Uma representação comum da Idade Média remete à existência de

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Uma representação comum da
Idade Média remete à existência de
reis e rainhas, príncipes e princesas,
em seus castelos. Nobres cavaleiros
lutando por sua honra em torneios
de bravura, impressionando belas
damas. Essa visão que temos sobre
a Idade Média foi construída, em
parte, pelas produções literárias
da época, as cantigas e as novelas
de cavalaria. Esses textos, que
constituem o primeiro estilo de
época por nós estudado, ajudaram
a divulgar o comportamento cortês
no tratamento do amor e da honra.
Veremos, neste capítulo, como esse
tipo de comportamento é recorrente
na literatura e na cultura ocidentais.
O poema a seguir é um exemplo
de texto produzido em Portugal, na
Alta Idade Média, e apresenta uma
temática muito comum aos textos
produzidos naquela época.
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Capítulo 6
Versão em galego-português
Ai eu, coitada, como vivo en gran cuidado
por meu amigo, que hei alongado!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
Ai eu, coitada, como vivo en gran desejo
por meu amigo, que tarda e non vejo!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!
Por Afonso X
Obtido em http://pt.wikisource.org/wiki/Ai_eu,_coitada,_como_
vivo_en_gran_cuidado”
Versão traduzida para o português atual:
Ai! Eu, coitada, como vivo em grande espera
por meu amigo, que tenho esperado!
Muito demora
o meu amigo na guerra!
Ai! Eu, coitada, como vivo em grande saudade
de meu amigo, que demora e que há muito não vejo!
Muito demora
o meu amigo na guerra!
Literatura na Idade Média
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Vamos fazer juntos!
1. No poema apresentado, de Afonso X, perceba que a voz lírica é feminina. Ela está em sofrimento. Por quê?
2. A que guerra o poema provavelmente se refere?
3. O que você sabe sobre a sociedade medieval?
1
Contexto histórico
A Idade Média é uma divisão proposta pelos historiadores para determinar o período entre a Antiguidade
e a Idade Moderna na Europa. Ela teve início no século V com as invasões bárbaras a Roma, capital do Império
Romano do Ocidente, em 476 d.C, e termina com a queda de Constantinopla, capital do Império Romano do
Oriente, tomada pelos turcos em 1453 d.C.
É comum a subdivisão do período medieval em Alta e Baixa Idade Média. A Alta Idade Média estende-se até o
final do século X e início do século XI, com o fim da dinastia carolíngia, quando se inicia a Baixa Idade Média. Essa
se estende até o século XV, sendo os seus dois últimos séculos marcados por muitas transformações sociais e de
pensamento, assim como por várias adversidades e catástrofes, como a Peste Negra.
Neste capítulo, vamos nos concentrar na produção literária da Alta Idade Média e de parte da Baixa Idade
Média, até o início do século XIII.
(fonte: http://aprendizprofessor.wordpress.com/2010/04/11/
mapas-invasoes-barbaras/)
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Capítulo 6
Para tanto, é preciso entender alguns aspectos importantes da formação política e social do período.
A Igreja Católica no centro do poder
Dos anos de dominação romana na Europa, o Cristianismo foi uma de suas heranças. Com o passar dos anos,
a igreja de Cristo cresceu e acumulou terras e riquezas, até se transformar no grande centro do poder religioso e
secular da Europa.
No período da Alta Idade Média, o poder da Igreja era tão grande, que reis e rainhas só podiam ser coroados
e assim chamados com o aval do papa. Era a Igreja que definia disputas territoriais e excomungava aqueles que
discordassem de suas decisões.
O controle da Igreja era também percebido na relação com o povo, quando o clero estimulava a crença nas
pessoas de que elas eram imperfeitas e inferiores e que, por isso, precisavam buscar a redenção de seus pecados
na sua total submissão à Igreja, visto que essa representava, na terra, a vontade divina.
A essa postura servil perante Deus e a sua representante, observada nas diversas camadas sociais, do nobre ao
pobre, dá-se o nome de teocêntrica.
Teocentrismo (derivado do termo grego théos: deus ou divindade)
é a visão de mundo cristã, determinadora da perfeição e superioridade
de Deus sobre as coisas mundanas, inclusive o ser humano, imperfeito
e pecador. Essa visão foi utilizada pela Igreja Católica como forma de
dominação social e política.
Religião e produção cultural
Uma das formas que a Igreja Católica encontrou para
controlar a população nos anos da Alta Idade Média foi o
domínio quase absoluto sobre o conhecimento. Numa época
em que apenas 2% da população europeia era alfabetizada, a
escrita e a leitura estavam restritas a monastérios e abadias. Os
religiosos reproduziam e traduziam textos importantes para
o Cristianismo e obras dos filósofos Aristóteles e Platão, por
exemplo, desde que essas não interferissem nos interesses da
Igreja.
A circulação desses textos, além de restrita ao universo do
clero, dependia da reprodução manuscrita e era feita sempre
por encomenda, tornando ainda mais difícil sua divulgação
devido ao números de exemplares insuficientes.
Além disso, o uso do latim, herança romana, era outro
elementos dificultador. Monges eruditos levavam seus poemas
e canções em latim nas suas andanças, e a maior parte desses
poemas, apresentava temática religiosa.
Com o enfraquecimento do poder central depois da morte
do imperador francês Carlos Magno, no século IX, a sociedade
medieval foi obrigada a se organizar de outra maneira, em feudos,
administrados por grandes proprietários de terra, os senhores
feudais. É com a chegada do feudalismo que a produção literária
do período, que se estende até o século XIII, se fortalecerá, não
sendo produzida somente por membros do clero, com temáticas
outras que não aquelas exclusivamente religiosas.
Literatura na Idade Média
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Uma nova ordem social: suserania e vassalagem
Como vimos, a descentralização do poder no século IX
definiu uma nova ordem social: pequenas comunidades,
vivendo em propriedades chamadas de feudos, sob o domínio
da figura do senhor feudal, em torno de quem uma corte passa
a existir. Grande parte dessa corte é composta por membros
empobrecidos da nobreza, cavaleiros, camponeses livres e
servos. A relação dessas pessoas com o senhor feudal era uma
relação de dependência pessoal, denominada vassalagem.
Os moradores do feudo juravam proteger as terras do
senhor feudal, seu suserano, das invasões bárbaras e, como
seus vassalos, recebiam o direito de permanecer nas terras e
cultivar parte delas, além de serem protegidos pelo senhor.
Abaixo do senhor feudal estavam os cavaleiros, que ocupavam
uma posição de destaque nessa organização social e
formavam o exército do suserano. Entre eles, as relações eram
marcadas por códigos rígidos de conduta, baseados na honra,
na lealdade, na bravura, na cortesia. Esse quadro é formador
do feudalismo como o sistema de organização social e política
da Idade Média.
A Igreja, com seu clero, ainda é parte importante no sistema
feudal, fazendo-se presente na lógica estamental. Veja que a
ideologia da servidão e da submissão está presente na visão
teocêntrica da sociedade medieval, pois essa submissão
é também transmitida para as relações de suserania e
vassalagem.
A Idade Média em Portugal
A presença humana na hoje denominada Península Ibérica é antiga, de cerca de 500 mil anos. O território, habitado
por diversos povos durante esses anos, foi invadido no ano de 29 a.C., pelo romanos, quando a região foi anexada ao
Império Romano. As línguas faladas até hoje, as leis e a religião são marcas da romanização da Península Ibérica. Com
o declínio da dominação romana, no século V d.C., a região foi invadida por povos germânicos e, posteriormente, por
árabes, que também deixaram suas marcas na cultura local.
Mas foi na Baixa Idade Média, que Portugal conquistou sua autonomia. No século XII, depois da recuperação de
alguns territórios tomados pelos árabes – a chamada Reconquista cristã –, o condado Portucalense se separou do
reino de Leão e Castela e, em 1249, com a estabilização de suas fronteiras, Portugal torna-se o primeiro Estado-nação
da Europa. Esse fato foi fundamental para a exploração marítima na era dos descobrimentos, nos séculos XIV e XV,
quando o reino de Portugal expandiu seus territórios para África, Ásia, América e Oceania.
A separação política do Reino de Leão e Castela, no entanto, não rompeu seus profundos laços econômicos, sociais
e culturais com o resto da Península Ibérica. O mais forte laço era a língua: o galego-português.
Faça hoje antes de dormir!
1. Faça um mapa conceitual com as informações importantes sobre a Idade Média. Divida seu mapa nos
tópicos apresentados no item 1, sobre o contexto histórico do período, listando os assuntos mais relevantes
de cada um.
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Capítulo 6
2
A produção literária da Idade Média
Quando, no século XII, as invasões bárbaras
diminuíram, cidades ressurgiram, o comércio e o
intercâmbio cultural reavivaram-se, o que, porém,
fez com que os cavaleiros, membros dos exércitos do
senhor feudal, perdessem sua função.
Para resolver essa questão e encontrar outra maneira
de manter o prestígio dos cavaleiros dentro dos feudos,
um código de comportamento foi criado, marcado
pela cortesia: o valor pessoal de um cavaleiro não se
media apenas por seu sangue ou proezas militares,
mas também por seu comportamento social cortês.
Esse código também determinava a conduta amorosa,
criando as regras do amor cortês, que transmitiram a
lógica de servilismo que se vê nas relações sociais e na
relação com a divindade para a submissão do poeta a
sua amada e na submissão do cavaleiro a sua donzela.
Portanto, nesse período, haverá o fortalecimento de
uma literatura oral dentro dos feudos, desvinculada
daquela monopolizada pela Igreja nos monastérios e
abadia, produzidas na língua local, em que se verão
descritas a subordinação a Deus e à mulher amada.
Então, as trovas ou cantigas e as novelas de cavalaria
são um retrato dessa cultura, ainda marcada pelo
teocentrismo do período, mas desassociadas de uma
temática exclusivamente religiosa, destacando-se as
histórias de amor impossíveis, de homens submissos a
suas senhoras e de cavaleiros lutando pela honra de suas
damas, produzidas para o deleite da nobreza dos feudos.
As trovas ou cantigas
Em Portugal e em outras regiões da Europa, como a Provença na França, cultivou-se a produção poética de
cantigas ou trovas. O escritor de cantigas e trovas era chamado de trovador, por isso a poesia produzida nessa época é
comumente chamada de TROVADORISMO. Foi nas cortes dos reis portugueses, galegos e castelhanos que surgiram os
textos líricos, em que trovadores cantavam seus amores, claramente influenciados pela literatura provençal.
O primeiro texto literário galego-português do período, acreditam os estudiosos, é a “Cantiga da Ribeirinha”,
supostamente composta em 1198.
As cantigas galego-portuguesas, mais próximas para a formação de nossa literatura, se dividiam em líricas e satíricas,
dependendo do tema que desenvolviam. As cantigas líricas subdividem-se em cantigas de amor e de amigo. Já as
cantigas satíricas, em de escárnio e de maldizer. É importante ressaltar que uma característica comum às cantigas é o
fato de todas elas serem, à época, acompanhadas por instrumentos musicais.
Trovadorismo é o nome dado à poesia produzida por volta dos
séculos IX a XIII. Também chamadas de cantigas ou trovas, eram escritas
por trovadores e se subdividiam em líricas e satíricas.
Literatura na Idade Média
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Cantigas líricas
As cantigas líricas podiam ser de amor ou de amigo.
Cantigas de amor
As cantigas de amor são fortemente marcadas
pelo “jogo” amoroso das regras do amor cortês,
segundo as quais, o trovador deveria expressar
seus elogios e súplicas a uma mulher da
nobreza, casada, que tivesse uma posição social
reconhecida e superior à do trovador. Dessa
forma, a mulher era a senhora e o homem, seu
servo. Perceba que não havia contato físico entre
eles. A relação descrita nas cantigas ressalta o
amor como sublimação dos desejos do homem,
dando à mulher uma perspectiva totalmente
idealizada, de perfeição absoluta.
As cantigas de amor produzidas na Península
Ibérica, em galego-português, originam-se das
cantigas provençais e, como elas, apresentam a
coita de amor, ou seja, o sofrimento pelo amor
não correspondido, como temática principal. O
princípio maior do amor cortês é a idealização
da amada pelo trovador; portanto, esse tipo de
cantiga não manifesta a concretização do amor e
nem mesmo a expectativa dela.
As cantigas de amor têm características muito
particulares. O eu lírico desse tipo de cantiga é
sempre masculino e representa o trovador que
endereça elogios a uma dama. Esse trovador, que
sofre com o desprezo ou a distância da amada, se
identifica como sofredor, coitado, cativo, aflito. A
mulher amada, por sua vez, é identificada por seus
atributos físicos, morais e sociais. É geralmente
chamada de formosa, bela, delgada (qualidades
físicas), bondosa, leal (qualidades morais) e que
dela se fala muito bem (qualidade social). Além de ressaltadas suas qualidades, a dama é colocada como superior
perante as outras damas da corte. Essa comparação também está a serviço da exaltação da dor e dos talentos
do trovador, pois ele é aquele que mais sofre pela mulher mais bela dentre todas e, por isso, suas trovas são as
melhores dentre todas já produzidas.
As cantigas de amor, embora predominantemente líricas, apresentam elementos típicos da narrativa. O cenário
faz referências ao ambiente da corte ou a uma paisagem natural idealizada, apresentando um número restrito de
personagens: geralmente, só o trovador e sua senhora são os personagens das cantigas de amor, porém, um rival
ou Deus também podem figurar nelas.
As cantigas galego-portuguesas, assim como as provençais, tinham predileção pelos versos redondilhos
maiores, mas diferentemente destas, inovaram na apresentação do refrão, conjunto de versos que se repetiam no
final das estrofes utilizadas para enfatizar o sofrimento do eu lírico ou reafirmar a beleza superior de sua senhora.
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Capítulo 6
Verifiquemos os aspectos estudados na Cantiga da Ribeirinha, composta por Paio Soares de Taveirós, em 1198.
Versão em galego-português
Versão traduzida para o português atual
No mundo non me sei parelha,
mentre me for’ como me vai,
ca ja moiro por vós - e ai!
mia senhor branca e vermelha,
Queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mao dia me levantei,
que vos enton non vi fea!
No mundo ninguém se assemelha a mim
Enquanto a vida continuar como vai,
Porque morro por vós e - ai! Minha senhora alva e de pele rosadas,
Quereis que vos retrate
Quando eu vos vi sem manto.
Maldito seja o dia em que me levantei
E então não vos vi feia!
E, mia senhor, des aquel di’, ai!
me foi a mi muin mal,
e vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d’haver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d’alfaia
Nunca de vós ouve nem ei
valía d’ũa correa.
E minha senhora, desde aquele dia, ai!
Tudo me ocorreu muito mal!
E a vós, filha de Dom Paio
Moniz, parece-vos bem
Que me presenteeis com uma guarvaia,
Pois eu, minha senhora, como presente,
Nunca de vós recebera algo,
Mesmo que de ínfimo valor.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cantiga_da_Ribeirinha
Faça hoje antes de dormir!
1. Qual é o tema tratado na cantiga?
2. Que características permitem afirmar que essa é uma cantiga de amor?
3. Há refrão nessa cantiga?
4. Como o eu lírico trata sua amada? O que esse tratamento revela?
5. Na sua opinião, é possível um amor assim nos dias de hoje?
As cantigas de amor apresentam:
•
influência provençal;
•
eu lírico sempre masculino;
•
o sofrimento do trovador por causa do amor não correspondido: a coita de
amor;
•
a relação de vassalagem: a mulher é senhora e o trovador é o servo;
•
a mulher sempre superior às outras, em todos os aspectos, idealizada numa
perfeição absoluta;
•
um cenário ambientado nos espaços da corte ou paisagens naturais idealizadas;
•
predileção por versos redondilhos maiores e, às vezes, presença de refrão.
Literatura na Idade Média
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