Ruthe Ventura - TEDE2 da UNIVERSIDADE METODISTA DE

Propaganda
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Entre Jesus e Barrabás: realidade, expectativas e a
escolha da multidão em Marcos 15,6-15
por
Ruthe Ventura Cuesta
São Bernardo do Campo
2009
2
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Entre Jesus e Barrabás: realidade, expectativas e a
escolha da multidão em Marcos 15,6-15
por
Ruthe Ventura Cuesta
Orientador: Dr. Archibald Mulford Woodruff
Dissertação
apresentada
em
cumprimento parcial às exigências do
Programa
de
Pós-Graduação
em
Ciências da Religião, para obtenção do
grau de Mestre.
São Bernardo do Campo
2009
3
FICHA CATALOGRÁFICA
4
BANCA EXAMINADORA
Presidente
1º Examinador
2º Examinador
5
Aos meus pais, Ana e Carlos (in memoriam), por construírem as bases
para eu ser quem sou...
Ao Juan, à Joana e ao Arthur, e às demais (muitas) crianças de minha
vida, por me fazerem desejar ser melhor, e por me mostrarem que
isso é possível...
Ao mais do que professor Archibald, por não desistir de acreditar (às
vezes mais do que eu mesma), que entre esses tempos, no hoje,
existe alguém “suficientemente bom”...
Com meu carinho.
6
AGRADECIMENTOS
Seria impossível agradecer a todas as pessoas que direta ou
indiretamente colaboraram para a elaboração deste trabalho, uma vez que
este é fruto da vivência cotidiana e do relacionamento com cada pessoa que
fez ou faz parte de minha vida. Por isso, gostaria de agradecer às muitas
pessoas que não serão nominalmente citadas, mas que fazem parte da
construção deste trabalho.
Contudo, alguns agradecimentos especiais são necessários:
Ao Prof. Dr. Archibald Mulford Woodruff, meu orientador e amigo, pelo
incentivo, dedicação, carinho e paciência trilhando esse caminho... Acima de
tudo por ser exemplo de pessoa e de cristão que nos incentiva a caminhar...
Aos professores do Programa de Pós Graduação em Ciências da
Religião
da
Universidade
Metodista
de
São
Paulo,
especialmente
aos
professores Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira, Dr. Paulo Roberto Garcia e
Dr. Jung Mo Sung, pelo conhecimento compartilhado...
À Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, especialmente ao
Presbitério São Paulo, do qual tenho a alegria de fazer parte, pelo apoio desde
os primeiros passos...
Ao Seminário Teológico de São Paulo, todos os professores e
funcionários, especialmente aos reverendos Paulo Sérgio de Proença, Marcos
Paulo Monteiro da Cruz Bailão e Gérson Correa de Lacerda, que fazem com
que esse lugar continue sendo quase um lar...
Aos colegas e amigos da Agência Afonso Sardinha da Caixa Econômica
Federal, especialmente ao gerente de relacionamento Enio Fusco Pavan e ao
gerente geral da unidade, Cezar Arruda de Oliveira, pela compreensão e
apoio...
Ainda da Caixa Econômica, aos colegas da GILIE SP e aos gestores
Olivio Zanovello Junior, (Gerente de Serviço) e Eunice Martins Araújo
(Gerente de Filial), por terem me recebido (muito bem) num momento em
que minha atenção estava tomada por este trabalho...
Aos queridos amigos: Isabel e Luiz, Carla Macedo, Viviane Gaino
Vieira, Ricardo de Oliveira e Tati, pelo carinho sempre...
7
À “família Gimenes”, que me recebeu com todo carinho desde o
começo, com destaque especial às tias Elza e Mara...
À Rosa Gimenes, minha sogra, verdadeiramente uma “Noemi”, pelo
apoio, atenção, pelas muitas e constantes orações que demonstram seu
amor...
À minha mãe Ana, minha irmã Raquel e à Joana, por simplesmente
existirem em minha vida e me apoiarem, mesmo sem entender...
Ao Renato, meu marido e amor da minha vida, minha melhor escolha,
pela constante demonstração de amor e disposição de construir a vida...
Àquele a quem as palavras não são necessárias, que conhece
profundamente o meu coração e sabe o quanto esse momento é importante...
Nenhum agradecimento seria suficiente...
O meu carinho, a minha gratidão, o meu desejo de que eu possa
aprender a ser para vocês um pouco de tudo o que representam pra mim!
8
A realização deste trabalho não seria possível sem o apoio das
seguintes instituições: IEPG, com concessão de Bolsa De Estudos
Parcial de 02/2007 a 01/2008 e Capes, com concessão de Bolsa
Flexibilizada de 02/2008 a 02/2009.
9
CUESTA,
Ruthe
Ventura,
Entre
Jesus
e
Barrabás:
realidade,
expectativas e a decisão da multidão em Marcos 15,6-15,
Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo,
julho de 2009, 154p.
SINOPSE
O trabalho a seguir visa apresentar um estudo da palavra
“multidão” no Evangelho de Marcos, considerando-a como personagem
importante na estrutura literária concebida pelo autor, destacando
especialmente sua atuação na cena da apresentação de Jesus diante
de Pilatos em que é dada a ela – a multidão – a oportunidade de
escolher pela libertação de Jesus ou de Barrabás.
O texto em referência será estudado levando-se em conta o
contexto de dominação romana em que estava inserido, como
composição literária que reproduz a estrutura dos munera (combate
ente gladiadores), fenômeno característico da civilização romana e
símbolo de sua dominação, fazendo com que o escrito de Marcos seja
uma paródia que visa esclarecer seu público acerca de sua própria
situação.
10
CUESTA, Ruthe Ventura, Between Jesus and Barabbas: reality,
expectations and the decision of the crowd in Mark 15: 6-15,
Methodist University of São Paulo, São Bernardo do Campo,
july 2009, 154p.
ABSTRACT
The following work aims to present a study on the word “crowd”
in the Mark’s
book, considering it is an important character on the
literary structure conceived by the author, highlighting specially its
performance on the scene of the presentation of Jesus before Pilate in
which is given it – the crowd – the opportunity to choose the freedom
of either Jesus or Barabbas.
The referred text will be studied taking into consideration the
context of roman overrule in which it was put in , as a literary
composition that reproduces the structure of munera (a battle between
gladiators), featured phenomenon of the roman civilization and symbol
of their domination, making the writing of Mark to be a mockery which
intends to enlighten its public concerning its own situation.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
13
1º CAPÍTULO
O EVANGELHO DE MARCOS: SEU MUNDO E SUAS PESSOAS
1.1. O Evangelho e seu mundo
19
1.1.1. Considerações sobre o domínio romano: a paz e a desordem 24
1.1.2. O produto da dominação: os miseráveis da Palestina
27
1.1.3. Dominação ideológica: multidões de marginalizados
31
1.1.4. Sintomas da revolta e anúncios da destruição: o contexto de
35
guerra
1.2. O Evangelho e as pessoas
42
1.2.1. o;cloj: mais que uma palavra
1.2.2. Quem é
o;cloj no evangelho de Marcos?
1.2.3. A multidão e os discípulos em Marcos
1.2.4. O Jesus de Marcos e
o;cloj: um relacionamento paradoxal
42
46
52
55
2º CAPÍTULO
O IMPÉRIO ROMANO DIRIGINDO O MUNDO
2.1. O mundo dos dominadores
59
2.1.1. Um mundo romano: processos de expansão e dominação
65
2.1.2. Reorganização do espaço como tática de dominação
70
2.1.3. Princeps, Patrono e Imperador
73
12
2.2. O fenômeno dos munera
78
2.2.1. Além do sangue: princípios e valores nos munera
81
2.2.2. Os munera e o exercício de poder
85
2.2.3. Apresentando os munera: na arena
88
2.3. Considerações acerca da plebe romana
91
3º CAPÍTULO
O TEXTO DE MARCOS: REALIDADES E REPRESENTAÇÕES
3.1. Um pouco sobre o texto
97
3.1.1. Unindo o texto e o contexto
98
3.1.2. O texto de Marcos
100
3.1.3. O texto como realidade: historicidade ou plausibilidade?
105
3.1.4. Uma realidade por trás do texto
110
3.2. Os personagens da cena de Marcos
112
3.2.1. Sacerdotes, escribas, anciãos: a nata da sociedade
112
3.2.2. O representante do imperador: Pilatos
116
3.2.3. Barrabás, um gladiador
120
3.2.4. A última cena da multidão
123
3.3. A cena montada: um munera
127
3.3.1. Colocando os personagens na arena
127
3.3.2. A arena e o duelo de ideologias
129
CONCLUSÃO
133
BIBLIOGRAFIA
139
13
INTRODUÇÃO
Começando Uma Conversa
1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Tecendo a Manhã
João Cabral de Melo Neto
14
A complexidade nos assusta: A complexidade da vida, a
complexidade do mundo, a complexidade das coisas que consideramos
mais
simples
sem
perceber
que
são,
muitas
vezes,
as
mais
importantes. Assusta-nos, mas nos fascina!
Assim é o Evangelho de Marcos: aparentemente simples, mas
profundamente complexo; assustador, mas fascinante. Saber que já
foi e ainda é fonte de inúmeras pesquisas, que foi motivo de tantas
discussões e que ainda hoje não existem conclusões passivas a seu
respeito, perceber que é um marco no sentido de representar a
primeira história narrativa de Jesus, e aquilo que poderíamos chamar
de “primeira busca do Jesus histórico”, perceber o quão engajado seu
autor estava em sua realidade e em seu contexto, a ponto de desejar
tornar a pessoa de Jesus presente e real para as pessoas concretas de
sua realidade... Tudo isso nos faz perceber a grandiosidade desse livro
e o tamanho da responsabilidade que assumimos ao estudá-lo.
Percebemos também que este é um livro que nos abre muitas
possibilidades, e que é preciso fazer escolhas. Escolhemos, pois,
estudar o texto do Evangelho de Marcos a partir da análise de um
termo que pode ser considerado fundamental à estrutura da narrativa:
o;cloj, a “multidão”
que participa constantemente da vida e ministério
de Jesus desde a Galiléia até sua condenação e morte. Ao mesmo
tempo, estudamos o texto concernente ao julgamento de Jesus
perante o governador romano, Pôncio Pilatos, capítulo 15 versos 6 a
15 do referido Evangelho, tentando verificar qual o papel da também
referida multidão nesse episódio, uma vez que parece haver uma
contradição entre o relacionamento da multidão com Jesus ao longo da
narrativa, e a posição da mesma pedindo a condenação e crucificação
de Jesus, no texto estudado.
Com essa intenção em mente, o estudo do texto de Marcos
15,6-15 mostrou-nos um outro caminho, uma outra perspectiva a ser
observada: sua estrutura, a montagem da cena do texto e a disposição
15
e ação dos personagens na cena poderiam ser comparadas com a
estrutura, a posição e especialmente os significados dos munera, os
combates de gladiadores, fenômeno característico da Roma antiga,
símbolo dessa civilização que, à época da vida de Jesus e da
escrituração do Evangelho de Marcos (épocas distintas), dominava a
Palestina e começava a se constituir como um Império.
Verificar o papel e ação da multidão nesse texto, considerando
essa possibilidade de estruturação, demandou trilhar um caminho de
pesquisa “interdisciplinar”, que apresentamos a seguir.
Em primeiro lugar, foi preciso contextualizar o Evangelho de
Marcos, tentar perceber as particularidades e complexidades de seu
mundo e de seus destinatários. Dessa forma, no Primeiro Capítulo,
traçamos algumas considerações sobre o contexto de dominação
romana em que a Palestina de Marcos vivia, especialmente no período
da Guerra Judaica (entre 66 e 70 d.C), período em que datamos o
texto de Marcos, demonstrando os aspectos dessa dominação sob o
ponto de vista da população mais empobrecida: a perda das
propriedades, o endividamento cada vez maior devido à exploração e
aos impostos, a crescente marginalização e segmentação da sociedade
que gerava sentimentos de revolta ou alienação. Ao mesmo tempo,
salientamos a também presente opressão ideológica/religiosa, que
também
fomentava
marginalização
e
descontentamento.
Nesse
contexto, procuramos salientar as expectativas das pessoas que
viviam sob essas circunstâncias, expectativas que as fazia seguir
líderes carismáticos que se oferecessem com propostas que pudessem
dar algum tipo de esperança.
Inserindo o Evangelho de Marcos nesse contexto, na segunda
parte
do
capítulo,
o;cloj/multidão
como
apresentamos
personagem
a
palavra
importante
que
estudamos,
deste
Evangelho,
representativa desse grupo de pessoas cujas expectativas repousam
sobre Jesus. Verificamos tratar-se de palavra com forte significação e
16
sentido agregado, usada de forma consciente pelo evangelista para
representar um tipo de relacionamento das pessoas não apenas com
Jesus, mas com as demais pessoas – uma forma de inserção no
mundo. Procuramos destacar, nesta parte do trabalho, que o termo
o;cloj não é um conceito fechado, mas tem significação relacional: ser
o;cloj
não significa pertencer a uma classe social específica, não pode
ser entendida simplesmente como “pobres”, mas representa um
posicionamento diante do mundo que, de acordo com o Evangelho de
Marcos, pode ser transformado.
O Capítulo Dois introduzirá alguns aspectos acerca do Império
Romano – o ponto de vista do dominador. Apresentamos, nesse
capítulo, algumas considerações sobre o tipo de conquista e de
dominação empreendidos pelo Império nascente, bem como algumas
formas que o mesmo usou para estabelecer e manter seu domínio.
Destacamos, nesse sentido, alguns elementos dessa dominação que
consideramos relevantes para a Palestina e para o contexto do
Evangelho de Marcos, como a questão da resignificação do espaço
(como demonstração do poder imperial e ao mesmo tempo como
instrumento de expansão/inserção cultural); o sistema do Patronato,
que
regia
as
relações
entre
as
províncias
e
o
Império,
e,
especialmente, o fenômeno dos munera. A segunda parte do capítulo é
dedicada a esse fenômeno, que é apresentado como símbolo da
civilização romana, e como um forte instrumento na difusão da cultura
romana e transmissão dos valores dessa sociedade, além de funcionar
como um mecanismo de coerção e controle social, tanto por
apresentar uma visão da superioridade romana e do destino dos
adversários de Roma, como por representar uma forma de participação
popular que pode ser considerada como um “paliativo” diante da
verdadeira falta de poder de decisão das pessoas comuns.
O Capítulo Três apresentará uma análise do texto escolhido
(Marcos
15,6-15),
à
luz
dos
capítulos
anteriores,
e
procurará
17
demonstrar a relação entre os elementos desses capítulos através da
análise da estrutura do texto. Apresentaremos um estudo do texto a
partir do texto grego, salientando alguns aspectos do mesmo que
consideramos relevantes para a leitura política que empreendemos,
procurando verificar a intenção do autor na estruturação de alguns
detalhes do texto, na relação desse texto com outras partes do
Evangelho, a fim de demonstrar que o texto de Marcos é um relato
coerentemente arquitetado em que se encontram vários elementos
representativos do Império Romano.
Nesse capítulo empreenderemos também uma comparação ente
Marcos 15,6-15 e o fenômeno dos munera apresentado no capítulo
anterior, com o objetivo de demonstrar tratar-se de uma paródia em
que o autor desejou esclarecer para seu público os valores do Império
(que já faziam parte da visão de mundo também da população
dominada da Palestina) e subvertê-los através do exemplo de Jesus.
Nessa comparação, procuraremos destacar o papel da multidão, tão
significativo neste texto.
Concluímos apresentando nossa visão acerca de
o;cloj
com a
esperança de que se aproxime o tanto quanto possível da visão e
compreensão
que
Marcos
desejava
fomentar:
pessoas
reais
e
humanas, nem totalmente boas nem completamente más, que
apresentam expectativas de acordo com seus modelos e visão de
mundo, e que em todo o Evangelho encontram oportunidades e
possibilidades de transformação desses conceitos a partir de seu
relacionamento com Jesus, mas nem sempre atendem a isso.
Um fator que procuramos salientar durante todo o trabalho é a
necessidade de compreendermos a complexidade de cada elemento
apresentado. Tanto no que se refere ao Evangelho de Marcos e seu
contexto e ao uso que faz da palavra
o;cloj, como no que se refere ao
mundo romano e aos munera, ou mesmo em relação à estrutura do
texto estudado, é imprescindível que compreendamos que há vários
18
elementos envolvidos, entrelaçados, relacionando-se e formando cada
realidade.
Não pretendemos apresentar um trabalho neutro. Cremos que
essa tentativa seria ilusória e que tal ideia acerca da exegese (Bíblica
ou não) já está felizmente ultrapassada. Apresentamos um texto que
tem uma base, um chão concreto e real, como foi também o
Evangelho de Marcos. E o apresentamos como mais um passo nessa
grande caminhada com o texto, sem a pretensão de haver chegado,
mas com o desejo de nos juntar aos outros caminhantes, que já
vieram e que nos ajudaram a chegar aqui, e aos que ainda virão.
Para que a manhã se eleve!
19
1º Capítulo
O EVANGELHO DE MARCOS: SEU MUNDO E SUAS PESSOAS
Somos muitos Severinos
Iguais em tudo na vida:
Na mesma cabeça grande
Que a custo é que se equilibra,
No mesmo ventre crescido
Sobre as mesmas pernas finas
E iguais também porque o sangue
Que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
Iguais em tudo na vida,
Morremos de morte igual,
Mesma morte Severina:
Que é morte de que se morre
De velhice antes dos trinta,
De emboscada antes dos vinte
De fome um pouco por dia
João Cabral de Melo Neto
20
1.1. O EVANGELHO E SEU MUNDO
Uma grande novidade. Essa é a forma como podemos considerar
o Evangelho de Marcos. Novidade na forma literária, no conteúdo e até
mesmo no fato de ser um documento escrito. Essas “novidades”
percebidas não podem ser ignoradas, se pretendemos apresentar
“mais um” trabalho sobre este Evangelho, que já foi e ainda é objeto
de tantos estudos e discussões.
Falamos em novidade literária porque o Evangelho de Marcos
apresenta um tipo de escrito até então desconhecido, algo novo,
embora formado e elaborado com elementos de diversos gêneros
literários
correntes
em
sua
época,
sem
entretanto
poder
ser
considerado como qualquer destes gêneros.1 Podemos pensar nesse
Evangelho como fruto de um “desenvolvimento redacional” que traz
elementos literários e conteúdos anteriores elaborados de forma
própria. O resultado dessa elaboração é o que chamamos de
“novidade”, e nessa articulação de elementos podemos perceber a
ousadia e genialidade do autor.
O escrito de Marcos, além disso, pode ser considerado como
uma novidade teológica. É o primeiro relato narrativo da pessoa e da
vida de Jesus, e esse é um ponto importantíssimo, não apenas porque
se refere à demonstração de um desenvolvimento acerca dos relatos
sobre Jesus, mas também porque esse fato tem muito a dizer a
respeito do contexto e do objetivo do autor, como veremos a seguir.
Ao tratarmos o Evangelho de Marcos dessa forma, como uma
novidade literária e teológica, estamos aceitando a teoria não apenas
1
Para uma visão mais detalhada acerca das diversas formas literárias que compõem
os Evangelhos, ver Klaus Berger, As Formas Literárias do Novo Testamento, São
Paulo: Loyola, 1998, p.100. Com relação especificamente ao Evangelho de Marcos,
ver Xabier Pikaza, Para Viver El Evangelio – Lectura de Marcos Estella (Navarra):
Editorial Verbo Divino, 1997, p.9-22 e Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São
Paulo: Paulinas, 1992, p.43-65.
21
de que Marcos foi o primeiro dos Evangelhos a ser escrito, mas
também a de que serviu de fonte para os demais Evangelhos
Sinóticos. Essa teoria apóia-se na “Teoria das Duas Fontes”, segundo a
qual, além do Evangelho de Marcos, os evangelistas Mateus e Lucas
dispuseram de uma outra fonte sobre Jesus, chamada de “fonte Q” –
que não era uma fonte narrativa, mas uma coleção de histórias e ditos
de Jesus. Dessa forma, Marcos, como primeiro Evangelho, seria um
avanço na história literária do cristianismo por apresentar pela
primeira vez uma narrativa – uma organização contextualizada do
material acerca de Jesus e sua história. O Evangelho de Marcos é uma
narrativa estruturada, e nele os atos e palavras de Jesus situam-se
histórica e socialmente, tornam-se concretos, fazendo com que a
própria
pessoa
de
Jesus
torne-se
mais
concreta
para
seus
ouvintes/leitores2.
Dessa forma, percebemos que o autor do Evangelho (que
chamaremos de Marcos) tinha uma grande preocupação ao escrever
sua obra, e escolher fazê-lo dessa forma nova pode nos orientar, como
tem orientado a muitos estudiosos, acerca dessa preocupação.
Concordamos com Benjamin W. Bacon em sua posição de que o texto
nasceu a partir de necessidades concretas, e que o distanciamento
temporal dos eventos – o fato de que a “primeira geração” de cristãos,
aqueles que haviam de fato conhecido a Jesus e aos apóstolos havia
morrido - é uma das causas dessa necessidade de fixar a história de
Jesus3.
2
3
Nesse trabalho, trataremos os destinatários do Evangelho de Marcos como
ouvintes/leitores por entender que, na antiguidade o acesso aos escritos era
bastante raro, por isso sua compilação não anulava a importância e a necessidade
de transmissão oral, através de leituras ou encenações. Talvez o reconhecimento e a
vivência desse processo, aliás, tenha motivado o autor a produzir uma obra
narrativa de “ação”, e com tantos pontos dramáticos e, às vezes, até mesmo
caricaturados. O fenômeno da transmissão oral e da dramatização dos textos, aliás,
nunca deixou de existir, e nos acompanha até o presente.
Benjamin Bacon, “The Purpose of Mark’s Gospel” em Journal of Biblical Literature,
volume 29, nº.1 (1910), p.41-60. Published by The Society of Biblical Literature,
URL: http://www.jstor.org/stable/3260133
22
Além dessa necessidade, Myers sugere que o Evangelho foi
escrito para eliminar (ou minimizar) ocorrências de deturpação daquilo
que para o evangelista seria a mensagem de Jesus, uma vez que as
“ideias soltas” acerca de Jesus poderiam facilmente serem usadas para
qualquer fim e para a disseminação de quaisquer doutrinas. A
contextualização da mensagem, dessa forma, impediria deturpações,
por fixar um sentido à mesma, porém sem perder a dinamicidade e a
possibilidade de contextualização, pois como salienta esse autor,
Marcos apresenta seu texto como um evento – como um desafio
dinâmico, através do qual Jesus torna-se não apenas um personagem
histórico de determinado período, mas faz-se presente em toda a
história e na realidade de seus ouvintes/leitores.4
Bravo Gallardo salienta, além disso, que o autor do Evangelho
tencionava corrigir ideias “triunfalistas” acerca do cristianismo, que
haviam se desenvolvido a partir da ênfase em apresentar o Jesus
glorioso, operador de milagres e ressuscitado, ênfase que tendia a
fazer de Jesus uma espécie de “mago” que resolveria todos os
problemas das pessoas sem fazer nenhum tipo de exigência. Diante
desse risco, Marcos apresentaria um Jesus real, que certamente era
poderoso e fazia milagres, mas sempre sob a perspectiva da cruz. Ao
mesmo tempo, esse autor sugere que o evangelista pretendia
esclarecer seu auditório acerca de sua própria situação histórica e
social, desejando levá-lo a um posicionamento concreto diante das
realidades de seu tempo5.
A partir da posição desses autores, podemos perceber que o
Evangelho de Marcos não é um texto “neutro” diante da realidade –
até porque sabemos que esse ideal é ilusório, uma vez que cada autor,
em todos os tempos, imprime em seu trabalho o reflexo de seu
4
5
Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.127-129.
Carlos Bravo Gallardo, Jesus homem em conflito: o relato de Marcos na América
Latina, São Paulo: Paulinas, 1997. 389p. (Coleção Estudos Bíblicos).
23
contexto e visão de mundo. O Evangelho de Marcos é um texto que
reflete as realidades diárias de sua época, realidade que, como
veremos a seguir, está repleta de doença, fome, miséria, violência e
exploração.
Além do pressuposto adotado de que Marcos foi o primeiro dos
Evangelhos Sinóticos, tomaremos por base também algumas posições
acerca de local e data de composição sem nos aprofundarmos nessas
discussões, uma vez que dispomos de trabalhos de muitos estudiosos
(exegetas, historiadores, lingüistas, filólogos e teólogos) que, durante
mais de dois séculos, têm se debruçado sobre essas questões (sem
chegar a uma conclusão definitiva). Aceitamos nesse trabalho a
posição não majoritária, mas aparentemente crescente entre os
estudiosos6, de que o Evangelho de Marcos foi composto na Palestina
Setentrional7, provavelmente na Galiléia ou adjacências, entre os anos
de 66 a 70 d.C., ou seja, entre os anos que compreendem a revolta
judaica que culminaria com a destruição do Templo de Jerusalém em
70 d.C.8
Situando o texto nesse ambiente, estamos colocando a realidade
de Marcos num contexto de forte opressão e dominação e, ao mesmo
tempo, de grande turbulência e agitação social. Compreender um
pouco esse contexto é essencial para entendermos o significado do
Evangelho e sua mensagem.
6
7
8
Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.68.
Usaremos, neste trabalho, o nome “Palestina” para nos referir à região que integra a
Judéia, Samaria e Galiléia, embora saibamos tratar-se de um anacronismo, uma vez
que essa região só foi chamada dessa forma após a derrota da resistência judia em
135 d.C.- período posterior ao que estudamos. Cremos, contudo, que o uso dessa
nomenclatura facilitará nossa percepção acerca da área referida, uma vez que é o
termo corrente.
Para uma visão acerca dessas discussões e argumentos a respeito das posições
adotadas, sugerimos a leitura de Joel Marcus, “The Jewish War and The Sitz in Leben
Of Mark”, em Journal of Biblical Literature, volume 111 nº.3, 1992, p.441-462.
Também Leif Vaage, “Que o leitor tenha cuidado: o Evangelho de Marcos e os
cristianismos originais da Síria-Palestina”, em Revista de Interpretação Bíblica Latino
Americana nº 29, Petrópolis: Vozes, p.11- 31.
24
A Palestina judaica tardia do Segundo Templo é, pois, o contexto
em que o Evangelho de Marcos está inserido. Mas o que isso quer
dizer?
1.1.1. Considerações sobre o domínio Romano: a paz e a
desordem
O contexto de Marcos é reflexo de situações históricas e sociais
que se desenvolveram desde muito antes de sua composição!
Décadas antes do nascimento de Jesus os exércitos romanos
haviam invadido a região da Palestina, dizimando pessoas, saqueando
e queimando aldeias, escravizando a população.9 A ocupação da Judéia
por Pompeu marcou o fim do poder dos últimos descendentes
asmoneus, herdeiros dos Macabeus, que haviam defendido a liberdade
religiosa e autonomia política dos judeus contra a opressão dos
Selêucidas. A partir de então, o poder é entregue ao idumeu Antípater,
nomeado procurador da Judéia, e mais tarde outorgado ao seu filho
Herodes, proclamado rei pelo Senado romano em 40 a.C., mas que
teve que lutar por três anos até acabar com Antígono, último herdeiro
asmoneu, e poder reinar de fato.
Herodes governou despoticamente. Deu-se o direito de nomear
os sacerdotes do Templo de Jerusalém arbitrariamente. Também em
seu governo o poder do Sinédrio10 teve sua autoridade suplantada.
9
Richard A. Horsley, Jesus e o Império:o reino de Deus e a nova desordem mundial,
São Paulo: Paulus, 2000. p.21.
10
Autoridade judaica que tinha, sob o Império Romano, autoridade para resolver
questões internas do “judaísmo” e questões ordinárias entre judeus. Parece ter
surgido nos tempos da dominação persa, com os “conselhos de anciãos” de que o
Sumo Sacerdote havia se cercado. No tempo do rei Herodes, foi quase exterminado
e perdeu força, mas retomou suas atividades após sua morte. No tempo de Jesus,
bem como no do evangelista Marcos, era composto pelos “chefes dos sacerdotes”,
anciãos (representantes da aristocracia leiga), e escribas (representantes da
aristocracia intelectual). Para uma explanação mais detalhada, ver Émile Morin,
Jesus e as Estruturas de seu Tempo, São Paulo: Paulus, 1.988. p.103- 104.
25
Além disso, patrocinou obras imensas (como teatros, anfiteatros e
ginásios) e instituiu práticas como jogos atléticos regulares (realizados
em honra a César).
Para evitar possíveis revoltas e confusões, governou com “mão
de ferro”, instituindo uma política de controle terrorista sobre a
população. Flávio Josefo, historiador judeu do 1º século da nossa era,
assim descreve tal política:
“Ficaram indignados com sua dedicação a essas atividades, pois
para eles significava o desmantelamento de sua religião e a
mudança dos seus costumes. Essas questões eram amplamente
discutidas porque eles (os judeus) eram constantemente
provocados e incitados. Mas Herodes tratava tal situação muito
cautelosamente, eliminando qualquer ocasião de agitação e
forçando-os ao trabalho duro. Proibia reuniões públicas, grupos
andando juntos e a vida comunitária normal. Toda a atividade era
vigiada. As punições para os que eram flagrados eram impiedosas
e muitos foram levados pública ou secretamente para a fortaleza
Hircânia e ali executados. Tanto na cidade quanto nas estradas
abertas havia homens que espionavam aqueles que encontravam...
Os que recusavam obstinadamente a adaptar-se a essas coações
sociais eram punidos das mais diversas maneiras... Aqueles que
mostravam alguma coragem e indignação em relação à sua
imposição (de jurar lealdade) eliminava-os de qualquer maneira
possível.”11
Certamente,
essa
política
de
Herodes
estava
também
relacionada à opressão econômica que recaiu sobre o povo, como
veremos a seguir, pois a manutenção desse estilo de governo – em
que abundavam as obras e tributos a Roma – onerou a população de
forma colossal. Embora Herodes possa ter evitado a eclosão de
grandes rebeliões em seu reinado, cremos que suas práticas, somadas
à natural indisposição judaica para com dominadores estrangeiros,
fomentou o sentimento de indignação e as consequentes revoltas que
mais tarde explodiriam na região.
A sucessão de Herodes, após sua morte em 4 a.C. não foi fácil.
Arquelau, que recebeu metade do reino (as regiões da Judéia, Iduméia
e Samaria), manteve-se no poder apenas por dez anos, ao fim dos
11
Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 15, 365-369.
26
quais
foi
desterrado
(arrastado
pelas
inúmeras
sublevações
acontecidas em seu reinado, e acusado de extrema violência), sendo a
região anexada à Síria, tornando-se uma província imperial. Começa
então o período de governo da região pelos governadores romanos.
Herodes Antipas reinou muito tempo, até 39 d.C., nas regiões
da Galiléia e Peréia e Filipe governou também por largo tempo (até sua
morte em 34 d. C.) nas regiões do Norte da Palestina.
O reino de Herodes foi reunificado por pouco tempo sob seu
neto
Herodes
Agripa,
que
recebeu
do
Imperador
Calígula
primeiramente o território governado por Filipe, depois o território de
Herodes Antipas, e recebeu de Cláudio, em 41 d.C., o da Judéia e
Samaria. Porém, seu domínio durou pouco, e a partir de 44 d.C. toda a
região passou a ser província romana, governada por procuradores
romanos, até a revolta de 66 d.C.12
Esses procuradores ou prefeitos romanos eram responsáveis
pela administração da região, pela manutenção da paz e da ordem e
pela manutenção da fidelidade no envio de tributos a Roma. Em outras
palavras,
eram
os
representantes
do
Imperador
romano
nas
províncias, e deveriam trabalhar em conjunto com as elites locais no
sentido de integrar as províncias ao Império Romano nascente. Dessa
forma, de acordo com a política romana, deveriam respeitar os
costumes e leis locais sempre que possível, a fim de evitar conflitos, o
que dava às elites locais certo poder, mesmo diante do controle
romano. Na Palestina não foi diferente: mesmo sob a dominação
romana direta, o Sinédrio tinha autoridade para decidir questões
consideradas “internas” ou específicas entre os judeus.
Percebemos que a falta de habilidade de alguns desses
representantes romanos (como Pilatos, por exemplo) associada à
ganância das elites nativas (que lucravam com a dominação romana e
12
Giuseppe Barbaglio, Jesús, Hebreo de Galiléia – Invetigación Histórica, Salamanca:
Secretariado Trinitário, 2.003, p.113- 179.
27
aproveitavam da situação não apenas através de empréstimos à
população endividada, mas também participando do sistema de
arrecadação de impostos) acelerou os processos de insatisfação e
revolta entre a população, que se percebeu cada vez mais carente de
líderes que realmente a representasse no âmbito do “poder político
oficial”.
Essas
considerações
acerca
da
política
da
Palestina
são
necessárias para compreendermos o contexto em que nasceu o
Evangelho de Marcos, que apresenta não apenas a história de Jesus,
mas a história de sua própria comunidade. Uma vez que cremos, como
mencionamos anteriormente, que o texto surgiu de realidades e
necessidades específicas, saber quais eram essas realidades, e como
eram sentidas e percebidas pelas pessoas que dela faziam parte é
essencial para entendermos o objetivo do autor e de seu texto.
Além
desse
ambiente
politicamente
confuso
e
instável,
dominado pela forte presença militar romana enviada para “manter a
paz e a ordem” (uma vez que, como dissemos, os governantes
romanos e as elites locais não conseguiam cumprir esse papel), o povo
era economicamente explorado, e precisamos compreender melhor sua
situação econômica para compreendermos melhor as implicações do
escrito de Marcos.
1.1.2.
O
produto
da
dominação:
os
miseráveis
da
Palestina
Como dissemos anteriormente, o domínio romano na Palestina
não teve apenas conseqüências políticas significativas, mas também
afetou as esferas econômica e social, além de modificar a demografia e
a cultura. O fato de Herodes ter patrocinado várias construções –
cidades inteiras, teatros, anfiteatros – e ter-se mantido absolutamente
28
leal a Roma – especialmente nas questões de tributo e presentes –
aumentou consideravelmente a carga tributária do já então pobre povo
da Palestina. Mas não podemos considerar que todos os problemas e
injustiças sociais que esmagavam o povo nessa época sejam fruto
desse período, uma vez que o processo de empobrecimento dos
agricultores, com o abalo das formas tradicionais de distribuição de
bens e posse da terra se desenvolveu desde o período de dominação
persa e helênica, e durante o período de governo asmoneu essa
situação parece não ter sido revertida.
Contudo, é incontestável que o período de dominação romana
agravou essa situação de empobrecimento. A dominação romana da
Palestina começou com uma conquista violenta, em todos os sentidos,
e seguiu com uma política opressora de controle sobre a região,
assegurada através de controle militar e mantida através dos
impostos.
Dentre os meios de fiscalização e manutenção do controle, e
como forma de disseminar o que podemos chamar de “modo romano
de viver”, o Império tinha o costume de oferecer porções das terras
conquistadas a seus soldados (como forma de recompensa pela
dedicação) ou ofertá-la a camponeses romanos, formando colônias
romanas nas regiões conquistadas13. Essa prática, somada à já
existente tendência de formação de latifúndios entre a elite judaica
desde
períodos
anteriores,
gerou
uma
crescente
alienação
dos
agricultores da região, que se viram privados de sua forma de
subsistência e de sua forma tradicional de vida.
Essa
alienação
dos
pequenos
agricultores
e
a
formação
crescente de latifúndios tem a ver com a política econômica adotada
pelo governo romano, mercantilista, consideravelmente oposta ao
modo agrário tradicional e familiar existente na Palestina. Para existir,
13
Pedro Paulo de Abreu Funari, Grécia e Roma, (Repensando a historia), São Paulo:
Contexto, 2004, p.85-86.
29
o comércio incentivado pelo governo romano dependia, além da
produção de excedentes, do desenvolvimento de latifúndios e de uma
infra-estrutura (de estoque, conservação e transporte) que apenas um
pequeno grupo de comerciantes poderia alcançar. Esse modelo,
baseado na lógica de concentração de poder e de verticalização da
sociedade levava a um contínuo e crescente empobrecimento do povo,
que passava a ter cada vez menos acesso aos meios de produção e,
consequentemente, de manutenção própria.
Os já mencionados impostos, cobrados duplamente – havia os
impostos religiosos judeus e os cobrados pelo governo romano –
constituíam outro fator de empobrecimento. Basicamente, havia três
tipos de cobrança em cada caso: para o governo romano, pagava-se
pela posse das terras, pela produção e pelo uso de vias e rotas
comerciais. Para o Templo, pagava-se o dízimo, as primícias e um
imposto devido de cada cidadão judeu maior de 13 anos. O pagamento
desses impostos, como mencionamos anteriormente, dependia de uma
produção
de
excedentes
praticamente
impossível
aos
pequenos
agricultores, o que os levava muitas vezes a terem de apelar a
empréstimos para sanar suas obrigações fiscais. Não é difícil imaginar
que a maioria dessas pessoas não conseguiria pagar os empréstimos,
o que os levava a dívidas cada vez maiores, que os forçava a vender
suas propriedades e às vezes até mesmo a si próprios, com o decorrer
do tempo.
Dessa forma, esse sistema produziu pobres cada vez mais
pobres, e ricos cada vez mais ricos... Entre os pobres, os antigos
proprietários rurais tornavam-se trabalhadores instáveis, assalariados
ou desempregados (cada vez em maior número), que poderiam
tornar-se mendigos (migrando para as cidades) ou bandidos. De forma
geral a população era obrigada a viver, na maioria das vezes, com
muito menos que o suficiente para a subsistência (o que gerava
subnutrição, doenças e mortalidade).
30
A situação econômica e os meios de subsistência na Palestina,
na época de Marcos, eram tais que estima-se que cerca de 1/3 das
pessoas que ultrapassavam o primeiro ano de vida (e que não eram
consideradas vítimas da mortalidade infantil) morriam até os 6 anos de
idade. Dos sobreviventes, cerca de 60% morreria até os 16 anos. 75%
já teria morrido até os 26 anos e, aos 46 anos, 90% já teriam
sucumbido. Menos de 3% da população chegava aos 60 anos de
idade!14
Obviamente, as pessoas que mais sofriam eram as que
pertenciam às classes mais pobres, especialmente na zona rural15.
Com moradias precárias, sem condições sanitárias adequadas, sem
assistência
médica,
com
uma
má
alimentação...
Essas
eram
características da audiência de Jesus e, sequencialmente, da de
Marcos. Pessoas sem muitas alternativas de transformação nem
perspectivas, para as quais “bastava a cada dia o seu mal”, mas que
ainda nutriam expectativas e esperanças que as fazia procurar
estímulo – em líderes religiosos ou revolucionários carismáticos que
produzissem alguma esperança – esperança que estava centrada e se
baseava, na maioria das vezes, no imaginário religioso.
Essa situação econômica e social constituía uma situação
paradoxal de assimilação e inconformismo – gerada da também
paradoxal diferença econômica, pois como dissemos estabeleceu-se
uma diferenciação radical de classes entre ricos e pobres. Esses
paradoxos eram fonte de constantes e frequentes conflitos em toda a
Palestina, e especialmente na Galiléia, área mais fértil da região e,
consequentemente, muito disputada. Em toda parte encontravam-se
grupos de pessoas arruinadas, que haviam perdido suas propriedades,
além de pessoas que já haviam nascido sem propriedades devido à
14
Richard L. Rohrbaugh, “Introduction”, em The Social Sciences and New Testament
Interpretation, Peabody: Hendrickson, 1996, p.4-5.
15
Temos que considerar que tais dados são relativos, e referem-se especialmente à
população rural empobrecida. Nas cidades, poder-se-ia encontrar diversas outras
situações.
31
acumulação de dívidas de gerações anteriores, dispostas a seguirem
um líder que, como mencionamos anteriormente, produzisse alguma
esperança de transformação, ainda que irreal. Ao mesmo tempo, ao
povo comum, apesar da percepção da injustiça e do sentimento de
indignação,
havia
manutenção
da
a
necessidade
vida,
buscando
de
continuar
meios
que
procurando
pudessem
a
produzir
esperança em seu dia a dia. Nesse sentido, a religião teria um papel
relevante, se não estivesse também marcada pela ideologia da época.
1.1.3. Dominação
ideológica:
multidões
de
marginalizados
A cada vez maior setorização e divisão social e econômica da
sociedade
desenvolvida
através
da
situação
acima
descrita,
demonstrou ser também existir ideologicamente. A divisão econômica
produziu conflitos sociais que agravavam a divisão de classes, e os
ideais e expectativas religiosos de cada classe muitas vezes eram
diferentes, embora basicamente todos fossem derivados da mesma
base comum, a saber, a religião de Javé, e reivindicassem sua
legitimidade.
Apesar de considerarmos que havia formas diversas de viver a
religiosidade, existia certamente uma opressão religiosa e ideológica
imposta pelas classes dominantes, defensoras do que se poderia
chamar de “religião oficial”: centrada no Templo de Jerusalém e no
cumprimento da Lei conforme certas interpretações dadas pelos
fariseus. Embora pudesse haver (e provavelmente houvesse) certo
descontentamento com essa religião oficial, que demonstrava apoio ou
ao menos conformidade com a dominação romana, o valor simbólico
do Templo, da Lei e de seus representantes pesava sobre o povo e
gerava conflitos, especialmente entre a população mais humilde,
32
instituindo religiosamente a já corrente divisão social entre “elite” e
“marginalizados”.
Mencionamos anteriormente que a maior parte do povo da
Palestina (e da Galiléia, onde cremos que o Evangelho de Marcos foi
originariamente escrito) era pobre, doente e faminta. Mencionamos
que sofria com opressão militar, que assombrava a população geral, e
com opressão econômica. Diante dessa realidade, mencionar a
opressão religiosa e os conflitos dela advindos pode nos ajudar a
compreender o posicionamento de Jesus frente à religião oficial, bem
como pode nos auxiliar a compreender algumas expectativas das
pessoas sobre Jesus e sua disposição em seguí-lo.
Pelo tempo de Jesus e de Marcos, a religião farisaica, com sua
ênfase na pureza ritual, havia ganhado força e terreno, em parte
porque os fariseus, líderes ideológicos, queriam estabelecer certo
domínio entre o povo, uma vez que de fato não eram os responsáveis
pelo “governo” político, que ainda era exercido através do Templo de
Jerusalém pelos sacerdotes e pelo Sinédrio, composto especialmente
pelo partido dos saduceus, oposto aos fariseus.
A fim de expandir sua influência sobre o povo, os fariseus
difundiam suas práticas religiosas, e passaram a defender que estas
deveriam ser cumpridas por todas as pessoas. Dessa forma, os rituais
de pureza e as regras que inicialmente faziam parte do dia a dia
apenas dos sacerdotes passaram a ser exigidos de todo o povo, como
sinal de que pertenciam a Deus e cumpriam a Lei. Havia sem dúvida
um teor populista nesse esforço dos fariseus em levar a “Lei” – a sua
Lei, pelo menos16 – às pessoas comuns, e o fato é que as exigências
de seus rituais e a impossibilidade de o povo cumprir com eles cavou
um fosso ainda maior entre as pessoas, acentuou a marginalização e a
16
Havia uma discordância entre o que os saduceus consideravam como Lei – apenas os
livros escritos - e os fariseus, que se diziam portadores de verdades reveladas
secretamente por Moisés e transmitidas oralmente, as quais apenas estes tinham
conhecimento.
33
divisão entre classes e, o que é pior, estabeleceu uma classe de
pessoas (a maioria da população) “indigna de Deus”, tudo com a
validação teológica religiosa.
Cremos ser provável que nas regiões rurais (a maioria da
Palestina) houvesse certa “adaptação” popular dessas exigências
farisaicas, mas a presença nessas regiões de “fariseus vindos de
Jerusalém” nos demonstra uma preocupação em adequar essas
religiosidades populares ao “ideal religioso oficial”, que tendia a
desprezar e desconsiderar qualquer manifestação religiosa que não
cumprisse exatamente suas regras. Considerando que os fariseus,
como líderes religiosos, gozavam de respeito e admiração popular,
suas exigências seriam consideradas, pelo menos por grande parte das
pessoas, como a verdade a ser seguida.
Ocorre que, para a grande maioria das pessoas comuns, cumprir
com as exigências impostas pela lei farisaica era praticamente
impossível, o que as marcava com a insígnia de “pecadores” e
“impuros”, indignos do favor de Deus, situação que dificilmente seria
alterada, uma vez que tais pessoas não conseguiriam adequar-se ao
“padrão
necessário”
para
serem
consideradas
puras
e
dignas.
Estabelece-se dessa forma um tipo de estratificação permanente que
quebra o sentido de comunidade e de equidade.
Nas sociedades tradicionais, como é o caso da sociedade
palestinense da época, não havia a separação moderna entre “vida
religiosa” e “vida secular”. Havia apenas “vida”, e a religião fazia parte
de todas as esferas da vida da sociedade, sem que as pessoas
tivessem que pensar sobre isso, e sem que ao menos houvesse
cogitação de separação dessas esferas da vida.
Quando pensamos na marginalização religiosa criada pelas
imposições dos fariseus e pela impossibilidade de cumprimento dessas
imposições pelo povo comum (ou por não terem condições econômicas
ou por terem de trabalhar em alguma atividade “impura”, ou por
34
terem algum problema de saúde que os tornava “pecadores” e
“impuros”), sabemos que tal marginalização e separação dar-se-ia
também em todos os níveis sociais e relacionais das pessoas e
podemos imaginar a imensa carga simbólica que isso representava
social e emocionalmente, especialmente pelo fato de que as próprias
pessoas marginalizadas, na maioria das vezes, não se questionavam
ou ousavam discordar dessa opinião, uma vez que estavam revestidas
de um caráter sacro.
Diante de uma opressão externa, como era o caso da dominação
romana, o povo poderia rebelar-se (especialmente se lembrasse sua
própria tradição de libertação e êxodo), mas diante de opressão
justificada teologicamente, não haveria rebelião. O povo assumia a
condição marginal, e passava a entender-se e agir como quem estava
sendo “punido” ou esquecido por Deus. Essa percepção por parte das
pessoas poderia dar origem a diversas formas de resposta, desde a
alienação e conformismo resignados, até sentimentos (muitas vezes
irracionais) de que a transformação da realidade por meios radicais e
violentos seria a forma de acabar com esse “castigo” de Deus
manifesto nas diversas formas de dominação e suas consequências.
É diante desse contexto, aqui apenas esboçado, que Marcos
escreve. É para essas pessoas, dominadas política, econômica e
ideologicamente que ele aponta Jesus – um Jesus histórico e inserido
num contexto social e político como o daquelas pessoas, que surge
com um novo posicionamento e com uma nova proposta.
35
1.1.4. Sintomas da Revolta e Anúncios da destruição: O
Contexto de Guerra
Marcos escreve, portanto, num contexto de revolta e guerra,
gerado por anos de exploração por parte da elite dominante, tanto
local quanto estrangeira, e pelo crescente descontentamento popular.
O povo da Palestina nunca se conformou com a dominação e opressão
romanas (como não havia se conformado com as dominações
anteriores), e durante todo o período dessa ocupação aconteceram
revoltas e manifestações de descontentamento, o que via de regra
gerava repressão ainda maior e agravava a força e a brutalidade
romanas
para
com
a
população,
especialmente
a
população
camponesa.
Como
mencionamos
anteriormente,
durante
o
reinado
de
Herodes, o Grande, o país viveu um período de “paz”, conquistada e
mantida à força. Contudo, após sua morte, deu-se um período de não
poucas manifestações e movimentos que proclamavam ideais de
transformação
político-religiosos;
algumas
dessas
manifestações
pacíficas e outras violentas, na maioria das vezes estimuladas por
alguma liderança carismática marcante.
Percebemos que esse período revelou o descontentamento
sempre presente na população, mas nem sempre manifestado e nem
sempre consciente ou organizado. O desejo de reforma social, de
correção das injustiças econômicas e sociais existentes entre os
próprios
judeus
(com
consequente
revolta
contra
as
classes
dominantes nacionais) uniu-se ao sentimento de insatisfação contra os
dominadores estrangeiros, fomentando assim as revoltas, que eram
alimentadas por ideais religiosos de “restauração de Israel”, como
veremos a seguir.
36
Nesse
processo,
podemos
perceber
desabrocharem
e
se
manifestarem as expectativas da população, expectativas com as quais
Jesus e Marcos tiveram que se relacionar e que geraram muitos
conflitos, uma vez que Jesus, segundo Marcos nos apresenta, não
corresponde a elas e por vezes se opõe às mesmas, como veremos
adiante. Apresentamos a seguir a descrição de alguns exemplos dessas
manifestações e sublevações, que culminaram na revolta dos anos 66
a 70 d.C., a fim de percebermos melhor o ambiente conturbado em
que viveram Jesus e a comunidade de Marcos, depois dele.
Esses exemplos nos mostram a grande complexidade da
situação e das relações estabelecidas, uma vez que percebemos que
não há homogeneidade na posição da população, e nem mesmo dentro
dos grupos da sociedade. Os sentimentos de descontentamento e a
percepção das injustiças parece terem estado sempre presentes na
população
geral,
mas
as
respostas
a
essa
percepção
foram
diferenciadas em cada grupo e situação, e na maioria das vezes era
vivido de forma não organizada e por vezes não consciente. Por isso,
como mencionamos acima, era necessário o surgimento de líderes
carismáticos para produzir algum nível de organização entre essas
pessoas e incentivá-las a algum tipo de ação.
Por
exemplo,
o
descontentamento
foi
mesmo da morte de Herodes (quando este
demonstrado
antes
já se encontrava
desenganado), quando alguns jovens, guiados por dois líderes, Judas e
Matias – chamados por Flávio Josefo de “os mais instruídos dos judeus
e intérpretes incomparáveis das leis ancestrais”17, protestaram contra
o poder herodiano destruindo uma águia de ouro que Herodes havia
mandado construir sobre a porta principal do Templo de Jerusalém18. A
reação herodiana foi rápida e cruel: quarenta desses jovens e seus
17
18
Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, 17, 149.
Essa situação pode ser utilizada também como um exemplo da inabilidade dos
governadores da Palestina, pois significava um desrespeito gratuito e não necessário
aos costumes judeus, uma afronta.
37
dois mestres foram capturados e executados, sem antes manifestarem
sua disposição em morrer como “mártires da Lei de Moisés” diante da
injustiça de Herodes19.
Sob Arquelau tais movimentos se multiplicaram. Embora tenha
demonstrado inicialmente certo interesse em ouvir as reivindicações
populares para baixar os altos impostos, para soltar os prisioneiros
políticos ainda detidos e para substituir o Sumo Sacerdote, Arquelau
agiu traiçoeira e brutalmente, provocando um massacre durante uma
comemoração pascoal. Esse evento, descrito por Josefo20, provocou
reações e movimentos populares em várias regiões da Palestina
judaica, uma verdadeira revolta camponesa generalizada que se
manifestou de diferentes formas: movimentos pela independência que
visavam uma realeza alternativa; movimentos messiânicos e proféticos
e, finalmente, banditismo e revoltas armadas. Obviamente, tais
movimentos causavam reações cruéis por parte do governo romano,
que acabavam por agravar a situação da população mais pobre,
especialmente os camponeses, que tiveram cada vez mais suas terras
saqueadas e destruídas.
Flávio Josefo apresenta pelo menos três movimentos derivados
das atitudes de Arquelau (além de outros, menos detalhados) que
visavam o estabelecimento de uma “realeza alternativa”: o primeiro,
liderado por Judas, na região da Galiléia; o segundo, liderado por
Simão, na Peréia e o terceiro, liderado por Atronges21. Esses
movimentos demonstram forte teor religioso/teológico, uma vez que a
idéia dessa realeza deriva, sem dúvida, da tradição de Davi, o “rei
justo” que restauraria a justiça entre a população. Tais movimentos
foram obviamente reprimidos pelo governo romano, e causaram
represália a todo o povo.
19
Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, 17, 149-159.
Flávio Josefo, Las Guerras de Los Judios 2, 39-54 Antiguidades Judaicas 17, 250268.
21
Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, 17, 271-283.
20
38
Esses movimentos, que visavam a uma “nova realeza”, embora
também não fossem homogêneos, traziam consigo a manifestação de
expectativas messiânicas comuns – a esperança de que um “agente”
inspirado por Deus traria libertação ao povo e a paz, restaurando o
antigo reino de Israel.
Além desses movimentos e das expectativas reveladas por eles,
temos na Palestina judaica da época a manifestação de outro tipo de
movimento que também revela a insatisfação do povo diante de sua
situação e sua propensão ao seguimento de líderes carismáticos, a
saber, os movimentos proféticos – com profetas de ação, que
lideraram movimentos camponeses no que seria uma “antecipação”
dos atos divinos de libertação (que haveriam de acontecer em breve),
e profetas oraculares, que anunciavam ou o julgamento de Deus sobre
a injustiça ou a iminente libertação divina. Esses movimentos
proféticos arrebanhavam muitas pessoas, que por vezes deixavam
suas
casas
para
seguir
seus
líderes,
mas
diferentemente
dos
movimentos messiânicos, não eram nem se transformaram em
armadas22.
rebeliões
Percebemos
que
há
nesses
grupos
forte
expectativa de uma ação divina espetacular, quer fosse histórica ou
escatológica. A diferença maior entre esses movimentos e os citados
anteriormente seria o fato de que os últimos dependeriam de uma
ação quase exclusiva de Deus, que é quem lideraria e executaria a
libertação.
Outra forma de manifestação popular que se desenvolveu e
cresceu
nesse
necessariamente
período
foi
messiânicas
a
–
das
pelo
revoltas
menos
armadas
inicialmente)
(não
e
o
banditismo social, formado por grupos de salteadores que se juntavam
sob uma liderança comum para a prática de assaltos. Esses grupos,
frequentes na região durante o primeiro século da era cristã, eram em
grande
22
parte
frutos
da
exploração
econômica
explanada
Richard A. Horsley e John S. Hanson, Bandidos, profetas e messias – movimentos
populares no tempo de Jesus, São Paulo: Paulus, 2007, p.144-165.
39
anteriormente,
derivados
da
expropriação
de
terras
e
do
empobrecimento que deixava grande parte da população sem recursos
para sua manutenção.
Na década de 50 d.C. temos o aparecimento em cena dos
sicários, cujo nome deriva do tipo de arma que usavam, um tipo de
punhal curvo, chamado de “sica”. Esse grupo, talvez de caráter mais
conscientemente político que os anteriores, se caracterizou por
projetar e executar ataques armados contra membros da nobreza
judaica, assassinando-os e às vezes sequestrando-os em troca de
resgate (que poderia ser a libertação de algum membro do grupo que
estivesse preso). Percebe-se entre os sicários grau elevado de
organização (era um grupo aparentemente composto por intelectuais)
e o descontentamento com a injustiça social e opressão impostos pelos
próprios judeus a seus compatriotas. Embora não deixasse de
representar
uma
concentravam
seus
ameaça
ataques
ao
a
Império
Romano,
os
líderes
nacionais
(que
sicários
eram
colaboradores dos romanos, não podemos nos esquecer)23, praticando
um
tipo
de
“violência
seletiva”
contra
o
grupo
dominante24.
Aparentemente, esse grupo criou grandes preocupações e temores
entre a classe dominante, a ponto de estas providenciarem segurança
para si através da contratação de “seguranças mercenários” (que
formavam verdadeiros esquadrões), o que fez aumentar o clima de
tensão e a violência do período. Contudo, o movimento dos sicários
(assim como o banditismo social dos saqueadores mencionados acima)
parece ter servido mais como um catalisador, como uma válvula de
escape de um determinado grupo do que um movimento social por
transformação.
Na revolta de 66-70 d.C., o papel dos sicários parece ter sido
bastante limitado, atuando apenas no começo da revolta junto com
23
Richard A. Horsley e John S. Hanson, Bandidos, profetas e messias – movimentos
populares no tempo de Jesus, São Paulo: Paulus, 2007, p.173- 175.
24
Ibid, p.176.
40
outros grupos e não necessariamente como líderes, como comumente
se pensa25. Poucas semanas depois de reunirem-se aos revoltosos em
Jerusalém, os sicários foram expulsos por outros membros da rebelião.
Entre os anos 67-68, portanto em meio à guerra e enquanto os
exércitos romanos começavam a conquistar a Judéia após um período
de êxito da rebelião, temos a menção de um grupo que se tornou
famoso, inclusive por sua referência nos Evangelhos: os zelotas. Esse
grupo tem sido muitas vezes confundido e identificado com os sicários,
gerando muita confusão interpretativa.
A origem desse grupo é incerta, mas pode ser relacionada com o
movimento de fuga dos camponeses judeus e especialmente galileus
do exército romano (em 67 d.C. os exércitos romanos tinham vencido
as forças de resistência judaica da Galiléia, aumentando o clima de
terror com sua represália). Esses camponeses desterrados formavam
muitas vezes bandos de salteadores e muitos, procurando um lugar
mais seguro, iam refugiar-se na cidade de Jerusalém, onde formavam
coalizões. Em Jerusalém, esses grupos atacaram certos nobres
herodianos que ainda estavam na cidade (acusando-os de entregar a
cidade nas mãos dos romanos) e elegeram, por sorteio, o Sumo
Sacerdote (dentre pessoas comuns). Esses atos geraram o que pode
ser considerada uma “guerra interna”, dentro do conflito maior, pois os
antigos Sumos Sacerdotes conseguiram organizar uma força de
combate contra os zelotas, que se refugiaram no Templo e tiveram que
pedir ajuda aos idumeus. Uma vez controlada a situação, e tendo
controle
sobre
a
cidade
de
Jerusalém,
outros
problemas
se
avolumaram, com a disputa de poder entre os zelotas e outros grupos
rebeldes26 que também queriam a liderança da cidade e da rebelião,
disputa que só foi aplacada quando o assédio romano já estava bem
25
Richard A. Horsley e John S. Hanson, Bandidos, profetas e messias – movimentos
populares no tempo de Jesus, São Paulo: Paulus, 2007, p.182-183
26
Falamos do movimento messiânico comandado por João de Gíscala e pelo
comandado por Simão bar Giora.
41
instalado ao redor de Jerusalém. A partir daí, o grupo dos zelotas foi
relativamente insignificante durante a resistência ao cerco romano,
embora tenham participado e lutado ativamente até o fim da guerra27.
Conforme defendemos acima, Marcos escreve nesse contexto,
em que Jerusalém representava um caldeirão em verdadeira ebulição e
em que o Templo era um “covil de salteadores” não apenas por
representar dominação ideológica e econômica, mas por estar de fato
tomado e sendo usado como “quartel general” de revoltosos! Sua
destruição era sem dúvida iminente, e os ouvintes/leitores de Marcos
teriam que tomar uma decisão acerca de seu posicionamento diante
dessa situação.
Os
movimentos
sociais
e
a
situação
esboçada
acima
demonstram que o povo, vítima de diversos tipos de dominação
diferentes, buscava ainda esperança, alimentando expectativas de
transformação e sendo levado, muitas vezes, a aderir a movimentos
evidentemente fadados ao fracasso, em nome dessa esperança. No
entanto,
a
verdade
é
que
não
havia
perspectivas
reais
de
transformação.
O Evangelho de Marcos caminha, com seu autor e seus
destinatários,
entre
o
sentimento
de
impotência,
resignação
e
conformismo, e o desejo revolucionário suicida por transformação. É
diante desse contexto que a comunidade de Marcos tem que se
posicionar, e Marcos tem o desafio de indicar o caminho do discipulado
nessa situação de extremo conflito.
27
Richard A. Horsley e John S. Hanson, Bandidos, profetas e messias – movimentos
populares no tempo de Jesus, São Paulo: Paulus, 2007, p.189.
42
1.2.
O EVANGELHO E AS PESSOAS
“A plebe apenas pode fazer tumultos. Para fazer uma revolução, é preciso o
povo.”
“Quanto a lisonjear a multidão, juro que não posso! O povo está no alto, a multidão
está no fosso.”
Victor Hugo
o;cloj: Mais Que Uma Palavra
1.2.1.
Diante do que expusemos até aqui, podemos perceber que o
texto do Evangelho de Marcos não é de forma alguma neutro, nem
pretende
sê-lo.
Trata-se
de
um
texto
inserido
num
ambiente
desafiador, e procura responder a esses desafios de seu contexto
apresentando Jesus de forma nova, como dissemos anteriormente.
Numa construção literária como esta, em que o autor serve-se
de diversos elementos existentes em sua época, tanto no que diz
respeito
à
forma
corajosamente
como
nova,
ao
nenhum
conteúdo,
para
criar
elemento
pode
ser
uma
obra
considerado
ocasional.
Aquilo que poderíamos chamar de “coragem redacional” do
autor vai desde a opção pelo gênero literário narrativo até a
montagem da dinâmica estrutural e a escolha das palavras do texto,
que têm certamente significado para a trama da história.
Destacamos,
nesse
sentido,
a
presença
de
uma
palavra
“inesperada” usada pelo evangelista várias vezes no decorrer da
narrativa – inesperada por sua conotação à época da escrituração e
43
pela ênfase dada à mesma na narrativa marcana em que, como
veremos, ganha papel de destaque. Trata-se da palavra
o;cloj.
Esse termo, que poderíamos traduzir como “multidão”, tem
significados sociais e políticos acentuados, que Marcos parece conhecer
e assumir em seu Evangelho de forma elaborada e consciente.
Inicialmente, conforme nos indica Ahn Byung-Mu28, constatamos
que Marcos é o primeiro autor do Novo Testamento que utiliza essa
palavra. O termo não aparece nos escritos do Novo Testamento
anteriores a Marcos – a saber, as epístolas de Paulo, concluídas cerca
de dez anos antes do Evangelho de Marcos29, e o uso da palavra nos
escritos posteriores a este Evangelho (nos demais Evangelhos, em
Atos e no Apocalipse) parecem ter sido derivado do uso que o
evangelista Marcos faz do mesmo. Nem mesmo a discutida “Fonte Q”,
usada pelos evangelistas Lucas e Mateus, segundo a “Teoria das
Fontes”, apresenta uso significativo dessa palavra. De fato, segundo a
reconstrução feita por Kloppenborg , a palavra teria sido usada
30
apenas seis vezes nos textos atribuídos a Q31.
Mas qual seria a origem dessa palavra, e qual a importância de
estudarmos esse termo no Evangelho de Marcos?
A palavra, de origem incerta
relacionado com o verbo
28
32
evnocle,w,
, é um substantivo provavelmente
“causar confusão ou tumulto” ou
Ahn Byung-Mu, “Jesus and the minjung in the gospel of Mark”, em Minjung
Theology: people as the subjects of history, Edited by The Commission on
Theological Concerns of the Christian Conference of Asia (CTC- CCA), New York:
Maryknoll, 1983, p.149.
29
Carlos Bravo Gallardo, Jesus homem em conflito: o relato de Marcos na América
Latina, São Paulo: Paulinas, 1997. (Coleção Estudos Bíblicos).
30
John S. Kloppenborg, Q Parallels: Synopsis Critical Notes & Concordance, Sonoma:
Polebridge, 1988.
31
Tomando como referencial o Evangelho de Lucas, essas passagens seriam: 3,7; 7,9;
7,24; 11,14; 11,29 e 12,54. Com exceção de 3,7, que refere-se às multidões que
buscavam o batismo de João, as demais passagens estão relacionadas a um
contexto de cuidado de Jesus com as pessoas, ensino ou realização de milagres,
aparentemente sem nenhuma conotação especial.
32
Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1743 / Theological
Dictionary of The New Testament (Gerhard Friedrich) p.582.
44
com
ovcle,w,
“impelir ou causar problemas”. Seu significado, num
primeiro momento, denotaria uma multidão de pessoas reunidas, um
ajuntamento de várias pessoas, em contraste com o individual/privado
e em contraste também com a aristocracia ou pessoas importantes.
Essa “aglomeração de pessoas simples”, sem poder, pode ser
entendida com o que chamaríamos hoje de “massa”, e a palavra
parece ter alto grau de depreciação moral (que pode ser ainda mais
evidente se considerarmos a relação desse substantivo com os verbos
citados acima!). A palavra era usada ainda para referir-se a um
destacamento militar, ou a pessoas que serviam ou acompanhavam
um exército, encarregadas de trabalhos servis – não se referindo
nunca a qualquer tipo de liderança, mesmo nesse caso33.
Na Septuaginta, a palavra aparece cerca de 60 vezes apenas,
especialmente em textos tardios do Antigo Testamento, normalmente
usada de modo pejorativo ou para referir-se a um grupo indefinido de
pessoas, uma “grande multidão”. O termo parece indicar, nas
passagens da Septuaginta, tanto um fator numérico – uma grande
quantidade de pessoas – quanto o social – a “massa”, uma
aglomeração irregular, diferenciada de “povo” ou “povo de Deus”.
Verificando alguns textos da Septuaginta em que a palavra é
usada, percebemos também ênfase numa conotação militar (Ezequiel
23,46; Josué 6,13; 2 Samuel 15,22; 2 Crônicas 20,15; 1 Macabeus
1,17; 20,29, dentre outros). Na maioria dos casos percebemos que a
palavra é usada com referência ao exército inimigo, também em
contraste com os judeus.
Dessa forma, em 2 Crônicas 20,15, por exemplo, o termo é
usado para distinguir o exército inimigo em oposição ao povo de Deus:
33
33
Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1743/Theological
Dictionary of The New Testament (Gerhard Friedrich) p.582.
45
kai. ei=pen avkou,sate pa/j Iouda kai. oi` katoikou/ntej Ierousalhm kai. o`
basileu.j Iwsafat ta,de le,gei ku,rioj u`mi/n auvtoi/j mh. fobei/sqe mhde.
ptohqh/te avpo. prosw,pou tou/ o;clou tou/ pollou/ tou,tou o[ti ouvc u`mi/n
evstin h` para,taxij avllV h' tw/| qew/|/ 34
“Prestai atenção vós todos de Judá e habitantes de Jerusalém, e tu
ó rei Josafá! Assim fala Iahweh: Não temais, não vos deixeis
atemorizar diante dessa imensa multidão; pois esta guerra não é
vossa, mas de Deus”.35
Assim, podemos perceber que
o;cloj
não é um termo “neutro”,
mas é uma palavra carregada de sentido simbólico, através da qual se
expressa juízo de valor, em que o contraste com o grupo dos
“socialmente bons” torna-se evidente e caracteriza o grupo de pessoas
identificado por
o;cloj como marginal.
Considerando o Evangelho de Marcos, a freqüência com que a
palavra é utilizada, e a forma como são apresentadas as pessoas a
quem
o;cloj faz referência podemos perceber que o termo faz parte da
estrutura narrativa do autor, que também não é neutra. Assim,
precisamos verificar, no Evangelho de Marcos, qual o significado e o
valor atribuído a
o
sentido
o;cloj , tentando perceber se tal sentido coaduna com
corrente
da
palavra,
e
qual
a
intenção
de
Marcos
demonstrada pelo seu uso.
No Evangelho de Marcos,
o;cloj
aparece 36 vezes, sem contar
as vezes em que é referido ou sugerido por pronomes indicativos, e
designa um grupo de pessoas que se relaciona com Jesus em toda a
narrativa. São pessoas que estão com Jesus desde o início até o fim de
seu ministério, tornando-se “o;cloj” um personagem importante da
narrativa, assim como podemos considerar o grupo dos discípulos (de
quem
o;cloj é claramente diferenciado) e o grupo dos “doze” (também
diferenciado em Marcos). Essa diferenciação entre os grupos também
34
35
Versão LXX. Bible Works 7. Grifo nosso.
Tradução Bíblia de Jerusalém – Nova Edição Revista e Ampliada: Paulus, 2002. Grifo
nosso.
46
deve ser percebida como fundamental à estrutura do livro e à intenção
do autor, como procuraremos verificar adiante.
1.2.2.
Quem é
o;cloj no Evangelho de Marcos?
A primeira vez que a palavra aparece no Evangelho é em Mc
2,4, na perícope que relata a cura do paralítico que é descido pelo teto
de uma casa, na cidade de Cafarnaum:
kai. mh. duna,menoi prosene,gkai auvtw/| dia. to.n o;clon avpeste,gasan
th.n ste,ghn o[pou h=n( kai. evxoru,xantej calw/si to.n kra,batton o[pou o`
paralutiko.j kate,keitoÅ
“E não podendo trazer (o mesmo) a ele por causa de a multidão
descobriram o teto onde (ele) estava, e fazendo abertura baixam
a maca onde o paralítico estava deitado.36
Essa passagem é bastante significativa, pois
o;cloj,
a multidão,
é o grupo de pessoas que “atrapalha” a entrada do paralítico na casa.
Essa característica de
o;cloj,
como veremos, será marcante nesse
Evangelho, e parece coadunar com uma das conotações correntes da
palavra: pessoas que causam tumulto ou confusão. Ao longo de toda
narrativa,
o;cloj
personagem
estará presente, como já dissemos, como um
importante
da
história,
e
essa
conotação
de
“atrapalhamento” será várias vezes utilizada.
Apesar desse sentido, que poderia ser considerado como
pejorativo, percebemos que Marcos usa a palavra
o;cloj para referir-se
às pessoas sem nome e sem status que chegavam a Jesus e que eram
aceitas e atendidas por ele, aparentemente sem exigências. Marcos
parece deixar claro que apesar de
o;cloj
representar um grupo sem
identidade definida, confuso e marginal, Jesus não lhes atribuía os
36
Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.
Grifo nosso.
47
juízos de valor da época, que fariam com que ele não aceitasse tais
pessoas nem delas se aproximasse. Marcos aparentemente não
esquece o sentido corrente da palavra, ao contrário, parece usá-lo
intencionalmente para demonstrar a ousadia e a novidade de Jesus em
relacionar-se com tais pessoas. Como dissemos anteriormente, Marcos
usa a palavra conscientemente, sabendo o que sua menção significava
e sem desprezar isso, mas parece querer atribuir novas possibilidades
a esse grupo a partir da postura de Jesus diante dessas pessoas.
Segundo Ahn Byung-Mu, essa palavra indica uma classe social
composta por pessoas excluídas religiosamente, que ele identifica
como
“pecadores”37.
Para
esse
autor,
o
uso
da
palavra
é
paradigmático, uma vez que a exclusão religiosa e a alienação social
eram realidades complementares, e o relacionamento de Jesus com
tais pessoas mostraria que Jesus não compartilhava dessa opinião
acerca dessas pessoas, mas as via como seres humanos dignos do
cuidado e amor de Deus.
Embora compartilhemos da opinião de que Jesus (na descrição
de Marcos) enxergava a humanidade e as possibilidades das pessoas
que compunham
o;cloj,
não concordamos que
o;cloj
represente em
Marcos uma classe social propriamente dita, ou que seja composta de
pessoas constantemente marginalizadas. Observando seu uso no
Evangelho, percebemos tratar-se de um termo usado de forma
relacional. As pessoas que compõem a multidão não são fixas, nem
pertencem a uma mesma classe, mas são
o;cloj
a partir de seu
relacionamento com outras pessoas e com a sociedade. Dessa forma,
não podemos dizer que
o;cloj
compõem-se apenas dos pobres, pois
havia cobradores de impostos entre aqueles que são designados dessa
forma – sendo evidente que a questão não se regia por separação
37
Ahn Byung-Mu, “Jesus and the minjung in the gospel of Mark”, em Minjung
Theology: people as the subjects of history, edited by The Commission on
Theological Concerns of the Christian Conference of Asia (CTC- CCA), New York:
Maryknoll, 1983, p.142–146.
48
puramente econômica – entre pessoas das mesmas condições, poderia
haver os marginalizados por algum motivo e os aceitos socialmente.
Além disso, um grupo que num lugar poderia ser identificado
como
o;cloj,
em outro poderia deixar de sê-lo. Tomamos como
exemplo do que queremos dizer um texto do Evangelho de Marcos que
consideramos emblemático e crucial para a compreensão desse termo
e do uso que o evangelista parece querer dar ao mesmo. Trata-se do
capítulo 3 do referido Evangelho, versos 7 a 9:
Kai. o` VIhsou/j meta. tw/n maqhtw/n auvtou/ avnecw,rhsen pro.j th.n
qa,lassan( kai. polu. plh/qoj avpo. th/j Galilai,aj Îhvkolou,qhsenÐ( kai.
avpo. th/j VIoudai,aj kai. avpo. ~Ierosolu,mwn kai. avpo. th/j VIdoumai,aj kai.
pe,ran tou/ VIorda,nou kai. peri. Tu,ron kai. Sidw/na plh/qoj polu.
avkou,ontej o[sa evpoi,ei h=lqon pro.j auvto,nÅ kai. ei=pen toi/j maqhtai/j
auvtou/ i[na ploia,rion proskarterh/| auvtw/| dia. to.n o;clon i[na mh.
qli,bwsin auvto,n\
“E Jesus com os discípulos dele retirou-se para o mar, e grande
multidão de a Galiléia [seguiu]; e de a Judéia e de Jerusalém e de
a Iduméia e de além do Jordão e ao redor de Tiro e Sidom,
multidão[2] grande[1] ouvindo (eles) as coisas que fazia veio para
ele. E disse aos discípulos dele para que (um) barco estivesse
preparado para ele por causa de a multidão para que não
apertassem a ele;”38
Nesse texto, temos em primeiro lugar a identificação de dois
grupos: o grupo dos discípulos e a “multidão”. Todavia, há duas
classes de multidão envolvidas no texto, e isso chama a atenção!
O primeiro grupo é a multidão que viera da Galiléia, que até
então havia sido identificado no texto como
identificado por
plh/qoj
o;cloj
mas que aqui é
- palavra que designa povo, um ajuntamento
numericamente grande, mas sem a ênfase depreciativa de
o;cloj, uma
vez que a palavra pode ser usada para designar “plenitude” ou mesmo
38
Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.
Grifo nosso.
39
Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, volume 2, p.1669.
49
uma assembléia39, indicando que as pessoas que compõem esse grupo
tinham algo em comum, que as tornava um “povo”. Dessa forma,
aqueles que eram
o;cloj
na Galiléia e nas demais regiões citadas no
texto, que não tinham nada em comum e que não formavam um
grupo, ao relacionarem-se com outros grupos, de outras regiões,
tornavam-se
plh/qoj,
pois tinham algo em comum que os diferenciava
do outro grupo (eram da Galiléia, ou da Judéia, ou da Iduméia). Da
mesma forma, quando esses
plh/qoj
distintos se juntam, no verso 9, e
novamente tornam-se uma multidão indistinta, sem identidade de
grupo, são chamados novamente
o;cloj!
Outro texto surpreendente que nos demonstra essa função
relacional dada ao termo pelo evangelista é o de Mc 12,41:
Kai. kaqi,saj kate,nanti tou/ gazofulaki,ou evqew,rei pw/j o` o;cloj
ba,llei calko.n eivj to. gazofula,kionÅ kai. polloi. plou,sioi e;ballon
polla,\ kai. evlqou/sa mi,a ch,ra ptwch. e;balen lepta. du,o(...
“E tendo-se assentado diante de o gazofilácio observava como a
multidão coloca dinheiro em o gazofilácio. E muitos ricos
colocavam muito; e vindo uma viúva pobre colocou moedinhas[2]
duas[1],...”40
Esse texto chama a atenção porque nele o termo
o;cloj é usado
para referir-se a pessoas ricas! Esse fato nos demonstra claramente
que o termo não se refere simplesmente a uma classe econômica ou
social distinta, mas aponta para uma forma de posicionamento das
pessoas diante da sociedade e do mundo, indicando uma condição de
indistinção que poderíamos chamar de falta de identidade.
Dessa forma, algumas características de
o;cloj
podem ser
percebidas: este é um grupo de pessoas reunidas sem terem
necessariamente alguma coisa em comum e que causam tumulto e
confusão, e muitas vezes “atrapalham”. Essas pessoas, ao comporem
40
Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.
Grifo nosso.
50
o;cloj
perdem
sua
identidade
individual,
tornando-se
parte
do
aglomerado, da massa.
Se verificarmos o uso da palavra no Evangelho de Marcos,
perceberemos claramente que
o;cloj,
embora seja alvo dos ensinos e
dos milagres de Jesus, tende a atrapalhar sua movimentação,41
kai. avph/lqen metV auvtou/Å kai. hvkolou,qei auvtw/| o;cloj polu.j kai.
sune,qlibon auvto,nÅ
E (Jesus) foi com ele. E seguia a ele grande multidão e apertavam
a ele.
avkou,sasa peri. tou/ VIhsou/( evlqou/sa evn tw/| o;clw| o;pisqen h[yato tou/
i`mati,ou auvtou/\
tendo ouvido a respeito de Jesus, tendo vindo em a multidão por
detrás tocou na veste dele;42
os próprios milagres43,
kai. evpeti,mwn auvtw/| polloi. i[na siwph,sh|\ o` de. pollw/| ma/llon e;krazen\
ui`e. Daui,d( evle,hso,n meÅ
e repreendiam a ele (Bartimeu) muitos (multidão) para que se
calasse; mas ele muito mais gritava: Filho de Davi, tem compaixão
de mim. 44
chegando a colocar a vida e o bem estar de Jesus em risco45:
Kai. e;rcetai eivj oi=kon\ kai. sune,rcetai pa,lin Îo`Ð o;cloj( w[ste mh.
du,nasqai auvtou.j mhde. a;rton fagei/nÅ
E chega em casa; e ajunta-se novamente a multidão, a ponto de
não poderem eles nem pão comer.
kai. le,gei auvtoi/j\ deu/te u`mei/j auvtoi. katV ivdi,an eivj e;rhmon to,pon kai.
avnapau,sasqe ovli,gonÅ h=san ga.r oi` evrco,menoi kai. oi` u`pa,gontej
polloi,( kai. ouvde. fagei/n euvkai,rounÅ
Vinde vós mesmos a sós para lugar deserto e descansai um pouco,
pois eram muitos os que vinham e os que iam, e nem para comer
tinham tempo.46
41
Por exemplo, Marcos 5,24 e 27 em que a multidão comprime Jesus.
Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.
Grifo nosso.
43
Marcos 2,4 já mencionado na página 25 e 10,48 – a cura de Bartimeu, por exemplo.
44
A multidão e Bartimeu são mencionados no versículo 46 do capítulo 10. Grifo nosso.
45
Em Marcos 3,20 e 6,31, por exemplo, quando a multidão o impede de comer.
42
51
Não é de admirar que os líderes judeus tivessem medo desse grupo47:
avlla. ei;pwmen\ evx avnqrw,pwnÈ & evfobou/nto to.n o;clon\ a[pantej ga.r
ei=con to.n VIwa,nnhn o;ntwj o[ti profh,thj h=nÅ
Mas (se) dissermos: De seres humanos? – temiam o povo; todos
pois tinham João realmente que profeta era.
Kai. evzh,toun auvto.n krath/sai( kai. evfobh,qhsan to.n o;clon( e;gnwsan
ga.r o[ti pro.j auvtou.j th.n parabolh.n ei=penÅ kai. avfe,ntej auvto.n
avph/lqonÅ
E procuravam a ele prender, e temeram a multidão, pois
souberam que contra eles falou a parábola. E deixando a ele
partiram.48
Percebemos, portanto, que o termo
o;cloj
não representa um
grupo fixo de pessoas, mas designa um relacionamento e uma forma
de comportamento das pessoas e grupos. Embora represente um
personagem marcante no Evangelho de Marcos, notamos também que
não se trata sempre do mesmo grupo de pessoas – muito ao contrário,
vários grupos distintos, de diferentes lugares e posições sociais, são
chamados pelo evangelista de
o;cloj,
por apresentarem as mesmas
características destacadas acima.
Essas pessoas, ao serem representadas em diversas ocasiões
pela mesma palavra – palavra marcante e com forte significado, como
vimos, aproximam-se de Jesus a partir de alguma expectativa –
expectativa de milagres, de curas, de exorcismos... Essas expectativas
podem ser satisfeitas ou não, mas o fato é que, ao aproximar-se de
Jesus,
o;cloj
o;cloj49.
espera receber algo, e essa é outra característica de
Tais expectativas e a resposta que Jesus dá a elas, como
veremos adiante, são determinantes no desenrolar da narrativa de
46
O versículo 34 do capítulo 6 deixa claro tratar-se de o;cloj. Grifo nosso.
Marcos 11.32; 12.12.
48
Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.
Grifo nosso.
49
Elizabeth Struthers Malbon, “Disciples / Crowds / Whoever: Markan Characters and
Readers”, em Novum Testamentum, volume 28, nº.2, Leiden, 1986, p.104-130.
47
52
Marcos, e definirão as atitudes desse “personagem” do Evangelho
diante de Jesus – atitudes que vão da aclamação ao pedido de morte!
Podemos entender que Marcos usa a palavra sem esquecer de
seu sentido corrente, ou seja, não ignora nem disfarça o sentido de
“confusão” associado à mesma. Especialmente se considerarmos o
sentido militar da palavra (como destacado na Septuaginta), e o temor
dos líderes judeus à multidão, esse potencial de
o;cloj
de causar
tumulto pode ser percebido no texto marcano (potencial destacado
ainda mais pela apresentação de
o;cloj
como um grupo que muitas
vezes tende a atrapalhar Jesus, como mencionamos). Apesar disso, no
Evangelho de Marcos é perceptível também que
o;cloj
tem um
potencial positivo pois, como veremos a seguir, é um grupo que
apresenta possibilidades e é recebido e tratado por Jesus com carinho
e atenção.
1.2.3.
A multidão e os discípulos em Marcos
Outro fator a ser destacado é que, no Evangelho de Marcos,
como já mencionamos,
ou
seguidores
de
o;cloj é claramente diferenciado dos discípulos
Jesus.
Essa
distinção
parece-nos
bastante
significativa, e é claramente estabelecida em toda a narrativa. No
entanto, não podemos pensar nesses grupos como oponentes, mas
como grupos distintos que refletem tipos diferentes de relacionamento
com Jesus.
Interessante observarmos que, à exceção de referências abertas
e não definidas em que usa as palavras “todos” (Marcos 1,27; 1,33;
1,37) e “muitos” (2,2), a primeira menção a um grupo distinto ocorre
em Marcos 2,4, e refere-se a
o;cloj. Embora já tenha ocorrido no texto
o chamado de Jesus a Simão, André, Tiago e João (Marcos 1,16-20), a
53
palavra “discípulos” (maqhth,j) é usada pela primeira vez apenas em
Marcos 2,16! Esse fato parece-nos bastante significativo por indicar
não apenas a presença dos dois grupos distintos, mas por sugerir uma
progressão lógica que cremos estar presente (mesmo que como
possibilidade) no texto de Marcos: da multidão sem rosto e sem nome
(o;cloj) podem formar-se discípulos (maqhth,j).
No entanto, o Jesus de Marcos não espera essa transformação
para agir em prol da multidão. Ao contrário, o texto marcano
apresenta-o dando atenção à multidão de forma surpreendente. A
multidão é, sem dúvida, objeto das ações e do ensino de Jesus, e foco
de seu ministério. No entanto, com o estabelecimento desse “novo
grupo” – os discípulos, algumas atitudes descritas por Marcos – tanto
dos referidos grupos como de Jesus para com eles – passam a ser
diferenciadas.
Dessa forma, percebemos algumas diferenças na postura das
pessoas de cada um dos grupos com relação a Jesus. Embora ambos
sejam chamados por ele, a multidão e os discípulos apresentam-se
com expectativas distintas.
A multidão apresenta-se com expectativas de receber algo em
seu próprio benefício, sejam milagres ou o ensino de Jesus, e é
apresentada como pessoas que se aproximam de Jesus, que vão até
onde ele está. Essa postura demonstra, sem dúvida, disposição e
interesse em Jesus, e expectativa de que o mesmo poderia atendê-las.
Os discípulos, por sua vez, são caracterizados por sua ação em
nome de outros, não aparecendo, na maioria das vezes, como
54
recebedores diretos dos milagres50, e são caracterizados como pessoas
que seguem Jesus, acompanhando-o por onde ele vai51.
Sem dúvida, os discípulos são também destinatários diretos dos
ensinos de Jesus, e o texto de Marcos demonstra um interesse especial
de Jesus no ensino dos mesmos52. Nota-se também que, embora o
evangelista deixe claro que Jesus ensinava à multidão, o conteúdo
desse ensinamento normalmente não é mencionado. Quando Jesus
está com os discípulos, porém, o evangelista mais de uma vez
descreve o conteúdo dos ensinos de Jesus (que geralmente é
associado à sua paixão e ressurreição53). Além disso, é aos discípulos,
e não à multidão54, que Jesus questiona55, desafia56 e instiga57.
Podemos pensar que essa postura de Marcos com relação aos
ensinos de Jesus, bem como o fato de Jesus se retirar com seus
discípulos (não apenas para ensinar, mas numa demonstração de
convívio58) faz parte da estrutura narrativa de Marcos para salientar a
necessidade de um ensino específico aos discípulos a fim de poderem
cumprir seu papel como “assistentes” de Jesus no evangelho e
“continuadores” de seu ministério, uma vez que esse evangelho os
apresenta dessa forma.
Assim, podemos estabelecer alguns pontos semelhantes e
outros divergentes acerca dos posicionamentos de Jesus com relação à
50
Percebemos certa dinâmica no texto, pois as pessoas recebem os milagres de Jesus
antes de tornarem-se seguidores ou seguidoras; a partir daí, tais pessoas podem ou
não tornarem-se seguidoras, e essa decisão definirá o tipo de relacionamento que
terão com Jesus.
51
Elizabeth Struthers Malbon, “Disciples / Crowds / Whoever: Markan Characters and
Readers”, em Novum Testamentum, volume 28, nº.2, Leiden, 1986, p.104-130.
52
Note-se que por vezes Jesus os ensina em particular: 4,10; 4,34; 7,17; 9,28; 10,10;
10,26; 13,4.
53
Marcos 8,31; 9,31.
54
Embora haja passagens em que apareçam ou sejam sugeridas perguntas de Jesus
em meio à multidão (Marcos 4,13; 12,35), parece não haver o mesmo desafio
direcionado aos discípulos, podendo essas perguntas serem entendidas como
perguntas retóricas, que não esperavam resposta!
55
Marcos 9,33.
56
Marcos 4,40; 8,17-21; 8,36-37.
57
Marcos 4,21; 4,30; 9,11-12.
58
Marcos 3,9; 4,36; 6,31; 6,45; 7,17.
55
multidão e aos discípulos: ambos são chamados por ele59 e recebem
seu ensino60, e os dois grupos respondem ao ensino e aos milagres de
Jesus com surpresa, admiração61. No entanto as posturas diante de
Jesus serão diferenciadas: enquanto a multidão vai até Jesus em busca
da satisfação de suas expectativas (de milagres ou de ensino), os
discípulos seguirão Jesus, isto é, estarão com ele onde este estiver, e
serão estimulados a agir em prol dos outros e especialmente, em prol
da multidão62. Essa insistência de Jesus, bem como o já citado “ensino
diferenciado” sugere que, no caso dos discípulos, havia um processo
de mudança de expectativas a partir de uma compreensão mais
profunda da proposta de Jesus e do discipulado proposto por ele. Essa
compreensão estabelece uma tensão no Evangelho de Marcos, entre o
chamado e o desafio de seguir a Jesus, o desejo de fazê-lo e os
perigos (dor, sofrimento) que isso implica.
Compreender essa diferença de postura – tanto com relação às
expectativas como em sua atuação, parece-nos fundamental para a
compreensão do Evangelho de Marcos, quando considerado em seu
difícil contexto, pois indica a intenção do autor do evangelho em
confrontar seus destinatários e orientá-los a partir tanto da atitude de
Jesus quanto da identificação com algum dos grupos descritos.
1.2.4.
O Jesus de Marcos e
o;cloj:
um relacionamento
paradoxal
A
partir
dessa
diferença
em
sua
postura
e
em
seu
relacionamento com Jesus, cremos ser possível pensar em pelo menos
duas conclusões: O Jesus de Marcos, em seu relacionamento com a
59
60
61
62
Ver Marcos 7,14 e 8,34, por exemplo.
Verificar Marcos 3,13.
Marcos 2,12; 4,41; 5,15; 9,15; 10,24; 10,26; 11,18.
Por exemplo, Marcos 9,41; 10,17-22.
56
multidão, era um exemplo de como a comunidade deveria ser, uma
vez que os discípulos de Jesus, nesse Evangelho, são claramente
chamados para agir como ele. Em segundo lugar, e fundamental para
nossa compreensão do texto, percebemos que existe uma intenção de
que as pessoas da multidão saiam da mesma e “mudem de grupo”.
Percebemos essa possibilidade em passagens como Marcos 7,14 e
8,34, por exemplo, nas quais pessoas saem ou emergem do
o;cloj
/
multidão e se apresentam diante de Jesus como indivíduos que são
transformados e reintegrados à comunidade de forma restaurada. Essa
nova postura representaria uma mudança de perspectiva e de
expectativa, a partir de uma nova compreensão da missão de Jesus e
de um novo tipo de relacionamento com ele e com o mundo. Essa
possibilidade parece consistir um objetivo de Marcos ao apresentar
o;cloj.
Dessa forma, temos estabelecido um paradoxo: ao mesmo
tempo que Jesus se relaciona com
o;cloj
de forma radicalmente livre
de preconceitos, aceitando essas pessoas perto de si, ensinando-as e
realizando milagres em seu benefício sem fazer nenhuma exigência,
Marcos apresenta o desejo de transformação dos indivíduos que
compõe
o;cloj, a fim de que possam torna-se discípulos ou seguidores
de Jesus.
Ao caminhar pelo Evangelho de Marcos, percebemos que não
podemos tratá-lo como um texto neutro, mas temos que considerar
seu contexto (de extremo conflito, como esboçamos acima).Também
não podemos considerar seus elementos – palavras ou estruturas, de
forma simplista. Dessa forma, ao tratarmos do uso do termo
o;cloj
neste Evangelho, temos que tentar compreender sua complexidade.
o;cloj não é apenas uma palavra. Remete a pessoas: as pessoas
que viviam e sofriam no contexto que descrevemos acima, e que
tinham
suas
vidas
permeadas
pelas
expectativas
descritas
–
57
expectativas de mudança e libertação através da vinda de um
“messias davídico”, de uma ação divina direta ou de uma revolução
o;cloj
armada. Ou ainda
poderia representar pessoas sem muita
expectativa, desiludidas e apáticas diante da realidade, para quem não
havia mais nenhuma esperança de transformação.
Sabemos que, em sua época, Jesus não foi o único líder a
conseguir arrebanhar seguidores, e descrevemos há pouco alguns
exemplos de movimentos que eclodiram na Palestina durante o
primeiro século. Esse fato demonstra, como já mencionamos, o desejo
e as expectativas das pessoas, e podem nos ajudar a compreender a
postura de Jesus e da multidão no decorrer do Evangelho.
Marcos escreve num contexto de forte opressão política e
econômica, conseguida e mantida às custas de opressão militar,
dominação
ideológica
e
tentativa
de
aculturação
de
povos
conquistados pelos romanos. O Império Romano estabeleceu-se e
manteve-se dessa maneira, e o Evangelho de Marcos expõe essa
realidade de diversas formas. Nesse sentido, a escolha de uma palavra
de forte significação social e com certa conotação militar não pode
passar despercebida.
Às perguntas iniciais acerca de
o;cloj no Evangelho de Marcos –
quem eram essas pessoas e por que Marcos escolhe deliberadamente
uma palavra tão cheia de significados – junta-se uma outra: como
entender as diferenças de postura de
o;cloj
diante de Jesus, se
pensarmos que a mesma palavra é usada para descrever as pessoas
que, do capítulo 2 ao 12, ouvem Jesus com alegria, recebem seus
milagres e querem até aclamá-lo como rei, em Mc 14,43 participam de
sua prisão e, no capítulo 15 (versos 6 a 15), participam ativamente de
sua
condenação,
pedindo
sua
morte?
Por
que
Marcos
usa
deliberadamente a mesma palavra, indicando tratar-se do mesmo
personagem de seu Evangelho? Teria havido algum “engano” da parte
58
de Marcos, ou havia uma intenção esboçada desde o início da
narrativa, que pretende levar seus destinatários a alguma nova
compreensão acerca da realidade?
Por que
o;cloj muda
tão radicalmente sua posição e sua atitude
diante de Jesus?
Procuraremos responder a essa questão estabelecendo um
paralelo entre o texto e contexto de Marcos e algumas situações
representativas do Império Romano, que cremos terem permeado a
mente não apenas de Marcos, mas de seus destinatários naquele
momento específico, buscando identificar de que forma o Jesus de
Marcos se relacionou com a visão de mundo do Império que, de certa
forma, era compartilhada pelo povo judeu, embora, nesse caso, fosse
apresentada apenas como expectativas.
O capítulo seguinte nos remeterá, pois, ao Império Romano e
algumas das características representativas de sua visão de mundo, a
fim de podermos estabelecer o paralelo desejado e prosseguirmos em
nossa busca pela compreensão do papel de
Marcos, e da postura de Jesus diante de
o;cloj
o;cloj.
no Evangelho de
59
2º Capítulo
O IMPÉRIO ROMANO DIRIGINDO O MUNDO
“Você espera sempre mais
Você não se conforma
Você não se satisfaz
Todo mundo diz acreditar na paz
E você acredita ou não?
E então, o que você faz pela paz?
O que você faz pela paz?
O que você faz pela paz?
Todos são capazes da guerra
Mas ninguém luta por você
Você ainda está sozinho
Ninguém acredita em ninguém
E você acredita ou não?
E então, o que você faz pela paz?
O que você faz pela paz?
O que você faz pela paz?”
Pela Paz
Branco Mello, Nando Reis, Sérgio Britto,
Charles Gavin, Paulo Miklos
Gravação: Titãs
60
2.1.
O MUNDO DOS DOMINADORES
Roma nos fascina! As várias imagens e ideias transmitidas a nós
pela história e pelas artes através dos séculos, e sempre avivadas em
cada geração, fazem com que cada um de nós tenha uma – ou várias
– percepções acerca do mundo romano.
Dessa forma, ao falar do mundo romano, logo nos vem à mente,
dentre outras ideias que compõe nosso imaginário, a visão de uma
sociedade promíscua e violenta, em que as pessoas (especialmente a
plebe, ou o povo comum) preocupavam-se apenas com diversões e
prazeres considerados atualmente “imorais”. Tais ideias foram criadas
e transmitidas graças às imagens e representações de Roma que se
formaram
em
diferentes
momentos
históricos,
motivadas
pelas
realidades e necessidades de cada momento, uma vez que cada
historiador interpreta o passado e constrói seu discurso a partir de sua
própria percepção da realidade63.
Essas percepções, contudo, têm se mostrado superficiais, uma
vez que não contemplam a complexidade dessa sociedade, separada
de nós por tantos anos e por uma cultura que tantas vezes não
compreendemos.
Além
disso,
tendem
a
ignorar
que
as
ideias
apresentadas acerca dessa sociedade podem não representar a
realidade da grande maioria das pessoas que compunham esse
ambiente tão diversificado e cheio de nuances que nos acostumamos a
chamar de “Império Romano”.
Certamente, não temos condições, neste trabalho, de apresentar
um estudo exaustivo dessa sociedade, nem é esse nosso objetivo,
embora a tentação de nos aprofundar nesse tema seja bastante
grande. Devemos nos ater ao período da história romana relacionado
com o texto bíblico estudado, bem como salientar, dentro da
63
Renata Senna Garrafonni, Gladiadores na Roma Antiga – dos combates às paixões
cotidianas, São Paulo: Annablume / Fapesp, 2004, p.34.
61
complexidade de temas e assuntos possíveis, aqueles que julgamos
fundamentais à nossa análise, por serem relevantes à compreensão do
referido texto.
Dessa forma, situamos nossa análise no primeiro século da era
cristã, período que pode ser considerado como intermediário na
história da antiga Roma, época da “infância” do Império Romano. As
agitações, os conflitos e as mudanças ressaltadas na Judéia – província
romana, como anteriormente mencionado – são também vivenciados,
embora de forma diferenciada, em toda extensão da heterogênea área
dominada, e na própria estrutura do Império em formação.
O Império Romano não pode ser entendido, como muitas vezes
o fazemos, como um Estado moderno, não representava uma
organização social homogênea e singular, mas abrigava sociedades
distintas, das quais a judaica é uma delas.
Os processos de conquista militar e centralização política
difundidos por Roma não se abstiveram de conflitos, numa dinâmica
de assimilação, ajustamento, negociação e resistência presentes não
apenas na Judéia, mas em diversas outras regiões dominadas. A
eclosão da revolta judaica dos anos 66 a 70 d.C., período em que
situamos historicamente o texto evangélico estudado, não pode ser
considerado
como
um
fato
isolado,
assim
como
a
exploração
econômica, política e social ao qual aquele povo foi exposto também
não o foram.
Precisamos, portanto, verificar melhor o período a que nos
referimos, procurando perceber ao menos em parte seu contexto e sua
complexa realidade, a fim de termos condições de melhor analisar e
entender o texto do Evangelho de Marcos, que nasceu sob essa visão
de mundo e que carrega, em sua narrativa, elementos desse período.
Situando o texto de Marcos entre os anos 66 a 70 d.C., como o
fizemos, colocamo-lo num período em que o nascente Império
62
estabelecia-se politicamente como um Principado – o primeiro período
do Império Romano, que sucedeu à República64. Torna-se muito difícil
estabelecer uma data para essa mudança na forma romana de
governo, uma vez que o final do período republicano pode ser
entendido como um processo que se iniciou em cerca de 133 ou 121
a.C., com a morte dos irmãos Tibério e Caio Graco65. Apesar dessa
dificuldade
no
estabelecimento
de
uma
data
precisa,
podemos
entender que os vários elementos de desagregação da República66,
que fizeram com que esta perdesse sua força como “guardiã dos
interesses públicos” diante dos crescentes interesses privados, foram
estimulados pelo crescimento da dominação territorial romana e todas
as mudanças advindas desse crescimento.
Essa mudança no modo de governo significou também uma
transformação cultural gradativa, que influenciaria todo o modo de
vida daquela sociedade e das diversas sociedades que passariam a
fazer parte do Império.
Embora estejamos falando de um período de transição, em que
os elementos não são facilmente distinguíveis, podemos considerar
como marco para o estabelecimento do poder pessoal que define o
Principado os governos de Caio Graco, Sila, Pompeu e Júlio César67.
64
O Principado pode ser compreendido como o “primeiro período” da recém restaurada
monarquia romana (entre os anos 27 a.C. e 193 d.C.), constituindo um período
político híbrido que conservava as instituições republicanas, mas colocando-as sob a
tutela do Princeps. Foi seguido historicamente por um “segundo período” monárquico
denominado Dominato.
65
Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e
Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva
Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad,
2006, p.22. Verificar também Leon Bloch, “Luchas Sociales” em La Antigua Roma,
Buenos Aires: Editorial Claridad, 1934.
66
Podemos citar, de acordo com Norma Musco Mendes, o conflito entre individualismo
X coletivismo, as lutas pelo exercício do poder, que formaram coligações políticas, o
uso de violência na vida pública e especialmente a criação de um exército
profissional e permanente como fatores básicos para o desenvolvimento de um
poder pessoal, p.22.
67
Acerca desse período da história romana, verificar: Leon Bloch, “Luchas Sociales”
em La Antigua Roma, Buenos Aires: Editorial Claridad, 1934; Gilvan Ventura Silva e
Norma Musco Mendes, Repensando o Império Romano - Perspectiva
Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad,
63
Especialmente o último pode ser considerado como o responsável por
lançar as bases de um poder pessoal absoluto, com forte ênfase
militar, que se desenvolveria até consolidar-se na monarquia romana.
Mesmo não tendo tido tempo hábil para consolidar-se como regente, é
sobre suas bases que essa monarquia seria erguida.
Otávio Augusto, filho adotivo e sucessor de Júlio César, foi quem
estabeleceu o sistema monárquico através do Principado, não sem
uma disputa anterior68, e ainda necessitando, para isso, do apoio do
Senado. Apresentando-se como “defensor da tradição romana” contra
a ameaça oriental (simbolizada por Marco Antonio e sua aliança com o
Egito, especialmente), Otávio ganha a simpatia tanto da aristocracia
quanto do povo de Roma e, especialmente depois da batalha em que
derrota Marco Antonio, em 31 a.C., estabelece-se como o “restaurador
da liberdade e da paz” que garantiria a proteção do Estado e dos
cidadãos
romanos,
além
de
manter
a
dominação
do
mundo
conquistado.
O desenvolvimento desse Principado por Otávio, bem como a
obtenção de cada vez mais poder e autoridade foram gradativos e
muitas vezes não perceptíveis, pois havia a aparência de que a
soberania do Senado e do povo estava mantida, embora na prática
ambos tenham se tornado, como veremos adiante, em “clientes” do
Princeps, dentro do sistema do Patronato.
O Principado trouxe a Roma e a todo o Império nascente
algumas consequências importantes. Marcou o fim do pouco que ainda
restava de decisão popular, pois a liberdade eleitoral foi quebrada e as
questões políticas passaram a não serem mais debatidas em público,
como ocorria durante a República. O exército passou a ser regular e
2006, 300p.; Theodor Mommsen, História de Roma (Excertos), Rio de Janeiro:
Editora Opera Mundi, 1973. 333p.
68
Referimo-nos às disputas ocorridas durante o chamado Triunvirato, período em que
o governo romano foi dividido entre Lépido, Marco Antônio e Otávio, especificamente
a disputa entre Otávio e Marco Antônio (Lépido havia morrido), que deu ao primeiro
a vitória e a posição de regente único de Roma.
64
sustentado pelo Estado, cujo representante máximo era o Imperador,
o que estabeleceu um vínculo fortíssimo entre ambos. Foram criados
diversos cargos públicos a fim de manter o novo regime, o comando
do exército e a administração das províncias, muitos deles assumidos
pelos Senadores que, ao mesmo tempo, tinham seu poder cada vez
mais
reduzido.
Essas
mudanças,
obviamente,
acarretaram
num
aumento de gastos, criando-se a necessidade de aumento das
receitas.
Essa necessidade de aumento das receitas impeliu a criação de
impostos. Conhecendo o cadastro provincial, Augusto criou o tribunum
capitis, um imposto “por cabeça” do qual a Itália estava isenta, e o
tribunum soli, imposto “sobre as propriedades”, cobrado de todos os
proprietários de bens imóveis. Além desses, foram criados impostos
indiretos aliados às taxas de alfândega e circulação de mercadorias.
A política monetária era prerrogativa do Príncipe, que se
constituiu, assim, como o cidadão mais rico do Império. Essa noção
também é muito importante para a prática do Patronato, como
veremos a seguir.
Os sucessores de Augusto procuraram consolidar seu sistema
administrativo e ampliar o poder imperial. A partir da ditadura de Júlio
César, o Senado já havia perdido seus poderes principais. Augusto
dissimulou essa impotência política dando novas atividades ao Senado,
que se tornou um corpo de funcionários civis que anunciava ou
confirmava as decisões do Príncipe. Ao mesmo tempo, ao povo restou
um poder de decisão apenas figurativo, uma vez que a confirmação
dos poderes ou decisões do Príncipe era apenas nominal e não
influenciava nas decisões já tomadas. Além disso, o contato físico
entre os cidadãos e entre estes e as instâncias de poder, desenvolvido
durante a República, foi substituído gradativamente pelo aparelho de
Estado recém criado.
65
Como mencionamos anteriormente, todas essas mudanças
marcaram não apenas a política e a economia da sociedade romana,
mas sua cultura e visão de mundo. Citando Mendes:
“À nova identidade política do Princeps como tutor de
todo processo decisório civil e militar se aliou a ideia de
início de uma nova era, durante a qual Roma, pela
vontade divina e providencial, havia superado um
momento de caos dominado pelas guerras civis e estava
destinada a organizar e controlar o mundo conhecido.”69
Com o fim das guerras civis que marcaram o final da República,
a união do povo romano sob um mesmo líder e a expansão territorial e
financeira, estava inaugurada a “Paz Romana”, a Paz de Augusto, com
todas as consequências sociais, culturais e políticas que adviriam dessa
dominação e de sua manutenção.
2.1.1.
Um Mundo Romano: Processos de Expansão e
Dominação
Conforme
citado
anteriormente,
o
processo
de
expansão
territorial romano foi longo (compreendendo desde o século 5 a.C. ao
século 2 d.C., aproximadamente), com intensidade variada no decorrer
desse período, e foi acompanhado por transformações sociais, políticas
e, consequentemente, culturais.
Com as transformações políticas que outorgaram a dominação
para uma só pessoa, Otávio assumiu o título de imperator, derivado da
palavra imperium, termo revestido de caráter sagrado, que significava
“uma força transcendente, criativa e reguladora, capaz de agir sobre o
69
Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e
Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva
Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad,
2006, p.37.
66
real e de o submeter à sua vontade”70. Acreditava-se que esse poder
era prerrogativa do deus Júpiter, concedido por este ao magistrado
escolhido pelo povo romano, capacitando-o ao governo e ao mesmo
tempo identificando-o com a divindade. Essa ideologia coadunava com
o pensamento oriental de um “benfeitor universal”, assumido por
Otávio Augusto e por seus sucessores.
Um fator importante, que marcou profundamente a visão de
mundo e a postura romana é que por tradição, o imperium deveria ser
concedido no campo de batalha pelos soldados vitoriosos que
aclamavam
seu
chefe
ou
general,
concedendo-lhe
o
título
de
imperator. Somente uma vitória em batalha permitia tal aclamação,
que deveria ainda ser confirmada pelo Senado. Durante o período do
Principado,
especialmente
na
época
de
nosso
maior
interesse,
percebemos que essa tradição era bastante forte, uma vez que a
sucessão dos Imperadores não era hereditária (nem poderia ser, pelos
ideais republicanos ainda presentes). Esse título e a tradição a ele
vinculada acentuam a importância e a força que o exército romano
teve na história não apenas da expansão e conquista territorial
romana, mas em sua manutenção71.
Dessa forma, após a morte de Otávio em 14 d.C., o poder é
assumido por Tibério, que havia sido escolhido e preparado por Otávio
e confirmado pelo Senado (sem seguir a tradição mencionada acima,
embora houvesse recebido o comando militar superior antes da morte
de Otávio). Contudo, com a morte de Tibério em 37 d.C., como não
havia regras definidas para a sucessão, o exército aclama Calígula,
70
Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e
Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva
Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad,
2006, p.38.
71
Esse interesse do exército pelo Imperador pode ser compreendido também pelo fato
de, nessa época, o exército ser permanente e depender do Estado (ou do
Imperador) para sua manutenção!
67
cuja designação é confirmada pelo Senado72. A tradição de aclamação
prossegue: em 41 d.C, com a morte de Calígula, os pretorianos73
aclamam Cláudio, tio de Calígula, decisão também confirmada pelo
Senado; em 54 d.C, com a morte de Cláudio, acontece a aclamação de
Nero (também pelos pretorianos), mais uma vez ratificada pelo
Senado74.
Com a morte de Nero, em 68 d.C. (portanto, exatamente no
período de nosso maior interesse, em meio à Guerra Judaica), inicia-se
a primeira crise sucessória do Império Romano. Durante o período de
um ano (entre 68 e 69 d.C.), quatro Imperadores assumem o governo:
Galba, Oto, Vitélio e Vespasiano, que havia sido aclamado pelo
exército e é confirmado pelo Senado, apesar de não ser legitimamente
romano (Vespasiano era proveniente de uma família rica da região da
Sabina, província romana)75. Vespasiano consolida sua autoridade
apesar de inicialmente ter a seu favor, aparentemente, apenas o
sucesso militar conseguido através da Guerra Judaica. É a partir de seu
governo que a “autoridade” do Princeps passa a ser reconhecida
constitucionalmente e não mais como uma “concessão temporária”
dada pelo Senado (o que viria a ser uma prerrogativa para a
monarquia absoluta).
Buscando a estabilidade e temendo uma nova crise, como a
acontecida nos anos 68 e 69 d.C., Vespasiano designa seus filhos como
seus sucessores, tendo-os como colaboradores principais de seu
governo. Dessa forma, com sua morte em 79 d.C., seu filho Tito o
72
Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e
Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva
Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad,
2006, p.44.
73
Originalmente, o termo “pretor” referia-se ao magistrado romano responsável pela
administração da justiça e era, por isso, responsável pelo seu policiamento. Os
pretores constituíam, dessa forma, uma força militar citadina, responsável
especialmente pela segurança do Imperador.
74
Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e
Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva
Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad,
2006, p.44.
75
Ibid, p.45.
68
sucede por apenas dois anos, sendo seguido por seu irmão Domiciano
em 81 d.C., finalizando o que poderia ser chamada de “dinastia”
iniciada por Vespasiano. A partir de então, acontecem alterações nas
formas de escolha dos Imperadores, que deveriam ser indicados pelo
Imperador ainda reinante e ser a pessoa mais qualificada para exercer
essa tarefa.
Apresentamos
essa
breve
exposição
das
sucessões
de
Imperadores desse período de início e consolidação do Principado para
demonstrar como a noção de imperium estava ainda vinculada, nesse
período, à vitória militar que dava autoridade a um general para ser
aclamado, e como essa noção foi assimilada à política de Roma e ao
seu representante máximo, o Princeps ou Imperador.
Essa compreensão acerca do imperium transformou também a
visão de mundo romana acerca da abrangência dessa palavra, que
passou a significar não apenas o poder ou ato de governar, mas
também a própria região governada. Assim, a expressão Imperium
Romanum passou a designar não apenas o poder concedido ao
Princeps, mas o espaço em que este exercia seu poder. Essa seria a
gênese da ideia de Império transmitida desde então, da qual o Império
romano tornar-se-ia paradigma.
Esse Imperium era concebido pelos romanos como sendo
composto por dois espaços principais, a Urbs, identificada pela cidade
de Roma, que era o centro do mundo, e a Orbis Terrarum Imperium,
que seria constituída por duas partes: um território organizado e
submetido às leis civis romanas, e as externae gentes, representadas
pelas terras não anexadas mas que reconheciam a superioridade
romana.
Não
podemos
dizer,
contudo,
que
as
diversas
áreas
conquistadas pelo Império Romano tenham sido anexadas obedecendo
a um programa elaborado, nem que houve algum planejamento
econômico acerca da exploração dessas terras. As palavras que
69
poderiam
ser
utilizadas
no
contexto
de
exploração
das
terras
conquistadas e anexadas seriam integração e articulação: o Império
romano integrou as economias e as culturas conquistadas, procurando
articular seus interesses com os interesses das elites nativas, a fim de
gerar algum tipo de unidade que assegurasse a manutenção de suas
conquistas.
Percebemos que, na estrutura concêntrica do Império nascente,
em que Roma simbolizava o centro político e econômico (embora essa
centralidade
econômica
seja
também
questionável,
e
sofra
transformações devido ao estímulo do comércio), a integração entre
centro e áreas integradas (periféricas ou semi-periféricas) era feita
através de relações de troca de poder e riqueza entre as partes. Esse
tipo de relação, característico do sistema conhecido como Patronato,
será melhor explanado adiante, e é uma das razões da manutenção,
sempre que possível, de estruturas de poder nativas e da cooptação de
suas elites.
Temos que salientar, também, que as relações de exploração
exercidas
por
Roma
também
sofreram
alterações,
e
não
se
mantiveram iguais durante o período do Império. Num primeiro
momento, que aconteceu ainda durante o período republicano, o
interesse na expansão e consolidação do domínio romano (sobre a
Itália, inicialmente, e depois sobre os demais territórios), a exploração
consistiu na anexação de terras e obtenção de espólios de guerra
(bens materiais e humanos). Em seguida, houve um período que pode
ser entendido como “exploração desenfreada”, comandada por ações e
interesses
individuais,
sem
sistematização,
o
que
favoreceu
a
corrupção e extorsão, o arrendamento de serviços públicos e a
cobrança de altas taxas de juros nos empréstimos feitos às províncias.
Com o Principado, temos uma terceira fase da exploração, mais
sistematizada e organizada, em que o “amadorismo” civil e militar
anteriores foram dando lugar a um burocrático aparelho de Estado que
70
visava um melhor e mais efetivo controle e uma exploração mais
racional das áreas dominadas.
Obviamente tal descrição é tipológica, e sabemos que esses
períodos de exploração não foram claramente definidos, uma vez que
o processo de conquista foi longo, e as províncias apresentavam
estágios diferentes desse processo e formas diferenciadas de reação –
que muitas vezes definia o tipo de tratamento que tal província
receberia.
Além
anteriormente
realidades
que
disso,
sobre
a
temos
que
“política
compunham
o
de
considerar
o
integração”
Império,
que
que
das
fez
dissemos
diferentes
com
que
o
relacionamento fosse diferenciado. No entanto, percebemos que os
territórios conquistados, independentemente de sua situação, eram
considerados como áreas legítimas de exploração, terras públicas de
Roma.
2.1.2.
Reorganização
do
Espaço
Como
Tática
de
Dominação
Através do exposto, percebemos que já estava arraigada, no
primeiro século de nossa era, uma auto compreensão romana de
superioridade diante de outros povos. Por isso, Roma deveria cumprir
sua missão “civilizadora” e estabelecer seu domínio universal sobre
esses povos. Nesse contexto, o processo de conquista territorial e
dominação assume funções que vão além da ocupação militar e
exploração econômica acima esboçados, utilizando diversos outros
mecanismos a fim de propagar o que poderíamos chamar de um
“projeto cultural” que difundisse a identidade romana aos povos
conquistados e anexados ao Império.
71
Esse processo de propagação é o que tem sido chamado de
Romanização76 – um esforço por parte da metrópole, Roma, para
difundir seu modo de pensar e viver aos povos conquistados. Ao
falarmos sobre esse termo e sobre o sentido do mesmo, entretanto,
precisamos ter cuidado, pois como tantos outros, esse tem sido um
termo mal compreendido e por vezes utilizado de forma simplista nos
estudos acerca da história desse período. Conforme mencionamos,
precisamos ter em mente que os processos romanos de expansão e
conquista aconteceram de forma heterogênea e complexa, com
diversas fases e também diversas formas de percepção e reação. Não
podemos ser simplistas ao verificar esses fenômenos, ou reduziremos
sua dimensão.
O termo “romanização” foi utilizado muitas vezes para designar
a forma de mudança cultural resultante da incorporação de uma
cultura por outra, vinculado ao termo “aculturação”, que indicaria um
tipo de transmissão de cultura do povo dominador sobre o dominado
de forma uniforme e “progressista” (concordando com a ideia de que a
cultura romana, nesse caso, seria “superior”). Sabemos, entretanto,
que a interferência entre culturas não se processa dessa forma e,
especialmente no que concerne a povos dominados, os graus de
assimilação e resistência são muito variados. Além disso, havemos de
considerar que esse processo sempre representa, ainda que de forma
desigual, algum nível de intercâmbio, ou seja, o pensamento romano
também era influenciado, muitas vezes, pelos costumes e culturas dos
povos conquistados.
De qualquer forma, havia um interesse em estabelecer um
“modo romano de viver” a partir da crença na superioridade romana e
em sua missão de civilizar o mundo. Dentre as estratégias utilizadas
para esse fim, de forma consciente ou não, destacaremos algumas que
consideramos relevantes para a compreensão do contexto da Palestina
76
Termo que surge na historiografia em fins do século 19 e início do 20, significando o
contato entre os romanos e outros povos e a difusão de seus padrões a esses povos.
72
no período de escrituração do texto de Marcos, salientando trataremse de apenas alguns aspectos dos complexos mecanismos de relação
entre Roma e os povos conquistados.
Uma das estratégias utilizadas pelo Império Romano para
promover a já citada integração das terras conquistadas foi a
reestruturação e redefinição do espaço e dos territórios conquistados.
Essa reestruturação poderia acontecer pelo menos de duas formas
diferentes: através de aliança, em que os líderes e elites dos povos
dominados eram incluídos na órbita romana, aceitando a hegemonia
política romana, ou através de subjugação, em que, após resistência,
os povos derrotados eram submetidos ao jugo romano – massacrados
ou escravizados, tendo suas terras tomadas e divididas entre os
romanos e seus aliados77.
Em muitos casos, como na região da Palestina, parece ter
havido formas híbridas de dominação, pois as formas de resistência
eram variadas. Percebemos, contudo, que havia uma tendência maior
à revolta nos meios rurais, tradicionalmente periféricos, enquanto nas
cidades, onde se concentrava a maior parte da elite, as alianças eram
estabelecidas. Além disso, diante do costume romano de estabelecer
colônias romanas entre os povos conquistados, concedendo terras a
camponeses (cidadãos romanos) e aos soldados (como forma de
reconhecimento/pagamento), havia uma grande ameaça aos meios de
sobrevivência dos camponeses, que dependiam da terra para sua
subsistência. Como mencionamos no capítulo anterior, esse costume
parece ter acentuado e acelerado o processo de empobrecimento dos
camponeses da região da Palestina e da Galiléia, mais especificamente.
Destaca-se também, nesse processo de reestruturação do
espaço,
uma
ênfase
no
estabelecimento,
desenvolvimento
ou
remodelamento de cidades romanas (civitates), que representavam o
ideal romano de vida e serviam para estabelecer certa unidade ao
77
Pedro Paulo de Abreu Funari, Grécia e Roma, São Paulo: Contexto, 2004, 142p.
73
Império, dando-lhe certa coerência. As cidades serviam, além disso,
como um centro organizador das áreas rurais e como centralizadoras
econômicas, possibilitando o gerenciamento do excedente produtivo e
a centralização dos tributos. Além disso, representavam os centros da
cultura romana e reproduziam o modo romano de viver. Nesse sentido,
podemos compreender melhor as diversas obras de Herodes Antipas,
citadas no capítulo anterior, como uma tentativa de “adequação” do
território aos gostos e interesses romanos, assumindo assim seu papel
como “rei cliente” – papel que seria também desempenhado por seus
sucessores, e mesmo pelos procuradores romanos.
O estabelecimento das colônias, a reestruturação do espaço
urbano e a ampliação das redes de acesso viário, enfim, todo o
programa
de
reestruturação
do
espaço
aplicado
por
Roma
às
províncias funcionaram como demonstração de sua dominação sobre
essas regiões, e serviram como meios de inserção que acarretaram
mudanças econômicas, políticas e culturais significativas, aumentando,
pelo menos na região da Judéia, os desníveis econômicos e acirrando
as diferenças sociais locais.
Precisamos entender melhor, nesse ponto de nossa análise, a
relação política estabelecida entre Roma e as províncias. Para isso,
analisaremos mais detalhadamente o que seria essa forma de governo
que temos chamado de Principado.
2.1.3.
Princeps, Patrono e Imperador
Como dissemos anteriormente, o período político conhecido
como Principado estabeleceu-se como um regime que mesclou padrões
e costumes antigos (vindos do período republicano) e novos.
Dentre as concepções antigas, reapropriadas e resignificadas
pelo Principado estão os conceitos de Princeps e Patrono, ambos de
74
significado
amplo
e
complexo,
altamente
importante
para
a
compreensão das relações políticas do período.
Segundo Paul Veyne78, “clientela” e “patronato” eram palavras
que os romanos utilizavam para pensar as mais diferentes relações,
integrando o cotidiano de pessoas de todas as classes sociais romanas.
Significava um tipo de relação pessoal estabelecida pela prestação de
algum favor ou benefício entre pessoas, que poderiam ser “pares” (ou
seja, pessoas de mesmo nível social) ou não (nesse caso, o favor era
prestado normalmente pelo detentor da condição mais alta). Esse
processo geraria uma relação de troca recíproca, em que o patrono
provaria seu meritum através de suas ações, que deveriam, por sua
vez, ser respondidas com gratia, ou seja, reconhecimento e lealdade.
As pessoas recebedoras dos favores do patrono eram chamadas de
amigos (amici), em caso de terem o mesmo nível social, ou mais
frequentemente de clientes.
Dessa forma, o termo patrono era usado para descrever o papel
que um indivíduo tinha na sociedade, e a consequente atenção que
recebia em função de suas capacidades morais e materiais, que lhe
dava autoridade (auctoritas) para atuar publicamente. Assim, um
patrono poderia ser conhecido pela quantidade de “amigos” ou
“clientes” que conseguia devido às suas virtudes e às suas realizações,
sendo necessário, portanto, certo grau de riqueza para que pudesse
ser considerado um benfeitor e, dessa forma, ter destaque ou fama.
O patronato constituía uma relação de troca, pois assim como os
amigos ou clientes precisavam da ação do patrono, este também
precisava do reconhecimento e da fidelidade destes para mostrar sua
dignidade e mérito. Esse era um fator de valor moral importantíssimo,
inclusive para que tal patrono pudesse vir a ter algum cargo público.
78
Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da
Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1, p.111.
75
Assim, estabeleceu-se nas cidades romanas, desde períodos
republicanos, a figura de notáveis locais que se destacavam por suas
ações em favor de seus clientes e das próprias cidades, como forma de
demonstrar sua dignidade. Veyne usa a expressão evergetismo79 para
descrever esse tipo de ação, em que tais notáveis ofereciam à cidade e
seus cidadãos edifícios públicos, festas, banquetes e espetáculos
(como os de gladiadores, que veremos adiante). Esses notáveis eram
chamados, ainda no período republicano, de Príncipes Civitates, o
“Príncipe da Cidade”, função que se tornou uma obrigação pública
daqueles
que
desejavam
mostrar
que
pertenciam
à
classe
governante80.
O Princeps deveria ser, nesse contexto, o cidadão mais
proeminente de uma cidade, o “primeiro entre os pares”, destacado
por sua popularidade, dignidade e autoridade.
O sistema político do Principado, com sua centralização de poder
(advinda da centralização da cidade de Roma como centro do Império
e cidade mais importante) fez nascer um regime instituído pela
monarquia de um chefe intitulado significativamente Princeps. Essa
representação é
muito importante para nós,
pois apresenta o
governante romano como um “cidadão especial”, alguém com papel de
destaque que deveria desempenhar, como veremos, sua função como
“máximo patrono” do Império Romano e de seu povo!
A nova estrutura política estabelecida no Principado, em que o
governante detinha o Imperium, o poder de governar (como vimos
anteriormente), foi marcada por relações de trocas pessoais baseadas
no sistema do patronato, em que o Princeps/Imperador desempenhava
a função de “Supremo Patrono” de Roma, seu sumo benfeitor. As
relações políticas estabelecidas – inclusive no que concerne à eleição e
nomeação para cargos políticos, mesmo nas províncias, obedecia à
79
Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da
Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1, p.114.
80
Ibid, p.114, 115.
76
estrutura de clientelismo e dependia, obviamente, de um bom
relacionamento com o Imperador ou com sua rede de amigos mais
próximos.
Mais uma vez, ressaltamos a necessidade de perceber que o
processo político aconteceu de forma dinâmica, e que cada Imperador
lidou com o poder de forma diferenciada, assim como cada província e
cada
grupo
governante
local
respondeu
de
forma
também
diferenciada. No entanto, importa-nos saber que essa rede de
relacionamento foi mais um fator de agregação do Império, uma vez
que os líderes nativos das províncias, bem como os procuradores
romanos designados para tais cargos (como foi o caso da Judéia),
tinham interesse em manter sua posição e privilégios e, por isso,
precisavam
demonstrar
gracia,
(reconhecimento
e
lealdade)
ao
Imperador conservando a paz e a ordem em sua região, bem como
mantendo a fidelidade no envio de tributos e presentes. A habilidade
com que cada um desses líderes faria isso, tornando-se também
“patronos” da população em cada região, demonstraria sua capacidade
de permanecer ou não no cargo ocupado81.
O paradoxo dessa posição do Imperador como Princeps e
Patrono de Roma, porém, é que à medida que crescia seu poder (e
diminuía o poder do Senado), foi sendo criado um cada vez mais
apurado aparelho de Estado que tornava o Princeps gradativamente
mais distante da população de quem devia ser o benfeitor, alterando o
caráter de relacionamento direto que era uma marca do patronato. Ao
mesmo tempo, como vimos anteriormente, esse distanciamento
significou a perda de poder da população.
Além
disso,
com
o
estabelecimento
desse
sistema
no
relacionamento entre as províncias e a capital do Império, coube aos
81
Não havia interesse, da parte de Roma, de que as populações das províncias se
revoltassem, daí a necessidade de as elites e governos locais estabelecerem meios
de controle e manutenção da paz. Percebemos que, no caso das províncias da
Palestina, não houve essa habilidade, e o agravamento das diferenças econômicas
acentuou o clima de revolta da população.
77
lideres
nativos,
como
dissemos,
a
tarefa
de
demonstrar
constantemente seu reconhecimento ao Imperador, o que acirrou as
diferenças
econômicas
e
sociais
nas
províncias
e
estimulou
a
exploração dessas elites nativas sobre as populações locais, a fim de
que estas pudessem cumprir fielmente suas obrigações econômicas
com Roma, e até excedê-las através de presentes, quando possível.
Percebemos que o patronato no período do Principado tinha dois lados:
estabelecia uma rede de relações cada vez mais hierárquicas, cujo
ápice era o Princeps, das quais as elites e lideranças faziam parte
ainda que de forma distante, e ao mesmo tempo estabelecia níveis
cada vez maiores de marginalidade, tendo o Princeps e Roma como
referencial. Dessa forma, tomando a Palestina como exemplo, esta
poderia ser considerada como periferia do Império e, dentro dela, a
Galiléia, zona predominantemente rural, era a periferia. Da mesma
forma, se a liderança nativa era cliente e devedora do Imperador, a
população local da província o era (ou deveria ser) desses líderes, que
deveriam proporcionar (mas de fato não o faziam, na maior parte das
vezes) à população algum tipo de benefício.
Construção de edifícios públicos, promoção de festas, banquetes
e espetáculos, e distribuição de donativos estavam entre esses
benefícios que deveriam ser concedidos à população pelo benfeitor. No
caso da capital do Império, a cidade de Roma, o Imperador era o
responsável pela manutenção dessa obrigação e, nos demais lugares,
seus representantes deveriam fazê-lo.
Analisaremos a seguir um fenômeno do mundo romano que
compunha essa gama de “benefícios”, e que se destacou como uma
das marcas dessa civilização, transmissor dos valores romanos e de
“romanização” e, ao mesmo tempo, pode ser entendido como um meio
de manifestação popular: as lutas de gladiadores.
78
2.2.
O FENÔMENO DOS MUNERA
Durante séculos, as lutas de gladiadores (munera82) atraíram os
olhares e interesses do público romano. Ainda hoje, por diversos
motivos, esse fenômeno chama a atenção, suscitando comentários que
vão desde o estranhamento pela violência dos espetáculos à procura
pelo significado dos mesmos.
A origem dos munera é incerta, e compõe ainda fonte de
discussão entre pesquisadores da área. Renata Senna Garraffoni
apresenta a data provável de 264 a.C. para a apresentação do
primeiro combate de gladiadores em Roma, embora saliente que esse
dado ainda é discutível, assim como a tradicionalmente aceita origem
etrusca de tais combates83.
Na atualidade os combates de gladiadores continuam sendo alvo
de interesse e atenção, constituindo fonte para os mais diversos
sentimentos, que vão da curiosidade para entender a razão do fascínio
exercido tanto tempo pelos espetáculos à repulsa pela violência dos
mesmos, tão enfatizada. De fato, imaginar que grandes públicos,
formados por pessoas das mais diferentes condições sociais e
culturais, se aglomerassem em anfiteatros para assistir a combates
sangrentos, caçadas, execução de criminosos ou simulações de
batalhas navais (naumáquias) soa-nos estranho e muitas vezes
incompreensível.
82
Munus, palavra latina cujo plural é munera, é um termo de caráter jurídico-social
cujo significado pode ser “empenho”, “presente”, obrigação”, gratificação”,
representando um dever que um cidadão deveria prestar aos demais (como a
obrigação de um magistrado com relação a seus encargos, bem como as obrigações
dos nobres das cidades para com sua população). O vínculo com os combates de
gladiadores parece advir do fato de que, inicialmente, tais combates, de significação
religiosa, representava uma homenagem de honra que deveria ser prestada a um
falecido ilustre (múnus funebre), constituindo uma “obrigação” de seus familiares.
Acerca dos significados do termo, conforme Pedro Paulo de Abreu Funari, Cultura
Popular na Antiguidade Clássica, São Paulo: Editora Contexto, 1989.
83
Renata Senna Garraffoni, Gladiadores na Roma Antiga – Dos Combates às Paixões
Cotidianas, São Paulo: Fapesp/ Anablume, 2005, p.19.
79
Talvez realmente não sejamos capazes de compreender esse
fenômeno e a influência que exerceu na vida e na mentalidade romana
por mais de seis séculos84, mas cremos que muito de nosso
estranhamento deve-se ao fato de que os conhecimentos que temos
sobre as lutas de gladiadores tendem a ser simplistas, exaltando
apenas um lado ou uma parte das mesmas, sem considerar a
necessidade de verificar tal fenômeno como algo complexo, composto
por vários aspectos e realidades (como temos ressaltado diversas
vezes nesse trabalho). Em outras palavras, a percepção simplista que
recebemos acerca das lutas de gladiadores (como de outras realidades
históricas) tende a nos tornar preconceituosos e nos impede de ver
que há muito mais significados envolvidos nesse fenômeno.
Dessa forma, nossa proposta é tentar verificar melhor a
complexidade
do
fenômeno
dos
munera
e
seus
significados,
especialmente no período histórico de nosso maior interesse, ou seja,
o primeiro século da era cristã, considerando o contexto de mudanças
políticas e sociais desse período, nos aspectos apresentados acima.
Ao procurar compreender os combates dessa forma dinâmica e
complexa,
percebemos,
através
da
verificação
dos
discursos
historiográficos acerca do mundo romano, que os autores tenderam a
ressaltar aspectos parciais do fenômeno, dando a estes uma condição
por vezes dogmática de “única interpretação possível”. Felizmente,
esse tipo de posicionamento tem sido questionado e repensado pela
historiografia
consideram
moderna,
as
que
complexidades
tem
e
as
apresentado
pesquisas
diversas
possibilidades
que
de
interpretação dos fatos históricos.
As pesquisas sobre os munera remontam ao século 19,
juntamente com pesquisas acerca de outros tipos de espetáculos (os
84
Consideramos as datas prováveis de 264 a.C. para a realização do primeiro combate
público em Roma e a data de 313 d.C, em que o Imperador Constantino proibiu os
combates, como marcos referenciais, embora saibamos que os mesmos aconteceram
desde antes dessa data, bem como se estenderam pelo menos por mais alguns anos
após o decreto de Constantino.
80
jogos circenses e o teatro), e existe uma diversidade de percepções
acerca de como se organizavam os espetáculos, seus significados e
funções sociais. Assim, no século 19 e início do 20 os espetáculos,
especialmente os combates de gladiadores, foram interpretados como
parte da chamada política do “pão e circo”, que visava alimentar e
divertir uma população ociosa e desinteressada. Essa visão, bem como
a expressão que a denomina, tornou-se popular. Já nos anos de 1970,
propõe-se uma interpretação das arenas como espaço de confronto
entre o povo e o Imperador, alterando a visão de que a população era
desinteressada, dando um caráter mais político aos combates, todavia
continuando com a tradição de visão única e homegeneizante do
fenômeno. Na década de 1980, os estudiosos passam a perceber a
possibilidade de interpretação levando em conta aspectos culturais dos
espetáculos, suas particularidades e complexidade85.
Nesse contexto, Garraffoni86 apresenta sua pesquisa acerca dos
munera de forma diferenciada, considerando não apenas as diversas
possibilidades interpretativas desse fenômeno ao levar em conta as
diferenças
regionais
e
temporais
(uma
vez
que
os
combates
aconteceram por um período muito longo, numa vasta região), mas
também dando lugar à pesquisa que busca identificar um tipo de
manifestação popular sobre os combates, fato até então pouco
observado, uma vez que os estudos costumam levar em conta
normalmente materiais escritos em sua maior parte pelas elites.
Consideraremos, contudo, o estudo e opiniões dos diversos
classicistas
mencionados
como
passos
importantes
para
a
compreensão dos munera, passos que, se verificados à luz de outras
possibilidades,
podem
nos
indicar
pistas
de
análise
bastante
interessantes, se relacionadas e vistas como partes do complexo
85
Renata Senna Garraffoni, Gladiadores na Roma Antiga – Dos Combates às Paixões
Cotidianas, São Paulo: Fapesp/ Anablume, 2005, p.59- 90.
86
Renata Senna Garraffoni, Gladiadores na Roma Antiga – Dos Combates às Paixões
Cotidianas, São Paulo: Fapesp/ Anablume, 2005, 225p.
81
imaginário romano. Sabemos que ainda dessa forma não poderemos
supor “desvendar definitivamente” esse fenômeno complexo e amplo,
mas cremos ser possível identificar elementos que nos ajudem na
compreensão de parte da realidade vivenciada e expressa nos
combates de gladiadores no primeiro século da era cristã, e relacionálos com a estrutura narrativa do texto bíblico estudado, estabelecendo
um diálogo entre o texto e os munera.
2.2.1.
Além do Sangue: Princípios e Valores nos Munera
Um primeiro aspecto que chama a atenção com relação aos
munera é, como salientamos anteriormente, a violência dos combates,
e o fato de pessoas dos mais diferentes níveis sociais e culturais se
reunirem para assistir a tais demonstrações de violência.
Ao analisar os combates temos que ter em mente, porém, que
os conceitos de “violência” são relativos e dinâmicos, socialmente
criados, assim como a maioria dos conceitos morais que utilizamos.
Essa
ideia
pode
parecer
chocante
à
nossa
“sensibilidade
contemporânea”, mas não devíamos nos espantar, uma vez que
percebemos, mesmo em nossa época, que os padrões que definem
quais níveis de violência são “moralmente aceitos” são diferentes em
cada cultura, e são constantemente transformados. Portanto, para um
romano não consistia nenhum crime abandonar filhos indesejados (ou
filhas, na maioria das vezes) aos apetites dos animais na floresta, ou à
mercê de mercadores de escravos ou de quem as desejasse, nas
cidades87, da mesma forma que não é chocante em muitas sociedades
contemporâneas a prática de aborto, a doação de crianças indesejadas
para adoção ou a eutanásia.
87
Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da
Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1, p.23- 26.
82
Não podemos julgar com nossos padrões morais uma sociedade
formada e mantida através de princípios e valores militares rígidos,
como o era a sociedade romana, por encarar com naturalidade (e até
entusiasmo) a morte apresentada nos combates da arena, chamados
de “espetáculos”. Na verdade, a arena expressava, como veremos
adiante,
a
visão
de
mundo
e
os
valores
dessa
sociedade,
materializando-os e tornando-os palpáveis. Esses valores, inclusive o
conceito de morte e o significado da morte na arena, precisam ser
compreendidos, a fim de que possamos superar a ideia de que as
arenas eram apenas uma demonstração bizarra de sadismo.
Em sua origem, os munera eram ritos sagrados privados, uma
homenagem
oferecida
por
um
falecido
ilustre
e,
por
isso,
desempenhava uma função sagrada de comunicação com os deuses e
ao mesmo tempo de sacrifício ritual. Segundo essa idéia, o sangue
derramado nos combates servia para aplacar a ira dos deuses e tinha
um poder de manter a alma do falecido em segurança88. Ao
popularizar-se em Roma, os munera foram resignificados, e perderam
gradualmente grande parte desse caráter sacro, mas podemos crer
que seu significado “vicário” sempre esteve presente, sob outras
formas de compreensão e manifestação, embora as formas de culto, a
religião e a sociedade tenham mudado.
O aspecto de manutenção da ordem ou de vitória sobre o caos
adjacente ao rito acima descrito, por exemplo, pode ser encontrado na
idéia de soberania de Roma sobre seus inimigos, presente nos
combates em que os gladiadores eram prisioneiros de guerra vencidos,
ou através da apresentação e execução de criminosos (especialmente
criminosos políticos) que haviam perturbado a paz do Império, ou nas
demonstrações de superioridade diante da natureza e do mundo
88
J. Garrido Moreno, “El Elemento Sagrado En Los Ludi Y Su Importancia En La
Romanizaciòn Del Occidente Romano”, em Ibéria: Revista de La Antiguidad, ISSN
1575-0221, nº 3, 2000, p.51-82. Disponível em
http//www.dialnet.unirioja.es/servlet/articulo/codigo201019
83
“bárbaro”, quando animais eram caçados nas arenas. No Principado,
não havia mais sacrifício aos deuses ou aos ancestrais, mas um
“sacrifício” ao Império e ao Imperador (a quem também se devia
culto), para manutenção da paz e da ordem!
Com o desenvolvimento dos combates e a gradativa diminuição,
pelo
menos
oficialmente,
de
seu
caráter
sagrado/religioso,
os
combates passam a ser identificados pelo termo ludi89, assim como os
jogos circenses, as corridas de carros e o teatro. O caráter religioso
desses espetáculos nunca deixou de existir (como salientamos acima),
mas ao passarem a ser considerados como “jogos”, foram agregados
outros aspectos e significados aos mesmos, fazendo com que a
comunicação estabelecida nos combates se desse não apenas com a
divindade, mas entre as pessoas. Isso porque os jogos, em sua
natureza, eram uma forma de reprodução da relação que as pessoas
tinham com o mundo e, ao mesmo tempo, uma forma de poder, por
transmitirem ideais e valores compartilhados que deveriam ser
seguidos.
Esses valores, como mencionamos anteriormente, expressavam
os ideais em que a mentalidade romana estava alicerçada: virtude,
coragem, disciplina e paciência ou destemor diante da morte, além da
fama, da glória e da manutenção da paz e da ordem. Os munera, de
certa forma, criavam um paradoxo, pois os gladiadores, personagens
centrais nesses eventos, eram em sua maioria pessoas consideradas
infames pela sociedade: criminosos, prisioneiros de guerra. Mesmo os
homens livres que se “vendiam” para o trabalho na arena passavam a
ser considerados dessa forma. No entanto, ao adentrarem à arena, de
acordo com seu desempenho, poderiam adquirir “fama” e, de certa
forma, ser “aceitos” socialmente. O reconhecimento e a fama poderiam
vir tanto através da vitória como da derrota: se vencesse, o gladiador
poderia
89
construir
uma
“carreira”
que
lhe
daria
glória
e
Plural de ludus, palavra geralmente traduzida como “jogo”, que foi usada também
para identificar escolas de gladiadores, em que estes treinavam para os espetáculos.
84
reconhecimento;
se
perdesse,
mas
tivesse
lutado
bravamente,
90
demonstrado uirtus , poderia ser perdoado ou ter uma morte digna
(pela espada), concedida apenas aos cidadãos romanos.
O poder de decisão acerca do destino do gladiador derrotado
era, pelo menos teoricamente, da multidão. Acerca desse poder, há
muito a ser questionado porque a última palavra cabia, na verdade, ao
Imperador (ou seu representante) que era, no Principado, quem
oferecia o espetáculo.
Além do significado religioso e de expressão de valores morais
da sociedade romana, a arena funcionava também como símbolo dos
poderes políticos e da superioridade de Roma, responsável pela “paz” e
pela “ordem” que deveriam ser mantidas. Nesse sentido os munera
podem ser vistos como um meio de controle social e político, de
legitimação das estruturas sociais e como meio de coerção. A arena
serve para demonstrar o destino daqueles que se opõe de alguma
forma ao poder Imperial.
Essas significações presentes e adjacentes aos munera não
devem
ser
entendidas,
contudo,
como
percepções
totalmente
racionais, compreendidas pelas diversas pessoas que realizavam ou
assistiam aos espetáculos. Tampouco devemos pensar que tais
significações e percepções eram as mesmas entre pessoas de
diferentes classes sociais ou lugares. Por exemplo, a percepção que
um habitante da cidade de Roma acerca de um espetáculo e seus
valores adjacentes seria deveras diferente da de um habitante de
90
Virtus era um conceito que representava a integração de valores morais que
concediam ao homem a excelência global e a solidez de caráter que deveriam
caracterizar o “homem ideal romano”. Dentre as “virtudes” a serem desenvolvidas
destacavam-se a pietas (piedade) referente aos deuses, à família e à compaixão
com os vencidos, a fides (lealdade) relativa ao respeito aos pactos políticos, militares
e individuais e a gravitas (dignidade), que expressava o domínio de si mesmo, a
capacidade de enfrentar situações difíceis (inclusive a morte) com serenidade e a
emissão de juízos. Esses valores faziam parte do ideal da elite, e eram esperados
dos homens públicos, especialmente, mas de certa forma eram valores
compartilhados que faziam parte do imaginário popular como o perfil do “homem
ideal romano”.
85
Província. Temos que ter em mente que não apenas os significados
poderiam ser diversos, mas as formas de pensar acerca dos mesmos
seriam dinâmicos e diversos. Dessa forma, não podemos supor, por
exemplo,
que
os
valores
apresentados
como
fundamentais
à
mentalidade romana “oficial” (como o conceito de uirtus e o desejo de
recuperar a fama, por exemplo) fossem aceitos por todas as pessoas,
indistintamente. Podemos questionar quais ideias outras regiões do
Império – a Palestina, por exemplo – apresentavam acerca desses
valores.
2.2.2.
Os Munera e o Exercício de Poder
Voltando aos conceitos de “patronato” e “evergetismo” citados
anteriormente, e lembrando o papel ocupado pelo Princeps como o
maior benfeitor de Roma e supremo patrono, e dada a importância
simbólica e factual dos combates de gladiadores, o Princeps/Imperador
torna-se, desde Otávio Augusto, o responsável pelo oferecimento
desse tipo de espetáculo à população, assim como pela distribuição de
grãos à mesma, na cidade de Roma. Nas demais cidades e províncias
do Império, essa tarefa seria assumida pelos representantes do
Imperador, os governantes nomeados pelo mesmo91. Dessa forma, os
munera passaram a ser cada vez mais relacionados ao Estado
Romano, tanto no que se refere à sua realização como aos seus
significados, embora nesse caso as mudanças sejam mais gradativas e
diferenciadas, uma vez que dependiam de fatores subjetivos que
escapavam ao controle do Estado.
De qualquer forma, é interessante observarmos como os
processos de transformação caminham de forma semelhante: a
91
Ana Teresa Marques Gonçalves, “As Festas Romanas”, em Revista de Estudos do
Norte Goiano, volume 1, nº 1, ano 2008, p.51.
86
religião, outrora familiar e representada pelo “pai”92, que era o
sacerdote, foi se institucionalizando a ponto de, já no período da
República, passar a ser representada pelo Princeps da cidade e depois
pelo Imperador, assim como os espetáculos de gladiadores, que
outrora eram privados e oferecidos pelas famílias, depois pelo Princeps
da cidade e, finalmente, pelo Imperador, o Princeps de Roma!
Podemos, a partir dessa constatação, concordar com a historiadora
Ana Teresa Marques Gonçalves, “os rituais não são máscaras para o
poder, mas uma forma de poder”93, pois “num momento festivo ou
ritualístico se definem várias formas de interação e de relacionamento
social, criando-se hierarquias e estruturando-se formas de poder”94.
No período do Principado, cremos que essa manifestação de
poder realmente acontecia nos combates de gladiadores de forma
dinâmica, ao mesmo tempo manifestando o poder de Roma e do
Imperador e a participação ou intenção da plebe, da população. Em
outras palavras, cremos que as arenas eram espaços de transmissão
de ideias e ideais, de oferecimento de rituais e ao mesmo tempo de
confronto e conflito.
Do ponto de vista dos detentores do poder oficial, o fato de a
realização dos espetáculos ter sido assumido pelo Imperador já é
bastante significativo. Demonstra que havia consciência da importância
desses eventos e das possibilidades que os mesmos representavam –
possibilidades de construção e transmissão de ideias, de justificação e
manutenção das estruturas sociais. Embora não possamos dizer que
havia qualquer tipo de hegemonia no Império Romano, nem no campo
das ideias, os valores simbólicos compartilhados adjacentes aos
munera serviam para validar e fortalecer as ideias transmitidas neles e
através deles e, nesse sentido, deter o “controle” dos combates era
92
Numa Denis Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga – Estudos Sobre o Culto, o Direito,
as Instituições da Grécia e de Roma, São Paulo: Editora Hemus, 1975, p.188- 195.
93
Ana Teresa Marques Gonçalves, “As Festas Romanas”, em Revista de Estudos do
Norte Goiano, volume 1, nº 1, ano 2008, p.26.
94
Ibid, p.26.
87
deter o poder de influenciar e produzir idéias socialmente aceitas, o
que é, segundo Faversani, “elemento fundamental para a construção
de hierarquias e objeto de luta social”95. Em outras palavras, ideias são
poder, e as oportunidades de reafirmação e propagação dos valores
romanos presentes nos munera constituíam uma oportunidade ímpar
de exercício de poder.
Além disso, ao assumir o controle sobre os espetáculos sob as
estruturas do patronato, cria-se uma relação de benefício/dívida que
não pode ser ignorado. A ingratidão era um tipo de comportamento
intolerável. Por isso, ao aceitar um benefício, os compromissos de
reconhecimento e lealdade deveriam ser exercitados. Nesse caso,
embora
não
houvesse
também
hegemonia
nesse
aspecto,
especialmente durante os espetáculos, em que a aglomeração de
pessoas facilitava o anonimato e dava por isso a possibilidade de uma
manifestação mais livre por parte do público, talvez houvesse o desejo
de produzir aquele tipo de sentimento.
Acerca dessa possibilidade de manifestação, a percepção dos
munera como lugar de confronto e conflito significa que estas eram
ocasiões em que as pessoas poderiam manifestar-se diante dos
magistrados, dos nobres e do próprio Imperador. Ao mesmo tempo
que para o Imperador era uma forma de “testar” sua popularidade, as
pessoas podiam também manifestar-se. Em um contexto político em
que a participação popular havia se extinguido, como era o caso, e em
que o contato entre o povo e o Imperador (e mesmo os senadores)
havia
deixado
de
acontecer,
esse
encontro
era
uma
grande
oportunidade de manifestação, especialmente se destacarmos o fator
da facilidade de anonimato mencionado acima. Todavia, esse contato
não abalava de nenhuma forma o Imperador, que certamente se
resguardava de qualquer ameaça, e pode ser entendido como uma
95
Fábio Faversani, “Pequenos Impérios e Sociedade Na Roma Imperial”, em Fábio
Vergara Cerqueira e outros, Guerra e Paz No Mundo Antigo, Pelotas: IMP e
LEPAARQ, 2007, p.225. 223- 237p.
88
“liberdade concedida” exatamente com a intenção de demonstrar
“disponibilidade”
“acessibilidade”,
gerar
nas
pessoas
das
mais
diferentes classes e condições sociais um sentimento de pertencimento
ao glorioso Império Romano (que era negado no dia a dia à maioria
das pessoas) e inibir qualquer tentativa real de mudança, que seria
entendida como traição ao Império.
2.2.3.
Apresentando os Munera: Na Arena
Mencionamos acima que os combates de gladiadores, em seu
início, eram vinculados a funerais privados, oferecidos por grandes
famílias romanas, tornaram-se espetáculos públicos desde 264 a.C.,
popularizaram-se depois dessa data a ponto de serem considerados,
até hoje, como um marco e símbolo da civilização romana. Verificamos
também que tais espetáculos passaram a ser oferecidos pelos princeps
das cidades e que, a partir de Otávio Augusto, todos os combates
passaram a ser realizados em nome do Princeps de Roma, o
Imperador.
Procuramos
perceber,
dentre
a
imensa
gama
de
possibilidades interpretativas desse fenômeno, algumas possibilidades
de
compreensão
de
seus
significados
e
a
forma
como
esses
significados foram assimilados e utilizados na construção da identidade
romana. Falta-nos verificar, ainda, como aconteciam os espetáculos, e
o que era esperado num dia de “jogos gladiatórios”.
Primeiramente,
precisamos
diferenciar
os
munera
das
venationes. Os primeiros eram combates realizados entre homens
(eventualmente mulheres), relembrando batalhas do passado ou
fazendo parelhas de combatentes, enquanto as segundas eram lutas
entre animais ou caçadas realizadas nas arenas dos anfiteatros. Os
anfiteatros eram construções que poderiam ser desmontáveis (de
madeira) ou permanentes, de pedra, de formato oval, e recebem esse
89
nome exatamente porque correspondiam ao formato de “dois teatros”.
A
existência
de
anfiteatros
de
madeira
nos
indica
que
eram
espetáculos que poderiam ser transportados pelas mais diversas
regiões do Império, fato que nos ajuda a compreender melhor a
extensão do alcance desse fenômeno.
Nos anfiteatros, os lugares eram determinados e demarcados de
acordo com a classe social do público, sendo reservado, na primeira
fileira, o podium para o Imperador e seus convidados. Depois, havia as
arquibancadas (maeniana), divididas em andares. Os gladiadores, que
preparavam-se para os espetáculos em uma escola própria, formavam
grupos chamados de famílias, chefiadas por negociantes especializados
em combates. Na véspera dos combates, que eram amplamente
anunciados, participavam de um lauto banquete (cena libera) do qual o
público podia participar.
Desde
Otávio
Augusto,
os
espetáculos
passaram
a
ser
organizados e a seguirem um padrão. Pela manhã, por volta das nove
horas, aconteciam as matutina, com a apresentação das venatione –
os combates entre animais, combates de homens contra animais
(bestiari) e caçadas, como mencionamos anteriormente. Ao meio-dia,
no chamado meridiani, faziam-se execuções públicas de criminosos, e
apresentavam-se danças e competições atléticas. Finalmente, à tarde,
eram realizados os combates entre gladiadores, a parte mais esperada
do dia96.
Percebemos nessa estrutura dos espetáculos muitos valores e
significados
que,
como
vimos,
passaram
a
ser
usados
como
instrumento romano não apenas de propagação de ideias, mas de
manutenção da ordem e coerção, e nesse sentido chama a atenção a
inserção, nos eventos de combates, da realização das summa suplicia,
as penas capitais romanas destinadas às pessoas de mais baixa
96
Kyle D. G., Sport and Spectacle in the Ancient Word, Oxford: Blackwell, 2007, p.297298.
90
condição social, que se caracterizam por sua natureza expositiva,
ignominiosa e, ao mesmo tempo, exemplar e ordálica. Eram: a
crucificação (crux), um suplício servil (servile supplicium) que, além da
lenta agonia, tinha um sentido de exposição ignominiosa do corpo
perante a comunidade; a cremação (crematio), em que a pessoa era
queimada viva; e a arena (ad bestias), em que o réu era condenado a
enfrentar
sem
armas
feras
ou
gladiadores
armados.
Devemos
distinguir esse tipo de execução da condenação ad gladium ludi, que
era um tipo de condenação de um criminoso à arena para lutar com
outros criminosos, que não era exatamente uma pena capital, porque
o vencedor (ou sobrevivente) poderia conseguir perdão ou conseguir
uma morte “digna”, pela espada. Havia também a condenação ad
ludum gladiatorium, que obrigava o condenado a ser gladiador, como
um “trabalho forçado”, que também não representava uma pena
capital.
As summa supplicia eram as formas de morte mais dolorosas e
cruéis existentes no mundo romano, aplicadas, salvo raríssimas
exceções, apenas a escravos e a homens livres da mais baixa condição
social, especialmente em casos de crimes políticos que desafiassem a
soberania de Roma. Inserir essas execuções na estrutura dos munera
transforma esses suplícios em um espetáculo, ao mesmo tempo em
que transforma os munera num sistema eficaz de manutenção da
ordem sociopolítica e demonstração de poder, utilizando os valores e
significados
já
presentes
nos
combates
de
gladiadores
para
demonstrar a vitória sobre inimigos de qualquer tipo, internos e
externos, atualizando rituais e demonstrando a plenitude dos ideais de
força viril acalentados pela sociedade.
O ponto máximo do dia, entretanto, era o espetáculo da tarde, o
combate entre gladiadores, e é esse o momento esperado pela grande
maioria dos espectadores. É para essa hora que é esperada, inclusive,
a presença do Imperador ou seu representante. O público que se
91
reúne
na
arena
espera
um
grande
espetáculo,
com
duelos
emocionantes e justos, em que cada combatente dê o melhor de si,
demonstrando uirtus. Para que isso acontecesse, era preciso que
houvesse compatibilidade entre as armas e condições dos gladiadores,
e o público estava sempre atento à manutenção dessa “justiça”. Como
mencionamos anteriormente, a morte poderia fazer e por vezes fazia
parte do espetáculo, mas não necessariamente. Havia casos em que,
devido à grandeza da luta e pelo fato de ambos terem demonstrado
destemor diante da morte, as expectativas do público eram superadas
de tal forma que nenhum gladiador morria. Os munera eram eventos
que, além de carregar todos os significados acima expostos, deviam
satisfazer ao público, às expectativas das pessoas reunidas. O preço
para a frustração das expectativas era a morte daquele que havia
“decepcionado”.
2.3.
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PLEBE ROMANA
Começamos este capítulo apresentando alguns aspectos do
nascente Império Romano no primeiro século da era cristã, destacando
as mudanças políticas, sociais e culturais que esse período de transição
na forma de governos apresentou e algumas maneiras de inserção
utilizadas por Roma para tentar dar coesão às diferentes realidades
das terras conquistadas. Buscamos também apontar que esse processo
romano de extensão territorial e conquista não foi homogêneo nem
harmonioso,
acarretando
diversos
tipos
de
reações
entre
as
populações a quem se dirigiu. No que se refere à capital do Império,
Roma, muitas mudanças também acompanharam esse período –
mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais.
Até aqui, entretanto, apresentamos essas mudanças do ponto
de vista do poder imperial estabelecido, apesar de termos salientado
92
em diversas ocasiões, a complexidade dos fenômenos e situações
descritas, que implicam numa variedade de reações. Com relação aos
munera, destacado em nosso texto como um símbolo da cultura
romana e ao mesmo tempo abraçado e utilizado como símbolo de
poder e mecanismo para seu exercício, apontamos a presença de
pessoas das mais variadas classes sociais – especialmente dos setores
subalternos da população – mas cumpre-nos esclarecer quem seriam
essas pessoas e qual a importância de sua presença e manifestação
nos munera.
Durante séculos, tem se estabelecido a visão da população
romana (e aqui se destaca a população da cidade de Roma, capital do
Império, mas as visões acera da plebe são gerais) sendo composta por
uma massa amorfa, desinteressada pela política e pelo trabalho,
desejosa de “pão e circo”, de viver às custas do Estado e divertir-se.
Essa imagem, derivada da reprodução irrefletida das fontes da
antiguidade (fontes que representavam, em sua maioria, a visão de
mundo e a opinião das elites), foi propagada por classicistas dos
séculos 19 e 20, como mencionamos anteriormente, de forma bastante
simplista, homogeneizante e acrítica.
Dessa forma, a tendência de muitos estudiosos97 foi de
considerar sob o rótulo de “povo” todos os segmentos populares,
indistintamente. Bandidos, gladiadores, escravos, libertos e pobres em
geral eram vistos como pertencentes ao mesmo grupo e teriam,
portanto, a mesma visão de mundo e as mesmas ideias. Obviamente,
essa percepção desconsidera as particularidades de cada grupo
específico e as possibilidades de conflito entre os mesmos98.
97
Conforme Theodor Mommsen, História de Roma (Excertos). Rio de Janeiro: Editora
Opera Mundi, 1973; J. Carcopino, Roma no Apogeu do Império, São Paulo:
Companhia das Letras, 1990; J. N. Robert, Os Prazeres de Roma, São Paulo: Martins
Fontes, 1995; M. Rostovtzeff, História de Roma, Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
98
Precisamos ter em mente que a dicotomia simplista “elite/plebe” não corresponde à
complexa realidade do período. Além da divisão social entre cidadãos e não cidadãos
havia a divisão entre pessoas livres e não livres. Entre os “livres”, havia os livres de
nascimento e os libertos e, entre os cidadãos, também havia ordens: plebéia,
93
A respeito da possibilidade de conflitos, a opinião geral entre
esses pesquisadores, destacada por Veyne99, é a de que esses grupos
(ou esse grupo, a plebe) teria internalizado de tal forma os valores da
elite que as diferenças de classe e de condição social (de quem poderia
usufruir as benesses do Estado, os excedentes da economia e assim
por diante) era consideradas como naturais. Para esse autor, as
classes populares buscavam apenas beneficiar-se através das relações
pessoais do patronato, e os conflitos que poderiam advir seriam
devidos
a
essa
relação:
ou
conflitos
entre
clientes
pela
preferência/acesso ao patrono, ou conflitos entre clientes de patronos
diferentes para a ascensão de seu benfeitor e consequentemente
maior acesso aos benefícios do sistema.
Outro ponto salientado pelos estudiosos, nesse contexto, seria a
pretensa ociosidade do povo romano, que o levava a viver às custas do
Estado e dessas relações patronais, compreensão que deu extensão à
popular e errônea idéia de que o “povo” romano (como um todo)
andava ansioso apenas por “pão e circo”100, que eram oferecidos pelo
Estado na forma de doação de trigo e oferecimento de espetáculos
regulares, entre os quais se incluíam os munera.
eqüestre e senatorial. Além dessas divisões, havia as divisões econômicas entre os
grupos. A enorme gama de possibilidades de associação entre essas divisões nos
permite perceber a impossibilidade de simplificar a questão acerca da composição
social de Roma, bem como nos impede de pensar que não havia conflitos entre
esses grupos.
99
Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da
Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1, p.61-121.
100
A expressão deriva de uma Sátira de Juvenal, autor latino (62-67 a.C. a 130 d.C.,
aproximadamente), conhecido por seu tom pessimista acerca da sociedade romana,
que muitas vezes beirava ao trágico, com áridas críticas ao comportamento social e
descrição exagerada de cenas e personagens. Pelo fato de descrever situações
cotidianas em detalhes, os escritos de Juvenal tornaram-se referência para os
estudos modernos, especialmente por apresentarem informações acerca dos mais
baixos estratos sociais romanos, muitas vezes inexistentes em outras fontes.
Todavia, a tendência de desconsiderar as características estilísticas desses escritos e
deslocá-los de seu contexto tem criado interpretações simplistas e irreais, como
aparentemente é o caso da interpretação corrente dada à expressão acima.
Considerada em seu teor irônico e em comparação com o contexto maior da obra,
percebemos uma crítica à corrupção dos valores da sociedade como um todo,
especialmente com relação ao apego à riqueza. Existe de fato apresentação de uma
imagem negativa da plebs, mas esta encontra-se em um contexto mais amplo, cujo
significado é mais amplo do que o corrente e que merece ser melhor analisado.
94
Entretanto, essa visão despolitizada e totalmente dependente
acerca da plebe romana, assim como a ideia de que as pessoas das
classes subalternas da sociedade poderiam ser consideradas como um
mesmo grupo coeso precisa ser questionada. Embora percebamos que
havia uma visão pejorativa por parte das elites (de onde deriva a
maioria
das
fontes
escritas
do
período,
como
mencionamos
anteriormente) com relação a essas classes populares, essas mesmas
fontes indicam que tais pessoas eram socialmente ativas, possuíam
atividades rentáveis que proviam à sua subsistência e, ainda, tinham
um potencial político que poderia se manifestar.
Em sua tese de doutorado defendida em 2007, Luciane Munhoz
de Omena101 apresenta uma análise da visão do filósofo estóico Sêneca
(4 a.C – 65 d.C) acerca dos setores subalternos da sociedade romana
buscando desconstruir essa imagem de “plebe ociosa”, demonstrando
que
os
escritos
do
filósofo
apontam
os
trabalhos
e
ofícios
desempenhados por essas pessoas para sua manutenção. Embora o
filosofo apresente esses ofícios de forma bastante desdenhosa e
pejorativa,
assim
como
faz
com
as
próprias
pessoas
que
os
desempenham, constata-se que a suposta ociosidade do povo, embora
pudesse ser um ideal, defendido pela elite como condição para se
desenvolver
a
uirtus102,
não
era
a
realidade
dessas
camadas
subalternas da população.
101
Luciane Munhoz de Omena, Pequenos Poderes na Roma Imperial: O Povo Miúdo na
Ótica de Sêneca, Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em
História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Faculdade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Norberto
Luis Guarinello. São Paulo, 2007.
102
O ócio e a repulsa ao trabalho eram, no mundo romano, valores cultivados pela elite
e devidos aos cidadãos nobres, pois quem fosse obrigado a ganhar seu sustento
trabalhando, de acordo com essa opinião, não poderia desenvolver-se moralmente.
O trabalho era admitido para as classes mais baixas (pois era uma necessidade para
a manutenção do Estado e para a ocupação da plebe), mas eram separados em
categorias, pois havia atividades que poderiam ser exercidas pelos cidadãos pobres,
e outras que só deveriam ser executadas por não cidadãos. Conforme Paul Veyne,
“O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da Vida
Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1.
95
Segundo Omena, as palavras utilizadas por Sêneca em suas
obras para referir-se a essas camadas subalternas demonstram seu
desprezo e seu sentimento de superioridade: populus, plebe, turba,
humilli são palavras de conotação pejorativa, que indicam uma
multidão sediciosa, delinquente, insensata e autodestrutiva, associada
à mediocridade, à ira, à guerra e à luxúria103. No entanto, o mesmo
filósofo, ao aconselhar o Imperador Nero, orienta que o mesmo cultive
uma boa convivência com essas pessoas assim como com a elite, a fim
de obter a admiração, aprovação e fidelidade de todo o povo, coisas
sem as quais não poderia governar, pois por mais absoluto que fosse o
poder, não seria possível exercê-lo sozinho104.
Essas indicações nos levam a duas conclusões. A primeira é que
havia um desprezo pelas camadas populares por parte das elites
romanas (das quais Sêneca é representante). A segunda é de que
havia o receio de que essas camadas populares viessem a causar
problemas à administração do Império, realidade que não pode ser
ignorada.
Dizer que a população de Roma era composta por uma massa
despolitizada e amorfa mostra-se, portanto, como uma declaração
irreal.
A
vida
contradições,
e
e
a
cultura
essas
eram
da
população
sentidas
nos
eram
marcadas
seios
das
por
camadas
subalternas da sociedade. No entanto, devemos compreender que essa
percepção formava um paradoxo, pois as formas de manifestação
populares
não
eram
sistemáticas,
não
havia
a
elaboração
de
pensamentos “transformadores”, como nos acostumamos a pensar que
103
Luciane Munhoz de Omena, Pequenos Poderes na Roma Imperial: O Povo Miúdo na
Ótica de Sêneca, Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em
História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Faculdade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Norberto
Luis Guarinello. São Paulo, 2007, p.98.
104
Luciane Munhoz de Omena, Pequenos Poderes na Roma Imperial: O Povo Miúdo na
Ótica de Sêneca, Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em
História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Faculdade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Norberto
Luis Guarinello. São Paulo, 2007, p.67.
96
as manifestações políticas devem ser. Os elementos citados acima, que
compunham a visão de mundo acerca do que era a sociedade romana
compunham uma imagem permeada de sentidos simbólicos que
dificultava grandemente qualquer ideia de transformação. Ainda assim,
havia a preocupação, como apontado por Sêneca, de que o Princeps
mantivesse as coisas em ordem, não desagradando à população.
Dessa forma, consideramos que o oferecimento de espetáculos
era um instrumento usado com esse objetivo não porque as pessoas
fossem politicamente desinteressadas, mas ao contrário, porque
precisavam de um “paliativo político” que amenizasse a perda de poder
sentida (mencionada acima) com o estabelecimento do Principado e as
diferenças sociais e econômicas, dando a sensação ao mesmo tempo
de pertencimento ao grupo, de colaboração com a manutenção do
Império, de proximidade com o Imperador (quando presente aos
espetáculos) e de decisão, ao determinar o destino de um gladiador.
Percebemos que a compreensão acerca da plebe pode ser
comparada com o uso frequente da palavra
o;cloj utilizada por Marcos
na composição de seu Evangelho.
Pretendemos agora aproximar os dois “mundos” apresentados
até aqui: o mundo do Império Romano colonizador e dominador, e o
mundo da Palestina, periferia do Império e dominado, para ver que
relações o texto de Marcos tem com esses mundos, e qual a relação
entre o texto estudado, o Império Romano e, mais detalhadamente, o
fenômeno dos munera. Passemos, pois, ao próximo capítulo.
97
CAPÍTULO 3
O TEXTO DE MARCOS: REALIDADES E REPRESENTAÇÕES
“A minha alma tá armada e apontada
Para cara do sossego!
Pois paz sem voz, paz sem voz
Não é paz, é medo!
Às vezes eu falo com a vida,
Às vezes é ela quem diz:
‘Qual a paz que eu não quero conservar,
Prá tentar ser feliz?’
As grades do condomínio
São prá trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa prisão
Me abrace e me dê um beijo,
Faça um filho comigo!
Mas não me deixe sentar na poltrona
No dia de domingo, domingo!
Procurando novas drogas de aluguel
Neste vídeo coagido...
É pela paz que eu não quero seguir admitindo
É pela paz que eu não quero seguir
É pela paz que eu não quero seguir
É pela paz que eu não quero seguir admitindo!”
Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero)
Composição: Marcelo Yuka
Gravação: O Rappa
98
3.1.
Um Pouco sobre o Texto
3.1.1 Unindo o Texto e o Contexto
Nesse capítulo, pretendemos propor uma “conversa” entre o que
vimos a respeito do Evangelho de Marcos e o uso singular que este faz
da palavra
o;cloj no decorrer de toda a sua obra e o que descrevemos
acerca do Império Romano, especialmente acerca dos munera,
característica marcante e distintiva desse Império.
Sem nos afastar ou esquecer do contexto maior representado
pelo Evangelho de Marcos, estudaremos de forma especial o texto
apresentado no capítulo 15 versos 6 a 15 do mesmo, cena que
descreve a apresentação de Jesus a Pilatos e a entrevista entre ambos,
diante da multidão e dos líderes judeus, que termina com a
condenação de Jesus à morte. Nossa intenção será verificar, através
da
percepção
da
estrutura
narrativa
do
texto
e
de
seu
desenvolvimento, os papéis e funções atribuídos a cada personagem
do mesmo e a forma como esses personagens se relacionam para
conduzir ao desfecho da cena (a condenação de Jesus), dando especial
atenção ao papel atribuído a
o;cloj /multidão.
Paralelamente, pretendemos contrastar esses papéis e funções
atribuídos aos personagens da narrativa à estrutura dos munera e aos
papéis e funções atribuídos a cada grupo participante dessa prática
caracteristicamente romana: o Imperador, o público e os gladiadores.
Dessa forma, o texto de Marcos será compreendido como uma paródia
interdiscursiva que dialoga com a realidade e procura esclarecer e
subverter essa realidade através de uma proposta de inversão de
valores. Procuraremos perceber de que forma Marcos procurou inserir
o texto no contexto da dominação romana e da guerra judaica, e que
atitudes esperava despertar em seus ouvintes/leitores.
99
Sabemos que tal proposta é ousada, pois embora tenha sido
sugerida por outros pesquisadores105, não foi desenvolvida a contento.
Além disso, essa possibilidade de interpretação dá a todo texto de
Marcos
(e
não
apenas
ao
capítulo
15)
uma
interpretação
extremamente politizada, engajada e consciente, difícil de ser admitida
à primeira vista. No entanto, quando lemos esse Evangelho com
atenção e à luz do que conhecemos acerca da dominação romana,
percebemos o quanto o texto está marcado com referências e símbolos
do Império Romano e dessa dominação. Desde o nome do demônio
que aflige o jovem na cidade de Gadara (Legião)106 e o fato de pedirem
para
serem
enviados
aos
porcos
(animal
símbolo
das
legiões
romanas)107, as menções da grande admiração das pessoas a Jesus,
que poderiam ser comparadas (ou dar ensejo) à aclamação108
(lembrando a aclamação dos Imperadores romanos), referências aos
tributos a serem pagos a César109 e a própria cena da entrada de Jesus
em Jerusalém110, que pode ser comparada com uma cerimônia de
adventus do Imperador111, caminhamos no texto de Marcos com varias
indicações de presença romana, até chegarmos ao nosso texto de
estudo. Paralelamente a essas referências à presença romana, Marcos
faz também
o;cloj
caminhar em seu Evangelho, estando presente,
com suas expectativas, nessa cena crucial e determinante.
À
luz
dessas
observações,
a
proposta
de
que
o
texto
apresentado a seguir foi composto como uma paródia dos munera
105
Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.452.
A legião romana era a divisão fundamental do exército romano. Variavam entre
8.000 e 4.000 homens, dependendo das baixas que eventualmente sofressem nas
batalhas. Para além dos soldados, há que contar com os inúmeros servos, escravos
e seguidores que as acompanhavam.
107
Marcos 5,1-14.
108
Por exemplo: Marcos 1,28; 2,12, ente outros.
109
Marcos 12,13-17.
110
Marcos 11,1-11.
111
A cerimônia do Adventus era uma festividade romana celebrada quando o Princeps
visitava uma cidade. Tratava-se de uma cerimônia de recepção em que as ruas eram
enfeitadas com flores, tochas e incensos e o Princeps recebia as chamadas ovationes
da população (incluindo os nobres e soldados), que eram aclamações de aprovação
pelos seus feitos.
106
100
pode ser impressionante e ousada, mas tem de ser considerada como
uma possibilidade bastante plausível, que procuraremos demonstrar
nas páginas seguintes. Antes disso porém, convém conhecermos um
pouco melhor o texto de Marcos 15,6-15.
3.1.2 O texto de Marcos
Apresentamos abaixo o texto do Evangelho de Marcos capítulo
15, versos 6 a 15, conforme apresentado no Novum Testamentum
Graece, seguido de tradução própria, com a qual trabalharemos
adiante:
6.
Kata. de. e`orth.n avpe,luen auvtoi/j e[na de,smion o]n
parh|tou/ntoÅ
7. h=n de. o` lego,menoj Barabba/j meta. tw/n stasiastw/n
dedeme,noj oi[tinej evn th/| sta,sei fo,non pepoih,keisanÅ
8. kai. avnaba.j o` o;cloj h;rxato aivtei/sqai kaqw.j evpoi,ei
auvtoi/jÅ
9. o` de. Pila/toj avpekri,qh auvtoi/j le,gwn( Qe,lete avpolu,sw
u`mi/n to.n basile,a tw/n VIoudai,wnÈ
10. evgi,nwsken ga.r o[ti dia. fqo,non paradedw,keisan auvto.n oi`
avrcierei/jÅ
11. oi` de. avrcierei/j avne,seisan to.n o;clon i[na ma/llon to.n
Barabba/n avpolu,sh| auvtoi/jÅ
12 o` de. Pila/toj pa,lin avpokriqei.j e;legen auvtoi/j( Ti, ou=n
Îqe,leteÐ poih,sw Îo]n le,geteÐ to.n basile,a tw/n VIoudai,wnÈ
13. oi` de. pa,lin e;kraxan( Stau,rwson auvto,nÅ
14. o` de. Pila/toj e;legen auvtoi/j( Ti, ga.r evpoi,hsen kako,nÈ oi`
de. perissw/j e;kraxan( Stau,rwson auvto,nÅ
15. o` de. Pila/toj boulo,menoj tw/| o;clw| to. i`kano.n poih/sai
avpe,lusen auvtoi/j to.n Barabba/n( kai. pare,dwken to.n VIhsou/n
fragellw,saj i[na staurwqh/|Å
6.Durante (a) festa, soltava para eles qualquer prisioneiro
que pediam.
101
7.estava o chamado Barrabás preso junto com rebeldes112
que na rebelião cometeram assassinato.
8.e subindo113 a multidão começou pedir conforme fazia a
eles
9.Pilatos respondeu a eles dizendo: quereis que (eu)
liberte a vós o rei dos judeus?
10.Pois sabia que por inveja o entregaram os sacerdotes
11.(mas) os sacerdotes incitaram a multidão para que
Barrabás fosse libertado para eles
12.Pilatos novamente respondendo disse a eles: Que
então quereis que eu faça a quem chamais o rei dos
judeus?
13.Mas novamente gritaram: crucifica-o!
14.Pilatos disse a eles: que mal fez? Ainda mais gritaram:
crucifica-o!
15.Pilatos querendo satisfazer114 às multidões soltou para
eles Barrabás e entregou Jesus (para) ser açoitado,
para que fosse crucificado.
O texto de Marcos é, à primeira vista, claro e simples. Não
apresenta
dificuldades
relevantes
a
ponto
para
de
a
sugerir
tradução
alguma
nem
variantes
dúvida
acerca
textuais
de
sua
composição. No entanto, tal “simplicidade” não deve nos iludir, pois
apresenta uma estrutura complexa e bem montada. Os versos que
antecedem o texto estudado, a saber, Marcos 15,1-6, apresentam a
112
A palavra stasiastw/n, traduzida como “rebeldes”, não é encontrada em nenhuma
outra passagem do Novo Testamento, o que deixa seu significado bastante impreciso
mas, ao mesmo tempo, nos dá liberdade maior de interpretação sem
“pressupostos”. Advém da mesma raiz da palavra sta,sei, que traduzimos como
“rebelião” e que é usada poucas vezes no Novo Testamento, e cada uma delas com
sentido diferente: além de nosso texto, aparece em Atos 15,2 significando contenda
ou divergência, e em Hebreus 9,8 com sentido de permanecer, subsistir.
113
O aparato textual do Novum Testamentum Graece apresenta como variante e
conseqüentemente possível leitura a palavra Avnabohsaj particípio aoristo do verbo
Avnaboaw (gritar), que pode ser traduzida como “gritando”: e gritando a multidão,
começou a pedir...”. Nesse caso, dar-se-ia a impressão de que a multidão já estava
presente durante o processo de Jesus, e perder-se-ia a noção de movimento. Como
veremos adiante, cremos que isso seria improvável, do ponto de vista do processo
judicial romano ao qual Jesus havia sido submetido, bem como parece não condizer
com o movimento que Marcos da à cena, pois não há descrição da multidão entre os
presentes nos versos 1 e 2 do capítulo 15. Dessa forma, cremos que o texto utilizado
é de fato o mais coerente.
114
Literalmente, a tradução das palavras to. i`kano.n poih/sai seria ”fazer o suficiente”.
Contudo, trata-se de uma expressão que pode ser traduzida como contentar ou
satisfazer.
102
cena do julgamento de Jesus por Pilatos de forma curiosamente
paralela à estrutura da cena anterior de julgamento de Jesus diante
dos líderes judeus, o Sinédrio115. Não nos deteremos na discussão
acerca desses dois julgamentos, mas temos que observar que ambos
fazem parte de um plano narrativo formulado pelo autor e não podem
ser considerados casuais.
Percebemos que o julgamento de Jesus diante de Pilatos
acontece nos versos anteriores, em Marcos 15,1-5. Curiosamente,
porém, a cena do julgamento é interrompida para a introdução do
episódio de Barrabás. Dizemos que a cena foi interrompida porque, se
considerarmos que Jesus é submetido a um tribunal romano e a um
processo judicial romano, como Marcos descreve, esse processo é
interrompido antes do ato que o concluiria, a saber, a declaração do
veredicto e a aplicação da pena. De acordo com Joachim Gnilka116,
havia quatro princípios que assinalavam um processo judicial romano:
1) o julgamento é público; 2) a acusação, que é privada (de onde
entendemos que a multidão não estava presente em toda a cena); 3)
direito de defesa e 4) veredicto e proclamação da sentença, que é o
que terminava o processo.
Temos essa estrutura presente na descrição de Marcos: ao
amanhecer, os líderes judeus levam Jesus amarrado até o governador
romano Pilatos, que era o responsável pela administração da justiça.
Pode-se entender que o julgamento de Jesus não seria o único caso a
ser julgado naquele dia, e que Pilatos cumpria com sua obrigação
normal (não estava lá por causa de Jesus)117. Esse é o momento que
115
Marcos 14,53-64. O verso 65, integrante da perícope, forma também um paralelo
com Marcos 15,16-20, referentes ao escárnio e zombaria sofridos por Jesus,
primeiro por “alguns” (talvez os guardas do Templo) e depois pelos soldados
romanos.
116
Joachim Gnilka, Jesús de Nazaret – Mensaje e História, Barcelona, Editorial Herder,
1993, p.364-365.
117
Joachim Gnilka, Jesús de Nazaret – Mensaje e História, Barcelona, Editorial Herder,
1993, p.366. Considerando que a residência do governador era Cesaréia e que este
deveria estar em Jerusalém por conta da festa da Páscoa, é bastante provável que
houvesse vários casos para serem julgados, para “aproveitar” sua presença ou,
103
identificamos como a “instituição do processo” contra Jesus diante do
tribunal romano, e esse ato certamente foi público, ou seja, num local
aberto118.
Em seguida, acontecem dois momentos em que Jesus tem
oportunidade de defesa: nos versos 2 e 4. No primeiro momento, após
a pergunta (sarcástica, por sinal) de Pilatos: “És tu o rei dos
judeus?”119, Jesus responde (também com sarcasmo): “Tu o dizes”120.
Essa resposta de Jesus poderia ser considerada por Pilatos como uma
confissão, o que faria com que os outros atos do processo não fossem
necessários, mas Marcos relata que Pilatos não considerou dessa
forma, pois novamente questiona Jesus e lhe dá oportunidade de
defesa no verso 4, ao que Jesus não responde, demonstrando descaso
e desprezo que não teriam passados despercebidos por Pilatos121, e
que o teriam irritado muitíssimo, pois não era concebível ignorar o
governador romano, símbolo máximo do poder imperial naquela
região!
Entre as duas possibilidades (“desperdiçadas”) de defesa, o
verso 3 apresenta o que poderia ser considerado o testemunho da
acusação, realizado pelos sacerdotes. Nesse ponto a narrativa do
processo é interrompida, e só é retomada na parte final do verso 15:
“...
e,
após
mandar
açoitar
a
Jesus,
entregou-o
para
ser
crucificado”122. Aqui estaria marcado o fim do processo de Jesus: a
sentença/veredicto e a entrega à penalidade. No caso de Jesus,
condenado à crucificação, o flagelo anterior (açoites) fazia parte da
mesmo se assim não fosse, o costume era o de que os julgamentos romanos eram
feitos no alvorecer, nas primeiras horas do dia, o que combina com o relato de
Marcos.
118
Marcos 15,1.
119
Conforme tradução de João Ferreira de Almeida, 2ª Edição Revista e Atualizada,
publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.
120
Conforme tradução de João Ferreira de Almeida, 2ª Edição Revista e Atualizada,
publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.
121
Marcus J. Borg e John Dominic Crossan, A Última Semana: um relato detalhado dos
dias finais de Jesus, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p.143.
122
Conforme tradução de João Ferreira de Almeida, 2ª Edição Revista e Atualizada,
publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.
104
pena, e dessa forma compõe o castigo de alguém condenado por crime
político contra Roma e pertencente ao estrato mais baixo da população
(as penalidades romanas ao mesmo crime variavam de acordo com o
status do condenado).
Entre a condenação de Jesus, sugerida no verso 5, e o ato que o
declarava réu de morte no verso 15, entra em cena a multidão e
desenrola-se o episódio de nosso particular interesse.
Portanto, quando o verso 6 (e o texto que estudamos mais
detalhadamente) começa, Jesus já está julgado – já é um condenado
por crime político, pois as perguntas que Pilatos lhe dirige são a
respeito de uma suposta realeza que Pilatos com certeza não entende
como “espiritual”, mas como uma dentre tantas tentativas de
restauração do reino político de Judá (“És tu o rei dos judeus?”, em
15,2). Concluímos que a cena que se desenrola entre os versos 6 a 15
não é de julgamento, mas um relato acerca de uma suposta
oportunidade de anistia, de “não punição” pelo crime, e a comparação
com os munera não teria sentido se não fosse dessa forma.
Jesus e Barrabás são apresentados por Pilatos como iguais:
ambos já estavam condenados à morte, aparentemente pelo mesmo
tipo de crime: crime político contra Roma123. Porém, um deles poderia
alcançar a libertação através do “costume de libertar um prisioneiro”
que de acordo com o direito romano, segundo Gnilka, poderia
acontecer antes ou depois da proclamação do veredicto: sendo antes,
funcionaria como uma anulação do processo, sendo depois, seria a
anulação da sentença124. Veremos, entretanto, que existe uma
123
Embora no caso de Barrabás haja o agravante do assassinato, que parece ter sido
colocado para salientar a agressividade e violência de Barrabás e seu grupo e não
para alterar o tipo de crime cometido
124
Joachim Gnilka, Jesús de Nazaret – Mensaje e História, Barcelona, Editorial Herder,
1993, p.369. Esses dados, contudo, referem-se ao direito romano conforme
conhecido e praticado em Roma, e pode não corresponder à realidade das
províncias, em que os governadores assumiam o papel de máximo juiz e muitas
vezes agiam de forma diferenciada. Voltaremos a essa questão da “anistia” adiante.
105
problemática a respeito dessa “anistia pascal”, que tem levantado
muitas dúvidas a respeito da confiabilidade do texto de Marcos.
3.1.3
O
texto
como
realidade:
historicidade
ou
plausibilidade?
Ao trabalharmos com um texto da forma como temos feito,
tentando perceber seu contexto e os significados nele contidos,
precisamos estar atentos à realidade de que estamos diante de dois
períodos distintos: a época do autor do texto (em nosso caso, a época
de Marcos, descrita nesse trabalho) e a época que o texto representa
(o período anterior, em que Jesus viveu e morreu). Essa consciência é
imprescindível para evitarmos equívocos perigosos com relação à
interpretação do texto.
Como união de duas realidades o texto apresenta dados dos dois
períodos, que precisam ser identificados. Mesmo os dados referidos, os
dados do passado, que poderíamos chamar de “históricos” serão
lembrados e utilizados a partir da realidade do autor e não serão
neutros, mas interpretações e leituras do passado feitas pelo mesmo.
Marcos 15,6-15 é apresentado, dessa forma, como um relato do
encontro de Jesus com Pilatos acontecido certamente entre os anos 26
a 36/37 d.C. (período em que Pilatos governou a Judéia), mas sob o
ponto de vista e com elementos da realidade de Marcos, que escreveu
entre os anos 66 a 70 d.C. Apesar de crermos que muitos elementos
desses períodos distintos não eram diferentes, até porque o tempo
decorrido entre as duas realidades pode ser considerado breve, não
podemos confundir as épocas distintas.
Outro ponto que precisamos salientar acerca do relato de Marcos
é a discussão acerca de sua “historicidade” – ponto que desperta muito
interesse
de
pesquisadores
desejosos
de
saber
se
as
coisas
106
aconteceram exatamente como foram relatadas. Essa preocupação
demonstra, em nosso ponto de vista, uma dificuldade em compreender
o texto como composição literária complexa, que une elementos
selecionados do passado com a intenção do autor de transmitir uma
mensagem que transponha tal período e alcance sua própria época, e
tem sido fonte também de equívocos e de uma certa desconsideração
com o texto bíblico porque, em não se comprovando a “veracidade do
fato narrado”, o texto perde seu valor.
O que podemos saber de “concreto” acerca do relato de Marcos
é que Jesus foi crucificado por ordem do governador romano Poncio
Pilatos, conforme relatam fontes alheias aos Evangelhos, como os
historiadores Flávio Josefo e Tácito125, e que sua condenação obedeceu
aos preceitos de uma condenação romana destinada a culpados por
crimes políticos: a crucificação, certamente com todos os requintes de
crueldade que esse tipo pena representava.
Podermos afirmar tão pouco a respeito dos “fatos” não significa
que devamos desprezar o texto de Marcos (e tantos outros textos do
período) e considerá-lo sem valor histórico. Como documento, é certo
que o mesmo apresenta dados relevantes, mas estes devem ser
considerados à luz de sua intenção e de sua própria época, por isso é
preciso saber discernir os elementos presentes no texto e verificar
quais as possibilidades de as coisas terem acontecido conforme
relatado. Nesse sentido, o conceito de plausibilidade histórica passa a
ser mais importante que o de historicidade propriamente dita: não
podemos afirmar que as coisas aconteceram de determinada forma,
mas podemos tentar verificar, de acordo com os dados, quais eram as
possibilidades de acontecerem e, assim, podemos perceber melhor o
que foi apropriado pelo autor, de que forma e com que objetivo, bem
125
Haim Cohn, O julgamento de Jesus, O Nazareno, Rio de Janeiro, Imago Editora,
1990. p.16-17. O autor descreve as controvérsias acerca das obras dos referidos
historiadores, mas aponta as citações como passíveis de credibilidade pelo menos no
que se refere aos personagens.
107
como podemos discernir mais claramente aquilo que se trata de
criação literária sem vinculação histórica.
Acerca
do
texto
de
Marcos,
muitas
cenas
podem
ser
compreendidas a partir dessa perspectiva de plausibilidade, e uma das
que mais tem chamado a atenção – especialmente devido a uma
procura excessiva pela “historicidade” do fato, é a menção de Marcos
ao costume de libertar um preso na ocasião da Páscoa – a “anistia
pascal”. A dificuldade em encontrar paralelos históricos a esse
“costume” tem levado muitos pesquisadores a simplesmente negar
essa possibilidade e a considerar o texto como uma criação do
evangelista como recurso para transferir a responsabilidade da
condenação de Jesus para os judeus. Esse tipo de interpretação fere
aquilo que acreditamos ser o objetivo de Marcos, como veremos a
seguir126.
Queremos propor, pois, que a cena descrita pelo evangelista
seja considerada como uma possibilidade, como plausível, embora não
possamos afirmar se tal prática representaria um “costume” judeu,
romano ou pessoal (de Pilatos, como procurador), e qual a origem e
extensão do mesmo. A respeito dessa plausibilidade, Robert L Merritt,
em um artigo publicado no Journal of Biblical Literature127, apresenta
vários possíveis paralelos de origem babilônica, assíria, grega e
romana – todas vinculadas a ritos religiosos – como referências que
podem ter sido usadas para compor a idéia desse “costume”. Contudo,
o autor permanece na idéia de que tal costume foi usado no texto de
Marcos para eximir Pilatos e consequentemente os romanos da culpa
pela crucificação de Jesus, colocando a culpa de tal condenação na
126
Percebemos que a grande maioria dos comentaristas atribui essa cena da multidão
a uma tentativa de Marcos (utilizada posteriormente pelos outros evangelistas) de
eximir os romanos da culpa pela morte de Jesus, colocando a culpa unicamente nos
judeus. Verificaremos, no decorrer de nosso estudo, que acreditamos que a intenção
de Marcos foi exatamente contrária a esse ponto de e vista.
127
Robert L. Merritt, Jesus, Barabbas and the Paschal Pardon, em: Journal of Biblical
Literature,
vol
104,
n
1
(março
1985),
p.57-68
URL:
http://www.jstor.org/stable/3260593
108
multidão.
Esperamos
ter
deixado
claro,
contudo,
que
não
compartilhamos dessa opinião, uma vez que acreditamos que quando
a multidão entra na cena Jesus já está condenado, e que tal
condenação era prerrogativa apenas e tão somente do governador
romano. A multidão participará na escolha de um prisioneiro, já
condenado, para ser libertado, mas a condenação já havia pressuposto
a execução.
Gnilka trabalha com a possibilidade desse costume ser um
desdobramento dos preceitos do direito romano, e essa parece uma
idéia bastante interessante. Todavia, não podemos afirmar que o
direito romano, conforme apresentado por este autor, fosse executado
nas províncias ou, mais especificamente, na Judéia128.
Gostaríamos de agregar outra possibilidade, considerando os
elementos que conhecemos acerca da dominação romana e dos
munera, que podem nos ajudar a pensar essa cena e esse “costume”.
A dominação romana havia sido estabelecida e era executada
através
de
políticas
que
visavam
manter
a
“paz”
conquistada
militarmente, e que essa paz dependia muito da “fidelidade” (ou
submissão) das massas. Por isso, cremos que em todo o Império (e
não apenas em Roma), havia espaços de liberdade concedidos, ações
que visavam agradar às pessoas a fim de que estas não se
revoltassem. Em outras palavras, era preciso manter uma ilusão de
liberdade e de participação. As revoltas, sublevações e rebeldias,
embora pudessem ser e fossem passíveis de repressão e controle
militar, não eram desejadas e deveriam ser evitadas.
Considerando o contexto de dominação romana na Palestina e
as expectativas messiânicas sempre presentes em sua população, a
Páscoa, como a principal festa religiosa e também a de maior valor
simbólico – pois relembrava a libertação do antigo povo de Israel da
128
Joachim Gnilka, Jesús de Nazaret – Mensaje e História, Barcelona, Editorial Herder,
1993, p.369.
109
escravidão sob o Egito – era sempre um período perigoso, em que
afloravam os sentimentos de nacionalismo e de descontentamento
diante da dominação. Era um período em que os líderes deviam estar
atentos, por ser muito propício para revoltas populares. Conceder um
“espaço de liberdade” num momento assim pode ter consistido numa
estratégia empreendida pelo Império Romano, e não representaria
uma
fraqueza
por
parte
do
governador
romano,
mas
uma
demonstração (necessária) de habilidade política. Essa proposta pode
ser ainda mais interessante se considerarmos que a cena representa
um
múnus129,
pois
dentre
outros
significados,
os
munera
representavam uma forma desse tipo de concessão de liberdade, como
verificamos no capítulo anterior.
Assim, embora não possamos comprovar o citado (e debatido)
costume de libertar um prisioneiro na festa da Páscoa, podemos
considerá-lo como uma possibilidade bastante justificável naquele
contexto. Embora para nosso estudo de Marcos essa constatação não
fosse absolutamente necessária, uma vez que empreendemos uma
leitura do texto da forma como se apresenta, consideramos tal
verificação importante não apenas por propor uma alternativa à
compreensão do texto, mas por demonstrar o dinamismo do autor em
utilizar elementos “históricos” e elementos comuns de sua época para
compor sua narrativa, combinando-os a fim de transmitir sua
mensagem. Além disso, essa compreensão nos liberta da necessidade
de “comprovar” um texto antes de estudá-lo ou valorizá-lo, e nos
ajuda a respeitar o texto, seu conteúdo e sua intenção.
O texto é criação literária que apresenta fatos realmente
acontecidos (ou possíveis de terem acontecido), mas sob o olhar, a
perspectiva e seguindo a intenção do autor. Dessa forma, podemos
considerar o texto com mais liberdade, não descrendo de suas
129
Singular de munera
110
possibilidades de fornecer dados históricos, mas percebendo que o
mesmo não foi produzido para este fim.
3.1.4
Uma realidade por trás do texto
Quando estudamos um texto, seja este bíblico ou não, um dos
pontos comumente observados é a influência que o mesmo recebeu de
outras fontes e a forma como o autor do referido texto se apropriou e
usou essas fontes, que podem ser outros textos, tradições, obras de
arte ou situações. De certa forma, a procura por essas influências no
texto não nos é estranha. No entanto, a percepção de um nível de
transtextualidade como a que sugerimos ao texto de Marcos parecenos ainda desconfortável, por estarmos acostumados a valorizar aquilo
que nos acostumamos a chamar de “originalidade” e porque tal
perspectiva acerca do texto pode nos levar, novamente, a questionar a
“verdade” contida no mesmo.
Quando tratamos de um texto revestido com o caráter sagrado,
essa dificuldade em considerar a possibilidade de que o mesmo tenha
recebido influências alheias ou à verdade factual (ponto que discutimos
acima) ou à “inspiração” genuinamente divina aumenta. Contudo,
precisamos aprender a enxergar os autores bíblicos como o que de
fato são: autores, que têm uma mensagem a transmitir e que utilizam,
para isso, dos recursos disponíveis.
Por isso, nossa proposta é procurar a intertextualidade de
Marcos 15,6-15, e queremos esclarecer o que queremos dizer com
esse termo: trata-se de estudar, dentro do texto, os elementos
presentes de outro texto ou situação e como esses elementos se
relacionam. A intertextualidade pode se manifestar de diversas
formas: através de citações, alusões, plágios, paráfrases e paródias,
entre outras. Cada uma dessas formas de apresentar a “fonte” ou as
111
ideias que compõem o texto demonstra uma intenção, um objetivo
diferenciado.
Com relação ao texto de Marcos 15,6-15, o termo normalmente
utilizado (inclusive sugerido por Myers130) para compor o tipo de
relação entre o texto e a situação que o inspirou é paródia – um tipo
de relação textual em que os elementos de um texto (em nosso caso
de uma realidade paradigmática) são retomados e trabalhados com
novas e diferentes intenções, normalmente com o objetivo de inverter
os valores da obra original. Dessa forma, uma “paródia” não
representa uma repetição, mas uma “imitação com distância crítica”.131
A paródia propõe um processo de desconstrução e reconstrução
de ideias que tem como pressuposto que o ouvinte/leitor reconhecerá
a obra ou cena original (e consequentemente seus valores) e
compreenderá a inversão sugerida. Por isso, as alusões feitas através
da paródia devem ser conhecidas do público a quem esta deseja
alcançar,
caso
contrário
o
processo
de
comunicação
ficará
comprometido. Em nosso caso específico, por exemplo, podemos crer
que se Marcos construiu seu texto tendo como referência os munera, é
porque esperava que seus ouvintes/leitores reconhecessem tal alusão
e percebessem a inversão de valores proposta.
A paródia é, pois, um diálogo entre textos, ou entre realidades.
Diálogo crítico entre aquilo que é parodiado e a paródia. Pode ser
entendida como um recurso para a tomada de consciência, uma forma
de as pessoas perceberem sua realidade a partir desse diálogo, pois as
ironias e inversões características das paródias expõem ideologias e
valores muitas vezes não percebidos. Cremos que esse foi um dos
objetivos de Marcos ao utilizar esse recurso literário em um ponto
crucial de sua obra – ideia que concorda com nossa posição inicial de
que o texto de Marcos não é de forma nenhuma neutro, mas
130
131
Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.152.
Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, Lisboa, Edições 70, 1989. p.54
112
carregado de sentidos e intenções que vão se desenvolvendo e
esclarecendo no decorrer de toda a narrativa do Evangelho. Marcos
queria, com seu texto, “escancarar” a realidade diante de seu público.
Uma dificuldade que talvez se levante acerca dessa sugestão é
que o termo paródia tem sido normalmente identificado como
representante de um estilo burlesco, satírico ou cômico. De fato,
embora esse tipo de discurso (a paródia) seja muito mais antigo, foi
através da produção satírica latina que ganhou notoriedade. No
entanto, autores modernos têm percebido que esse fenômeno não se
ateve apenas a essas características burlescas, reconhecendo relações
intertextuais sérias – sugerindo para esses casos o nome de
transposição, como forma de diferenciação do termo paródia.
Para os objetivos desse trabalho, não nos cabe aprofundar
nessas
questões
literárias,
bastando-nos
reconhecer
essas
características críticas, subversivas e desafiadoras dessa forma de
discurso132, bem como sua existência em contextos que vão além das
sátiras e comédias133.
3.2
Os Personagens da Cena de Marcos
3.2.1 Sacerdotes, Escribas, Anciãos: A Nata da Sociedade!
Embora em seu ministério na Galiléia e adjacências Jesus tenha
gerado incômodo e conflito graças à sua postura e ensinamentos
(especialmente com os fariseus), é em Jerusalém que a ameaça de
132
Tratamos a paródia como forma de discurso e não como gênero literário por
entendermos tratar-se de um “metagênero”, que se serve de diversos recursos e
gêneros literários em sua composição.
133
Não podemos deixar de comentar que, mais uma vez, Marcos surpreende ao usar
um recurso que, como dissemos, se difundiu entre os romanos e foi consagrado na
literatura romana, especialmente no 1° século de nossa era. Já se comentou,
inclusive, que os romanos se especializaram em “imitar” a literatura grega, fazendo
isso não apenas através de paródias. Como exemplo, podemos citar a “encomenda”
que o Imperador Augusto fez a Virgílio para que escrevesse a Eneida, que deveria
ser uma epopéia “perfeita”, que superasse as obras do grego Homero.
113
morte começa a se configurar de forma mais real, através de outros
personagens: os sacerdotes, os anciãos e os escribas.
Esses grupos podem ser considerados como formadores da
aristocracia judaica, a elite da sociedade, e eram as pessoas que
compunham o Sinédrio, a principal instância nativa de exercício de
poder. Desenvolvem, de acordo com o Evangelho de Marcos, um ódio
mortal a Jesus, desejando, planejando e atuando de forma ativa em
sua prisão e morte.
Por
“principais
sacerdotes”,
expressão
muito
utilizada
em
Marcos, pode-se entender o Sumo Sacerdote que está ocupando o
cargo (na época de Jesus era Caifás), seus predecessores e os
ocupantes dos altos cargos sacerdotais, como o capitão e o tesoureiro
do Templo – na época de Jesus, todos cooptados e nomeados pelo
governo romano e obviamente colaboradores do mesmo134. Eram os
representantes da aristocracia religiosa, administradores da lei e as
pessoas autorizadas a determinar quem poderia participar da religião
e, consequentemente, de toda vida civil e social da Judéia (por serem
as
pessoas
responsáveis
pela
realização
dos
sacrifícios
e
pela
“declaração de pureza”). Certamente, esse grupo de sacerdotes de
Jerusalém não ficou feliz com as notícias acerca de um líder Galileu
que pregava o perdão e aceitação de Deus sem a necessidade de
sacrifício no Templo, pois esse ensino representaria não apenas uma
perda de autoridade, mas uma perda econômica significativa, dada a
importância do Templo nesse aspecto.
Os anciãos, por sua vez, eram os representantes da aristocracia
laica, e era um grupo formado por ricos chefes de família de origem
pura. Segundo Morin, o poder romano escolhia entre eles quem
responderia com sua fortuna pessoal pela entrada dos impostos
134
Giuseppe Barbaglio, Jesus, Hebreo de Galilea – Investigación Histórica, Salamanca:
Secretariado Trinitario, 2003, p.471-475.
114
devidos, determinados pelo Império135, fator que colocava sobre eles
uma preocupação grande acerca do controle da arrecadação e os
tornava rigorosos com seus concidadãos (em outras palavras, tornavaos exploradores de seus pares).
Os escribas podem ser considerados o grupo menos coeso
dentre os três. Formavam a aristocracia intelectual e, diferentemente
dos outros grupos, não eram todos ricos nem compartilhavam todos da
mesma simpatia pelo poder romano. Eram os especialistas na Lei e
acredita-se
que
muitos
eram
fariseus.
Dentre
os
grupos
que
compunham o Sinédrio, é o que mais frequentemente aparece no
Evangelho de Marcos, inclusive na Galiléia, e por isso devem ser
diferenciados – certamente, havia muitos escribas que não faziam
parte da elite, assim como muitos sacerdotes que não eram “os
principais”. Existia estratificação social e econômica mesmo entre
esses grupos representativos, e precisamos estar atentos a essa
realidade a fim de não cedermos à tentação das generalizações.
O Sinédrio era um conselho composto por esses três grupos,
responsável pela administração nativa, poder concedido pelo Império
Romano como forma de aliança com os povos dominados. Não
sabemos exatamente qual a extensão do poder do Sinédrio no tempo
de Jesus, nem podemos precisar sua composição exata, mas a
denominação aparece no texto de Marcos, como dissemos, como
instituição responsável pela sua condenação juntamente com a
instituição romana de poder.
Não vamos nos aprofundar acerca das causas que levaram esses
grupos a hostilizarem Jesus de forma tão radical, uma vez que cremos
que essa discussão seria assunto para uma pesquisa específica136, mas
135
E.Morin, Jesus e as Estruturas de Seu Tempo, São Paulo, Paulus, 1981, p.106.
Cremos não ser possível falar de apenas um motivo como a causa de tal hostilidade,
mas de uma confluência de razões, das quais citamos a “fama” de milagreiro de
Jesus e o conteúdo revolucionário de sua mensagem, especialmente no que se refere
ao Templo, a admiração que Jesus conquistara das massas, que poderia ser
considerado como fator de risco de sublevação e de conflito contra Roma, a atitude
136
115
podemos notar no decorrer da narrativa que esses personagens se
articulam e trabalham para alcançar a morte de Jesus:
•
Em Marcos 11,18 (depois da cena da “Entrada Triunfal” de
Jesus em Jerusalém), os sacerdotes e escribas procuram
um motivo para matar Jesus devido à sua influência sobre
a multidão (seria um medo político, de algum tipo de
“messianismo davídico” da parte de Jesus?);
•
Em 12,12 “eles” (aludindo aos principais sacerdotes,
escribas e anciãos) desejam prender Jesus, mas temem a
multidão;
•
Em 14,1 temos um planejamento para prender Jesus à
traição;
•
Em 14,10 o plano segue com Judas negociando a
“entrega” de Jesus com os sacerdotes;
•
Em 14,43 Judas “entrega” Jesus, acompanhado dos
representantes dos sacerdotes, escribas e fariseus;
•
Em 14,53 Jesus é conduzido ao Sumo Sacerdote e aos
principais sacerdotes, escribas e anciãos;
•
Em 14, 55 os principais sacerdotes e o Sinédrio procuram
um testemunho para condenar Jesus, o que fazem em
14,56-64
(num
julgamento
ou
tribunal
um
judaico,
recolhimento
seria
de
um
provas
primeiro
para
o
julgamento de Pilatos);
•
Finalmente, em 15,1, os principais sacerdotes, anciãos,
escribas e todo o Sinédrio entregam Jesus a Pilatos.
Na sequencia dessa série de aparições que configuram um plano
ardiloso para executar Jesus, diante da possibilidade de que Jesus
de Jesus com relação ao Templo. Contudo, como dissemos, a verificação dessas
percepções carece de pesquisa mais aprofundada, fora do âmbito deste trabalho.
116
fosse solto pelo apelo popular, devido à anistia pascal, os principais
sacerdotes incitam a multidão (a mesma que temiam, no texto
anteriormente citado) a pedir que Barrabás fosse solto. Interessante
percebermos que, no texto de Marcos, os principais sacerdotes não
pedem à multidão para crucificar Jesus, mas para soltar Barrabás! Era
óbvio que, como Jesus já estava condenado, como vimos acima, se
Barrabás fosse solto consequentemente Jesus seria executado, por
isso os principais sacerdotes, presentes à cena, não precisam desafiar
a multidão ou correr o risco de que esta se levantasse contra eles.
Conhecendo as expectativas da multidão e a fama de Barrabás, eles
ardilosamente “sugerem” que Barrabás fosse solto “de preferência”.
Embora os líderes judeus não simpatizassem com Barrabás nem
com a ideia de qualquer tipo de revolta contra Roma, consideraram
que Barrabás era menos nocivo e menos perigoso às estruturas de
poder do que Jesus, posição com a qual concordamos, e logo veremos
porque.
3.2.2
Durante
O representante do Imperador: Pilatos
séculos,
os
textos
dos
Evangelhos
tem
sido
interpretados sob um ponto de vista que apresenta Pôncio Pilatos, o
governador romano da Judéia entre os anos 26 a 36/37 d.C., como
uma pessoa fraca, indecisa ou neutra, que “lava as mãos” diante da
decisão
mais
importante
da
história,
para
mostrá-lo
como
“simpatizante” de Jesus e disposto a libertá-lo, tendo sido impedido
por ter medo da multidão, que pedia a condenação de Jesus. Um
estudo dos dados acerca de Pilatos, contudo, mostra que essas
interpretações estão longe de representar a verdade tanto acerca de
sua pessoa como acerca do mundo imperial romano.
117
Em primeiro lugar, precisamos entender que a figura do
governador era estratégica e fundamental para a manutenção do
sistema romano de dominação, o que torna inconcebível a visão de um
procurador ou governador romano fraco e comandado pelas multidões,
ou mesmo pelos líderes nativos (no caso, o Sinédrio). O governador
romano deveria apresentar-se como figura poderosa que pudesse de
fato representar o Império e o Imperador. Além disso, deveria
manifestar os valores romanos e estabelecer, junto às províncias,
alianças com as lideranças nativas que eram, juntamente com os
tributos e o poder militar, formas efetivas de estabelecer o controle
sobre essas regiões. Essas alianças obedeciam aos critérios do sistema
de patronato, anteriormente descrito, em que a troca de favores
deveria ser uma constante.
Especificamente no caso do governador Pilatos, todo histórico
referente à sua pessoa depõe contra a imagem fraca ou indecisa
tradicional: perdeu o cargo em 36-37 d.C. devido a inúmeras queixas
referentes às arbitrariedades de seu governo, e deixou uma imagem
descrita por termos como suborno, rapina, ofensas, execuções
sumárias (sem processo judicial), crueldade inaudita e intolerável,
criador
de
conflitos
que
poderiam
ser
evitados
se
exercesse
prudentemente o cargo. Essa “descrição”, atestada por historiadores
como Filón e Flavio Josefo, mostram a natureza dura e truculenta de
Pilatos, e uma certa falta de reverência e respeito para tratar dos
assuntos dos judeus137.
Apesar dessa reconhecida irreverência e crueldade de Pilatos,
que talvez colocassem mais dúvidas acerca da plausibilidade da
concessão da “anistia pascal”, algumas circunstâncias podem nos
ajudar a compreender e a perceber como factível a cena apresentada
pelo evangelista Marcos: o fato de já ter sido repreendido oficialmente
137
Gerd Theissen, Colorido Local, Contexto Histórico em Los Evangelios – Uma
contribución a la historia de la tradicion sinóptica, Salamanca: Ediciones Sigueme,
1997, p.189-211.
118
por Roma por sua má administração dos negócios da Judéia, e o
exemplo recente do que havia acontecido com Sejano, Prefeito do
Pretório e Cônsul138 na época do Imperador Tibério, que havia sido
condenado à morte devido a denúncias de violência excessiva,
execuções sumárias e traição139, podem ter feito com que Pilatos
percebesse ser o momento de demonstrar moderação e uma certa
simpatia para com o povo sob sua administração. Em outras palavras,
Pilatos não podia se dar ao luxo, naquele momento, de descontentar
nem a liderança nativa judaica nem a multidão, que poderia causar
uma sublevação que seria muito perigosa. Ele precisava mostrar
disposição em estabelecer um relacionamento forte com os líderes
judeus e, ao mesmo tempo, manter boas relações com o povo.
O evento do julgamento de Jesus, nesse contexto delicado, deve
ter sido uma situação difícil, pois colocou Pilatos numa posição em que
precisaria ser hábil o suficiente para ao mesmo tempo satisfazer as
expectativas dos dois grupos, que possivelmente não eram as
mesmas. E Pilatos consegue isso com a ajuda dos sacerdotes, dando à
multidão presente na cena a oportunidade de escolher entre dois
prisioneiros, contentando a multidão com a impressão de que era ela
quem decidia o destino de Jesus enquanto na verdade era sua vontade
(em aliança com os sacerdotes) que prevalecia, uma vez que era sua a
última palavra.
A interpretação corrente entre exegetas e biblistas de que
Pilatos demonstrou simpatia com Jesus ou que não queria realmente
condená-lo mostra-se longe de ser verdadeira. Pilatos não estava
138
Durante a República, os cônsules eram os mais importantes magistrados romanos:
comandavam o exército, convocavam o Senado, presidiam os cultos públicos e, em
épocas de "calamidade pública" (derrotas militares, revoltas ou catástrofes),
indicavam o ditador que seria referendado pelo Senado e teria poderes absolutos por
seis meses. Durante o Império Romano, o consulado tornou-se uma magistratura
puramente honorífica, mas ainda abria caminho para alguns cargos efetivos, como o
exercício de certos governos provinciais (proconsulado).
139
A morte de Lúcio Élio Sejano aconteceu em 31 d.C. Este havia sido considerado o
homem mais importante do Império, abaixo do Imperador, e seu “braço direito”.
Sua morte causou uma série de tumultos em Roma.
119
interessado em Jesus (ou em Barrabás), mas em si mesmo e na
manutenção de seu poder. Ardilosamente, apresenta diante da
multidão um outro prisioneiro, alguém que representaria, aos olhos do
povo, os ideais de libertação nacionalista que a época da Páscoa
despertava (era um revolucionário) e com isso consegue dissuadir a
multidão de qualquer menção a libertar Jesus.
Toda a narração de Marcos, nesse sentido, caminha para
demonstrar
que
a
libertação
de
Barrabás
com
a
consequente
condenação de Jesus contentou aos dois grupos: à liderança judaica,
representada pelo Sinédrio, e à liderança romana, representada por
Pilatos. Ambas estavam preocupadas e interessadas na manutenção de
seu poder e consideravam Jesus uma ameaça – para o Sinédrio, as
acusações estavam relacionadas à postura de Jesus anti-Templo e ao
messianismo e, para Pilatos, à sua postura anti imperial, representada
pela acusação “rei dos judeus” e pela postura de Jesus diante de sua
autoridade, como vimos acima. Dessa forma, podemos perceber que
Pilatos tem um papel central na crucificação de Jesus. Não é por acaso
que a morte de Jesus ocorre do modo típico de controle imperial
romano: Ele é crucificado, morte destinada às pessoas do mais baixo
estrato social e culpados de crimes políticos, o tipo de morte que, nas
províncias, servia como instrumento para dissuadir as idéias de
rebeldia patriótica e para causar terror140.
Pilatos não foi em nenhum momento “fraco” ou indeciso, mas foi
ardiloso e agiu em seus próprios interesses, de forma bastante
sarcástica (as perguntas que faz à multidão demonstram desprezo e
sarcasmo), trabalhando em favor de si mesmo e de seus aliados
políticos locais. Ao menos é assim que Marcos o descreve. E nesse
sentido, assume de fato uma posição que pode ser realmente
comparada à postura do Imperador quando concede à multidão, na
arena, o direito de decidir pela vida ou morte de um gladiador.
140
Giuseppe Barbaglio, Jesus, Hebreo de Galilea – Investigación Histórica, Salamanca:
Secretariado Trinitario, 2003, p.463-469.
120
3.2.3
Barrabás, Um Gladiador
Marcos introduz, nessa parte de sua narrativa, um novo
personagem, muito importante para a construção da cena e que tem
causado discordância entre os estudiosos do Novo Testamento:
Barrabás. Descrito por Marcos como um “rebelde” participante de um
ato
em
que
acontecera
um
assassinato,
esse
personagem
é
contraposto a Jesus e apresentado como uma opção de prisioneiro a
ser libertado. Marcos não nos aponta claramente a natureza da
“rebeldia” de Barrabás mas, considerando o contexto de escrituração
do livro, torna-se fácil supor algumas alternativas: ele poderia fazer
parte (ou representar) algum tipo de liderança revolucionária contrária
a Roma existente no tempo do evangelista (um zelota ou um sicário,
por exemplo141) ou ser um “mercenário” contratado por um membro
da elite como responsável por sua segurança, uma vez que diante das
constantes revoltas e ameaças (especialmente dos sicários), os
membros da elite judaica, inclusive sacerdotes, contratavam esse tipo
de serviço que, via de regra, gerava mais turbulência e violência. Na
verdade, não há como precisar a natureza exata do delito de
Barrabás142, mas Marcos parece querer salientar seu caráter violento
através da menção ao assassinato cometido. Diferentemente de Jesus,
independente da posição política de Barrabás (revolucionário contra
Roma ou contratado pela elite pró-romana), este havia realmente
cometido um crime (não era apenas uma ameaça contra o poder
imperial). Interessante também percebermos que a palavra usada por
Marcos para descrever seu crime, stasiastw/n/rebelde, é diferente da
usada para os ladrões ao lado de quem Jesus foi crucificado: lh|sta,j
141
Lembramos que essas categorias de revolucionários não existiam no tempo de
Jesus, mas no de Marcos. Talvez seja essa a razão de Marcos ter usado uma palavra
aparentemente “neutra”.
142
A palavra usada por Marcos para descrever a causa de sua prisão, traduzida como
“rebelde”, tem apenas essa aparição no Novo Testamento, o que torna difícil
sabermos com exatidão em que consistia essa “rebeldia”.
121
(literalmente “ladrões”, mas a palavra era usada para descrever os
“bandidos sociais” surgidos no 1º século, mencionados anteriormente
como aqueles que viriam a formar o grupo dos zelotas. Essa palavra
tem, obviamente, forte sentido social, e é significativo que Jesus esteja
literalmente entre eles!143).
Como
dissemos,
as
opiniões
acerca
desse
personagem
divergem, especialmente no que tange à “historicidade” de sua
existência e à identificação de sua pessoa. Nada é conhecido sobre ele
além de sua menção nos Evangelhos – e a primeira menção é
conseqüentemente a contida em nosso texto, uma vez que cremos ser
o primeiro dos Evangelhos a ser escrito.
Mais importante do que tentar verificar a historicidade de sua
pessoa
ou
sua
origem
é
significativo
percebermos
algumas
singularidades apresentadas por Marcos. Entre elas, chama a atenção
o nome do personagem: Barrabás (Barabba/j) é uma composição de
palavras aramaicas que significa algo como “filho do pai” – sugerindo
tratar-se mais de um título ou apelido do que um nome próprio. Esse
título, “filho do pai” é deveras significativo, tanto para a tradição
judaica quanto para o mundo romano no qual Marcos e a Palestina
estavam inseridos.
Tradicionalmente, temos aprendido que o termo Abba é usado
frequentemente por Jesus para referir-se a Deus como Pai. No
entanto, um estudo do Novo Testamento indicará que a palavra é
usada apenas três vezes, sendo uma delas pelo evangelista Marcos,
em 14,36144:
143
Aliás, essa é a mesma palavra usada na prisão de Jesus, em 14,48: “E
respondendo Jesus disse a eles: como contra um bandido saístes com espadas e
porretes para prender a mim?” (tradução conforme o Novo Testamento Interlinear.
Grifo nosso).
144
As outras passagens são Romanos 8,15 e Gálatas 4,6.
122
“E dizia: Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este
cálice; contudo, não seja o que eu quero, e sim o que tu
queres.”145
Essa passagem é a única em todos os Evangelhos em que o
termo é colocado na boca de Jesus146, exatamente em sua oração
angustiada nos momentos que antecedem sua prisão, e parecem
querer indicar ao mesmo tempo a relação de Jesus com Deus e sua
submissão a Ele e à Sua vontade. A passagem, de certa forma,
identifica Jesus como Filho de Deus, e é como tal que será preso e
chegará à cena do julgamento. Não nos parece casual que o nome do
condenado com quem Jesus é confrontado diante da multidão seja
chamado de “filho do pai”, e nossa pergunta é: se Marcos descreve
anteriormente Jesus como filho de Deus e Barrabás é “filho do pai”,
quem seria esse “pai” de Barrabás, a quem o mesmo representa?
Temos uma sugestão a essa questão que nos parece um tanto ousada,
mas plausível.
Somos conhecedores de que as sociedades tradicionais antigas,
não apenas a judaica, mas também a romana, obedeciam uma
estrutura familiar em que cabia ao pai toda autoridade sobre os
componentes da casa (não apenas familiares, mas também escravos).
Esse sistema, conhecido como patriarcado, era vivido nas esferas
pessoais e reproduzido nas esferas coletivas, e Roma é um grande
exemplo disso, especialmente a partir de Otavio Augusto, que
consagrou o imperialismo romano. A fim de que o acúmulo de poderes
que conquistou não soasse como tirania, e devido ao fato de o
imperador ser considerado como um benfeitor, que deveria “cuidar” da
população, da paz e da ordem, foi naturalmente atribuído ao mesmo o
título de Pai da Pátria. Em outras palavras, para a mentalidade
145
Conforme tradução de João Ferreira de Almeida, 2ª Edição Revista e Atualizada,
publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.
146
Consideramos que tal raridade pode dever-se ao fato de os Evangelhos terem sido
escritos em grego, e compreendemos isso com naturalidade. O que chama a
atenção, no caso, não é a ausência do termo nos demais Evangelhos, mas seu uso
por Marcos, o lugar escolhido para usá-lo e a seguinte composição do nome
Barrabás!
123
romana, um único homem passou a unificar e integrar a sociedade
romana, unindo cada família particular à grande família romana cujo
príncipe era o Pater Patriae147. Isso significava que o Imperador tinha
total autoridade sobre as pessoas de todo o Império, como um pai
teria sobre seus filhos, no sistema patriarcal e, ao mesmo tempo,
significava que as pessoas, os “filhos”, deveriam representá-lo e
honrar seu nome148. Os filhos deveriam representar os princípios e
valores do pai.
Pode parecer estranho falar do conceito de Pater Patriae na
identificação de um personagem de nome (ou epíteto) Barrabás, de
composição aramaica, mas não será tão estranho se considerarmos o
contexto em que esse nome está inserido (o confronto com Jesus, o
Filho de Deus), os valores que representa (rebelião, violência, revolta
armada) e o contexto romano do Evangelho de Marcos, que já
destacamos. Queremos dizer com isso que o Barrabás apresentado por
Marcos, apesar de ser judeu e de ter um nome genuinamente judaico,
representava os valores do Império Romano e de seu pai, o
Imperador: valores de poder pela violência. Dois filhos, representando
a visão de mundo e valores de dois “pais”. Esse parece ser o confronto
sugerido por Marcos ao identificar esse “rebelde” cujos valores, como
veremos, são preferidos pela multidão.
3.2.4
A última cena da multidão
O texto que estudamos apresenta a última aparição, no
Evangelho
147
de
Marcos,
desse
personagem
tão
marcante,
que
Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva
e Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva
Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad,
2006, p.42.
148
Essa seria, inclusive, a motivação (pelo menos inicial) do culto imperial, derivado
dos rituais antigos de cultos familiares em memória ou honra aos ancestrais!
124
acompanhou Jesus desde o início da narrativa. E essa despedida de
o;cloj
acontece de forma um tanto significativa, tanto pela repetição
da palavra – três vezes em um texto consideravelmente pequeno
(versos 8, 11 e 15), como por apresentar aparentemente uma postura
diferenciada
em
relação
a
outras
passagens
do
Evangelho,
especialmente no seu relacionamento com Jesus, como vimos no
primeiro capítulo deste trabalho.
Após uma pequena ausência da palavra
o;cloj
no período de
“estadia” de Jesus em Jerusalém (última referência acontecera em
12,41), o termo volta a ser usado de forma espantosa em 14,43
identificando a “turba” que havia ido prender Jesus a mando dos
sacerdotes, escribas e anciãos. O uso da palavra
o;cloj
nessa
passagem é realmente muito surpreendente, chega a ser chocante, e
não pode ser considerado como destituído de significado! Nessa
passagem da narrativa, a posição da multidão começa a ser diferente
da apresentada até então. Esta ainda “procura” Jesus, de certa forma,
mas não mais como mestre ou líder, uma vez que
o;cloj, nesse texto,
está liderada pelos sacerdotes, escribas e anciãos. No entanto, quando
chega diante de Jesus, essa “turba” apresenta atitudes contraditórias:
um dos presentes parece querer começar uma “revolta” sacando a
espada e ferindo um dos servos do sumo sacerdote e, ao final da cena,
Marcos descreve que “todos” (isso inclui
o;cloj
?) fugiram (ficando
provavelmente os guardas para levar Jesus ao Sinédrio). Temos a
descrição de uma multidão confusa, talvez em dúvida em relação às
suas expectativas (estimuladas pela época da Páscoa) e facilmente
influenciável, uma vez que aparentemente estava ao lado dos líderes
judeus no início da cena, mas se dispersa ao seu final, depois de
encontrar Jesus.
Em Marcos 15,8 a multidão/o;cloj reaparece para pedir a Pilatos
que cumprisse com o costume de soltar um prisioneiro, por ser a
125
Páscoa. De acordo com a estrutura do texto de Marcos, é possível que
a multidão não soubesse que Jesus estava entre os prisioneiros, que já
havia sido julgado (conforme vimos, nos versos 1 a 5 do capítulo 15) e
condenado à morte. A multidão se dirige ao palácio do governador
para pedir a libertação de qualquer preso, por causa do costume. Vai
literalmente a um “espetáculo” concedido pelo representante de Roma
para contentar a população dominada, pelo “presente de Páscoa”
concedido por Pilatos. Ao chegar ao palácio do governador, a multidão
encontra-se com os líderes judeus, que haviam ido entregar Jesus a
Pilatos, e é informada, talvez pelo próprio Pilatos, da presença de
Jesus.
Não podemos afirmar se no decorrer da cena Jesus e Barrabás
estariam presentes ou seriam apenas referidos. Marcos nos informa
que Barrabás já estava preso com outros rebeldes, mas Jesus havia
sido julgado há pouco e não há indicação a respeito dele, se
continuava ali ou não. Considerando que a cena se desenvolve no
palácio de Pilatos, cremos ser pouco provável que os condenados
estivessem ali, o que nos faz considerar a idéia de que a multidão não
estava vendo nem Jesus nem Barrabás. Os verbos utilizados no verso
15 para indicar a libertação de Barrabás e a entrega de Jesus aos
soldados (para a sessão de flagelos que antecedia a crucificação),
avpe,lusen/soltou e pare,dwken/entregou, estão ambos conjugados na
forma indicativa do aoristo, indicando mais um aspecto (o efeito da
ação) do que um tempo propriamente dito, e não podem ser
entendidos como ações que aconteceram ao mesmo tempo ou
exatamente na sequência do verso 14, mas como uma conseqüência
do mesmo.
Marcos continua descrevendo a cena com a opção dada por
Pilatos de libertar Jesus, diante do pedido da multidão. No entanto,
Pilatos faz isso de forma sarcástica e astuta, pois não se refere a Jesus
pelo nome, mas pelo suposto título que deu origem à sua acusação e
126
condenação e que refletia, para o Império Romano, um indício de
rebeldia e traição: rei dos judeus. É possível que essa referência de
Pilatos tenha despertado receio na multidão, que era certamente
conhecedora da crueldade do governador e de sua tendência a
represálias violentas. Embora esse medo de ser considerada como
traidora seja bastante plausível, e possa ser entendido como um
astuto recurso de Pilatos, o evangelista destaca o papel dos sacerdotes
(aliados dos romanos) influenciando a decisão popular: são eles que
incitam a multidão a preferir Barrabás. Em outras palavras, a escolha
foi dos sacerdotes, e foi adotada pela multidão.
De forma muito interessante, Marcos demonstra nessa cena que
a decisão final seria, de qualquer forma, de Pilatos. Ele não precisa
obedecer à multidão, assim como o Imperador não precisava aceitar a
opinião do público ao decidir o destino de um gladiador numa arena.
Mas, como o Imperador que quer contentar as massas, Pilatos quer
satisfazer à multidão, porque sua situação política o obriga a fazê-lo.
Como mencionamos há pouco, ele e os líderes judeus dirigem a cena a
fim de que a multidão pareça realmente participar ativamente da
decisão acerca da vida de Jesus, e assim esta decide algo que, na
verdade, já estava decidido.
Se de fato Jesus e Barrabás não estivessem presentes na cena,
o fato de a multidão ter sido tão facilmente manipulada pode ser
compreendida mais facilmente, pois poderia haver algum paralelo com
a postura descrita em 14,43, texto que demonstra posturas diferentes
da multidão quando longe de Jesus e influenciada pelo líderes judeus e
quando perto dele. Embora seja uma possibilidade relevante, cremos
que o fator determinante dessa postura da multidão deve ser
entendido
pelas
visões
de
mundo,
valores
e
expectativas
representados por cada um dos prisioneiros, que assumem os papéis
de gladiadores em um combate verdadeiramente ideológico, cujo final
demonstra não apenas a confusão da multidão, mas sua incapacidade
127
de superar expectativas ingênuas e irreais, o que a torna facilmente
influenciável. A multidão/o;cloj se despede do Evangelho de Marcos de
forma triste: como uma massa de pessoas influenciáveis e que se
contenta com os paliativos dados pelo dominador para apaziguar e
diluir seus anseios por transformação real, contentando-se, como
veremos, com idealizações ilusórias de transformação.
3.3
A Cena Montada: Um Munera
3.3.1
Colocando Os Personagens na Arena
Temos procurado demonstrar, até aqui, que Marcos estruturou
sua
narrativa
como
se
fosse
um
combate
de
gladiadores,
e
apresentamos, de acordo com o texto, alguns personagens da cena
descrita.
Percebemos
que
Pôncio
Pilatos,
o
governador
romano
e
representante do poder imperial, é apresentado como o Imperador ou
como o patrono. Ele é quem oferece o espetáculo (a libertação do
prisioneiro, que é o que atrai a multidão), e se comporta na cena como
aquele que de fato detém o poder, mas que permite à multidão a
decisão – uma decisão controlada, com limites estabelecidos, e que
não colocasse em risco sua autoridade.
O Sinédrio, principal instância de poder nativo, é representado
por seus componentes, escribas, anciãos e sacerdotes, que podem ser
entendidos como as elites que também freqüentavam os munera e que
demonstravam as polaridades sociais e as divergências de interesses
mas que, de certa forma, simbolizavam os valores da sociedade –
porque o conceito de uirtus, por exemplo, tão apreciado e desejado
nos gladiadores, era um conceito fundamentalmente elitista, não
alcançável pela plebe. Os sacerdotes representam, além disso, a
estrutura social e econômica judaica e a ideologia excludente do
128
Templo, fatores formadores de marginalidade, como vimos no Primeiro
Capítulo.
Além disso, temos a multidão, o grupo de pessoas tão queridas
e atendidas por Jesus durante toda a narrativa e que, neste momento
da mesma, posiciona-se contra Jesus. Apresenta-se na cena de uma
forma bastante paradoxal, pois tem a iniciativa de ir ao “espetáculo”
oferecido por Pilatos para pedir a libertação de um prisioneiro qualquer
mas, ao saber da situação de Jesus e ter a oportunidade de escolher
libertá-lo, escolhe Barrabás, motivada por líderes que na verdade não
a representava. Tal escolha aparentemente é feita de forma irrefletida,
ao calor das emoções.
Por fim, temos os “gladiadores”, Jesus e Barrabás, pessoas que
são “jogadas” na cena, que dela participam sem oportunidade de
escolha e alheios à sua vontade (ao contrário de todos os demais, que
estavam ali porque queriam!). Não são necessariamente inimigos, mas
representam posturas e propostas diferentes e conflitantes, visões de
mundo e modos de agir diferenciados que os identificam149 e que
determinarão a derrota de um e a vitória do outro. Essas duas
pessoas, transformadas na cena de Marcos em gladiadores, são
jogadas na arena montada por Pilatos e, como num combate real, têm
a oportunidade de lutar por suas vidas, cada um com suas “armas” e
seus recursos.
A idéia que esboçamos acima, de que ambos já eram, nesse
ponto da narrativa, prisioneiros condenados, combina com o que
descrevemos acerca do tipo de punição romana que condenava o réu a
combater na arena (ad ludum gladiatorium), e não pode ser
confundida com o outro tipo de condenação descrito como “espetáculo
sangrento” do summa suplicia. No primeiro caso, que cremos ser o que
Marcos descreveu, havia a possibilidade de o prisioneiro/gladiador
149
Cada um desses “gladiadores” já tem uma fama, já é conhecido por um tipo de
postura e comportamento!
129
conseguir, por seu desempenho, o perdão e a liberdade, depois de
sobreviver a certo número de combates. É possível ainda que Marcos
tenha aludido a
condenados
na
outra forma dessa
arena
para
lutarem
punição,
que colocava os
até
só
que
restasse
um
combatente, cujo destino seria decidido pelo Imperador ou pelo
público, se este lhe desse esse privilégio (ad gladium ludi). De
qualquer forma, ao fim do “duelo” apresentado por Marcos, um dos
gladiadores,
Barrabás,
recebe
a
liberdade,
enquanto
outro,
o
derrotado, é condenado à morte. Porém, essa morte não é a morte
“digna” que os gladiadores podiam conseguir por desempenhar um
bom combate, mas é um suplício humilhante e terrível: a cruz.
3.3.2
A arena e o duelo de ideologias
Jesus ou Barrabás?
Chegamos, finalmente, ao confronto entre os dois “gladiadores”
na estrutura montada por Marcos. Dois condenados são confrontados,
não por vontade própria, e entre essas duas pessoas se revelam
semelhanças e diferenças. De semelhante, verificamos o fato já
salientado de que ambos estavam presos e condenados por crimes
políticos, crimes contra a ordem romana. Os dois representavam
algum tipo de oposição e ameaça à ordem estabelecida.
No entanto, o que se destaca são suas diferenças, e são essas
que determinam o desfecho da cena. Barrabás representa um tipo de
revolta violenta e armada, condizente com a época de Marcos e
facilmente compreendida no contexto da Revolta Judaica em que o
texto está inserido. É um tipo real de oposição, conhecida e vivenciada
pelos ouvintes/leitores de Marcos, que provavelmente eram assediados
para que dela fizessem parte.
130
No entanto, conforme destacado na exposição que fizemos do
nome Barrabás, essa posição, embora direcionada contra Roma,
guardava os mesmos princípios e a mesma visão de mundo do
dominador:
a
vitória
pela
força,
imposta
pela
violência.
Não
representava nem desejava uma mudança na estrutura das situações
de injustiça, mas uma mudança de conjuntura: desejava inverter a
ordem de dominação, sem questionar as estruturas de poder. Deixar
de ser dominados e tornarem-se dominadores, sem questionar a
existência dessa estrutura que divide as pessoas entre esses grupos
(de dominadores e dominados). Nesse sentido, Barrabás era “filho” do
Império Romano: havia internalizado seus valores e sua forma de
conduta, e reproduzia isso.
Jesus, por outro lado, apresenta uma opção extremamente
radical, que é entendida por Marcos como mais perigosa, por atacar
exatamente a lógica e a estrutura do sistema de dominação. A revolta
proposta por Jesus é a do tipo que, embora pacífica, “não deixaria
pedra sobre pedra”, pois questionava a validade do sistema e
conscientizava as pessoas acerca de sua realidade e da necessidade de
estabelecer um novo tipo de postura no mundo baseado em relações
restauradas e em laços de solidariedade que tornassem as regras
estabelecidas obsoletas. Essa postura de Jesus, contudo, necessitava
de um nível de desprendimento das velhas formas de vida e de
comprometimento com o novo que a maioria das pessoas (que
o;cloj)
não pode compreender ou assumir.
De fato, o tipo de revolta proposto por Barrabás permite um
comprometimento “em massa” e promete “resultado imediato” para si
mesmo,
diferente
da
proposta
de
Jesus,
que
tem
que
ter
comprometimento pessoal em prol da comunidade, e que não promete
soluções imediatas.
Essas eram as propostas de cada um dos dois gladiadores, e é
por essas propostas e visões de mundo que ambos se faziam
131
conhecidos. Quando são confrontados, são seus ideais e sua visão de
mundo que duelam, e é a partir deles que seus destinos – e o destino
da Judéia – serão determinados.
A multidão escolhe libertar Barrabás, dá a ele a vitória do duelo
e condena Jesus à morte. Por quê? Porque a postura de Jesus é lida e
entendida como fraqueza, ele é visto como alguém que se recusa a
lutar – e de fato se recusa. Jesus não apresenta um bom espetáculo,
não é um bom gladiador porque não assumiu as armas e as formas
imperiais e correntes nem de submissão nem de revolta. Mereceu
morrer porque não demonstrou uirtus. E a multidão fez o seu papel:
escolheu de fato o melhor gladiador, de acordo com suas expectativas.
Dissemos anteriormente sobre a postura contraditória e confusa
da multidão, sobre sua tendência de procurar Jesus para satisfazer
suas necessidades e desejos. Conhecemos um pouco de sua situação
de extrema opressão e os desejos de liberdade e justiça que
alimentavam,
bem
como
suas
expectativas
messiânicas
que,
certamente, foram depositadas em Jesus. Na Galiléia, a multidão havia
tido suas expectativas satisfeitas por Jesus, e é muito provável que
acreditasse que Jesus estava indo para Jerusalém para “completar”
essas
expectativas
através
da
reivindicação
messiânica
(afinal,
Jerusalém era o lugar ideal para isso). No entanto, diante da postura
de Jesus em Jerusalém, a multidão se frustra, talvez percebendo que
Jesus não assumiria o papel de messias, rei ou revolucionário que esta
desejava.
Cremos, portanto, que o que determina a escolha da multidão,
no Evangelho de Marcos, é sua frustração. A multidão esperava que
Jesus apresentasse uirtus, a “virtude” romana, com os padrões
romanos, como Barrabás o fez. A multidão crê que é possível derrotar
o Império com as mesmas armas, que é possível acabar com a
opressão
com
uso
de
armas
que
oprimem
e
matam,
e
não
132
compreendem
o
fato
de
Jesus
recusar-se
a
apresentar
tal
comportamento.
Ironicamente, se para os líderes judeus, ricos, aliados de Roma,
beneficiários do sistema de dominação e opressão, Jesus era mais
perigoso do que Barrabás, para a multidão oprimida, desesperada e
explorada, ele não correspondia às expectativas. Talvez porque os
líderes compreendessem que a transformação proposta por Jesus era
muito mais efetiva do que a de Barrabás... E talvez seja por isso que
Marcos quis apresentar essa cena dessa forma:como um múnus, como
um combate tipicamente romano em que se revela o que está por trás
das ações: os valores e princípios.
No duelo montado por Marcos, inegavelmente Jesus perdeu. Ele
recusa-se a demonstrar as virtudes desejadas pelo Império, que são as
mesmas desejadas pela multidão. Jesus perde porque, depois de
acompanhá-lo em todo seu ministério, a multidão continua tendo os
mesmos valores, desejando as mesmas coisas, continua sendo
o;cloj.
133
Para Concluir...
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Ente eles, considere a enorme realidade,
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas suicida.
Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
A vida presente.
Carlos Drummond de Andrade
Começamos nossa pesquisa motivados por um questionamento:
por que a postura da multidão, identificada pela palavra
o;cloj
e bem
definida como personagem importante no Evangelho de Marcos, muda
tão radicalmente no final do Evangelho? Se, como temos verificado, o
termo refere-se a um personagem que aparece acompanhando Jesus,
recebendo seus ensinos e seus milagres, tendo sua atenção e cuidado
e demonstrando prazer em sua companhia e admiração ao seu ensino
a ponto de querer fazê-lo rei, qual a explicação para tal mudança?
Será que a explicação corrente de que a multidão, como “massa de
134
manobra”
foi
manipulada
pelos
líderes
judeus
é
satisfatória
e
convincente?
Ao longo de nossa pesquisa, percebemos que as questões
acerca da postura e da identidade de
o;cloj/multidão
são muito mais
complexas do que pensávamos de início, e esperamos ter demonstrado
um pouco dessa complexidade na verificação de que o termo, no
Evangelho de Marcos, é usado de forma relacional, não significando
uma classe social propriamente dita, mas representando uma postura
diante da vida e das pessoas – postura marcada pelo anonimato, pela
procura da satisfação de suas próprias necessidades e interesses,
muitas vezes assumindo posições que atrapalham o desenvolvimento
do ministério de Jesus. Percebemos também que, paradoxalmente, as
pessoas que compõem
o;cloj
são identificadas pela possibilidade –
possibilidade de emergir da multidão, ser identificadas e transformadas
em sua visão de mundo e em sua postura. Muitas pessoas, no decorrer
da narrativa de Marcos, passaram por esse processo, saíram da
multidão e tornaram-se seguidoras de Jesus.
Ao verificar essa complexidade, percebemos que trabalhávamos
com a questão errada. Marcos não apresenta, no capítulo 15 de seu
Evangelho, uma postura diferenciada da multidão. Ao contrário, o
“problema” reside no fato contrário: apesar de conviver com Jesus, de
receber seu ensino, atenção e milagres,
o;cloj não mudou! Deveria ter
mudado. Poderia ter mudado, mas não mudou. Por isso, ao final do
evangelho, suas expectativas e sua visão de mundo continuam as
mesmas
do
início:
satisfação
de
suas
necessidades
imediatas,
esperança de que um líder resolveria imediatamente todos os
problemas
relacionados
à
opressão
e
injustiças
expectativas não transformadas é que levam
Barrabás em detrimento de Jesus.
sofridos.
o;cloj
Essas
a escolher
135
Saímos, portanto, do “lugar comum” que tende a enxergar
o;cloj
de forma simplista, vendo-a como composta por pessoas
ingênuas que, devido à sua simplicidade, são facilmente induzidas ou
influenciadas. A multidão de Marcos não é assim: é composta por
pessoas reais, nem totalmente boas nem completamente más, pessoas
que vivem em realidades complexas e que têm desejos egoístas
(muitas vezes motivados pelo desespero), mas também têm grandes
possibilidades. Não são vítimas nem vilões, mas podem ser as duas
coisas, conforme suas escolhas. Quando falamos anteriormente que a
multidão foi influenciada pelos líderes judeus para escolher a libertação
de Barrabás o que queremos dizer é que os líderes conheciam as
expectativas dessa multidão e trabalharam com aquilo que sabiam que
já estava em sua mente e visão de mundo. Não teriam tido êxito se,
em vez de
o;cloj tivessem encontrado seguidores comprometidos com
Jesus, por mais “humildes” que esses seguidores pudessem ser.
Entendemos,
portanto,
que
Marcos
apresenta,
em
seu
Evangelho, duas possibilidades de relacionamento com Jesus, dentre
as quais seus ouvintes/leitores teriam que escolher: continuar na
multidão, ou sair dela e tornar-se discípulo ou seguidor de Jesus.
Nesse caso, há necessidade de transformação da visão de mundo e
das expectativas a fim de poder compreender a proposta de
transformação de Jesus, seus compromissos e riscos, pois não há
garantias de satisfação pessoal, mas compromisso com a missão
restauradora de Jesus. A diferenciação apresentada no Capítulo 1 entre
os discípulos (ajudadores de Jesus) e a multidão (ajudados por Jesus)
ganha uma significação ainda mais profunda, pois Marcos não nega a
presença sempre constante da multidão, e desafia sua comunidade a
ter a mesma postura que Jesus teve, apesar da inconsistência da
mesma. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, desafia sua platéia a que
se posicione.
136
Esse posicionamento ganha definições políticas definidas, que
devem ser também compreendidas. Marcos apresenta a postura
antiimperialista de Jesus de forma clara. Seu Evangelho, como vimos,
está repleto de referências críticas à dominação romana e procura
desvendar os mecanismos dessa dominação, assim como o faz com a
dominação econômica, ideológica e religiosa exercida pela liderança
judaica. Mas o tipo de resistência de Jesus é diferente de tudo que sua
comunidade conhece.
Em um contexto de guerra, em que sua comunidade estava
sendo desafiada a tomar um posicionamento ou de alienação e
separação total (como os essênios, por exemplo) ou de aceitar e fazer
parte da revolta armada, o Jesus de Marcos apresenta outra opção:
resistência
pacífica
baseada
na
restauração
das
relações
de
solidariedade e ajuda mútua que caracterizavam o antigo Israel. Jesus
propõe o Reino de Deus como uma realidade em que não existam
dominadores e dominados, mas ajuda mútua. Marcos entende que
qualquer tentativa de rebelião armada seria suicida (como de fato foi)
e, ao mesmo tempo, sabe que o conformismo e a alienação
sedimentariam cada vez mais a situação de injustiça e opressão.
Nenhuma dessas duas posturas representaria o compromisso com
Cristo e os valores do Reino.
Dessa forma, entendemos a opção de Marcos em estruturar o
texto do confronto entre este e Barrabás da forma como o fez: como
um munera, um evento símbolo da dominação romana, certamente
conhecido e facilmente reconhecido por seus ouvintes/leitores. Os anos
de dominação romana, o convívio com soldados romanos na capital e
no interior da província, o esforço das lideranças nativas em agradar
ao Império e propagar seus valores certamente haviam dado à
população
a
oportunidade
de
conhecer
esse
fenômeno
tão
característico e carregado de significados, que seriam percebidos pela
sua comunidade. Mais do que isso, o confronto entre a ideologia
137
imperial “disfarçada” de nacionalismo, representada por Barrabás,
certamente provocariam o choque e a compreensão dos valores
expostos na atitude de Jesus: não adiantava querer opor-se ao
dominador com as mesmas armas do mesmo (até porque ele seria
muito mais forte), não adiantava querer mudar apenas a conjuntura e
inverter os papéis entre dominadores e dominados, exploradores e
explorados. Era preciso ir além: questionar e derrubar as estruturas, o
modo de pensar e se posicionar que faz com que seja necessário
existir essas divisões.
Jesus perde o duelo porque quer. Ele deliberadamente assume o
risco de sua atitude, e não se pode dizer que tenha morrido
“injustamente”, diante das posições que assumiu. Em sua morte, não
há mal entendido ou equivoco, pois Jesus morreu por aquilo que havia
decidido ser, pelo que era, por suas decisões e valores, pelo “Pai” que
representava. Na cena descrita por Marcos, sua recusa em participar
do confronto com as mesmas “armas imperiais” determinaram sua
morte, porque isso significaria ter que internalizar os valores do
Império, e isso Jesus não faz. Sua atitude, que poderia ser lida como
fraqueza, como falta de uirtus, demonstra na verdade uma coragem
radical que não é compreendida pela multidão: coragem de manter
sua identidade e o projeto do Reino de Deus pelo qual vivera.
E esse é o confronto máximo no qual a comunidade de Marcos
também estava inserida e devia posicionar-se. Assumir os riscos do
discipulado seria assumir uma identidade diferenciada da multidão,
sair de
o;cloj e estar disposto a correr os riscos.
Mas, em Marcos, os seguidores de Jesus também não estão
presentes, também o abandonam... Fugiram como “todos”, na cena de
sua prisão (Marcos 14,50). Também são apresentados como humanos,
também têm medo e ficam confusos. Mas há uma diferença em Marcos
– uma diferença crucial: o abandono não é a palavra final. Os
discípulos reaparecem, depois da ressurreição, no chamado de Jesus
138
para que se encontrem com ele na Galiléia – onde tudo começou.
Porque com os discípulos, com os seguidores, o relacionamento
continua mesmo diante da frustração, dos riscos e dos fracassos. Isso
é compromisso, assumido apenas por quem tem coragem de sair de
o;cloj e aprender novos valores e nova forma de viver.
Terminamos esse trabalho com uma certeza: não chegamos à
verdade. Apenas demos mais um passo em direção à compreensão de
um texto que procurou revelar a importância do fenômeno Jesus em
uma realidade complicada, cheia de injustiças, conflitos e gente aflita –
realidade como a nossa. O esforço do Evangelista Marcos em
compreender sua realidade e ao mesmo tempo torná-la compreensível
aos seus ouvintes/leitores, apresentando Jesus e o Reino de Deus
como a verdadeira solução nos desafia a dar mais um passo: seguir
seu exemplo!
“Podemos, dessa maneira, distinguir dois tipos de busca da
verdade. O primeiro é o que nasce da decepção, da incerteza e da
insegurança e, por si mesmo, exige que saiamos de tal situação
readquirindo certezas. O segundo é o que nasce da deliberação ou
decisão de não aceitar as certezas e crenças estabelecidas, de ir além
delas e encontrar explicações, interpretações e significados para a
realidade que nos cerca”150.
150
Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo: Ática, 2000, p.114-115.
139
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