçar, endereçar, hipotecar, obcecar, pecar, recomeçar, ressecar, sapecar, secar, tropeçar, acessar, apressar, arremessar, atravessar, cessar, confessar, engessar, estressar, expressar, ingressar, interessar, processar, professar, regressar, arredar, azedar, dedar, degredar, depredar, embebedar, emparedar, enredar, enveredar, hospedar, sedar, vedar, atarefar, blefar, agregar, alegar, apegar, carregar, cegar, congregar, delegar, desagregar, desapegar, desassossegar, descarregar, desempregar, despegar, despregar, empregar, encarregar, escorregar, esfregar, navegar, negar, pegar, recarregar, regar, relegar, renegar, segregar, sobrecarregar, sonegar, sossegar, subdelegar, trafegar, acautelar, acotovelar, afivelar, amarelar, atrelar, atropelar, cancelar, congelar, degelar, desafivelar, desatrelar, descabelar, desnovelar, desmantelar, desnivelar, desvelar, empapelar, empastelar, encastelar, engabelar ou engambelar, esfacelar, esfarelar, esgoelar, estatelar, estrelar, flagelar, gelar, interpelar, martelar, melar, modelar, nivelar, parcelar, pelar, pincelar, protelar, rebelar, remodelar, revelar, selar, tabelar, tagarelar, tutelar, velar, zelar, decepar, discrepar, entrepar, increpar, trepar, acelerar, adulterar, aglomerar, asseverar, considerar, cooperar, deliberar, degenerar, dasacelerar, desconsiderar, desesperar, desencarcerar, desonerar, destemperar, dilacerar, encarcerar, encerar, enumerar, esperar, exagerar, exasperar, exonerar, gerar, imperar, incinerar, liberar, liderar, moderar, numerar, obliterar, onerar, operar, paquerar, perseverar, ponderar, preponderar, proliferar, prosperar, reconsiderar, recuperar, refrigerar, regenerar, reiterar,remunerar, retemperar, reverberar, temperar, superar, tolerar, venerar, verberar, zerar, afrancesar, aportuguesar, enviesar, inglesar, lesar, pesar, repesar, desprezar, embelezar, enfezar, menosprezar, prezar, revezar, rezar, acarretar, alfinetar, aquietar, arquitetar, coletar, completar, decretar, deletar, desinfetar, desenquietar, encasquetar, encetar, engavetar, espetar, etiquetar, excretar, fretar, infetar ou infectar, interpretar, inquietar, marretar, projetar, vetar, xeretar, elevar, enlevar, levar, nevar, relevar, sobrelevar, sublevar, averbar, exacerbar, alicerçar, cercar, deserdar, herdar, alternar, consternar, desgovernar, encadernar, externar, governar, internar, invernar, conversar, desconversar, dispersar, tergiversar, versar, acertar, acobertar, alertar, apertar, concertar, consertar, desacertar, desapertar, desconcertar, desconsertar, desertar, despertar, dissertar, enxertar, fletar, libertar, ofertar, conservar, enervar, observar, preservar, reservar, copidescar, pescar, refrescar, envesgar, encrespar, desencrespar, interceptar, receptar, atestar, contestar, desembestar, desflorestar, detestar, embestar, emprestar, encabrestar, encestar, enfestar, gestar, infestar, manifestar, molestar, prestar, protestar, reflorestar, restar, testar. Em todos esses dados, ocorre abertura da vogal média nas formas rizotônicas, abertura esta responsável por informar tempo presente. Como já abordamos, mesmo nos casos em que a norma padrão determina que a ocorrência de vogal média-alta, como ‘-ejar’, ‘-exar’, ‘-echar’, ‘-elhar’, ocorrem usos com a abertura da vogal na sílaba tônica para informar presente, a exemplo do que se vê em (09): 57 (09) almejar: alm[ɛ]ja, arejar: ar[ɛ]ja, azulejar: azul[ɛ]jo, bocejar: boc[ɛ]jo, invejar: inv[ɛ]ja, velejar: vel[ɛ]ja, anexar: an[ɛ]xo, vexar: v[ɛ]xo, desindexar: desind[ɛ]xa, indexar: ind[ɛ]xa, bochechar: boch[ɛ]cho, desfechar: desf[ɛ]cha, entrefechar: entref[ɛ]cha, fechar: f[ɛ]cha, flechar: fl[ɛ]cha, espelhar: esp[ɛ]lho; aparelhar: apar[ɛ]lho, destelhar: dest[ɛ]lho. Não são muito comuns usos como ‘far[ɛ]ja’, ‘fest[ɛ]ja’, ‘gagu[ɛ]ja’, ‘man[ɛ]ja’, ‘plan[ɛ]ja’, ‘assem[ɛ]lha’, ‘acons[ɛ]lha’, mas, se passarem a ocorrer na língua, estarão a serviço da informação de presente. Mesmo quando a vogal média é modificada por uma semivogal, há uma tendência a abrir essa vogal. Verificamos essa abertura no ditongo “eu”: ‘end[ɛ]usa’, ‘end[ɛ]uso’, ‘end[ɛ]use’. No ditongo ‘ei’, essa abertura é vista em formas terminadas em ‘-eiçar’, como ‘desb[ɛ]iça’, ‘desb[ɛ]iço’, ‘desb[ɛ]ice’; ‘emb[ɛ]iça’, ‘emb[ɛ]iço’, ‘emb[ɛ]ice’. Formas terminadas em ‘–eirar’ também sofrem abertura, mas acompanhada de monotongação, a exemplo de ‘abrasil[ɛ]ra’, ‘abrasil[ɛ]ro’, ‘abrasil[ɛ]re’; ‘b[ɛ]ra’, ‘b[ɛ]ro’, ‘b[ɛ]re’; ‘emband[ɛ]ra’, ‘emband[ɛ]ro’, 58 ‘emband[ɛ]re’; ‘emparc[ɛ]ra’, ‘emparec[ɛ]ro’, ‘emparc[ɛ]re’; ‘empo[ɛ]ra’, ‘empo[ɛ]ro’, ‘empo[ɛ]re’; ‘encarr[ɛ]ra’, ‘encarr[ɛ]ro’, ‘encarr[ɛ]re’; ‘enfil[ɛ]ra’, ‘enfil[ɛ]ro’, ‘enfil[ɛ]re’; ‘entrinch[ɛ]ra’, ‘entrinch[ɛ]ro’, ‘entrinch[ɛ]re’; ‘int[ɛ]ra’, ‘int[ɛ]ro’, ‘int[ɛ]re’; ‘man[ɛ]ra’, ‘man[ɛ]ro’, ‘man[ɛ]re’; ‘pen[ɛ]ra’, ‘pen[ɛ]ro’, ‘pen[ɛ]re’. A abertura em ‘aleijar’ também é acompanhada de monotongação: ‘al[ɛ]ja’, ‘al[ɛ]jo’, ‘al[ɛ]je’. As formas verbais ‘deixar’, ‘beijar’ e os verbos terminados em ‘–eitar’ (‘deitar’, ‘confeitar’, ‘enfeitar’) não sofrem abertura de vogal média nas formas rizotônicas, mas, caso ela ocorra, indicará presente. Nas formas verbais com ‘ou’[ow] na penúltima sílaba do infinitivo, Reis (1982, p.85) também evidencia ser a realização com vogal média-alta, [o], a pronúncia conforme a norma padrão, mas também explicita a ocorrência de vogal média-baixa: “manifestam pessoas menos cultas a errônea tendência para proferir aberto o o nas formas rizotônicas: róbo em vez de roubo, pópa em vez de poupa, estóra em vez de estoura, etc.”. Essa realização da vogal média [ɔ] é muito produtiva em português nas formas rizotônicas, ocorrendo no presente do indicativo, no presente do subjuntivo e nos imperativos de verbos de 1ª conjugação. Através de busca no Aurélio Eletrônico, verificamos que alguns verbos com ‘ou’ na penúltima sílaba do infinitivo têm abertura de vogal nas formas rizotônicas: ‘roubar’, ‘toucar’, ‘tresloucar’, ‘poupar’, ‘enroupar’, ‘agourar’, ‘alourar’, ‘desdourar’, ‘dourar’, ‘entesourar’, ‘estourar’, ‘tesourar’, ‘pousar’, ‘repousar’, ‘louvar’, ‘afrouxar’, ‘entrouxar’. Essa abertura de vogal acarreta pares mínimos entre verbos que expressam presente e outras classes, como se observa em (10): 59 (10) Verbo que indica presente Outra classe r[ɔ]bo r[o]ubo ou r[o]bo tresl[ɔ]co tresl[o]uco ou tresl[o]co ag[ɔ]ro ag[o]uro ou ag[o]ro est[ɔ]ro est[o]uro ou est[o]ro p[ɔ]so p[o]uso ou p[o]so rep[ɔ]so rep[o]uso ou rep[o]so Sobre formas infinitivas verbais com ‘oi-’ em sílaba pretônica, afirma Reis (1982) que se deve, nas formas rizotônicas, realizar vogal aberta quando em seguida não houver consoante, como em ‘b[ɔ]io’, ‘b[ɔ]ia’. Já nos casos em que ocorre consoante depois do referido ditongo (-oiçar, -oidar, -oirar, -oisar, -oitar, -oimar), a realização deve ser com vogal fechada, a exemplo de ‘end[o]ido’, ‘pern[o]ito’, ‘n[o]ivo’. No uso efetivo da língua, verificamos uma tendência a realizar a vogal aberta também nesses casos: ‘end[ɔ]ida’, ‘end[ɔ]ido’; ‘pern[ɔ]ito’, ‘pern[ɔ]ite’, ‘n[ɔ]ivo’, ‘n[ɔ]iva’. No Aurélio Eletrônico, buscamos verbos com ‘oi’ na sílaba pretônica do infinitivo – ‘foiçar’, ‘endoidar’, ‘abiscoitar’, ‘acoitar’, ‘açoitar’, ‘afoitar’, ‘amoitar’, ‘pernoitar’, ‘tresnoitar’, ‘noivar’. Defendemos a hipótese de que, nesses dados, o falante pode optar por abrir a vogal média. Quando faz isso, está expressando formalmente a noção gramatical presente. A abertura de vogal cria pares mínimos em que a realização com vogal aberta indica verbo no presente e com vogal média-alta, outra classe: (11) Verbo que indica presente Outra classe n[ɔ]iva/n[ɔ]ivo n[o]iva/n[o]ivo pern[ɔ]ite pern[o]ite f[ɔ]ice f[o]ice aç[ɔ]ite aç[o]ite af[ɔ]ito af[o]ito 60 A necessidade de Otelo Reis (1982) explicitar, através de uma visão preconceituosa, a ocorrência de vogal aberta em verbos cuja realização padrão seria com vogal fechada num breviário, mesmo tendo breviários verbais o objetivo de demonstrar a pronúncia padrão do português, deixa claro como a abertura de vogal em formas rizotônicas é regular e produtiva. Existe uma regularidade que evidencia que vogal média-baixa em sílaba tônica expressa a noção presente. Em casos como ‘f[ɛ]cho’, ‘f[ɛ]che’ e f[ɛ]cha (de fechar), ‘r[ɔ]bo’, ‘r[ɔ]be’ e ‘r[ɔ]ba’ (de ‘roubar’), verifica-se que, no uso efetivo da língua, há variação na realização entre ‘f[ɛ]cho’ e ‘f[e]cho’, ‘f[ɛ]cham’ e ‘f[e]cham’, ‘f[ɛ]cha’ e ‘f[e]cha’, ‘f[ɛ]che’ e ‘f[e]che’; ‘r[ɔ]bo’ e ‘r[ow]bo’, ‘r[ɔ]bam’ e ‘r[ow]bam’, ‘r[ɔ]ba’ e ‘r[ow]ba’, ‘r[ɔ]be’ e ‘r[ow]be’, em que as pronúncias com vogal aberta servem à expressão formal do conteúdo presente. Podemos, então, comprovar que não é a marca zero que informa presente do indicativo, uma vez que a noção de presente funde-se no radical do verbo através de expedientes formais, como a alternância vocálica. Em ‘r[ɔ]bo’; ‘r[ɔ]ba’; ‘r[ɔ]bam’, por exemplo, o falante monotonga ‘ou’ para ‘o’ na sílaba tônica, abrindo a vogal em prol da indicação de presente. O mesmo ocorre em ‘est[ɔ]ro’; ‘est[ɔ]ra’; ‘est[ɔ]ram’ (de ‘estourar’), entre outros exemplos. Somente a 4ª pessoa (nós) e a 5ª pessoa (vós) não sofrem abertura de vogal nos tempos que informam presente, como verificamos, em (03) acima, na conjugação dos verbos ‘jogar’ e ‘pegar’ no presente do indicativo. A abertura vocálica em P4 e P5 não ocorre devido à vogal média do radical sempre se encontrar em posição pretônica. Entretanto, ‘nós’ concorre com ‘a gente’, e o pronome ‘vós’ caiu em desuso no uso efetivo da língua. Os verbos que concordam com ‘vocês’ e ‘a gente’ têm vogal média em sílaba tônica e, por isso, sofrem abertura de vogal: vocês 61 ‘p[ɛ]gam’; vocês ‘j[ɔ]gam’; a gente ‘p[ɛ]ga’; a gente ‘j[ɔ]ga’. A título de ilustração, podemos observar o paradigma de presente do indicativo no quadro pronominal atual: (12) Eu al‘m[ɔ]ço Você ~ Tu al‘m[ɔ]ça ~ al‘m[ɔ]ças5 Ele al‘m[ɔ]ça Nós ~ A gente alm[o]‘çamos ~ al‘m[ɔ]ça Vocês al‘m[ɔ]çam Eles al‘m[ɔ]çam Como já ilustramos, a alternância vocálica, no paradigma verbal de 1ª conjugação do português, manifesta o tempo presente. A abertura de vogal média em posição tônica no presente do indicativo, por exemplo, permite uma oposição funcional com o pretérito perfeito, que também tem, segundo as abordagens estruturalistas, marca zero. Na verdade, o pretérito perfeito sempre tem a vogal média fechada na posição tônica, assim como todos os outros tempos verbais que não expressam a noção de presente em português: pretérito imperfeito do indicativo; pretérito-mais-que-perfeito; futuro do presente; futuro do pretérito; pretérito imperfeito do subjuntivo; futuro do subjuntivo. A vogal média tônica realizada como fechada é o que opõe, então, funcionalmente o pretérito perfeito ao presente do indicativo. Com a análise da alternância vocálica no presente do indicativo, demonstramos como esse caso de fusão é produtivo e passível de sistematização em português. No presente do indicativo, sempre que houver, na primeira conjugação, vogal média em 5 No uso efetivo do Rio de Janeiro, é frequente o pronome tu com o verbo flexionado em 3ª pessoa do singular (‘alm[ɔ]ça’). Essa forma não é marcada negativamente pelos falantes e vem se tornando cada vez mais frequente. 62 posição tônica, haverá uma tendência a abrir essa vogal. A abertura funciona, portanto, como expediente morfológico que indica informação gramatical. A abertura da vogal média tem, como enfatizamos, motivação fonológica, pois só ocorre em sílaba tônica. Essa mudança formal, mesmo tendo condicionamento fonológico, possui contraparte semântica, estando a serviço da informação de presente. Isso fundamenta a hipótese de Bybee (1985) de que mudanças formais têm, geralmente, contraparte semântica. Nesta Dissertação, pretendemos comprovar que isso ocorre até mesmo quando há explicação fonológica para as mudanças formais. Na língua, também se buscam formas para indicar a noção modo-tempoaspectual de pretérito perfeito. Assim, verificamos, por exemplo, radicais ‘troux-’; ‘coub-’; ‘pud-’; ‘estiv-’ e ‘est[e]v-’ ; ‘soub-’, que informam noção gramatical de tempo no paradigma de pretérito perfeito. 4.1.2.1. Ditongação no radical: informação de presente Outra estratégia para indicar presente é a ditongação no radical do verbo. Na 1ª conjugação, por exemplo, verbos terminados em ‘-ear’ sofrem ditongação por epêntese de semivogal [j] no presente do indicativo, presente do subjuntivo, imperativo negativo e P3 e P6 do imperativo afirmativo. Em outras palavras, a epêntese de [j] ocorre nos tempos que indicam presente. Desse modo, fica evidente que a ditongação está a serviço da informação de presente. Alguns exemplos, buscados no Aurélio Eletrônico, são os seguintes: (13) alardear, altear, alhear, aperrear, altear, assenhorear, balancear, bambolear, baratear, barbear, bloquear, bobear, bombardear, bombear, cabecear, cear, cercear, clarear, custear, delinear, desencadear, despentear, devanear, escanear, estrear, frear, golear, golpear, homenagear, manusear, mapear, massagear, nocautear, parafrasear, passear, pentear, permear, presentear, rastrear, rechear, saborear, sapatear, sortear, zonear. 63 Os verbos ‘odiar’ e ‘incendiar’, terminados em ‘–iar’, também sofrem ditongação por epêntese de [j], como ‘ode[j]’ e ‘incende[j]’, em formas do presente do indicativo, do presente do subjuntivo e dos imperativos. A título de exemplificação, observe-se a conjugação de ‘presentear’ no presente do indicativo: (14) Eu presente[j]o Você presente[j]a ~ Tu presente[j]as ~ Tu presente[j]a Ele presente[j]a 6 Nós presenteamos ~ Nós presente[j]amos ~A gente presente[j]a Vocês presente[j]am Eles presente[j]am A epêntese de [j] nos radicais dos verbos terminados em ‘-ear’ informa a noção gramatical presente, como se vê nos dados em (15): (15) alarde[j] alte[j] aperre[j] assenhore[j] balance[j] bambole[j] barate[j] barbe[j] bloque[j] bobe[j] bombarde[j] bombe[j] cabece[j] ce[j] cerce[j] clare[j] custe[j] deline[j] desencade[j] despente[j] devane[j] escane[j] estre[j] fre[j] gole[j] golpe[j] homenage[j] manuse[j] mape[j] massage[j] nocaute[j] parafrase[j] passe[j] pente[j] perme[j] presente[j] rastre[j] reche[j] sabore[j] sapate[j] sorte[j] zone[j] Verificamos, então, que radicais com epêntese de [j] expressam tempo presente. Como esse fenômeno é regular e indica uma informação gramatical, o falante, às vezes, 6 Apesar de essa forma estar em desacordo com a norma padrão, ela é muito realizada pelos falantes. Segundo a norma padrão, a ditongação ocorre formalmente nas formas rizotônicas do presente do indicativo Todavia, o falante realiza esse processo morfológico com frequência em P4 na sílaba pretônica: ‘presente[j]‘amos’; ‘estre[j]‘amos’; ‘ ce[j]‘amos’ indicando, dessa forma, a noção presente. 64 realiza-o mesmo quando seu uso está em desacordo com a pronúncia padrão. Desse modo, é comum realizar ditongação por epêntese de [j] nas formas verbais terminadas em ‘–iar’. Esse uso é atestado por Reis (1982, p. 63): “Pessoas incultas tendem a confundir estes verbos com os terminados em ear, e dizem: copeio, vareia, apreceio, etc. Esta pronúncia incorreta chega, em alguns lugares, a contaminar a própria linguagem de algumas pessoas cultas”. A necessidade de citar essa epêntese deve-se à produtividade e à regularidade de sua ocorrência. Defendemos a hipótese de que esse processo é produtivo por estar a serviço de uma informação gramatical: a indicação de presente. Há uma série de verbos, terminados em ‘–iar’, nos quais o falante realiza a ditongação por epêntese de [j]. Quando realiza esse processo, está indicando presente através de uma marca formal: a mudança no radical do verbo (fusão): (16) vare[j]o / vare[j]a cope[j]o / cope[j]a aprece[j]o / aprece[j]a abreve[j]o / abreve[j]a alume[j]o / alume[j]a aprope[j]o / aprope[j]a benefice[j]o / benefice[j]a chefe[j]o / chefe[j]a contage[j]o / contage[j]a desaprece[j]o / desaprece[j]a deprece[j]o / deprece[j]a diference[j]o / diference[j]a distance[j]o / distance[j]a divorce[j]o / divorce[j]a esvaze[j]o / esvaze[j]a evidence[j]o / evidence[j]a fantase[j]o / fantase[j]a finace[j]o / finance[j]a maque[j]o / maque[j]a negoce[j]o / negoce[j]a plage[j]o / plage[j]a presence[j]o / presence[j]a sace[j]o / sace[j]a silence[j]o / silence[j]a Em verbos como ‘caber’, ‘saber’, ‘querer’ (de 2ª conjugação), também ocorre ditongação por epêntese de [j] para informar presente: ‘ca[j]b-’ ocorre em P1 do presente do indicativo, no presente do subjuntivo, no imperativo negativo e em P3 e P6 do imperativo afirmativo; já ‘sa[j]b-’ e ‘que[j]r-’ ocorre nas mesmas formas com exceção da P1 do presente do indicativo. Podemos afirmar que ‘que[j]r-’, ‘sa[j]b-’ e ‘ca[j]b-’ informam presente através de fusão por ditongação. Na 3ª conjugação, o verbo ‘parir’ é um exemplo em que o radical ‘pa[j]r-’ atualiza a noção de presente. 65 A ditongação, nesses casos, tem uma motivação formal, só acontecendo na P1 do presente do indicativo e nas formas dela originadas: no presente do subjuntivo, na P3 e na P6 do imperativo afirmativo e no imperativo negativo. Essas coincidências formais não são fortuitas. As semelhanças formais que ocorrem têm uma contraparte semântica: estão a serviço da informação de presente. A ditongação, como um expediente morfológico que manifesta presente, reforça a hipótese de Bybee (1985) de que alterações formais têm, geralmente, contraparte semântica. 4.1.2.2. Mudança na consoante final do radical: fusão da informação de presente Um outro caso de fusão que serve à informação de tempo presente é a mudança na consoante final do radical do verbo. Na 2ª conjugação, ‘perder’, ‘poder’, ‘valer’, ‘dizer’, ‘contradizer’, ‘fazer’, ‘refazer’ e ‘trazer’ são exemplos de verbos que têm um radical que informa presente. A P1 do presente do indicativo, o presente do subjuntivo, o imperativo negativo e P3 e P6 do imperativo têm um radical com mudança na consoante final que funciona como um expediente para a informação temporal: (17) perc- (de ‘perder’) poss- (de ‘poder’) valh- (de ‘valer’) dig- (de ‘dizer’) contradig- (de ‘contradizer’) faç- (de ‘fazer’) refaç- (de ‘refazer’) trag- (de ‘trazer’) Nos dados acima, verificamos que uma mudança no último segmento do radical está a serviço da informação de presente. Em ‘perder’ e ‘poder’, ocorre alteração de [d] para [k] e para [s], respectivamente. Os radicais com [k], ‘per[k]-’, e [s], ‘po[s]-’, indicam presente. Em ‘fazer’, a consoante muda de [z] para [s]: de ‘fa[z]er’ para 66 ‘fa[s]o’, ‘fa[s]a’, ‘fa[s]amos’. Já em ‘trazer’ e ‘dizer’, a mudança é de [z] para [g]: de ‘tra[z]er’ e ‘di[z]er’ para ‘tra[g]o’, ‘tra[g]a’ e ‘di[g]o’, ‘di[g]a’. No nosso entendimento, os radicais acima expressam formalmente o conteúdo de tempo presente. Na 3ª conjugação, também ocorrem casos de mudança na consoante final do radical em prol da informação de presente. Em ‘pedir’, ‘medir’ e ‘ouvir’, há radicais específicos, com fusão por alteração da consoante final, para informar presente: (18) peç- (de pedir) meç- (de medir) ouç- (de ouvir) Nesses dados, as formas com [s] são casos de expressão formal de presente, visto que ocorrem em radicais de tempos que indicam presente. Em dados da 2ª conjugação, como ‘vejo’/’veja’, ‘revejo’/’reveja’, ‘provejo’/’proveja’, não há alteração na consoante final do radical, mas acréscimo de um segmento após o tema verbal nos tempos que expressam presente. Em ‘(re)ver’ e ‘prover’, depois do tema em –e, ocorre acréscimo de consoante, acréscimo este a serviço da informação de presente, acontecendo em P1 do presente do indicativo, no presente do subjuntivo, no imperativo negativo e em P3 e P6 do imperativo afirmativo. No paradigma verbal do português, existem outros casos de acréscimo consonantal que funciona como expediente de alguma informação gramatical: ‘ter’, ‘pôr’ (verbos de 2ª conjugação) e ‘vir’ (verbo de 3ª conjugação): (19) Presente Pretérito Imperfeito te/N/- ti[ɲ]- po/N/- pu[ɲ]- ve/N/- vi[ɲ]- 67 Nos casos de ‘ter’, ‘pôr’ e ‘vir’, ocorre acréscimo de nasal. Em todas as formas dos tempos que informam presente, a nasalidade pode ser realizada de diversas formas: ‘tem’, ‘tens’ (semi-vogal nasalizada); ‘tenho’, ‘tenha’, ‘tenhas’ (nasal palatal); ‘tendes’ (nasal alveolar de pequena duração). Já no pretérito imperfeito do indicativo, ocorre a nasal palatal [ɲ] no radical. A manutenção da vogal temática como média e o acréscimo da nasalidade constituem a expressão formal de presente. Quando o acréscimo de uma nasal, especificada como palatal, se soma a uma passagem da vogal média a alta, ocorre a indicação de pretérito imperfeito do indicativo. 4.1.2.3. Expediente morfológico para informação de presente: fusão Demonstramos – com a análise de expedientes morfológicos como alternância vocálica, ditongação, mudança da consoante final do radical, inserção de consoante na posição final do radical – que não é uma marca zero que informa presente. Na verdade, a língua não expressa formalmente presente através de acréscimo de afixos, mas por meio da fusão. Os expedientes morfológicos aqui analisados são casos evidentes de fusão da informação de presente no português. 4.1.3. Fusão da noção gramatical de pretérito perfeito Na 2ª conjugação, verbos como ‘caber’, ‘haver’, ‘querer’, ‘aprazer’, ‘dizer’, 7 ‘fazer’, ‘trazer’, ‘poder’, ‘ter’ apresentam fusão da noção de pretérito perfeito . No 7 O radical que expressa formalmente a noção de pretérito perfeito é sempre o mesmo do pretérito maisque-perfeito simples: ‘troux-’ (trouxera e trouxe); ‘pud-’ (pudera e pude); ‘tiv-’ (tivera e tive); ‘fiz-’ (fizera e fiz); ‘diss-’ (dissera e disse); ‘aprouv-’ (aprouvera e aprouve); ‘quis-’ (quisera e quis); ‘houv-’ (houvera e houve); ‘coub-’ (coubera e coube). Todavia, o pretérito mais-que-perfeito simples caiu em desuso na língua, sendo a estratégia morfológica substituída pela sintática (ter ou haver + particípio passado): tinha trazido; tinha podido; havia tido; tinha feito; tinha dito, em que não há fusão no radical. Pelo fato de a forma simples ter caído em desuso, não postulamos a fusão da noção de pretérito mais-que- 68 verbo ‘estar’, de 1ª conjugação, também ocorre fusão da noção de pretérito perfeito. Nesses exemplos, a informação de pretérito perfeito dá-se por fusão através de ditongação, mudança consonantal, acréscimo consonantal e alternância vocálica. Abaixo, vemos exemplos de fusão por ditongação para [ow]: (20) coubhouvaprouvtroux- Nesses dados, as formas com ditongo no radical ocorrem também nos tempos futuro do subjuntivo, pretérito imperfeito do subjuntivo e pretérito mais-que-perfeito do indicativo, mas, no pretérito perfeito, o ditongo [ow] é a única marca responsável por 8 atualizar a noção de pretérito perfeito, enquanto nos outros tempos afixos veiculam noções de MTA: ‘-sse’ informa pretérito imperfeito do subjuntivo; ‘-ra’ e.‘-re’, pretérito mais-que-perfeito; ‘-r’ e ‘-re’, futuro do subjuntivo. A fusão de pretérito perfeito pode envolver mudança consonantal acrescida de alternância vocálica, a exemplo do que ocorre em ‘quis-’, de ‘querer’ (mudança de [e] para [i] acrescida de alteração da consoante final do radical); em ‘tiv-‘, de ‘ter’, a alternância vocálica soma-se à inserção da consoante [v]: perfeito. O pretérito mais-que-perfeito é, muitas vezes, utilizado na língua com categorização e sentido interjectivos: tomara, pudera, quisera (cf. VIVAS, 2009). 8 Acreditamos que essa ditongação esteja a serviço de alguma informação gramatical, até porque o pretérito perfeito é chamado pela literatura morfológica de primitivo por dar origem aos tempos pretérito mais-que-perfeito do indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo e futuro do subjuntivo. Provavelmente, há algum conteúdo semelhante nos tempos pretérito perfeito do indicativo, pretérito imperfeito e futuro do subjuntivo e pretérito mais-que-perfeito do indicativo; a coincidência formal deve ter uma contraparte semântica. 69 (21) Verbo querer Verbo ter qu[i][ʃ] qu[i][z]este t[i][v]e t[i][v]este qu[i][ʃ] qu[i][z]emos qu[i][z]estes qu[i][z]eram te[v]e t[i][v]emos t[i][v]estes t[i][v]eram 9 Com relação ao verbo ‘estar’, também há acréscimo consonantal acompanhado de alternância vocálica: ‘estar’ → ‘estive’ e ‘esteve’. Desse modo, as formas ‘estive’ e ‘esteve’ informam pretérito perfeito, como se vê em (22): (22) est[i][v]e est[i][v]este est[e][v]e est[i][v]emos est[i][v]estes est[i][v]eram No verbo ‘dizer’, a mudança consonantal é o único expediente para informar pretérito perfeito: ‘di[z]-’ alterna para ‘di[s]-’: (23) di[s]e di[s]este di[s]e di[s]emos di[s]estes di[s]eram Em outros casos, a informação de pretérito perfeito dá-se por alternância vocálica no radical: (24) 9 f[i]z- (verbo ‘fazer’) f[e]z- (verbo ‘fazer’) p[u]d- (verbo ‘poder’) Nesse caso, a mudança consonantal é o único expediente para a informação de pretérito perfeito. 70 Nesses casos, quando se realiza o radical com vogal alta, informa-se pretérito perfeito. Em outras palavras, quando o falante realiza ou ouve algum verbo com a forma de radical ‘f[i]z-’ / ‘f[e]z’ ou ‘p[u]d-’, reconhece a informação de tempo passado; os radicais ‘f[i]z-’ e ‘p[u]d-’ ocorrem em P1, P2, P4, P5 e P6. Já ‘f[e]z’ se realiza em P3 : (25) Verbo fazer f[i]z f[i]zeste f[e]z f[i]zemos f[i]zestes f[i]zeram Verbo poder p[u]de p[u]deste p[o]de p[u]demos p[u]destes p[u]deram Cabe salientar que, em todos os casos de fusão de pretérito perfeito, a forma de P4 do pretérito perfeito difere da forma de P4 do presente do indicativo: ‘coubemos’ / ‘cabemos’; ‘houvemos’ / ‘havemos’; ‘quisemos’ / ‘queremos’; ‘aprouvemos’ / ‘aprazemos’; ‘trouxemos’ / ‘trazemos’; ‘tivemos’ / ‘temos’; ‘dissemos’ / ‘dizemos’; ‘fizemos’ / ‘fazemos’; ‘pudemos’ / ‘podemos’; desfaz-se a homonímia. Na primeira conjugação, paradigma produtivo do português, também existe uma estratégia que diferencia, na P4, pretérito perfeito e presente do indicativo: muda-se a vogal temática, que está na sílaba tônica: (26) cantamos → cantemos jogamos → joguemos amamos → amemos estudamos → estudemos andamos → andemos De acordo com Ilari & Basso (2009: 176): 71 “note-se que a variante subpadrão que distingue nóis cantamo de nóis cantemo consegue distinguir morfologicamente dois tempos do verbo (o presente e o pretérito perfeito), uma diferença importante que o português brasileiro culto não consegue marcar”. O fenômeno, apontado por Illari & Basso (2009), demonstra a tendência de distinguir formalmente dados que remetem a informações gramaticais diferentes. Até mesmo na primeira conjugação, o falante expressa pretérito perfeito através de fusão. 4.1.4. Noção de futuro: fusão por haplologia Outra estratégia de fusão é a haplologia, pois a queda de uma sílaba no radical do verbo pode ter uma contraparte semântica. Nos verbos ‘trazer’, ‘fazer’, ‘pôr’, ‘dizer’, a informação de futuro do presente é expressa pelas marcas ‘-ra’ e ‘-re’. Todavia, há um reforço dessa informação gramatical por queda de sílaba no radical: (27) *trazerei → trarei *dizerei → direi Desse modo, o paradigma de futuro do presente estrutura-se da seguinte maneira: (28) Verbo trazer trarei trarás trará traremos trareis trarão 72 O mesmo ocorre no futuro do pretérito com esses verbos (‘trazer’, ‘fazer’, ‘pôr’, ‘dizer’). A queda de sílaba no radical reforça a noção de futuro, primariamente expressa pelas marcas ‘-ria’ e ‘-re’: (29) *trazeria → traria *dizeria → diria Vemos abaixo o paradigma de futuro do pretérito: (30) Verbo trazer traria trarias traria traríamos traríeis trariam Esses casos de fusão por haplologia reforçam nossa hipótese: mudanças formais, mesmo quando condicionadas fonologicamente, podem estar a serviço de alguma informação gramatical. A haplologia é um processo fonológico, mas, nos casos em exame, reforça a noção de futuro. 4.2. Fusão de número-pessoa 4.2.1. Fusão número-pessoal por ditongação A informação de número-pessoa também pode se dar por fusão. Um dos expedientes formais de fusão número-pessoal é a ditongação. Esse fenômeno ocorre, no paradigma de presente do indicativo, em favor do reforço da noção de P1 nos verbos ‘caber’, ‘crer’, ‘ler’ (2ª conjugação) e no verbo ‘parir’ (3ª conjugação). Sempre que o mecanismo fusão coocorre com um afixo, dizemos que o expediente fusional reforça o 73 conteúdo: (31) caib- (caibo) crei- (creio) lei- (leio) pair- (pairo) (32) Verbo ler Eu leio Você lê ~Tu lês ~ Tu lê Ele lê Nós lemos ~ A gente lê Vocês leem Eles leem (33) Verbo crer Eu creio Você crê ~ Tu crês ~ Tu crê Ele crê Nós cremos ~ A gente crê Vocês creem Eles creem Nesses dados, no presente do indicativo, as formas ‘caib-’, ‘crei-’, ‘lei-’, ‘pair-’, além de indicarem a informação de presente, reforçam a noção de P1, que tem o afixo -o como expediente primário. Nem todos os falantes realizam as formas ‘caib-’ e ‘pair-’ na P1 do presente do indicativo; dessa forma, é comum ouvirmos realizações como ‘cabo’ e ‘paro’ para ‘caber’ e ‘parir’. Entendemos esse caso da seguinte maneira: apesar de ‘caib-’ e ‘pair-’ não serem formas tão produtivas na P1 do presente do indicativo, quando realizadas, servem como reforço à primeira pessoa do singular. Só verificamos fusão de NP por ditongação nos quatro dados acima apontados; outras formas ditongadas servem apenas à informação de presente: os verbos terminados em ‘-ear’ (‘presenteio’, ‘presenteia’, ‘presenteiam’) e os verbos terminados 74 em ‘-iar’ – nos quais os falantes realizam a ditongação (vareio, vareia, vareiam; saceio, saceia, saceiam) – são casos em que a epêntese ocorre na maioria das formas do presente do indicativo, a exemplo de (34) e (35), nessa ordem: (34) Verbo presentear Eu presenteio Você presenteia ~Tu presenteias ~ Tu presenteia Ele presenteia 10 Nós presenteamos ~ A gente presenteia Vocês presenteiam Eles presenteiam (35) Verbo saciar (uso bastante produtivo) Eu saceio Você saceia ~ Tu saceias ~ Tu saceia Ele saceia Nós saceiamos ~ A gente saceia Vocês saceiam Eles saceiam A ditongação é produtiva para a informação de presente; a informação de P1, no entanto, reduz-se a pouquíssimos casos. Um outro expediente formal para a informação de P1 é a mudança consonantal, descrita na próxima seção. 4.2.2. Fusão por mudança ou inserção consonantal Na segunda conjugação, existem algumas formas em que se dá o reforço da noção de P1 por fusão através da mudança na última consoante do radical. Dizemos que acontece reforço, visto que a fusão coocorre com a aglutinação do formativo ‘-o’: 10 É comum e frequente o falante realizar a ditongação em P4 para indicar a noção de presente. 75 (36) perc- (de ‘perder’) poss- (de ‘poder’) valh- (de ‘valer’) dig- (de ‘dizer’) contradig- (de ‘contradizer’) faç- (de ‘fazer’) refaç- (de ‘refazer’) trag- (de ‘trazer’) As formas em (36) servem à informação de presente no paradigma verbal do português – como visto na seção 4.1.2.2 – e, no presente do indicativo, servem ao reforço de P1, como se vê em (37), (38) e (39), nas conjugações de ‘perder’, ‘trazer’ e ‘fazer’: (37) Eu perco Você perde ~ Tu perdes ~ Tu perde Ele perde Nós perdemos ~ A gente perde Vocês perdem Eles perdem (38) Eu trago Você traz ~ Tu trazes ~Tu traz Ele traz Nós trazemos ~ A gente traz Vocês trazem Eles trazem (39) Eu faço Você faz ~ Tu fazes ~ Tu faz Ele faz Nós fazemos ~ A gente faz Vocês fazem Eles fazem A mudança na última consoante do radical reforça o conteúdo P1 e ocorre também na 3ª conjugação, com as seguintes formas: 76 (40) peç- (de ‘pedir’) meç- (de ‘medir’) ouç- (de ‘ouvir’) Assim como na 2ª conjugação, as formas ‘peç-’, ‘meç-’ e ‘ouç-’, além de reforçarem P1 no paradigma de presente, informam a noção presente em português. O reforço de P1 ocorre porque, nessa pessoa, o radical adquire forma diferente dos outros radicais do presente do indicativo, como verificamos abaixo, em ‘pedir’ (41) e ‘ouvir’ (42): (41) Eu peço Você pede ~ Tu pedes ~ Tu pede Ele pede Nós pedimos ~ A gente pede Vocês pedem Eles pedem (42) Eu ouço Você ouve ~ Tu ouves ~ Tu ouve Ele ouve Nós ouvimos ~ A gente ouve Vocês ouvem Eles ouvem A mudança consonantal que serve ao reforço de P1, nas 2ª e 3ª conjugações, ocorre, geralmente, com os segmentos /d/ e /z/: ‘per/d/er’, ‘po/d/er’, ‘pe/d/ir’, ‘me/d/ir’; ‘di/z/er’, ‘contradi/z/er’, ‘fa/z/er’, ‘refa/z/er’, ‘tra/z/er’. A mudança é para /k/, /g/ e /s/: ‘per/k/o’; ‘(contra)di/g/o’, ‘tra/g/o’; ‘po/s/o’, ‘fa/s/o’, ‘refa/s/o’, ‘pe/s/o’. No verbo ‘ouvir’, a mudança na consoante final é também para /s/, mas o segmento alterado é /v/. Já em ‘valer’, a mudança é de /l/ para /λ/. Essa transformação (da lateral alveolar para a lateral palatal) não é tão produtiva, visto que só ocorre nesse verbo e, além disso, muitos falantes realizam ‘va/l/o’ por ‘va/λ/o’. A modificação de um segmento consonantal final para /s/, /k/ e /g/ é um expediente para o reforço da 77 noção de P1 no presente do indicativo em língua portuguesa. Outra estratégia para reforçar a noção de P1 é a inserção de consoante. Isso ocorre nos seguintes dados: (43) vej- (de ver) revej- (de rever) provej- (de prover) tenh- (de ter) ponh- (de pôr) venh- (de vir) (44) Eu vejo Você vê ~ Tu vês ~ Tu vê Ele vê Nós vemos ~ A gente vê Vocês veem Eles veem 45) Eu tenho Você tem ~ Tu tens ~ Tu tem Ele tem Nós temos ~ A gente tem Vocês têm Eles têm (46) Eu venho Você vem ~ Tu vens ~ Tu vem Ele vem Nós vimos ~ A gente vem Vocês vêm Eles vêm Em ‘ver’, ‘rever’, ‘prover’, há acréscimo de [Ʒ]: já em ‘ter’ e ‘pôr’, o acréscimo é de [ɲ]. Em ‘vir’, além do acréscimo de [ɲ], há alternância da vogal tônica de [i] para [e]. Nesses casos de 2ª conjugação (‘ver’, ‘rever’, ‘prover’, ‘ter’, ‘pôr’) e 3ª conjugação (‘vir’), as formas acima apontadas, além de reforçarem a noção de P1 indicada por ‘–o’, informam presente. Todos os dados de fusão número-pessoal (por ditongação, por mudança na 78 consoante final do radical e por acréscimo consonantal) acima ilustrados são casos em que há também fusão da categoria tempo presente. Isso reforça a ideia lançada por Gonçalves (2005): geralmente, quando há fusão de NP, também ocorre fusão de MTA. 4.2.3. Fusão número-pessoal por alternância vocálica Assim como na informação de presente, a fusão por alternância vocálica também é regular e sistemática na informação número-pessoal. A informação de P1 e P3 ocorre não só por acréscimo de afixos (-o; -u), mas também por fusão. A fusão número-pessoal por alternância vocálica ocorre em dados do pretérito perfeito e do presente do indicativo. O padrão é o seguinte: (47) Vogal alta na sílaba tônica do radical → P1 Vogal média na sílaba tônica do radical → P3 Dividimos o grupo de dados, buscados no Aurélio Eletrônico, em dois padrões: A e B. No padrão A, encontram-se os casos de fusão de P1 e P3 no pretérito perfeito do indicativo; a vogal média, nesse caso, é sempre fechada (média-alta). Além disso, a alternância vocálica é a única responsável pela informação número-pessoal de P1 e P3, o que mostra que, na expressão de número e pessoa, a fusão concorre com o acréscimo de afixo. São exemplos desse padrão os verbos ‘ser’, ‘fazer’, ‘ter’, ‘poder’ (2ª conjugação); ‘estar’ (1ª conjugação) e ‘ir’ (3ª conjugação), como vemos a seguir: 79 (48) Verbo ser f[u]i f[o]i Verbo fazer f[i]z f[e]z Verbo ter t[i]ve t[e]ve Verbo poder p[u]de p[o]de Verbo estar est[i]ve est[e]ve Verbo ir f[u]i f[o]i Verbo satisfazer satisf[i]z satisf[e]z Verbo refazer ref[i]z ref[e]z As formas ‘f[i]z-’, ‘t[i]v-’, ‘p[u]d-’, ‘est[i]v-’, ‘satisf[i]z-’, ‘ref[i]z-’, ‘f[e]z-’, ‘t[e]v-’, ‘est[e]v-’, ‘satisf[e]z-’, ‘ref[e]z-’ também fundem a noção de tempo passado; nesses casos, verificamos, além de fusão de número-pessoa, a fusão de uma categoria de MTA (tempo). Já em ‘p[o]d-‘, não há fusão de tempo, visto que essa forma é a regular (default) para a grande maioria dos tempos: ‘poderia’, ‘podia’, ‘poderá’ etc. Os verbos ‘ser’ e ‘estar’ são casos em que formas vocabulares acumulam as noções gramaticais de MTA e NP (cf. GONÇALVES, 2005), como em ‘sou’ (P1, indicativo, presente), ‘é’ (P3, indicativo, presente); ‘era’ (P1 ou P3, pretérito, indicativo, imperfeito); ‘fui’ (P1, pretérito, indicativo, perfeito), ‘foi’ (P3, pretérito, indicativo, perfeito). Esse padrão – ‘vogal alta → P1 e vogal média → P3’ – é regular e sistemático; por isso, o falante, em algumas variedades do português, realiza-o para indicar númeropessoa mesmo quando essa realização está em desacordo com a pronúncia padrão: (49) Verbo trazer tr[u]xe tr[o]xe Verbo saber s[u]be s[o]be Verbo caber c[u]be c[o]be Essas realizações demonstram que, mesmo na 2ª conjugação, paradigma em que o falante não cria novos verbos, é possível aplicar-se um processo morfológico produtivo – fusão por alternância vocálica. Em outras palavras, numa conjugação nãoprodutiva, o falante aplica um processo produtivo. Reis (1982, p. 100) demonstra um juízo de valor negativo à realização desse padrão fusional, o que evidencia a frequência 80 de sua realização: “São errôneas as formas sube, subeste, suberam, subesse, só usadas por pessoas de baixa cultura”. No padrão B de fusão por alternância vocálica, a vogal média é realizada como aberta (vogal média-baixa), exceto quando antecede uma consoante nasal. Nesse padrão, a informação de número-pessoa acontece no presente do indicativo: a fusão em P1 coocorre com o afixo número-pessoal ‘–o’ (em ‘acudo’, reforça-se a noção expressa pelo afixo); já em P3, a alternância vocálica é a única responsável por informar P3 (a forma ‘ac[ɔ]de’ revela que, em português, a fusão concorre com o acréscimo de afixo na manifestação de número e pessoa). Em outras palavras, a fusão é uma outra forma existente na língua para informar número-pessoa. O padrão B ocorre com bastante frequência na 3ª conjugação, como verificamos abaixo com exemplificação de verbos encontrados no Aurélio Eletrônico que consideramos bastante utilizados pelos falantes: (50) Verbo acudir ac[u]do Verbo aderir ad[i]ro Verbo advertir adv[i]rto Verbo consumir cons[u]mo ac[ɔ]de ad[ɛ]re adv[ɛ]rte cons[o]me Verbo conseguir cons[i]go Verbo consentir cons[i]nto Verbo cuspir c[u]spo Verbo descobrir desc[u]bro cons[ɛ]gue cons[e]nte c[ɔ]spe desc[ɔ]bre Verbo desencobrir desenc[u]bro Verbo desentupir desent[u]po Verbo desferir desf[i]ro Verbo desmentir desm[i]nto desenc[ɔ]bre desent[ɔ]pe desf[ɛ]re desm[e]nte Verbo desvestir desv[i]sto Verbo diferir dif[i]ro Verbo divertir div[i]rto Verbo dormir d[u]rmo desv[ɛ]ste dif[ɛ]re div[ɛ]rte d[ɔ]rme Verbo cobrir c[u]bro Verbo encobrir enc[u]bro Verbo engolir eng[u]lo Verbo entupir ent[u]po c[ɔ]bre enc[ɔ]bre eng[ɔ]le ent[ɔ]pe 81 Verbo ferir f[i]ro Verbo fugir f[u]jo Verbo inferir inf[i]ro Verbo ingerir ing[i]ro f[ɛ]re f[ɔ]ge inf[ɛ]re ing[ɛ]re Verbo inquerir inqu[i]ro Verbo inserir ins[i]ro Verbo investir inv[i]sto Verbo mentir m[i]nto inqu[ɛ]re ins[ɛ]re inv[ɛ]ste m[e]nte Verbo perseguir pers[i]go Verbo pressentir press[i]nto Verbo preferir pref[i]ro Verbo prosseguir pross[i]go pers[ɛ]gue press[e]nte pref[ɛ]re pross[ɛ]gue Verbo recobrir rec[u]bro Verbo refletir refl[i]to Verbo referir ref[i]ro Verbo repetir rep[i]to rec[ɔ]bre refl[ɛ]te ref[ɛ]re rep[ɛ]te Verbo ressentir ress[i]nto Verbo revestir rev[i]sto Verbo sacudir sac[u]do Verbo seguir s[i]go ress[e]nte rev[ɛ]ste sac[ɔ]de s[ɛ]gue Verbo sentir s[i]nto Verbo servir s[i]rvo Verbo subir s[u]bo Verbo sugerir sug[i]ro s[e]nte s[ɛ]rve s[ɔ]be sug[ɛ]re Verbo tossir t[u]sso Verbo transferir transf[i]ro Verbo travestir trav[i]sto Verbo vestir v[i]sto t[ɔ]sse transf[ɛ]re trav[ɛ]ste v[ɛ]ste Além de sistemático e regular, esse padrão (B) é também produtivo. Desse modo, em algumas variedades do português, o falante realiza-o com frequência – em desacordo com a pronúncia dita padrão – informando número-pessoa por fusão: 82 (51) 11 Verbo corrigir corr[i]jo Verbo dividir div[i]do Verbo viver v[i]vo corr[ɛ]ge div[ɛ]de v[ɛ]ve Verbo agredir agr[i]do Verbo regredir regr[i]do Verbo progredir progr[i]do agr[ɛ]de regr[ɛ]de progr[ɛ]de Verbo insistir ins[i]sto Verbo pulir p[u]lo Verbo dirigir dir[i]jo ins[ɛ]ste p[ɔ]le dir[ɛ]ge Nesses dados, em ‘corrige’, ‘divide’, ‘vive’, ‘agride’, ‘regride’, ‘progride’, ‘insiste’, ‘pule’, ‘dirige’, não há expediente aglutinativo responsável por informar número-pessoa. Em outras palavras, não ocorre afixo número-pessoal de P3; assim, o falante utiliza, muitas vezes, o mecanismo fusão para indicar essa noção gramatical: realiza a vogal tônica das formas como média. Já nas formas de P1, a vogal alta na sílaba tônica funciona como reforço de P1, informação indicada primariamente pelo afixo ‘–o’: ‘corrigo’, ‘divido’, ‘vivo’, ‘agrido’, ‘regrido’, ‘progrido’, ‘insisto’, ‘pulo’, ‘dirijo’; a fusão coocorre com o acréscimo afixal. 4.3. Fusão levada às últimas consequências Gonçalves (2005: 143) afirma que a fusão se dá de três maneiras: “(1) o uso de raízes supletivas, (2) os casos em que o radical incorpora noções gramaticais ou, ainda, (3) a escolha do alomorfe flexional por classes morfológicas”. O segundo tipo é o que está sendo analisado com maior ênfase nesta Dissertação; os casos de alternância vocálica, mudança consonantal, inserção consonantal, ditongação, mudança de vogal temática, haplologia, explicitados neste capítulo, são exemplos claros em que radicais 11 É o único caso de 2ª conjugação de fusão do tipo ‘vogal alta na sílaba tônica do radical → P1; vogal média na sílaba tônica do radical’ → P3 do padrão B. 83 incorporam noções gramaticais, quer de tempo, quer de número-pessoa. O terceiro caso pode ser exemplificado em português pelo uso de ‘–va’ em verbos de 1ª conjugação e de ‘–ia’ em verbos de 2ª e 3ª na indicação de pretérito imperfeito. Esse tipo de fusão não foi analisado nesta Dissertação, porque nos focamos nas mudanças ocorridas na base por influência de conteúdos gramaticais e não nas mudanças no afixo condicionadas pela base. O primeiro caso citado por Gonçalves (2005) consiste na existência de raízes totalmente diferentes na expressão de categorias gramaticais distintas. O autor cita o verbo ‘pôr’ como exemplo desse tipo de fusão. Há, segundo o autor, para o verbo ‘pôr’, as raízes ‘/puN/’, que expressa pretérito imperfeito; ‘/poN/’ que sempre expressa presente, ocorrendo nos tempos presente do indicativo, presente do subjuntivo e nos imperativos; ‘/poR/’, que veicula a noção de futuro ocorrendo no futuro do presente e no futuro do pretérito e ‘/puS/’, que aparece nos tempos pretérito mais-que-perfeito do indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo, pretérito perfeito do indicativo e futuro do subjuntivo12. Gonçalves (2005) detalha a fusão por raízes supletivas em verbos, mas não explicita muitos casos desse tipo de fusão, porque tem como foco os nomes. Tentaremos descrever, nesta seção, outros casos dessa fusão, também chamada por Gonçalves (2005) de fusão levada às últimas consequências. Nossa descrição será bastante resumida, visto que o foco da Dissertação é nos casos de fusão em que radicais incorporam noções gramaticais através de processos fonológicos. O verbo ‘ser’ é um excelente exemplo para casos de fusão levada às últimas consequências, como verificamos abaixo no paradigma flexional atual para o presente do indicativo: 12 Defendemos a ideia de que ‘puser’ é a forma que marca, atualmente, futuro do subjuntivo, visto que ocorre em todas as pessoas do paradigma. Assim, o falante reconhece essa forma como de futuro diferenciando-a da forma pu/S/ que marca a noção de pretérito. 84 (52) Eu Você ~ Tu Ele Nós ~ A gente Vocês Eles sou é ~ és é somos ~ é são são O presente do indicativo tem formas de raízes específicas: ‘sou’, ‘so’, ‘são’ e ‘é’, como evidenciam nossos grifos. Veja-se, a seguir, a conjugação de ‘ser’ no pretérito mais-que-perfeito, no pretérito perfeito do indicativo e no imperfeito do subjuntivo, respectivamente: (53) Eu Você ~ Tu Ele Nós ~ A gente Vocês Eles fora fora ~ foras fora fôramos ~ fora foram foram (54) Eu Você ~ Tu Ele Nós ~ A gente Vocês Eles fui13 foi ~ foste foi fomos ~foi foram foram (55) Eu Você ~ Tu Ele Nós ~ A gente Vocês Eles fosse fosse ~fosseis fosse fôssemos ~ fosse fossem fossem 13 Descrevemos apenas ‘fu-’ como a forma de radical, visto que ‘–i’ é considerado o afixo númeropessoal de P1 no pretérito perfeito do indicativo pela literatura morfológica. 85 Para os tempos que expressam pretérito, também há formas específicas: ‘fo-’, ‘fu-’, ‘foi’; ‘fo-’ ocorre nos tempos pretérito mais-que-perfeito do indicativo; pretérito imperfeito do subjuntivo, já ‘foi’ e ‘fu’ ocorrem apenas no pretérito perfeito do indicativo. Para expressar futuro, ocorre a forma ‘se/R/’. Apesar de sabermos que a vibrante não faz parte do radical, sendo, na verdade, o primeiro segmento dos afixos de futuro do presente e do pretérito, defendemos a hipótese de que o que marca futuro é a forma ‘se/R/’, porque acreditamos que a vibrante auxilie o falante no reconhecimento de tempo futuro e na distinção com relação à forma ‘sê’, de tempo presente. Abaixo, verificamos o paradigma flexional de ‘ser’ no futuro do presente e no futuro do pretérito: (56) Eu Você ~ Tu Ele Nós ~ A gente Vocês Eles serei será ~serás será seremos sereis serão (57) Eu Você ~ Tu Ele Nós ~ A gente Vocês Eles seria seria ~ serias seria seríamos ~ seria seriam seriam Nas formas verbais do imperativo e do presente do subjuntivo, a forma ‘seja’ ocorre na maior parte do paradigma alternando com ‘sê’, realizada apenas na P2 do imperativo afirmativo. Observem-se abaixo as conjugações do presente do subjuntivo, imperativo negativo e imperativo afirmativo, respectivamente: 86 (58) Eu Você ~ Tu Ele Nós ~ A gente Vocês Eles seja seja ~ sejas seja sejamos ~ seja sejam sejam (59) Você ~ tu Nós Vocês não seja ~ não sejas tu não sejamos não sejam (60) Você ~ tu Nós Vocês seja ~ sê sejamos sejam Como apontam Illari & Basso (2009, p. 169), na maior parte do Brasil, ‘você’ é o pronome de P2: “Há, no total, em PB, três formas de expressar a segunda pessoa: (i) pronome tu + verbo de segunda pessoa: tu és / tu vais; (ii) pronome tu + verbo de terceira pessoa: tu é / tu vai; (iii) pronome você e verbo de terceira pessoa: você é / você vai. Uma ou outra das duas primeiras soluções prevalece conforme a região nos três estados da região Sul. Na fala carioca, encontramos a segunda e a terceira. Nas regiões Norte e Nordeste, também encontramos (i) e (ii). A solução com você + verbo de terceira pessoa prevalece no restante do país.” Nas variedades em que prevalecem as estratégias (ii) e (iii), só há uma forma de radical: ‘seja’, para o verbo ‘ser’, no presente do subjuntivo e nos imperativos, pois a P2 do imperativo afirmativo fica da seguinte maneira: (i) ‘seja você’ ou (ii) ‘seja tu’. Vejase, por fim, o paradigma do futuro do subjuntivo: 87 (61) Eu Você ~ Tu Ele Nós ~ A gente Vocês Eles for for ~ fores for formos ~ for forem forem A forma ‘fo/R/’ marca a noção de futuro do subjuntivo. O falante do português, ao ouvir essa sequência, reconhece a noção temporal expressa. O verbo ‘ter’ é um outro exemplo de fusão por raízes supletivas; nesse verbo, os conteúdos amalgamados são os mesmos do verbo ‘pôr’: (62) (i) ‘te/N/’: ocorre nos tempos que expressam presente: presente, dos modos indicativo e subjuntivo, e imperativo; (ii) ‘ti/N/’: forma de radical do pretérito imperfeito do indicativo; (iii) ‘tiv’: formas de radical dos tempos pretérito perfeito do indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo, pretérito mais-que-perfeito do indicativo. Na P3 do pretérito perfeito, ocorre ‘teve’; (iv) ‘tive/R/’: forma que marca o futuro do subjuntivo. Defendemos ser esta forma que marca futuro do subjuntivo, mesmo sabendo, que, historicamente, a forma de radical é ‘tiv-’. Acreditamos que o falante, hoje em dia, distingue, em sua gramática internalizada, ‘tiv-’, expressando passado e ‘tive/R/’, indicando futuro do subjuntivo. Acreditamos na hipótese de que conteúdos diferentes costumam ter expressões formais também diferentes; (v) ‘te/R/’: forma que marca futuro do presente e do futuro do pretérito. 88 No verbo ‘ver’, a fusão ocorre da seguinte forma: ‘vej-’ indica tempo presente, ocorrendo no presente do indicativo, no presente do subjuntivo e nos imperativos. Essa forma alterna com ‘ve’ (vês, vê, veem); os tempos que expressam pretérito (pretérito imperfeito do indicativo, pretérito perfeito do indicativo, pretérito mais-que-perfeito do indicativo e pretérito imperfeito do subjuntivo) têm uma forma de radical específica, ‘vi-’, o que mostra que a noção de tempo passado é amalgamada no paradigma verbal do verbo ‘ver’. No futuro do presente e no futuro do pretérito, ocorre a forma ‘ve/R/’. Mesmo sabendo que o segmento ‘r’ faz parte das desinências ‘-re’, ‘-ra’ (futuro do presente) e ‘-ria’, ‘-rie’ (futuro do pretérito), formalizamos ‘ve/R/’ indicando futuro, assim como Gonçalves faz com o verbo ‘pôr’. Como o falante sempre verifica a realização da vibrante em todo o paradigma verbal do português, esse segmento passa a auxiliar na expressão de futuro. Já no futuro do subjuntivo, a forma é ‘vi/R/’. Todos os casos de fusão levada às últimas consequências demonstrados são de 2ª conjugação. Na 3ª, há dois verbos que também passam por esse tipo de fusão: ‘ir’ e ‘vir’. O verbo ‘ir’ apresenta, nos tempos que indicam presente, as formas ‘vou’, ‘vai’, ‘va-’ e ‘vão’, sendo que ‘vou’ só ocorre no presente do indicativo; no pretérito imperfeito do indicativo, ocorre a forma ‘ia’, o que demonstra ser a noção desse tempo amalgamada ao radical. Os outros tempos que expressam passado (pretérito mais-queperfeito do indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo e pretérito perfeito do indicativo) apresentam as formas de radical ‘fo-’, ‘foi’ e ‘fu-’, sendo que a última só ocorre na P1 do pretérito perfeito do indicativo. Nos tempos que expressam futuro, é realizada a forma ‘i/R/’: ‘irei’, ‘irá’; ‘iria’, ‘iríamos’; já a noção de futuro do subjuntivo é marcada pela forma ‘fo/R/’. No verbo ‘ir’, verificamos fusão de presente através da forma ‘ve/N/-’ no presente do indicativo, no imperativo e no presente do subjuntivo. O futuro do presente 89 e o futuro do pretérito são marcados por ‘vi/R/’: ‘virei’, ‘virá’; ‘viria’, ‘viríamos’. No pretérito imperfeito do indicativo, ocorre ‘vi/N/’, forma que também ocorre na P1 do pretérito perfeito do indicativo. A noção de pretérito ainda é amalgamada nos tempos pretérito perfeito do indicativo, pretérito mais-que-perfeito do indicativo e pretérito imperfeito do subjuntivo por ‘vie-’. A forma ‘veio’, que ocorre na P3 do pretérito perfeito, amalgama os conteúdos pretérito perfeito + indicativo + P3. A noção de futuro do subjuntivo é marcada pela forma ‘vie/R/’. Os seis casos de fusão por raízes supletivas explicitados nesta seção – ‘pôr’, ‘ser’, ‘ter’, ‘ver’, ‘ir’ e ‘vir’ – são exemplos de verbos monossilábicos. Defendemos a ideia de que a fusão levada às últimas consequências só ocorre com formas infinitivas monossilábicas, o que reforça a uma hipótese defendida por Gonçalves: quanto menor uma forma, maior a probabilidade de haver distinção formal, já que a aplicação de afixos a um monossílabo torna muito provável a ocorrência de uma grande alteração formal. 4.4. Palavras finais Neste capítulo, demonstramos os variados tipos de fusão de conteúdos verbais que ocorrem no português. Houve ênfase na abordagem da fusão por alternância vocálica, mas também foram analisadas outras inúmeras formas de fusão acarretadas por processos fonológicos. Esperamos ter comprovado nossa hipótese de que mesmo as mudanças formais condicionadas fonologicamente estão a serviço de indicar um conteúdo. No próximo capítulo, formalizaremos a fusão por alternância vocálica através da Morfologia Autossegmental (McCARTHY, 1979, 1981; GONÇALVES, 2009) e da 90 Geometria de Traços (CLEMENTS & HUME, 1995). Optamos pela fusão por alternância vocálica, visto que a consideramos muito produtiva em português, além de extremamente regular. Nesta Dissertação, já explicitamos o aporte teórico que fundamenta a operação fusão e os variados casos de fusão no português; desse modo, comprovamos que a morfologia portuguesa se organiza não só por aglutinação, mas também por fusão. No próximo capítulo, o objetivo é demonstrar ser possível formalizar a fusão através do aporte da Morfologia Não-Linear. Dessa maneira, evidenciamos que os polos formal e semântico do mecanismo fusão são sistematizáveis. 91 5. MORFOLOGIA NÃO-LINEAR: FUSÃO POR ALTERNÂNCIA VOCÁLICA Como afirma McCarthy (1981), existem dois tipos de morfologia: concatenativa e não-concatenativa. A morfologia concatenativa consiste no acréscimo de prefixos e sufixos a bases; nesse tipo de morfologia, os elementos morfológicos são facilmente recuperáveis: “morfemas concatenativos podem ser recuperados por uma análise de vocábulos na direção esquerda-direita ou direita-esquerda buscando-se constituintes recorrentes, possivelmente com constante sentido ou função” (McCARTHY, 1981: 373). Essa estratégia de buscar partes recorrentes com determinado sentido ou função é também chamada de comutação (CÂMARA JR., 1970). Já a morfologia não-concatenativa sempre foi colocada à margem dos estudos estruturalistas. As operações não-lineares são consideradas, segundo McCarthy (1981), como resíduos das operações que podem ser analisadas por comutação: “esse status de resíduo atribuído à morfologia não-concatenativa nas análises estruturalistas se estende às teorias gerativistas também” (MCCARTHY, 1981: 373). Há vários exemplos dessas operações consideradas como resíduos pela literatura – reduplicação, infixação, fusão, entre outros. Como afirma McCarthy (1981), o status de resíduo dado às operações nãolineares não ocorre por escassez de dados; algumas línguas têm processos nãoconcatenativos como modo de organização prioritário ou até mesmo como o único modo de organização. A morfologia verbal portuguesa, apesar de considerada aglutinativa, organiza-se também por fusão, como demonstramos nesta Dissertação. Esse processo sempre foi deixado à margem dos estudos morfológicos. A alternância vocálica, por exemplo, geralmente, é considerada como um processo que se reduz a pouquíssimos casos. A improdutividade atribuída à alternância vocálica é um exemplo 92 de como operações não-concatenativas são consideradas resíduos. No Capítulo 4, evidenciamos que a fusão por alternância vocálica é frequente na informação temporal de presente (‘j[ɔ]go’) e na informação número-pessoal de P1 (‘f[i]z’) e de P3 (‘f[e]z’; ‘ac[ɔ]de’) ou no reforço número-pessoal de P1 (‘ac[u]do’). Além disso, esse padrão vocálico é produtivo, como atestamos no Capítulo precedente através da observação de vários dados de uso. Depois de apresentarmos a regularidade e a produtividade da fusão em português, cabe propor uma formalização para essa operação morfológica. Ao contrário do acréscimo afixal, por exemplo, não é possível formalizar operações não-lineares por comutação. De acordo com Gonçalves (2009a), “nos processos concatenativos, a sucessão linear dos elementos morfológicos pode ser rompida por fusões, intercalações ou repetições, de modo que uma informação morfológica não se inicia no ponto em que a outra termina” (GONÇALVES, 2009a: 211-212). Optamos por formalizar a fusão por alternância vocálica neste Capítulo devido a esse tipo de fusão ser o foco principal da nossa Dissertação1. Formalizaremos a fusão por alternância vocálica através do aporte teórico da Morfologia Autossegmental. Na próxima seção, apresentamos algumas importantes assunções da Morfologia Autossegmental (McCARTHY, 1979, 1981), para, a seguir, apresentarmos nossa proposta de formalização para o fenômeno ora priorizado. 1 A fusão por alternância vocálica é a priorizada nesta Dissertação por dois motivos: 1) essa operação apresenta alta produtividade em português e 2) é o único tipo de fusão que, mesmo como resíduo, é tratada pela maioria dos autores da literatura morfológica portuguesa, conforme observamos no Capítulo 2. 93 5.1. Morfologia Autossegmental (MCCARTHY, 1979, 1981): fundamentação teórica e instrumental de análise A Morfologia Autossegmental surge da necessidade de se solucionarem problemas na análise das línguas semíticas. McCarthy (1979) propõe essa teoria para dar conta de processos não-lineares muito comuns nessas línguas, visto que estava “insatisfeito com as abordagens gerativistas precedentes, as quais requeriam transformações extremamente complexas para justificar as diferentes formas de superfície” (GONÇALVES, 2009b: 15-16). A Morfologia Autossegmental fundamentase nas bases da Fonologia Autossegmental (GOLDSMITH, 1976). A Fonologia Autossegmental surge com a finalidade de descrever o tom nas línguas tonais. Afirma Gonçalves (2009b) que, “nas línguas tonais, o tom, como o acento, nas línguas acentuais, é prosódia independente, ou seja, não constitui parte integrante de segmentos (vogais e consoantes), como analisado em SPE2” (GONÇALVES, 2009b: 12-13). Desse modo, o tom é representado num tier (camada) diferente do tier das consoantes e vogais: há, portanto, o tier tonal e o tier segmental. Mudanças no tier segmental podem não ter nenhuma influência sobre o tier tonal; sendo assim, é possível que um segmento seja apagado e não haja qualquer mudança em termos de tom. Gonçalves (2009b: 13) demonstra um exemplo da língua luganda, em que há apagamento de vogal, mas o tom a ela associada não é afetado: (01) kus a e b y o L HL H k us e b y o L H L H 2 The Sound Pattern of English, de Chomsky & Halle (1968), obra em que se encontram as principais ideias da Fonologia Gerativa Clássica. 94 Apesar de a vogal ‘a’ de ‘kusa’ (‘comprar’) ser deletada, o tom associado a ela manteve-se linkado à vogal inicial de ‘ebyo’ (‘aqueles’). Se o tom pertencesse inerentemente a segmentos, a elisão da vogal levaria ao apagamento do tom H (alto). Na Fonologia Autossegmental, considera-se que há diferentes tiers, que são organizados e independentes, mas “associam-se numa estrutura hierárquica e são passíveis de interação” (GONÇALVES, 2009b: 13). A interação de tiers ocorre através de ligações (links) dos diferentes tiers com o tier esqueletal (molde esqueletal) por meio de linhas de associação. No estudo das línguas tonais, afirma-se que vogais e consoantes pertencem ao tier segmental, enquanto os tons localizam-se no tier tonal. Entre esses dois tiers, localiza-se o tier esqueletal, ao qual as camadas segmentais e tonais se linkam através de linhas de associação. Os links são de “via dupla”: assim como os tiers segmental e tonal se linkam ao molde esqueletal, o molde esqueletal também se linka aos tiers segmental e tonal. Utilizada inicialmente para pesquisas sobre o tom e, posteriormente, para estudos de harmonia nasal e harmonia vocálica, a Fonologia Autossegmental comprova que não é possível dar conta plenamente de fenômenos fonológicos observando apenas segmentos; há, certamente, outras camadas, além da segmental, atuando no estrato fonológico. Abaixo, em (02), observamos a interação entre os tiers segmental, tonal e esqueletal (GONÇALVES, 2009b: 14): (02) Tier Tonal L H Tier Esqueletal C V C V Tier Segmental k u z a 95 Com relação ao estrato morfológico, em processos concatenativos, é possível focalizar apenas a cadeia segmental, porém, em operações não-lineares, lançar mão de outras camadas enriquece a análise e torna a formalização dos fenômenos possível. McCarthy (1979), a fim de analisar plenamente os processos não-lineares da morfologia de línguas semíticas, propõe a Morfologia Autossegmental, um aporte teórico que aplica as bases da Fonologia Autossegmental à morfologia. As noções, acima explicitadas, de tiers organizados e independentes que se associam ao molde esqueletal através de links de associação são incorporadas à descrição do componente morfológico. Através desse enfoque, McCarthy (1979, 1981) consegue, por exemplo, analisar plenamente a morfologia do árabe. A Morfologia Autossegmental segue algumas assunções importantes realizadas pela Fonologia Autossegmental; uma delas é “a rejeição à restrição de bijetividade, segundo a qual um segmento se relaciona a uma matriz de traços e cada matriz de traços representa um – e somente um segmento” (GONÇALVES, 2009b: 14). Como explicita Gonçalves (2009b: 14), a restrição de bijetividade autoriza apenas a representação a), abaixo, proibindo as outras quatro: (03) a. X b. X x r d. X 0 X e. c. X r r 0 X 96 A Morfologia Autossegmental (MCCARTHY, 1979, 1981) rejeita a restrição de bijetividade; isso faz com que o apagamento de um segmento não leve, necessariamente, ao desaparecimento dos traços a ele pertencentes; além disso, traços podem pertencer a mais ou a menos de um segmento. Assim como na Fonologia Autossegmental, duas restrições atuam no link entre tiers: 1) Princípio de NãoCruzamento de Linhas de associação (PNC) e 2) Princípio de Contorno Obrigatório (PCO). Segundo o PCO, num mesmo tier, não podem dois elementos idênticos ficarem adjacentes. Já com relação à PNC, defende-se que, no link entre tiers, não pode ocorrer cruzamento de linhas de associação. Apesar de independentes e autônomos, os diferentes tiers associam-se; quatro princípios regem a ligação entre tiers (GONÇALVES, 2009b: 20): 1. cada posição C e V do tier esqueletal deve associar-se a, pelo menos, uma posição do tier consonantal e vocálico, respectivamente; assim como cada posição do tier vocálico e do tier consonantal deve vincular-se a, pelo menos, uma posição do molde esqueletal. Esse princípio mostra que os tiers consonantal e vocálico precisam vincular-se ao molde esqueletal, e o molde esqueletal deve vincular-se aos tiers consonantal e vocálico, a ligação não é de “mão única”, mas de “via dupla”. 2. Elementos melódicos podem ser linkados da direita para a esquerda ou vice-versa. 3. Depois de ocorrer a associação entre tiers, ocorre um princípio chamado Tier Conflation (Conflação de Camadas), que gera um output, uma forma linearizada. 97 4. Não pode ocorrer cruzamento entre linhas de associação, como prevê o PNC (Princípio de Não-Cruzamento de Linhas de Associação). A Morfologia Autossegmental (1979, 1981) possibilita que operações morfológicas não-lineares sejam descritas e formalizadas de maneira satisfatória. A noção de camadas independentes (tiers) atuando no estrato morfológico faz com que se possa verificar a influência de elementos como tom, nasalidade e mutação vocálica em fenômenos morfológicos. Esses elementos são interpretados como autossegmentos, pertencentes a tiers que se linkam a outros tiers numa estrutura complexa. Demonstramos abaixo as palavras de McCarthy (1981: 411) para explicitar a importância do uso da Morfologia Autossegmental (Root-and-pattern morphology) em operações morfológicas não-lineares: “Nós percebemos que o modelo prosódico de morfologia não somente fornece uma descrição reveladora das complexidades do verbo em árabe, mas também fornece uma grande variedade de resultados com relação às propriedades universais de fenômenos de morfologia não-concatenativa” 5.2. A fusão por alternância vocálica no português Utilizamos o aporte teórico da Morfologia Autossegmental (1979, 1981) para tornar possível a formalização da fusão por alternância vocálica no português3, operação não-linear sistemática e produtiva no paradigma verbal. A mudança na qualidade da vogal tônica do radical é um expediente morfológico produtivo na informação de tempo e de número-pessoa, como explicitamos no Capítulo 4. Com relação a número-pessoa, a 3 Gonçalves (2009b) utilizou o aporte teórico da Morfologia Autossegmental para formalizar a alternância vocálica atuando na oposição entre nomes e verbos e funcionando como expoente secundário de gênero. 98 vogal alta na posição tônica é o expediente de informação de P1 (‘p/u/de’; ‘t/i/ve’), mas também atua como reforço de P1 (‘ac/u/do’; ‘cons/i/go’). As vogais médias, tanto as altas como as baixas, informam P3: ‘p/o/de’, ‘t/e/ve’; ‘ac/ɔ/de’ e ‘cons/ɛ/gue’. Verificamos, então, que diferentes qualidades de altura de vogal: alta, média-alta e média-baixa atuam na distinção entre P1 e P3. A vogal média-baixa também é responsável por informar tempo presente: ‘j/ɔ/go’, ‘p/ɛ/go’. Com a finalidade de representarmos, de forma satisfatória, esses diferentes graus de altura na expressão de categorias gramaticais, utilizaremos o tratamento de altura vocálica de Clements & Hume (1995). Esses autores demonstram que é possível tratar as diversas alturas das vogais fundamentando-se apenas na noção de abertura vocálica. Na próxima seção, sintetizaremos algumas noções teóricas de Clements & Hume (1995) para, posteriormente, apresentarmos o seu tratamento para a abertura vocálica. 5.3. Algumas assunções teóricas da Geometria de Traços Como explicitam Clements & Hume (1995), em modelos lineares da teoria gerativista, segmentos são representados como conjuntos de traços não-ordenados. Cada segmento corresponde a uma matriz de traços, assim como cada matriz corresponde a um segmento; em outras palavras, ocorrem relações bijetivas (de um para um) entre conjunto não-ordenado de traços e unidade sonora. Dessa forma, traços não se associam a domínios menores ou maiores que um segmento. Clements & Hume (1995) evidenciam que a noção de bijetividade não se mostra efetiva, visto que ocorrem relações não-lineares (não-bijetivas) entre traços e sons nas línguas. Utilizando o exemplo de línguas tonais, os autores afirmam que dois ou mais tons podem se ligar a 99 uma sílaba; um tom pode espraiar-se por mais de uma sílaba ou mesmo não se associar a nenhum segmento. Os autores afirmam que, devido a essas evidências, surgem teorias não-lineares, como a de Goldsmith (1976). Essa teoria, já explicitada nesta Dissertação, elimina a restrição de bijetividade, afirmando que traços que se associam a mais ou menos de um segmento devem se organizar em camadas autossegmentais próprias (tiers). Outra teoria não-linear que surge é a Geometria de Traços (CLEMENTS, 1985). Como evidencia Gonçalves (2009b), essa teoria origina-se da Fonologia Autossegmental em consequência de estudos sobre fenômenos como a harmonia nasal e a harmonia vocálica. Na Geometria de Traços, também são utilizados os Princípios de NãoCruzamento de Linhas de Associação (PNC) e de Contorno Obrigatório (PCO), originados na Fonologia Autossegmental (GOLDSMITH, 1976). Em Clements & Hume (1995), demonstra-se que conjuntos de traços formam constituintes; comprova-se que determinado grupo de traços é um constituinte quando se verifica ocorrência de regras fonológicas. Operações como espraiamento ou desligamento de regras fonológicas são evidências da existência de um conjunto organizado de traços: as regras só se espraiam, por exemplo, para os traços que fazem parte do constituinte. Os traços são formalizados por nós; nos vocoides (vogais), por exemplo, o constituinte vocálico é um nó, que se divide em outros dois nós: local de V e abertura, como vemos abaixo, em (04): (04) vocálico abertura local de V 100 5.3.1. O nó de abertura e a interpretação de altura vocálica Clements & Hume (1995), fundamentando-se em trabalhos anteriores de Clements, propõem que a altura seja entendida através de abertura vocálica. Os autores postulam um traço [aberto] – [+aberto] ou [-aberto] – para indicar os variados graus de altura. O traço [aberto] é organizado em várias camadas numa escala. A camada 1 é responsável por atribuir às vogais um registro primário de altura, sendo [-aberto] relativamente alto e [+ aberto] relativamente baixo. Aplicando as ideias de Clements & Hume (1995) ao quadro vocálico do português, assumimos que as vogais /i/ e /u/ têm a camada 1 como [-aberta] ([-aberto 1]), já /a/ recebe [+aberto] na camada 1. As vogais médias (/e/ e /o/) também são [-aberto1]. Abaixo, verificamos como a abertura vocálica fica na camada 1: (05) Camada 1: Altas (/i/ e /u/) Médias (/e/ e /o/) Baixa (/a/) - - + Não basta a camada 1 para expressar as diferentes alturas vocálicas; o traço [aberto] precisa organizar-se em outras camadas secundárias a fim de indicar a diferença entre médias (/e/, /ɛ/, /o/ e /ɔ/) e altas (/i/ e /u/) e entre médias-baixas (/ɛ/ e /ɔ/) e médias-altas (/e/ e /o/). Clements & Hume (1995) demonstram que, na camada 2, as vogais altas são novamente [-aberto] e as baixas novamente [+aberto]; as vogais médias (/e/ e /o/), refletindo o seu caráter intermediário entre baixas e altas, recebem [+aberto]: 101 (06) Abertura Camada 1 Camada 2 Altas (/i/, /u/) - Médias (/e/ e /o/) + Baixa (/a/) + + Com a organização do traço [aberto] em duas camadas, é possível distinguir as vogais médias das altas e das baixas. Todavia, não é possível fazer distinções entre graus nas vogais médias. No português, as vogais médias subdividem-se nos tipos média-alta e média baixa; precisamos, então, demonstrar a ligação de [aberto] em uma nova camada. Será a distinção na camada 3 que diferenciará as vogais médias-baixas das médias-altas. Através das assunções de Clementz & Hume (1995), postulamos que, na camada 3, as vogais altas recebem o traço [-aberto] e as baixas, [+aberto]. Sendo assim, as vogais altas definem-se como [-aberto 1, -aberto 2, -aberto 3] e as vogais baixas como [+aberto 1, + aberto 2, +aberto 3]. As vogais médias-altas, com [-aberto] na camada 1 e [+aberto] na camada 2, tem traço [-aberto] na camada 3 distinguindo-se das médias-baixas, com [+aberto] na camada 3. Dessa forma, através do link do traço [aberto] em três camadas diferentes, é possível dar conta dos quatro níveis de altura do português: baixo, médio-baixo, médio-alto e alto. Isso torna evidente que, através da noção de traço de abertura e sua ligação em camadas, é possível abrir mão da ideia de altura vocálica. Vieira e Battisti (2005, p. 181), fundamentadas em Wetzels (1992, p. 22), expõem um quadro vocálico do português segundo as assunções da Fonologia Autossegmental. O quadro vocálico apontado é idêntico ao que acabamos de explicar acima: 102 (07) Abertura i/u e/o ɛ/ɔ a aberto 1 - - - + aberto 2 - + + + aberto 3 - - + + Verificamos, então, que, em português, o traço [+aberto 1] é responsável por indicar a altura baixa e [-aberto 2] diferencia o nível alto. Para reconhecer as alturas médias, é preciso observar a ligação de [aberto] na camada 3. Desse modo, verificamos que a altura média-baixa é indicada pelo traço [+aberto 3] e a média-alta por [-aberto 3]. 5.4. Formalização da operação fusão por alternância vocálica no paradigma verbal No modelo item-e-arranjo (estruturalista), não é possível formalizar a mudança na qualidade da vogal atuando como expoente de informação gramatical, já que o conteúdo gramatical, nesse caso, não é disposto linearmente através de afixos, mas por mudança fonológica no radical. Utilizando o instrumental de análise da Morfologia Autossegmental (1979, 1981), demonstramos que a mudança na qualidade vocálica como expoente de conteúdo gramatical ocorre porque a abertura vocálica pertence a uma camada autônoma (tier), diferente, por exemplo, do tier de radical4, que é responsável por manifestar conteúdo lexical. 4 Optamos por ‘tier de radical’ em detrimento de ‘tier de raiz’, pois, em toda a Dissertação, ao descrevermos mudanças na base, utilizamos o termo ‘radical’. 103 Para demonstrar como diferentes graus de altura podem manifestar conteúdos gramaticais (grau médio-baixo: presente; alto: P1; médio-baixo e médio-alto: P3), utilizaremos noções referentes ao traço [aberto] expostas por Clements & Hume (1995). Links da vogal tônica com diferentes especificações do traço [aberto], do tier de abertura, são responsáveis por manifestar conteúdos gramaticais de NP ou tempo. 5.4.1. Fusão por alternância vocálica: conteúdo de presente Nesta Dissertação, formalizamos a informação de presente por alternância vocálica em formas do presente do indicativo. Quatro tiers atuam na fusão de presente por alternância vocálica. O tier de radical é responsável por informar o conteúdo lexical do verbo e é plenamente especificado para todos os seus segmentos, exceto para a vogal (V), que se encontra na sílaba tônica, referenciada como [-aberto 1, +aberto 2], por se tratar de uma média. A vogal em questão não é previamente especificada para [aberto 3], pois é essa indicação que diferencia os dois tipos de médias em português. Além dos tiers de radical e de abertura vocálica, também é relevante o tier do formativo final (tier da vogal da borda direita). Esse tier representa diferentes elementos morfológicos na estrutura do verbo no presente do indicativo: vogal temática (joga), afixo númeropessoal (jogo). A outra camada autônoma existente é o tier esqueletal, ao qual os demais tiers devem se linkar. A direção do mapeamento é esquerda-direita; os diferentes segmentos da raiz linkam-se, um a um, ao tier esqueletal. A vogal média subespecificada (doravante indicada pelo símbolo V) linka-se, no molde esqueletal, ao traço [aberto 3] da camada de abertura vocálica5. Assim, a vogal tônica do radical assume a altura média-baixa para indicar presente, especificando, portanto, como [+aberto 3] nessa camada. O tier borda direita não atua como expoente de informação 5 A vogal especifica-se como média-baixa quando [+aberto 3], da camada de abertura, e V, do radical, são linkados na mesma posição do tier esqueletal. 104 de presente, já que esse conteúdo tem como expoente único a especificação positiva de [aberto 3]. Apresentamos, abaixo, o modelo de formalização para a informação de presente por alternância vocálica. Os quatro expoentes morfológicos em questão são representados por quatro tiers diferentes, como se vê em (08), formalização na qual a letra grega µ representa estrutura morfológica: (08) abertura (verbo no presente) µ [+aberto 3] borda direita µ tier esqueletal x x x radical a V b V µ No modelo acima, utilizamos ‘a’, ‘b’, a fim de representar genericamente os segmentos do radical; V representa a vogal subespecificada quanto ao traço [aberto 3]. Abaixo, em (09), representamos dados como j/ɔ/go, j/ɔ/ga: 105 (09) abertura (verbo no presente) µ [+aberto 3] borda direita tier esqueletal radical µ x x x V /Ʒ/ V /g/ µ O link da vogal da sílaba tônica do radical com [+aberto 3], da camada de abertura vocálica, também ocorre com a série anterior, como demonstramos abaixo, em (10), o que confirma o fato de especificações como [labial], [coronal] e [dorsal] não serem diretamente relevantes à expressão morfológica ora em foco, pois tanto as médias recuadas (posteriores) quanto as não-recuadas (anteriores), caso linkadas a [+aberto 3], expressam presente: 106 (10) abertura (verbo no presente) µ [+aberto 3] borda direita tier esqueletal radical µ x x x V /p/ V /g/ µ Essa formalização demonstra a atuação de [+aberto 3] em dados como ‘p/ɛ/go’ e ‘p/ɛ/ga’. A informação de presente através do link da vogal subespecificada com [+aberto 3] é uma estratégia produtiva e isso é comprovado pelo uso corrente de formas como ‘r/ɔ/bo’ e ‘r/ɔ/ba’, ‘p/ɔ/so’ e ‘p/ɔ/sa’, ‘ag/ɔ/ro’ e ‘ag/ɔ/ra’, ‘est/ɔ/ro’ e ‘est/ɔ/ra’, ‘rep/ɔ/so’ e ‘rep/ɔ/sa’, ‘n/ɔ/ivo’ e ‘n/ɔ/iva’, ‘pern/ɔ/ito’ e ‘pern/ɔ/ita’, ‘end/ɛ/uso’ e ‘end/ɛ/usa’, ‘esp/ɛ/lho’ e ‘esp/ɛ/lha’, ‘vel/ɛ/jo’, ‘vel/ɛ/ja’, ‘b/ɛ/ro’ e ‘b/ɛ/ra’, ‘int/ɛ/ro’ e ‘int/ɛ/ra’, ‘pen/ɛ/ro’ e ‘pen/ɛ/ra’, entre outros exemplos explicitados no Capítulo 4. Demonstramos, abaixo, como ficaria o link entre camadas no dado ‘p/o/sa’ e a consequente linearização através de TC (tier conflation – conflação de camadas): 107 (11) abertura (verbo no presente) [+aberto 3] borda direita tier esqueletal radical /a/ x x x /p/ V /z/ V TC → x x x V /p/ /ɔ/ /z/ /a/ Os segmentos do tier de radical ligam-se, na direção esquerda-direita, ao tier esqueletal; /p/ associa-se ao primeiro elemento ‘x’ do tier esqueletal; a vogal liga-se à segunda posição ‘x’ do molde. Nessa mesma posição do molde esqueletal, linka-se [+aberto 3], do tier de abertura vocálica, fazendo com que a vogal seja especificada como média-baixa. A vogal /a/, do tier borda direita, linka-se à última posição do molde esqueletal (V). Após o link entre as quatro camadas, ocorre a atuação de TC, gerando uma forma linearizada (output). A forma linearizada é ‘/pɔza/’, mas poderia também ser ‘/pɛza/’, visto que o link da vogal com a camada de abertura só especifica graus de altura vocálica. Tanto a vogal média-baixa anterior como a posterior, em posição tônica, são expoentes da informação de presente; ‘/pɛza/’ é uma forma atestada na língua e manifesta esse conteúdo. Apresentamos abaixo uma formalização – da informação de presente por alternância vocálica – que serve aos dados ‘p/ɔ/so’, ‘p/ɔ/sa’, ‘p/ɛ/so’ e ‘p/ɛ/sa’: 108 (12) µ abertura (verbo no presente) [+aberto 3] borda direita µ tier esqueletal radical x x x V /p/ V /z/ µ A formalização serve aos quatro dados por dois motivos. O primeiro já foi demonstrado acima: quando a vogal (V), do tier de radical, e a especificação [+aberto 3], do tier de abertura, são associados na segunda posição do tier esqueletal, a vogal tônica do radical pode ser anterior (/ɛ/) ou posterior (/ɔ/). O segundo motivo relacionase ao fato de o tier borda direita poder representar diferentes elementos morfológicos: vogal temática –a (/a/) ou afixo número-pessoal -o(/U/). 5.4.2. A fusão número-pessoal no padrão A Como demonstramos no Capítulo 4, no padrão A, a alternância vocálica ocorre no pretérito perfeito do indicativo e é o único expoente de informação número-pessoal: ‘t/i/ve’ e ‘t/e/ve’, ‘f/i/z’ e ‘f/e/z’, ‘p/u/de’ e ‘p/o/de’. Nesse padrão, a vogal da sílaba tônica do radical é alta em P1 e média-alta em P3. A vogal tônica do radical é previamente especificada para [-aberto 1, -aberto 3], sendo [aberto 2] responsável por 109 definir a vogal como alta ou média-alta. Ilustramos, abaixo, o modelo de formalização para a alternância vocálica nesse padrão A para P1: (13) abertura (P1) µ [-aberto 2] tier esqueletal x x x x radical a V b c µ Na informação de P1 no padrão A, atuam três tiers: radical, abertura e molde esqueletal. Da esquerda para a direita, ‘a’ linka-se à primeira posição do tier esqueletal; na segunda posição do molde, onde se encontra, no modelo acima, a vogal em sílaba tônica, linkam-se a posição V, do radical, e [-aberto 2], da camada de abertura. Dessa forma, a vogal, previamente especificada como [-aberto1, -aberto 3], atualiza-se como alta. Como demonstrado na formalização, é a camada de abertura a responsável por manifestar o conteúdo número-pessoal. Posteriormente, o link do radical com o tier esqueletal continua, fazendo com que ‘b’ se anexe à terceira posição do molde esqueletal e ‘c’, à quarta posição. Caso haja mais segmentos no radical, mantém-se a ligação com o molde esqueletal. O modelo acima evidencia que os segmentos do radical são especificados, exceto a vogal tônica, que, antes da associação com [aberto 110 2], pode ser alta ou média-alta; a ligação da vogal com a camada de abertura no tier esqueletal especifica a vogal como alta e, consequentemente, manifesta a informação de P1. Demonstramos, abaixo, a formalização de ‘t/i/ve’: (14) abertura (P1) µ [-aberto 2] tier esqueletal x x x x radical /t/ V /v/ /I/ µ Com a formalização de ‘t/i/ve’, fica evidente que a especificação da vogal como alta é o expediente da informação de P1, ocorrendo também com a série posterior (p. ex., ‘p/u/de’), o que novamente confirma serem as especificações de Ponto-deV ([coronal], [labial], [dorsal]) irrelevantes nesse caso. [-aberto 2], da camada de abertura, ao se linkar com a vogal (V) no tier esqueletal, faz com que ela se especifique como alta – /u/ ou /i/ – e essa altura manifesta a noção de P1. A formalização para P3 no padrão A é semelhante à de P1; a única alteração é o traço presente no tier de abertura. Como é a vogal média (t/e/ve ou p/o/de) a responsável por informar P3, a especificação na camada 111 de abertura que se linka à vogal (V) tônica do radical é [+aberto 2], como ilustramos a seguir, em (15): (15) µ abertura [+aberto 2] (P3) tier esqueletal x x x x radical a V b c µ Os segmentos do radical associam-se ao tier esqueletal. O link no tier esqueletal da vogal (V), na sílaba tônica do radical, com [+aberto 2], do tier de abertura, é o expoente da informação de P3. Observe-se baixo o dado abaixo o dado ‘t/e/ve’: (16) abertura [+aberto 2] (P3) tier esqueletal x x x x radical /t/ V /v/ /I/ TC → x x x x /t/ /e/ /v/ /I/ 112 Representamos, em (16) os links entre as três camadas autônomas (abertura, molde esqueletal e radical) e a consequente linearização através de TC. As estruturas morfológicas de abertura e de radical, devidamente representadas por µ, linkam-se ao tier esqueletal. Esse padrão A é produtivo em língua portuguesa; verificamos usos como ‘tr/u/xe’ (P1) e ‘tr/o/xe’ (P3); ‘c/u/be’ (P1) e ‘c/o/be’ (P3); ‘s/u/be’ (P1) e ‘s/o/be’ (P3). Ilustramos abaixo a formalização em ‘tr/u/xe’ e ‘tr/o/xe’ respectivamente. Observe-se que a especificação negativa de [aberto 2] manifesta P1 e a positiva, P3, o que confirma a relevância desse traço na expressão de número-pessoa em português: abertura [aberto 2] µ [-] P1 abertura [aberto 2] µ [+]P3 tier esqueletal x x x x x tier esqueletal x x x radical /t/ /ɾ/ V /s/ /I/ radical /t/ /ɾ/ V /s/ /I/ µ µ 5.4.3. A fusão número-pessoal no padrão B Como demonstramos no Capítulo 4, o padrão B de fusão por alternância vocálica ocorre no presente do indicativo. Nesse padrão, vogal média-baixa na sílaba tônica do radical manifesta o conteúdo P3 (‘cons/ɛ/gue’, ‘desc/ɔ/bre’) e vogal alta na sílaba tônica do radical é o expoente secundário de informação número-pessoal, 113 x x reforçando a noção de P1, também indicada pelo afixo –o (/U/), como em ‘cons/i/go’, ‘desc/u/bro’. Nesse caso, verificamos a existência de três tiers: radical, abertura e molde esqueletal6. Todos os segmentos do radical, representados por a, b, c, d, são plenamente especificados, com exceção da vogal, localizada na sílaba tônica do radical. Como essa vogal pode ser alta ou média-baixa, especifica-se previamente como [-aberto 1]. Portanto, o traço de abertura manipulado nesse padrão é [aberto 2]. É a especificação (positiva ou negativa) desse traço a responsável por indicar o conteúdo de númeropessoa. Representamos abaixo, em (18), o link entre tiers e a consequente linearização de camadas que gera o output ‘ac/ɔ/de’: (17) abertura [+aberto 2] (P3) tier esqueletal x x radical /a/ /k/ V /d/ /I/ x x x TC → x x x x x /a/ /k/ /ɔ/ /d/ /I/ 6 Representamos as posições do tier esqueletal como ‘x’ nesta Dissertação, porque não há, em português, modelos predeterminados de posições CV com determinados conteúdos, como ocorre no árabe. A última posição – quando linkada a segmentos vocálicos, do tier número-pessoal (como P1 do presente do indicativo), ou associada ao tier borda direita – é indicada por V (vogal). 114 Há três expoentes de informação morfológica atuando em ‘ac/ɔ/de’: o radical, que manifesta conteúdo lexical; a abertura vocálica, que manifesta o conteúdo gramatical de P3, e o tier esqueletal, responsável pelo link entre radical e abertura: (18) µ abertura [+aberto 2] (P3) tier esqueletal radical x x x x x /a/ /k/ V /d/ /I/ µ A informação de P3 através do link com [+aberto 2] com a vogal também ocorre com a série anterior, como se vê em ‘cons/ɛ/gue’: 115 (19) µ abertura [+aberto 2] (P3) tier esqueletal x radical /k/ /o/ /N/ /s/ V /g/ /I/ x x x x x x µ A informação de P3 no padrão B é uma estratégia produtiva na língua como evidenciam dados do tipo ‘v/ɛ/ve’, ‘div/ɛ/de’, ‘corr/ɛ/ge’, expostos no Capítulo 4. Demonstramos abaixo a formalização de v/ɛ/ve: 116 (20) abertura (P3) µ [+aberto 2] tier esqueletal x x radical /v/ V /v/ /I/ x x µ Na informação de P1 do padrão B, a manipulação do traço [aberto 2], na associação com a vogal da sílaba tônica do radical, também é um expoente de informação morfológica, mas secundário. O conteúdo de P1 manifesta-se pelo afixo –o e é reforçado pela vogal alta na sílaba tônica do radical. Ilustramos abaixo o modelo de formalização para o reforço de P1 no padrão B: 117 (21) µ abertura [-aberto 2] (expoente secundário de P1) número-pessoa µ tier esqueletal x x x x radical a V b V c µ Na formalização de P1 no padrão B, existem quatro tiers; o radical tem seus segmentos plenamente especificados (‘a’, ‘b’, ‘c’); apenas a vogal (V), na sílaba tônica do radical, é subespecificada, ou seja, é previamente especificada para [aberto 1], mas não-especificada para [aberto 2] . Quando a vogal e [-aberto 2] se linkam na mesma posição no tier esqueletal, a vogal assume o grau alto, atualizando-se /i/ ou /u/. Além dos tiers de radical, de abertura e esqueletal, há também o tier de número-pessoa. O link do formativo –o (/U/), do tier número-pessoal, é o principal expoente da informação de P1. Como verificamos em ‘ac/u/do’, ‘c/u/bro’, ‘d/u/rmo’, ‘eng/u/lo’, ‘f/u/jo’, ‘pers/i/go’, ‘s/i/rvo’, ‘pref/i/ro’, ‘rep/i/to’, ‘ref/i/ro’, a vogal alta na sílaba tônica do radical atua 118 como um reforço da noção de P1. Isso evidencia um espraiamento7 da noção de P1 do tier de número-pessoa para o tier de abertura, fazendo com que a vogal alta seja o expoente secundário do conteúdo de P1. Ilustramos abaixo, em (23), o link entre tiers e a consequente conflação de camadas (TC) em ‘ac/u/do’: (22) abertura [-aberto 2] (expoente secundário de P1) número-pessoa /U/ tier esqueletal x x x radical /a/ /k/ V /d/ x V TC → x x x x V /a/ /k/ /u/ /d/ /U/ Os segmentos do tier de radical linkam-se, um a um, da esquerda para a direita ao tier esqueletal. /a/ associa-se à primeira posição do molde esqueletal e /k/, à segunda. A vogal subespecificada vincula-se à terceira posição do tier esqueletal. Nessa mesma posição, linka-se [-aberto 2], do tier de abertura. Isso leva a que a vogal seja especificada como alta. Depois, /d/ associa-se à quarta posição do tier esqueletal; na quinta posição do molde, ocorre o link de /U/, do tier número-pessoal, levando à manifestação de P1. Devido a um espraiamento do tier de número-pessoa para o tier de 7 O espraiamento é representado na Morfologia Autossegmental (1979, 1981) por linhas pontilhadas. Em (23) , /U/, do tier número-pessoal, associa-se à vogal final do molde e espraia o conteúdo de P1 para o tier de abertura. 119 abertura, a qualidade alta da vogal tônica do radical passa a ser o expoente secundário, o reforço do conteúdo de P1. Depois do link entre camadas, ocorre a atuação de TC, trazendo à tona a forma linearizada ‘ac/u/do’. Demonstramos abaixo, em (24), os quatro expoentes morfológicos existentes em ‘ac/u/do’: (23) abertura µ [-aberto 2] (expoente secundário de P1) número-pessoa µ /U/ tier esqueletal x x x x radical /a/ /k/ V /d/ V µ O padrão B também ocorre com a série anterior como verificamos abaixo, em (24) e (25): 120 (24) µ abertura [-aberto 2] (expoente secundário de P1) número-pessoa µ /U/ tier esqueletal x radical /k/ /o/ /N/ /s/ V /g/ x x x x x V µ (25) abertura (expoente secundário de P1) µ [-aberto 2] número-pessoa µ /U/ tier esqueletal x x radical /v/ V /v/ x V µ Ilustramos acima a formalização de ‘cons/i/go’ e ‘v/i/vo’, respectivamente em (24) e (25). É evidente que o link entre camadas com a série anterior se dá da mesma 121 maneira: a vogal assume a característica alta devido ao link com [-aberto 2] no tier de abertura. Posteriormente, devido a um espraiamento do tier número-pessoal para a camada de abertura vocálica, a vogal alta, na sílaba tônica do radical, passa a atuar como reforço de P1. 5.5. Fusão: operação não-linear sistemática e formalizável Como evidenciamos nesta Dissertação, a fusão (mecanismo não-linear) é uma operação frequente no paradigma verbal do português. Alterações na base condicionadas fonologicamente – alternância vocálica, mudança consonantal, inserção consonantal, ditongação, haplologia – manifestam conteúdos gramaticais na morfologia do verbo em português. A fusão, assim como outros processos de Morfologia Não-Linear, são colocados à margem nos estudos de morfologia de base estruturalista. Um dos motivos para esse estatuto residual é a impossibilidade de formalizar tais processos através de comutação. Demonstramos, neste Capítulo, que é possível formalizar a fusão através de um embasamento teórico que dá conta de fenômenos não-lineares. Utilizando a Morfologia Autossegmental (1979, 1981) e a manipulação das várias camadas do traço [aberto] de Clements & Hume (1995), formalizamos um expediente sistemático e muito produtivo no português: a alternância vocálica. 122 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A operação fusão – que consiste em modificações na base para veicular conteúdos gramaticais – é muito pouco estudada na literatura morfológica sobre o português. No enfoque estruturalista, são raríssimos os casos de mudanças formais na base em que se descreve, também, o polo semântico. Essa contraparte semântica, em geral, só é explicitada nos casos de alternância vocálica, que, mesmo assim, é tratada como improdutiva, reduzida a pouquíssimos casos. Os outros casos de modificação na base são descritos apenas formalmente; os teóricos mencionam todas as regularidades formais verificadas no paradigma verbal. Verificamos que não só a alternância vocálica, mas quaisquer mudanças formais na base verbal têm regularidade e sistematicidade e apresentam uma contraparte semântica: veiculam conteúdos gramaticais. Algumas dessas mudanças formais, como a ditongação e a alternância vocálica – esta última a estratégia de fusão priorizada na pesquisa – são produtivas: os falantes aplicam-nas mesmo quando essas estratégias não estão presentes na norma padrão devido à necessidade de expressarem formalmente alguma informação gramatical. Objetivamos demonstrar que a morfologia verbal portuguesa se organiza não só pela concatenação de afixos a bases, mas também por fusão. Como demonstramos no Capítulo 4, a fusão é produtiva e regular na língua. Mudanças formais na base verbal, muitas vezes, motivadas por processos fonológicos – alternância vocálica, ditongação, mudança consonantal, inserção consonantal, haplologia – indicam informações semânticas, como tempo (presente, passado e futuro) e número-pessoa (P1 e P3). Em outras palavras, a morfologia cria padrões de fusão através da fonologia; esses padrões formais manifestam conteúdos semânticos, o que reforça o pressuposto de que morfologia e fonologia não são estanques, podendo ser descritas a partir de um 123 continuum (BYBEE, 1985). Outro aspecto observado no trabalho é que alguns dos chamados zeros morfológicos (ausências formais que indicam significados gramaticais) postulados pela literatura de inflexão estruturalista são casos de flexão verbal por fusão que sempre passaram despercebidos. Com base em Bybee (1985) e Gonçalves (2005), demonstramos como é possível dar conta do polo semântico do processo morfológico não-linear, a fusão, aqui ententida como consequência de um alto grau de relevância semântica: conteúdos como tempo e número-pessoa se fundem no radical por serem relevantes para o significado do verbo. Com relação ao polo formal da fusão, fundamentando-nos no enfoque da Morfologia Autossegmental (1979, 1981) e na ideia de que o grau de altura vocálica é definido pelo link dos traços de abertura (os vários níveis de [aberto]) (CLEMENTS & HUME, 1995), postulamos uma formalização para os casos de fusão por alternância vocálica. 124 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZUAGA, Luísa. “Morfologia”. In: FARIA, I. H., PEDRO, Emília Ribeiro, DUARTE, I., GOUVEIA, Carlos A. M. Introdução à Linguística Geral e Portuguesa. 1 ed. , capítulo 5, Lisboa, Caminho, 1996. BATTISTI, Elisa & VIEIRA, Maria José Blaskovski. “O sistema vocálico do português”. In: BISOL, Leda. 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