UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Entre Jesus e Barrabás: realidade, expectativas e a escolha da multidão em Marcos 15,6-15 por Ruthe Ventura Cuesta São Bernardo do Campo 2009 2 UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Entre Jesus e Barrabás: realidade, expectativas e a escolha da multidão em Marcos 15,6-15 por Ruthe Ventura Cuesta Orientador: Dr. Archibald Mulford Woodruff Dissertação apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, para obtenção do grau de Mestre. São Bernardo do Campo 2009 3 FICHA CATALOGRÁFICA 4 BANCA EXAMINADORA Presidente 1º Examinador 2º Examinador 5 Aos meus pais, Ana e Carlos (in memoriam), por construírem as bases para eu ser quem sou... Ao Juan, à Joana e ao Arthur, e às demais (muitas) crianças de minha vida, por me fazerem desejar ser melhor, e por me mostrarem que isso é possível... Ao mais do que professor Archibald, por não desistir de acreditar (às vezes mais do que eu mesma), que entre esses tempos, no hoje, existe alguém “suficientemente bom”... Com meu carinho. 6 AGRADECIMENTOS Seria impossível agradecer a todas as pessoas que direta ou indiretamente colaboraram para a elaboração deste trabalho, uma vez que este é fruto da vivência cotidiana e do relacionamento com cada pessoa que fez ou faz parte de minha vida. Por isso, gostaria de agradecer às muitas pessoas que não serão nominalmente citadas, mas que fazem parte da construção deste trabalho. Contudo, alguns agradecimentos especiais são necessários: Ao Prof. Dr. Archibald Mulford Woodruff, meu orientador e amigo, pelo incentivo, dedicação, carinho e paciência trilhando esse caminho... Acima de tudo por ser exemplo de pessoa e de cristão que nos incentiva a caminhar... Aos professores do Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, especialmente aos professores Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira, Dr. Paulo Roberto Garcia e Dr. Jung Mo Sung, pelo conhecimento compartilhado... À Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, especialmente ao Presbitério São Paulo, do qual tenho a alegria de fazer parte, pelo apoio desde os primeiros passos... Ao Seminário Teológico de São Paulo, todos os professores e funcionários, especialmente aos reverendos Paulo Sérgio de Proença, Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão e Gérson Correa de Lacerda, que fazem com que esse lugar continue sendo quase um lar... Aos colegas e amigos da Agência Afonso Sardinha da Caixa Econômica Federal, especialmente ao gerente de relacionamento Enio Fusco Pavan e ao gerente geral da unidade, Cezar Arruda de Oliveira, pela compreensão e apoio... Ainda da Caixa Econômica, aos colegas da GILIE SP e aos gestores Olivio Zanovello Junior, (Gerente de Serviço) e Eunice Martins Araújo (Gerente de Filial), por terem me recebido (muito bem) num momento em que minha atenção estava tomada por este trabalho... Aos queridos amigos: Isabel e Luiz, Carla Macedo, Viviane Gaino Vieira, Ricardo de Oliveira e Tati, pelo carinho sempre... 7 À “família Gimenes”, que me recebeu com todo carinho desde o começo, com destaque especial às tias Elza e Mara... À Rosa Gimenes, minha sogra, verdadeiramente uma “Noemi”, pelo apoio, atenção, pelas muitas e constantes orações que demonstram seu amor... À minha mãe Ana, minha irmã Raquel e à Joana, por simplesmente existirem em minha vida e me apoiarem, mesmo sem entender... Ao Renato, meu marido e amor da minha vida, minha melhor escolha, pela constante demonstração de amor e disposição de construir a vida... Àquele a quem as palavras não são necessárias, que conhece profundamente o meu coração e sabe o quanto esse momento é importante... Nenhum agradecimento seria suficiente... O meu carinho, a minha gratidão, o meu desejo de que eu possa aprender a ser para vocês um pouco de tudo o que representam pra mim! 8 A realização deste trabalho não seria possível sem o apoio das seguintes instituições: IEPG, com concessão de Bolsa De Estudos Parcial de 02/2007 a 01/2008 e Capes, com concessão de Bolsa Flexibilizada de 02/2008 a 02/2009. 9 CUESTA, Ruthe Ventura, Entre Jesus e Barrabás: realidade, expectativas e a decisão da multidão em Marcos 15,6-15, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, julho de 2009, 154p. SINOPSE O trabalho a seguir visa apresentar um estudo da palavra “multidão” no Evangelho de Marcos, considerando-a como personagem importante na estrutura literária concebida pelo autor, destacando especialmente sua atuação na cena da apresentação de Jesus diante de Pilatos em que é dada a ela – a multidão – a oportunidade de escolher pela libertação de Jesus ou de Barrabás. O texto em referência será estudado levando-se em conta o contexto de dominação romana em que estava inserido, como composição literária que reproduz a estrutura dos munera (combate ente gladiadores), fenômeno característico da civilização romana e símbolo de sua dominação, fazendo com que o escrito de Marcos seja uma paródia que visa esclarecer seu público acerca de sua própria situação. 10 CUESTA, Ruthe Ventura, Between Jesus and Barabbas: reality, expectations and the decision of the crowd in Mark 15: 6-15, Methodist University of São Paulo, São Bernardo do Campo, july 2009, 154p. ABSTRACT The following work aims to present a study on the word “crowd” in the Mark’s book, considering it is an important character on the literary structure conceived by the author, highlighting specially its performance on the scene of the presentation of Jesus before Pilate in which is given it – the crowd – the opportunity to choose the freedom of either Jesus or Barabbas. The referred text will be studied taking into consideration the context of roman overrule in which it was put in , as a literary composition that reproduces the structure of munera (a battle between gladiators), featured phenomenon of the roman civilization and symbol of their domination, making the writing of Mark to be a mockery which intends to enlighten its public concerning its own situation. 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 1º CAPÍTULO O EVANGELHO DE MARCOS: SEU MUNDO E SUAS PESSOAS 1.1. O Evangelho e seu mundo 19 1.1.1. Considerações sobre o domínio romano: a paz e a desordem 24 1.1.2. O produto da dominação: os miseráveis da Palestina 27 1.1.3. Dominação ideológica: multidões de marginalizados 31 1.1.4. Sintomas da revolta e anúncios da destruição: o contexto de 35 guerra 1.2. O Evangelho e as pessoas 42 1.2.1. o;cloj: mais que uma palavra 1.2.2. Quem é o;cloj no evangelho de Marcos? 1.2.3. A multidão e os discípulos em Marcos 1.2.4. O Jesus de Marcos e o;cloj: um relacionamento paradoxal 42 46 52 55 2º CAPÍTULO O IMPÉRIO ROMANO DIRIGINDO O MUNDO 2.1. O mundo dos dominadores 59 2.1.1. Um mundo romano: processos de expansão e dominação 65 2.1.2. Reorganização do espaço como tática de dominação 70 2.1.3. Princeps, Patrono e Imperador 73 12 2.2. O fenômeno dos munera 78 2.2.1. Além do sangue: princípios e valores nos munera 81 2.2.2. Os munera e o exercício de poder 85 2.2.3. Apresentando os munera: na arena 88 2.3. Considerações acerca da plebe romana 91 3º CAPÍTULO O TEXTO DE MARCOS: REALIDADES E REPRESENTAÇÕES 3.1. Um pouco sobre o texto 97 3.1.1. Unindo o texto e o contexto 98 3.1.2. O texto de Marcos 100 3.1.3. O texto como realidade: historicidade ou plausibilidade? 105 3.1.4. Uma realidade por trás do texto 110 3.2. Os personagens da cena de Marcos 112 3.2.1. Sacerdotes, escribas, anciãos: a nata da sociedade 112 3.2.2. O representante do imperador: Pilatos 116 3.2.3. Barrabás, um gladiador 120 3.2.4. A última cena da multidão 123 3.3. A cena montada: um munera 127 3.3.1. Colocando os personagens na arena 127 3.3.2. A arena e o duelo de ideologias 129 CONCLUSÃO 133 BIBLIOGRAFIA 139 13 INTRODUÇÃO Começando Uma Conversa 1. Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. 2. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. Tecendo a Manhã João Cabral de Melo Neto 14 A complexidade nos assusta: A complexidade da vida, a complexidade do mundo, a complexidade das coisas que consideramos mais simples sem perceber que são, muitas vezes, as mais importantes. Assusta-nos, mas nos fascina! Assim é o Evangelho de Marcos: aparentemente simples, mas profundamente complexo; assustador, mas fascinante. Saber que já foi e ainda é fonte de inúmeras pesquisas, que foi motivo de tantas discussões e que ainda hoje não existem conclusões passivas a seu respeito, perceber que é um marco no sentido de representar a primeira história narrativa de Jesus, e aquilo que poderíamos chamar de “primeira busca do Jesus histórico”, perceber o quão engajado seu autor estava em sua realidade e em seu contexto, a ponto de desejar tornar a pessoa de Jesus presente e real para as pessoas concretas de sua realidade... Tudo isso nos faz perceber a grandiosidade desse livro e o tamanho da responsabilidade que assumimos ao estudá-lo. Percebemos também que este é um livro que nos abre muitas possibilidades, e que é preciso fazer escolhas. Escolhemos, pois, estudar o texto do Evangelho de Marcos a partir da análise de um termo que pode ser considerado fundamental à estrutura da narrativa: o;cloj, a “multidão” que participa constantemente da vida e ministério de Jesus desde a Galiléia até sua condenação e morte. Ao mesmo tempo, estudamos o texto concernente ao julgamento de Jesus perante o governador romano, Pôncio Pilatos, capítulo 15 versos 6 a 15 do referido Evangelho, tentando verificar qual o papel da também referida multidão nesse episódio, uma vez que parece haver uma contradição entre o relacionamento da multidão com Jesus ao longo da narrativa, e a posição da mesma pedindo a condenação e crucificação de Jesus, no texto estudado. Com essa intenção em mente, o estudo do texto de Marcos 15,6-15 mostrou-nos um outro caminho, uma outra perspectiva a ser observada: sua estrutura, a montagem da cena do texto e a disposição 15 e ação dos personagens na cena poderiam ser comparadas com a estrutura, a posição e especialmente os significados dos munera, os combates de gladiadores, fenômeno característico da Roma antiga, símbolo dessa civilização que, à época da vida de Jesus e da escrituração do Evangelho de Marcos (épocas distintas), dominava a Palestina e começava a se constituir como um Império. Verificar o papel e ação da multidão nesse texto, considerando essa possibilidade de estruturação, demandou trilhar um caminho de pesquisa “interdisciplinar”, que apresentamos a seguir. Em primeiro lugar, foi preciso contextualizar o Evangelho de Marcos, tentar perceber as particularidades e complexidades de seu mundo e de seus destinatários. Dessa forma, no Primeiro Capítulo, traçamos algumas considerações sobre o contexto de dominação romana em que a Palestina de Marcos vivia, especialmente no período da Guerra Judaica (entre 66 e 70 d.C), período em que datamos o texto de Marcos, demonstrando os aspectos dessa dominação sob o ponto de vista da população mais empobrecida: a perda das propriedades, o endividamento cada vez maior devido à exploração e aos impostos, a crescente marginalização e segmentação da sociedade que gerava sentimentos de revolta ou alienação. Ao mesmo tempo, salientamos a também presente opressão ideológica/religiosa, que também fomentava marginalização e descontentamento. Nesse contexto, procuramos salientar as expectativas das pessoas que viviam sob essas circunstâncias, expectativas que as fazia seguir líderes carismáticos que se oferecessem com propostas que pudessem dar algum tipo de esperança. Inserindo o Evangelho de Marcos nesse contexto, na segunda parte do capítulo, o;cloj/multidão como apresentamos personagem a palavra importante que estudamos, deste Evangelho, representativa desse grupo de pessoas cujas expectativas repousam sobre Jesus. Verificamos tratar-se de palavra com forte significação e 16 sentido agregado, usada de forma consciente pelo evangelista para representar um tipo de relacionamento das pessoas não apenas com Jesus, mas com as demais pessoas – uma forma de inserção no mundo. Procuramos destacar, nesta parte do trabalho, que o termo o;cloj não é um conceito fechado, mas tem significação relacional: ser o;cloj não significa pertencer a uma classe social específica, não pode ser entendida simplesmente como “pobres”, mas representa um posicionamento diante do mundo que, de acordo com o Evangelho de Marcos, pode ser transformado. O Capítulo Dois introduzirá alguns aspectos acerca do Império Romano – o ponto de vista do dominador. Apresentamos, nesse capítulo, algumas considerações sobre o tipo de conquista e de dominação empreendidos pelo Império nascente, bem como algumas formas que o mesmo usou para estabelecer e manter seu domínio. Destacamos, nesse sentido, alguns elementos dessa dominação que consideramos relevantes para a Palestina e para o contexto do Evangelho de Marcos, como a questão da resignificação do espaço (como demonstração do poder imperial e ao mesmo tempo como instrumento de expansão/inserção cultural); o sistema do Patronato, que regia as relações entre as províncias e o Império, e, especialmente, o fenômeno dos munera. A segunda parte do capítulo é dedicada a esse fenômeno, que é apresentado como símbolo da civilização romana, e como um forte instrumento na difusão da cultura romana e transmissão dos valores dessa sociedade, além de funcionar como um mecanismo de coerção e controle social, tanto por apresentar uma visão da superioridade romana e do destino dos adversários de Roma, como por representar uma forma de participação popular que pode ser considerada como um “paliativo” diante da verdadeira falta de poder de decisão das pessoas comuns. O Capítulo Três apresentará uma análise do texto escolhido (Marcos 15,6-15), à luz dos capítulos anteriores, e procurará 17 demonstrar a relação entre os elementos desses capítulos através da análise da estrutura do texto. Apresentaremos um estudo do texto a partir do texto grego, salientando alguns aspectos do mesmo que consideramos relevantes para a leitura política que empreendemos, procurando verificar a intenção do autor na estruturação de alguns detalhes do texto, na relação desse texto com outras partes do Evangelho, a fim de demonstrar que o texto de Marcos é um relato coerentemente arquitetado em que se encontram vários elementos representativos do Império Romano. Nesse capítulo empreenderemos também uma comparação ente Marcos 15,6-15 e o fenômeno dos munera apresentado no capítulo anterior, com o objetivo de demonstrar tratar-se de uma paródia em que o autor desejou esclarecer para seu público os valores do Império (que já faziam parte da visão de mundo também da população dominada da Palestina) e subvertê-los através do exemplo de Jesus. Nessa comparação, procuraremos destacar o papel da multidão, tão significativo neste texto. Concluímos apresentando nossa visão acerca de o;cloj com a esperança de que se aproxime o tanto quanto possível da visão e compreensão que Marcos desejava fomentar: pessoas reais e humanas, nem totalmente boas nem completamente más, que apresentam expectativas de acordo com seus modelos e visão de mundo, e que em todo o Evangelho encontram oportunidades e possibilidades de transformação desses conceitos a partir de seu relacionamento com Jesus, mas nem sempre atendem a isso. Um fator que procuramos salientar durante todo o trabalho é a necessidade de compreendermos a complexidade de cada elemento apresentado. Tanto no que se refere ao Evangelho de Marcos e seu contexto e ao uso que faz da palavra o;cloj, como no que se refere ao mundo romano e aos munera, ou mesmo em relação à estrutura do texto estudado, é imprescindível que compreendamos que há vários 18 elementos envolvidos, entrelaçados, relacionando-se e formando cada realidade. Não pretendemos apresentar um trabalho neutro. Cremos que essa tentativa seria ilusória e que tal ideia acerca da exegese (Bíblica ou não) já está felizmente ultrapassada. Apresentamos um texto que tem uma base, um chão concreto e real, como foi também o Evangelho de Marcos. E o apresentamos como mais um passo nessa grande caminhada com o texto, sem a pretensão de haver chegado, mas com o desejo de nos juntar aos outros caminhantes, que já vieram e que nos ajudaram a chegar aqui, e aos que ainda virão. Para que a manhã se eleve! 19 1º Capítulo O EVANGELHO DE MARCOS: SEU MUNDO E SUAS PESSOAS Somos muitos Severinos Iguais em tudo na vida: Na mesma cabeça grande Que a custo é que se equilibra, No mesmo ventre crescido Sobre as mesmas pernas finas E iguais também porque o sangue Que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos Iguais em tudo na vida, Morremos de morte igual, Mesma morte Severina: Que é morte de que se morre De velhice antes dos trinta, De emboscada antes dos vinte De fome um pouco por dia João Cabral de Melo Neto 20 1.1. O EVANGELHO E SEU MUNDO Uma grande novidade. Essa é a forma como podemos considerar o Evangelho de Marcos. Novidade na forma literária, no conteúdo e até mesmo no fato de ser um documento escrito. Essas “novidades” percebidas não podem ser ignoradas, se pretendemos apresentar “mais um” trabalho sobre este Evangelho, que já foi e ainda é objeto de tantos estudos e discussões. Falamos em novidade literária porque o Evangelho de Marcos apresenta um tipo de escrito até então desconhecido, algo novo, embora formado e elaborado com elementos de diversos gêneros literários correntes em sua época, sem entretanto poder ser considerado como qualquer destes gêneros.1 Podemos pensar nesse Evangelho como fruto de um “desenvolvimento redacional” que traz elementos literários e conteúdos anteriores elaborados de forma própria. O resultado dessa elaboração é o que chamamos de “novidade”, e nessa articulação de elementos podemos perceber a ousadia e genialidade do autor. O escrito de Marcos, além disso, pode ser considerado como uma novidade teológica. É o primeiro relato narrativo da pessoa e da vida de Jesus, e esse é um ponto importantíssimo, não apenas porque se refere à demonstração de um desenvolvimento acerca dos relatos sobre Jesus, mas também porque esse fato tem muito a dizer a respeito do contexto e do objetivo do autor, como veremos a seguir. Ao tratarmos o Evangelho de Marcos dessa forma, como uma novidade literária e teológica, estamos aceitando a teoria não apenas 1 Para uma visão mais detalhada acerca das diversas formas literárias que compõem os Evangelhos, ver Klaus Berger, As Formas Literárias do Novo Testamento, São Paulo: Loyola, 1998, p.100. Com relação especificamente ao Evangelho de Marcos, ver Xabier Pikaza, Para Viver El Evangelio – Lectura de Marcos Estella (Navarra): Editorial Verbo Divino, 1997, p.9-22 e Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.43-65. 21 de que Marcos foi o primeiro dos Evangelhos a ser escrito, mas também a de que serviu de fonte para os demais Evangelhos Sinóticos. Essa teoria apóia-se na “Teoria das Duas Fontes”, segundo a qual, além do Evangelho de Marcos, os evangelistas Mateus e Lucas dispuseram de uma outra fonte sobre Jesus, chamada de “fonte Q” – que não era uma fonte narrativa, mas uma coleção de histórias e ditos de Jesus. Dessa forma, Marcos, como primeiro Evangelho, seria um avanço na história literária do cristianismo por apresentar pela primeira vez uma narrativa – uma organização contextualizada do material acerca de Jesus e sua história. O Evangelho de Marcos é uma narrativa estruturada, e nele os atos e palavras de Jesus situam-se histórica e socialmente, tornam-se concretos, fazendo com que a própria pessoa de Jesus torne-se mais concreta para seus ouvintes/leitores2. Dessa forma, percebemos que o autor do Evangelho (que chamaremos de Marcos) tinha uma grande preocupação ao escrever sua obra, e escolher fazê-lo dessa forma nova pode nos orientar, como tem orientado a muitos estudiosos, acerca dessa preocupação. Concordamos com Benjamin W. Bacon em sua posição de que o texto nasceu a partir de necessidades concretas, e que o distanciamento temporal dos eventos – o fato de que a “primeira geração” de cristãos, aqueles que haviam de fato conhecido a Jesus e aos apóstolos havia morrido - é uma das causas dessa necessidade de fixar a história de Jesus3. 2 3 Nesse trabalho, trataremos os destinatários do Evangelho de Marcos como ouvintes/leitores por entender que, na antiguidade o acesso aos escritos era bastante raro, por isso sua compilação não anulava a importância e a necessidade de transmissão oral, através de leituras ou encenações. Talvez o reconhecimento e a vivência desse processo, aliás, tenha motivado o autor a produzir uma obra narrativa de “ação”, e com tantos pontos dramáticos e, às vezes, até mesmo caricaturados. O fenômeno da transmissão oral e da dramatização dos textos, aliás, nunca deixou de existir, e nos acompanha até o presente. Benjamin Bacon, “The Purpose of Mark’s Gospel” em Journal of Biblical Literature, volume 29, nº.1 (1910), p.41-60. Published by The Society of Biblical Literature, URL: http://www.jstor.org/stable/3260133 22 Além dessa necessidade, Myers sugere que o Evangelho foi escrito para eliminar (ou minimizar) ocorrências de deturpação daquilo que para o evangelista seria a mensagem de Jesus, uma vez que as “ideias soltas” acerca de Jesus poderiam facilmente serem usadas para qualquer fim e para a disseminação de quaisquer doutrinas. A contextualização da mensagem, dessa forma, impediria deturpações, por fixar um sentido à mesma, porém sem perder a dinamicidade e a possibilidade de contextualização, pois como salienta esse autor, Marcos apresenta seu texto como um evento – como um desafio dinâmico, através do qual Jesus torna-se não apenas um personagem histórico de determinado período, mas faz-se presente em toda a história e na realidade de seus ouvintes/leitores.4 Bravo Gallardo salienta, além disso, que o autor do Evangelho tencionava corrigir ideias “triunfalistas” acerca do cristianismo, que haviam se desenvolvido a partir da ênfase em apresentar o Jesus glorioso, operador de milagres e ressuscitado, ênfase que tendia a fazer de Jesus uma espécie de “mago” que resolveria todos os problemas das pessoas sem fazer nenhum tipo de exigência. Diante desse risco, Marcos apresentaria um Jesus real, que certamente era poderoso e fazia milagres, mas sempre sob a perspectiva da cruz. Ao mesmo tempo, esse autor sugere que o evangelista pretendia esclarecer seu auditório acerca de sua própria situação histórica e social, desejando levá-lo a um posicionamento concreto diante das realidades de seu tempo5. A partir da posição desses autores, podemos perceber que o Evangelho de Marcos não é um texto “neutro” diante da realidade – até porque sabemos que esse ideal é ilusório, uma vez que cada autor, em todos os tempos, imprime em seu trabalho o reflexo de seu 4 5 Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.127-129. Carlos Bravo Gallardo, Jesus homem em conflito: o relato de Marcos na América Latina, São Paulo: Paulinas, 1997. 389p. (Coleção Estudos Bíblicos). 23 contexto e visão de mundo. O Evangelho de Marcos é um texto que reflete as realidades diárias de sua época, realidade que, como veremos a seguir, está repleta de doença, fome, miséria, violência e exploração. Além do pressuposto adotado de que Marcos foi o primeiro dos Evangelhos Sinóticos, tomaremos por base também algumas posições acerca de local e data de composição sem nos aprofundarmos nessas discussões, uma vez que dispomos de trabalhos de muitos estudiosos (exegetas, historiadores, lingüistas, filólogos e teólogos) que, durante mais de dois séculos, têm se debruçado sobre essas questões (sem chegar a uma conclusão definitiva). Aceitamos nesse trabalho a posição não majoritária, mas aparentemente crescente entre os estudiosos6, de que o Evangelho de Marcos foi composto na Palestina Setentrional7, provavelmente na Galiléia ou adjacências, entre os anos de 66 a 70 d.C., ou seja, entre os anos que compreendem a revolta judaica que culminaria com a destruição do Templo de Jerusalém em 70 d.C.8 Situando o texto nesse ambiente, estamos colocando a realidade de Marcos num contexto de forte opressão e dominação e, ao mesmo tempo, de grande turbulência e agitação social. Compreender um pouco esse contexto é essencial para entendermos o significado do Evangelho e sua mensagem. 6 7 8 Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.68. Usaremos, neste trabalho, o nome “Palestina” para nos referir à região que integra a Judéia, Samaria e Galiléia, embora saibamos tratar-se de um anacronismo, uma vez que essa região só foi chamada dessa forma após a derrota da resistência judia em 135 d.C.- período posterior ao que estudamos. Cremos, contudo, que o uso dessa nomenclatura facilitará nossa percepção acerca da área referida, uma vez que é o termo corrente. Para uma visão acerca dessas discussões e argumentos a respeito das posições adotadas, sugerimos a leitura de Joel Marcus, “The Jewish War and The Sitz in Leben Of Mark”, em Journal of Biblical Literature, volume 111 nº.3, 1992, p.441-462. Também Leif Vaage, “Que o leitor tenha cuidado: o Evangelho de Marcos e os cristianismos originais da Síria-Palestina”, em Revista de Interpretação Bíblica Latino Americana nº 29, Petrópolis: Vozes, p.11- 31. 24 A Palestina judaica tardia do Segundo Templo é, pois, o contexto em que o Evangelho de Marcos está inserido. Mas o que isso quer dizer? 1.1.1. Considerações sobre o domínio Romano: a paz e a desordem O contexto de Marcos é reflexo de situações históricas e sociais que se desenvolveram desde muito antes de sua composição! Décadas antes do nascimento de Jesus os exércitos romanos haviam invadido a região da Palestina, dizimando pessoas, saqueando e queimando aldeias, escravizando a população.9 A ocupação da Judéia por Pompeu marcou o fim do poder dos últimos descendentes asmoneus, herdeiros dos Macabeus, que haviam defendido a liberdade religiosa e autonomia política dos judeus contra a opressão dos Selêucidas. A partir de então, o poder é entregue ao idumeu Antípater, nomeado procurador da Judéia, e mais tarde outorgado ao seu filho Herodes, proclamado rei pelo Senado romano em 40 a.C., mas que teve que lutar por três anos até acabar com Antígono, último herdeiro asmoneu, e poder reinar de fato. Herodes governou despoticamente. Deu-se o direito de nomear os sacerdotes do Templo de Jerusalém arbitrariamente. Também em seu governo o poder do Sinédrio10 teve sua autoridade suplantada. 9 Richard A. Horsley, Jesus e o Império:o reino de Deus e a nova desordem mundial, São Paulo: Paulus, 2000. p.21. 10 Autoridade judaica que tinha, sob o Império Romano, autoridade para resolver questões internas do “judaísmo” e questões ordinárias entre judeus. Parece ter surgido nos tempos da dominação persa, com os “conselhos de anciãos” de que o Sumo Sacerdote havia se cercado. No tempo do rei Herodes, foi quase exterminado e perdeu força, mas retomou suas atividades após sua morte. No tempo de Jesus, bem como no do evangelista Marcos, era composto pelos “chefes dos sacerdotes”, anciãos (representantes da aristocracia leiga), e escribas (representantes da aristocracia intelectual). Para uma explanação mais detalhada, ver Émile Morin, Jesus e as Estruturas de seu Tempo, São Paulo: Paulus, 1.988. p.103- 104. 25 Além disso, patrocinou obras imensas (como teatros, anfiteatros e ginásios) e instituiu práticas como jogos atléticos regulares (realizados em honra a César). Para evitar possíveis revoltas e confusões, governou com “mão de ferro”, instituindo uma política de controle terrorista sobre a população. Flávio Josefo, historiador judeu do 1º século da nossa era, assim descreve tal política: “Ficaram indignados com sua dedicação a essas atividades, pois para eles significava o desmantelamento de sua religião e a mudança dos seus costumes. Essas questões eram amplamente discutidas porque eles (os judeus) eram constantemente provocados e incitados. Mas Herodes tratava tal situação muito cautelosamente, eliminando qualquer ocasião de agitação e forçando-os ao trabalho duro. Proibia reuniões públicas, grupos andando juntos e a vida comunitária normal. Toda a atividade era vigiada. As punições para os que eram flagrados eram impiedosas e muitos foram levados pública ou secretamente para a fortaleza Hircânia e ali executados. Tanto na cidade quanto nas estradas abertas havia homens que espionavam aqueles que encontravam... Os que recusavam obstinadamente a adaptar-se a essas coações sociais eram punidos das mais diversas maneiras... Aqueles que mostravam alguma coragem e indignação em relação à sua imposição (de jurar lealdade) eliminava-os de qualquer maneira possível.”11 Certamente, essa política de Herodes estava também relacionada à opressão econômica que recaiu sobre o povo, como veremos a seguir, pois a manutenção desse estilo de governo – em que abundavam as obras e tributos a Roma – onerou a população de forma colossal. Embora Herodes possa ter evitado a eclosão de grandes rebeliões em seu reinado, cremos que suas práticas, somadas à natural indisposição judaica para com dominadores estrangeiros, fomentou o sentimento de indignação e as consequentes revoltas que mais tarde explodiriam na região. A sucessão de Herodes, após sua morte em 4 a.C. não foi fácil. Arquelau, que recebeu metade do reino (as regiões da Judéia, Iduméia e Samaria), manteve-se no poder apenas por dez anos, ao fim dos 11 Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 15, 365-369. 26 quais foi desterrado (arrastado pelas inúmeras sublevações acontecidas em seu reinado, e acusado de extrema violência), sendo a região anexada à Síria, tornando-se uma província imperial. Começa então o período de governo da região pelos governadores romanos. Herodes Antipas reinou muito tempo, até 39 d.C., nas regiões da Galiléia e Peréia e Filipe governou também por largo tempo (até sua morte em 34 d. C.) nas regiões do Norte da Palestina. O reino de Herodes foi reunificado por pouco tempo sob seu neto Herodes Agripa, que recebeu do Imperador Calígula primeiramente o território governado por Filipe, depois o território de Herodes Antipas, e recebeu de Cláudio, em 41 d.C., o da Judéia e Samaria. Porém, seu domínio durou pouco, e a partir de 44 d.C. toda a região passou a ser província romana, governada por procuradores romanos, até a revolta de 66 d.C.12 Esses procuradores ou prefeitos romanos eram responsáveis pela administração da região, pela manutenção da paz e da ordem e pela manutenção da fidelidade no envio de tributos a Roma. Em outras palavras, eram os representantes do Imperador romano nas províncias, e deveriam trabalhar em conjunto com as elites locais no sentido de integrar as províncias ao Império Romano nascente. Dessa forma, de acordo com a política romana, deveriam respeitar os costumes e leis locais sempre que possível, a fim de evitar conflitos, o que dava às elites locais certo poder, mesmo diante do controle romano. Na Palestina não foi diferente: mesmo sob a dominação romana direta, o Sinédrio tinha autoridade para decidir questões consideradas “internas” ou específicas entre os judeus. Percebemos que a falta de habilidade de alguns desses representantes romanos (como Pilatos, por exemplo) associada à ganância das elites nativas (que lucravam com a dominação romana e 12 Giuseppe Barbaglio, Jesús, Hebreo de Galiléia – Invetigación Histórica, Salamanca: Secretariado Trinitário, 2.003, p.113- 179. 27 aproveitavam da situação não apenas através de empréstimos à população endividada, mas também participando do sistema de arrecadação de impostos) acelerou os processos de insatisfação e revolta entre a população, que se percebeu cada vez mais carente de líderes que realmente a representasse no âmbito do “poder político oficial”. Essas considerações acerca da política da Palestina são necessárias para compreendermos o contexto em que nasceu o Evangelho de Marcos, que apresenta não apenas a história de Jesus, mas a história de sua própria comunidade. Uma vez que cremos, como mencionamos anteriormente, que o texto surgiu de realidades e necessidades específicas, saber quais eram essas realidades, e como eram sentidas e percebidas pelas pessoas que dela faziam parte é essencial para entendermos o objetivo do autor e de seu texto. Além desse ambiente politicamente confuso e instável, dominado pela forte presença militar romana enviada para “manter a paz e a ordem” (uma vez que, como dissemos, os governantes romanos e as elites locais não conseguiam cumprir esse papel), o povo era economicamente explorado, e precisamos compreender melhor sua situação econômica para compreendermos melhor as implicações do escrito de Marcos. 1.1.2. O produto da dominação: os miseráveis da Palestina Como dissemos anteriormente, o domínio romano na Palestina não teve apenas conseqüências políticas significativas, mas também afetou as esferas econômica e social, além de modificar a demografia e a cultura. O fato de Herodes ter patrocinado várias construções – cidades inteiras, teatros, anfiteatros – e ter-se mantido absolutamente 28 leal a Roma – especialmente nas questões de tributo e presentes – aumentou consideravelmente a carga tributária do já então pobre povo da Palestina. Mas não podemos considerar que todos os problemas e injustiças sociais que esmagavam o povo nessa época sejam fruto desse período, uma vez que o processo de empobrecimento dos agricultores, com o abalo das formas tradicionais de distribuição de bens e posse da terra se desenvolveu desde o período de dominação persa e helênica, e durante o período de governo asmoneu essa situação parece não ter sido revertida. Contudo, é incontestável que o período de dominação romana agravou essa situação de empobrecimento. A dominação romana da Palestina começou com uma conquista violenta, em todos os sentidos, e seguiu com uma política opressora de controle sobre a região, assegurada através de controle militar e mantida através dos impostos. Dentre os meios de fiscalização e manutenção do controle, e como forma de disseminar o que podemos chamar de “modo romano de viver”, o Império tinha o costume de oferecer porções das terras conquistadas a seus soldados (como forma de recompensa pela dedicação) ou ofertá-la a camponeses romanos, formando colônias romanas nas regiões conquistadas13. Essa prática, somada à já existente tendência de formação de latifúndios entre a elite judaica desde períodos anteriores, gerou uma crescente alienação dos agricultores da região, que se viram privados de sua forma de subsistência e de sua forma tradicional de vida. Essa alienação dos pequenos agricultores e a formação crescente de latifúndios tem a ver com a política econômica adotada pelo governo romano, mercantilista, consideravelmente oposta ao modo agrário tradicional e familiar existente na Palestina. Para existir, 13 Pedro Paulo de Abreu Funari, Grécia e Roma, (Repensando a historia), São Paulo: Contexto, 2004, p.85-86. 29 o comércio incentivado pelo governo romano dependia, além da produção de excedentes, do desenvolvimento de latifúndios e de uma infra-estrutura (de estoque, conservação e transporte) que apenas um pequeno grupo de comerciantes poderia alcançar. Esse modelo, baseado na lógica de concentração de poder e de verticalização da sociedade levava a um contínuo e crescente empobrecimento do povo, que passava a ter cada vez menos acesso aos meios de produção e, consequentemente, de manutenção própria. Os já mencionados impostos, cobrados duplamente – havia os impostos religiosos judeus e os cobrados pelo governo romano – constituíam outro fator de empobrecimento. Basicamente, havia três tipos de cobrança em cada caso: para o governo romano, pagava-se pela posse das terras, pela produção e pelo uso de vias e rotas comerciais. Para o Templo, pagava-se o dízimo, as primícias e um imposto devido de cada cidadão judeu maior de 13 anos. O pagamento desses impostos, como mencionamos anteriormente, dependia de uma produção de excedentes praticamente impossível aos pequenos agricultores, o que os levava muitas vezes a terem de apelar a empréstimos para sanar suas obrigações fiscais. Não é difícil imaginar que a maioria dessas pessoas não conseguiria pagar os empréstimos, o que os levava a dívidas cada vez maiores, que os forçava a vender suas propriedades e às vezes até mesmo a si próprios, com o decorrer do tempo. Dessa forma, esse sistema produziu pobres cada vez mais pobres, e ricos cada vez mais ricos... Entre os pobres, os antigos proprietários rurais tornavam-se trabalhadores instáveis, assalariados ou desempregados (cada vez em maior número), que poderiam tornar-se mendigos (migrando para as cidades) ou bandidos. De forma geral a população era obrigada a viver, na maioria das vezes, com muito menos que o suficiente para a subsistência (o que gerava subnutrição, doenças e mortalidade). 30 A situação econômica e os meios de subsistência na Palestina, na época de Marcos, eram tais que estima-se que cerca de 1/3 das pessoas que ultrapassavam o primeiro ano de vida (e que não eram consideradas vítimas da mortalidade infantil) morriam até os 6 anos de idade. Dos sobreviventes, cerca de 60% morreria até os 16 anos. 75% já teria morrido até os 26 anos e, aos 46 anos, 90% já teriam sucumbido. Menos de 3% da população chegava aos 60 anos de idade!14 Obviamente, as pessoas que mais sofriam eram as que pertenciam às classes mais pobres, especialmente na zona rural15. Com moradias precárias, sem condições sanitárias adequadas, sem assistência médica, com uma má alimentação... Essas eram características da audiência de Jesus e, sequencialmente, da de Marcos. Pessoas sem muitas alternativas de transformação nem perspectivas, para as quais “bastava a cada dia o seu mal”, mas que ainda nutriam expectativas e esperanças que as fazia procurar estímulo – em líderes religiosos ou revolucionários carismáticos que produzissem alguma esperança – esperança que estava centrada e se baseava, na maioria das vezes, no imaginário religioso. Essa situação econômica e social constituía uma situação paradoxal de assimilação e inconformismo – gerada da também paradoxal diferença econômica, pois como dissemos estabeleceu-se uma diferenciação radical de classes entre ricos e pobres. Esses paradoxos eram fonte de constantes e frequentes conflitos em toda a Palestina, e especialmente na Galiléia, área mais fértil da região e, consequentemente, muito disputada. Em toda parte encontravam-se grupos de pessoas arruinadas, que haviam perdido suas propriedades, além de pessoas que já haviam nascido sem propriedades devido à 14 Richard L. Rohrbaugh, “Introduction”, em The Social Sciences and New Testament Interpretation, Peabody: Hendrickson, 1996, p.4-5. 15 Temos que considerar que tais dados são relativos, e referem-se especialmente à população rural empobrecida. Nas cidades, poder-se-ia encontrar diversas outras situações. 31 acumulação de dívidas de gerações anteriores, dispostas a seguirem um líder que, como mencionamos anteriormente, produzisse alguma esperança de transformação, ainda que irreal. Ao mesmo tempo, ao povo comum, apesar da percepção da injustiça e do sentimento de indignação, havia manutenção da a necessidade vida, buscando de continuar meios que procurando pudessem a produzir esperança em seu dia a dia. Nesse sentido, a religião teria um papel relevante, se não estivesse também marcada pela ideologia da época. 1.1.3. Dominação ideológica: multidões de marginalizados A cada vez maior setorização e divisão social e econômica da sociedade desenvolvida através da situação acima descrita, demonstrou ser também existir ideologicamente. A divisão econômica produziu conflitos sociais que agravavam a divisão de classes, e os ideais e expectativas religiosos de cada classe muitas vezes eram diferentes, embora basicamente todos fossem derivados da mesma base comum, a saber, a religião de Javé, e reivindicassem sua legitimidade. Apesar de considerarmos que havia formas diversas de viver a religiosidade, existia certamente uma opressão religiosa e ideológica imposta pelas classes dominantes, defensoras do que se poderia chamar de “religião oficial”: centrada no Templo de Jerusalém e no cumprimento da Lei conforme certas interpretações dadas pelos fariseus. Embora pudesse haver (e provavelmente houvesse) certo descontentamento com essa religião oficial, que demonstrava apoio ou ao menos conformidade com a dominação romana, o valor simbólico do Templo, da Lei e de seus representantes pesava sobre o povo e gerava conflitos, especialmente entre a população mais humilde, 32 instituindo religiosamente a já corrente divisão social entre “elite” e “marginalizados”. Mencionamos anteriormente que a maior parte do povo da Palestina (e da Galiléia, onde cremos que o Evangelho de Marcos foi originariamente escrito) era pobre, doente e faminta. Mencionamos que sofria com opressão militar, que assombrava a população geral, e com opressão econômica. Diante dessa realidade, mencionar a opressão religiosa e os conflitos dela advindos pode nos ajudar a compreender o posicionamento de Jesus frente à religião oficial, bem como pode nos auxiliar a compreender algumas expectativas das pessoas sobre Jesus e sua disposição em seguí-lo. Pelo tempo de Jesus e de Marcos, a religião farisaica, com sua ênfase na pureza ritual, havia ganhado força e terreno, em parte porque os fariseus, líderes ideológicos, queriam estabelecer certo domínio entre o povo, uma vez que de fato não eram os responsáveis pelo “governo” político, que ainda era exercido através do Templo de Jerusalém pelos sacerdotes e pelo Sinédrio, composto especialmente pelo partido dos saduceus, oposto aos fariseus. A fim de expandir sua influência sobre o povo, os fariseus difundiam suas práticas religiosas, e passaram a defender que estas deveriam ser cumpridas por todas as pessoas. Dessa forma, os rituais de pureza e as regras que inicialmente faziam parte do dia a dia apenas dos sacerdotes passaram a ser exigidos de todo o povo, como sinal de que pertenciam a Deus e cumpriam a Lei. Havia sem dúvida um teor populista nesse esforço dos fariseus em levar a “Lei” – a sua Lei, pelo menos16 – às pessoas comuns, e o fato é que as exigências de seus rituais e a impossibilidade de o povo cumprir com eles cavou um fosso ainda maior entre as pessoas, acentuou a marginalização e a 16 Havia uma discordância entre o que os saduceus consideravam como Lei – apenas os livros escritos - e os fariseus, que se diziam portadores de verdades reveladas secretamente por Moisés e transmitidas oralmente, as quais apenas estes tinham conhecimento. 33 divisão entre classes e, o que é pior, estabeleceu uma classe de pessoas (a maioria da população) “indigna de Deus”, tudo com a validação teológica religiosa. Cremos ser provável que nas regiões rurais (a maioria da Palestina) houvesse certa “adaptação” popular dessas exigências farisaicas, mas a presença nessas regiões de “fariseus vindos de Jerusalém” nos demonstra uma preocupação em adequar essas religiosidades populares ao “ideal religioso oficial”, que tendia a desprezar e desconsiderar qualquer manifestação religiosa que não cumprisse exatamente suas regras. Considerando que os fariseus, como líderes religiosos, gozavam de respeito e admiração popular, suas exigências seriam consideradas, pelo menos por grande parte das pessoas, como a verdade a ser seguida. Ocorre que, para a grande maioria das pessoas comuns, cumprir com as exigências impostas pela lei farisaica era praticamente impossível, o que as marcava com a insígnia de “pecadores” e “impuros”, indignos do favor de Deus, situação que dificilmente seria alterada, uma vez que tais pessoas não conseguiriam adequar-se ao “padrão necessário” para serem consideradas puras e dignas. Estabelece-se dessa forma um tipo de estratificação permanente que quebra o sentido de comunidade e de equidade. Nas sociedades tradicionais, como é o caso da sociedade palestinense da época, não havia a separação moderna entre “vida religiosa” e “vida secular”. Havia apenas “vida”, e a religião fazia parte de todas as esferas da vida da sociedade, sem que as pessoas tivessem que pensar sobre isso, e sem que ao menos houvesse cogitação de separação dessas esferas da vida. Quando pensamos na marginalização religiosa criada pelas imposições dos fariseus e pela impossibilidade de cumprimento dessas imposições pelo povo comum (ou por não terem condições econômicas ou por terem de trabalhar em alguma atividade “impura”, ou por 34 terem algum problema de saúde que os tornava “pecadores” e “impuros”), sabemos que tal marginalização e separação dar-se-ia também em todos os níveis sociais e relacionais das pessoas e podemos imaginar a imensa carga simbólica que isso representava social e emocionalmente, especialmente pelo fato de que as próprias pessoas marginalizadas, na maioria das vezes, não se questionavam ou ousavam discordar dessa opinião, uma vez que estavam revestidas de um caráter sacro. Diante de uma opressão externa, como era o caso da dominação romana, o povo poderia rebelar-se (especialmente se lembrasse sua própria tradição de libertação e êxodo), mas diante de opressão justificada teologicamente, não haveria rebelião. O povo assumia a condição marginal, e passava a entender-se e agir como quem estava sendo “punido” ou esquecido por Deus. Essa percepção por parte das pessoas poderia dar origem a diversas formas de resposta, desde a alienação e conformismo resignados, até sentimentos (muitas vezes irracionais) de que a transformação da realidade por meios radicais e violentos seria a forma de acabar com esse “castigo” de Deus manifesto nas diversas formas de dominação e suas consequências. É diante desse contexto, aqui apenas esboçado, que Marcos escreve. É para essas pessoas, dominadas política, econômica e ideologicamente que ele aponta Jesus – um Jesus histórico e inserido num contexto social e político como o daquelas pessoas, que surge com um novo posicionamento e com uma nova proposta. 35 1.1.4. Sintomas da Revolta e Anúncios da destruição: O Contexto de Guerra Marcos escreve, portanto, num contexto de revolta e guerra, gerado por anos de exploração por parte da elite dominante, tanto local quanto estrangeira, e pelo crescente descontentamento popular. O povo da Palestina nunca se conformou com a dominação e opressão romanas (como não havia se conformado com as dominações anteriores), e durante todo o período dessa ocupação aconteceram revoltas e manifestações de descontentamento, o que via de regra gerava repressão ainda maior e agravava a força e a brutalidade romanas para com a população, especialmente a população camponesa. Como mencionamos anteriormente, durante o reinado de Herodes, o Grande, o país viveu um período de “paz”, conquistada e mantida à força. Contudo, após sua morte, deu-se um período de não poucas manifestações e movimentos que proclamavam ideais de transformação político-religiosos; algumas dessas manifestações pacíficas e outras violentas, na maioria das vezes estimuladas por alguma liderança carismática marcante. Percebemos que esse período revelou o descontentamento sempre presente na população, mas nem sempre manifestado e nem sempre consciente ou organizado. O desejo de reforma social, de correção das injustiças econômicas e sociais existentes entre os próprios judeus (com consequente revolta contra as classes dominantes nacionais) uniu-se ao sentimento de insatisfação contra os dominadores estrangeiros, fomentando assim as revoltas, que eram alimentadas por ideais religiosos de “restauração de Israel”, como veremos a seguir. 36 Nesse processo, podemos perceber desabrocharem e se manifestarem as expectativas da população, expectativas com as quais Jesus e Marcos tiveram que se relacionar e que geraram muitos conflitos, uma vez que Jesus, segundo Marcos nos apresenta, não corresponde a elas e por vezes se opõe às mesmas, como veremos adiante. Apresentamos a seguir a descrição de alguns exemplos dessas manifestações e sublevações, que culminaram na revolta dos anos 66 a 70 d.C., a fim de percebermos melhor o ambiente conturbado em que viveram Jesus e a comunidade de Marcos, depois dele. Esses exemplos nos mostram a grande complexidade da situação e das relações estabelecidas, uma vez que percebemos que não há homogeneidade na posição da população, e nem mesmo dentro dos grupos da sociedade. Os sentimentos de descontentamento e a percepção das injustiças parece terem estado sempre presentes na população geral, mas as respostas a essa percepção foram diferenciadas em cada grupo e situação, e na maioria das vezes era vivido de forma não organizada e por vezes não consciente. Por isso, como mencionamos acima, era necessário o surgimento de líderes carismáticos para produzir algum nível de organização entre essas pessoas e incentivá-las a algum tipo de ação. Por exemplo, o descontentamento foi mesmo da morte de Herodes (quando este demonstrado antes já se encontrava desenganado), quando alguns jovens, guiados por dois líderes, Judas e Matias – chamados por Flávio Josefo de “os mais instruídos dos judeus e intérpretes incomparáveis das leis ancestrais”17, protestaram contra o poder herodiano destruindo uma águia de ouro que Herodes havia mandado construir sobre a porta principal do Templo de Jerusalém18. A reação herodiana foi rápida e cruel: quarenta desses jovens e seus 17 18 Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, 17, 149. Essa situação pode ser utilizada também como um exemplo da inabilidade dos governadores da Palestina, pois significava um desrespeito gratuito e não necessário aos costumes judeus, uma afronta. 37 dois mestres foram capturados e executados, sem antes manifestarem sua disposição em morrer como “mártires da Lei de Moisés” diante da injustiça de Herodes19. Sob Arquelau tais movimentos se multiplicaram. Embora tenha demonstrado inicialmente certo interesse em ouvir as reivindicações populares para baixar os altos impostos, para soltar os prisioneiros políticos ainda detidos e para substituir o Sumo Sacerdote, Arquelau agiu traiçoeira e brutalmente, provocando um massacre durante uma comemoração pascoal. Esse evento, descrito por Josefo20, provocou reações e movimentos populares em várias regiões da Palestina judaica, uma verdadeira revolta camponesa generalizada que se manifestou de diferentes formas: movimentos pela independência que visavam uma realeza alternativa; movimentos messiânicos e proféticos e, finalmente, banditismo e revoltas armadas. Obviamente, tais movimentos causavam reações cruéis por parte do governo romano, que acabavam por agravar a situação da população mais pobre, especialmente os camponeses, que tiveram cada vez mais suas terras saqueadas e destruídas. Flávio Josefo apresenta pelo menos três movimentos derivados das atitudes de Arquelau (além de outros, menos detalhados) que visavam o estabelecimento de uma “realeza alternativa”: o primeiro, liderado por Judas, na região da Galiléia; o segundo, liderado por Simão, na Peréia e o terceiro, liderado por Atronges21. Esses movimentos demonstram forte teor religioso/teológico, uma vez que a idéia dessa realeza deriva, sem dúvida, da tradição de Davi, o “rei justo” que restauraria a justiça entre a população. Tais movimentos foram obviamente reprimidos pelo governo romano, e causaram represália a todo o povo. 19 Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, 17, 149-159. Flávio Josefo, Las Guerras de Los Judios 2, 39-54 Antiguidades Judaicas 17, 250268. 21 Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas, 17, 271-283. 20 38 Esses movimentos, que visavam a uma “nova realeza”, embora também não fossem homogêneos, traziam consigo a manifestação de expectativas messiânicas comuns – a esperança de que um “agente” inspirado por Deus traria libertação ao povo e a paz, restaurando o antigo reino de Israel. Além desses movimentos e das expectativas reveladas por eles, temos na Palestina judaica da época a manifestação de outro tipo de movimento que também revela a insatisfação do povo diante de sua situação e sua propensão ao seguimento de líderes carismáticos, a saber, os movimentos proféticos – com profetas de ação, que lideraram movimentos camponeses no que seria uma “antecipação” dos atos divinos de libertação (que haveriam de acontecer em breve), e profetas oraculares, que anunciavam ou o julgamento de Deus sobre a injustiça ou a iminente libertação divina. Esses movimentos proféticos arrebanhavam muitas pessoas, que por vezes deixavam suas casas para seguir seus líderes, mas diferentemente dos movimentos messiânicos, não eram nem se transformaram em armadas22. rebeliões Percebemos que há nesses grupos forte expectativa de uma ação divina espetacular, quer fosse histórica ou escatológica. A diferença maior entre esses movimentos e os citados anteriormente seria o fato de que os últimos dependeriam de uma ação quase exclusiva de Deus, que é quem lideraria e executaria a libertação. Outra forma de manifestação popular que se desenvolveu e cresceu nesse necessariamente período foi messiânicas a – das pelo revoltas menos armadas inicialmente) (não e o banditismo social, formado por grupos de salteadores que se juntavam sob uma liderança comum para a prática de assaltos. Esses grupos, frequentes na região durante o primeiro século da era cristã, eram em grande 22 parte frutos da exploração econômica explanada Richard A. Horsley e John S. Hanson, Bandidos, profetas e messias – movimentos populares no tempo de Jesus, São Paulo: Paulus, 2007, p.144-165. 39 anteriormente, derivados da expropriação de terras e do empobrecimento que deixava grande parte da população sem recursos para sua manutenção. Na década de 50 d.C. temos o aparecimento em cena dos sicários, cujo nome deriva do tipo de arma que usavam, um tipo de punhal curvo, chamado de “sica”. Esse grupo, talvez de caráter mais conscientemente político que os anteriores, se caracterizou por projetar e executar ataques armados contra membros da nobreza judaica, assassinando-os e às vezes sequestrando-os em troca de resgate (que poderia ser a libertação de algum membro do grupo que estivesse preso). Percebe-se entre os sicários grau elevado de organização (era um grupo aparentemente composto por intelectuais) e o descontentamento com a injustiça social e opressão impostos pelos próprios judeus a seus compatriotas. Embora não deixasse de representar uma concentravam seus ameaça ataques ao a Império Romano, os líderes nacionais (que sicários eram colaboradores dos romanos, não podemos nos esquecer)23, praticando um tipo de “violência seletiva” contra o grupo dominante24. Aparentemente, esse grupo criou grandes preocupações e temores entre a classe dominante, a ponto de estas providenciarem segurança para si através da contratação de “seguranças mercenários” (que formavam verdadeiros esquadrões), o que fez aumentar o clima de tensão e a violência do período. Contudo, o movimento dos sicários (assim como o banditismo social dos saqueadores mencionados acima) parece ter servido mais como um catalisador, como uma válvula de escape de um determinado grupo do que um movimento social por transformação. Na revolta de 66-70 d.C., o papel dos sicários parece ter sido bastante limitado, atuando apenas no começo da revolta junto com 23 Richard A. Horsley e John S. Hanson, Bandidos, profetas e messias – movimentos populares no tempo de Jesus, São Paulo: Paulus, 2007, p.173- 175. 24 Ibid, p.176. 40 outros grupos e não necessariamente como líderes, como comumente se pensa25. Poucas semanas depois de reunirem-se aos revoltosos em Jerusalém, os sicários foram expulsos por outros membros da rebelião. Entre os anos 67-68, portanto em meio à guerra e enquanto os exércitos romanos começavam a conquistar a Judéia após um período de êxito da rebelião, temos a menção de um grupo que se tornou famoso, inclusive por sua referência nos Evangelhos: os zelotas. Esse grupo tem sido muitas vezes confundido e identificado com os sicários, gerando muita confusão interpretativa. A origem desse grupo é incerta, mas pode ser relacionada com o movimento de fuga dos camponeses judeus e especialmente galileus do exército romano (em 67 d.C. os exércitos romanos tinham vencido as forças de resistência judaica da Galiléia, aumentando o clima de terror com sua represália). Esses camponeses desterrados formavam muitas vezes bandos de salteadores e muitos, procurando um lugar mais seguro, iam refugiar-se na cidade de Jerusalém, onde formavam coalizões. Em Jerusalém, esses grupos atacaram certos nobres herodianos que ainda estavam na cidade (acusando-os de entregar a cidade nas mãos dos romanos) e elegeram, por sorteio, o Sumo Sacerdote (dentre pessoas comuns). Esses atos geraram o que pode ser considerada uma “guerra interna”, dentro do conflito maior, pois os antigos Sumos Sacerdotes conseguiram organizar uma força de combate contra os zelotas, que se refugiaram no Templo e tiveram que pedir ajuda aos idumeus. Uma vez controlada a situação, e tendo controle sobre a cidade de Jerusalém, outros problemas se avolumaram, com a disputa de poder entre os zelotas e outros grupos rebeldes26 que também queriam a liderança da cidade e da rebelião, disputa que só foi aplacada quando o assédio romano já estava bem 25 Richard A. Horsley e John S. Hanson, Bandidos, profetas e messias – movimentos populares no tempo de Jesus, São Paulo: Paulus, 2007, p.182-183 26 Falamos do movimento messiânico comandado por João de Gíscala e pelo comandado por Simão bar Giora. 41 instalado ao redor de Jerusalém. A partir daí, o grupo dos zelotas foi relativamente insignificante durante a resistência ao cerco romano, embora tenham participado e lutado ativamente até o fim da guerra27. Conforme defendemos acima, Marcos escreve nesse contexto, em que Jerusalém representava um caldeirão em verdadeira ebulição e em que o Templo era um “covil de salteadores” não apenas por representar dominação ideológica e econômica, mas por estar de fato tomado e sendo usado como “quartel general” de revoltosos! Sua destruição era sem dúvida iminente, e os ouvintes/leitores de Marcos teriam que tomar uma decisão acerca de seu posicionamento diante dessa situação. Os movimentos sociais e a situação esboçada acima demonstram que o povo, vítima de diversos tipos de dominação diferentes, buscava ainda esperança, alimentando expectativas de transformação e sendo levado, muitas vezes, a aderir a movimentos evidentemente fadados ao fracasso, em nome dessa esperança. No entanto, a verdade é que não havia perspectivas reais de transformação. O Evangelho de Marcos caminha, com seu autor e seus destinatários, entre o sentimento de impotência, resignação e conformismo, e o desejo revolucionário suicida por transformação. É diante desse contexto que a comunidade de Marcos tem que se posicionar, e Marcos tem o desafio de indicar o caminho do discipulado nessa situação de extremo conflito. 27 Richard A. Horsley e John S. Hanson, Bandidos, profetas e messias – movimentos populares no tempo de Jesus, São Paulo: Paulus, 2007, p.189. 42 1.2. O EVANGELHO E AS PESSOAS “A plebe apenas pode fazer tumultos. Para fazer uma revolução, é preciso o povo.” “Quanto a lisonjear a multidão, juro que não posso! O povo está no alto, a multidão está no fosso.” Victor Hugo o;cloj: Mais Que Uma Palavra 1.2.1. Diante do que expusemos até aqui, podemos perceber que o texto do Evangelho de Marcos não é de forma alguma neutro, nem pretende sê-lo. Trata-se de um texto inserido num ambiente desafiador, e procura responder a esses desafios de seu contexto apresentando Jesus de forma nova, como dissemos anteriormente. Numa construção literária como esta, em que o autor serve-se de diversos elementos existentes em sua época, tanto no que diz respeito à forma corajosamente como nova, ao nenhum conteúdo, para criar elemento pode ser uma obra considerado ocasional. Aquilo que poderíamos chamar de “coragem redacional” do autor vai desde a opção pelo gênero literário narrativo até a montagem da dinâmica estrutural e a escolha das palavras do texto, que têm certamente significado para a trama da história. Destacamos, nesse sentido, a presença de uma palavra “inesperada” usada pelo evangelista várias vezes no decorrer da narrativa – inesperada por sua conotação à época da escrituração e 43 pela ênfase dada à mesma na narrativa marcana em que, como veremos, ganha papel de destaque. Trata-se da palavra o;cloj. Esse termo, que poderíamos traduzir como “multidão”, tem significados sociais e políticos acentuados, que Marcos parece conhecer e assumir em seu Evangelho de forma elaborada e consciente. Inicialmente, conforme nos indica Ahn Byung-Mu28, constatamos que Marcos é o primeiro autor do Novo Testamento que utiliza essa palavra. O termo não aparece nos escritos do Novo Testamento anteriores a Marcos – a saber, as epístolas de Paulo, concluídas cerca de dez anos antes do Evangelho de Marcos29, e o uso da palavra nos escritos posteriores a este Evangelho (nos demais Evangelhos, em Atos e no Apocalipse) parecem ter sido derivado do uso que o evangelista Marcos faz do mesmo. Nem mesmo a discutida “Fonte Q”, usada pelos evangelistas Lucas e Mateus, segundo a “Teoria das Fontes”, apresenta uso significativo dessa palavra. De fato, segundo a reconstrução feita por Kloppenborg , a palavra teria sido usada 30 apenas seis vezes nos textos atribuídos a Q31. Mas qual seria a origem dessa palavra, e qual a importância de estudarmos esse termo no Evangelho de Marcos? A palavra, de origem incerta relacionado com o verbo 28 32 evnocle,w, , é um substantivo provavelmente “causar confusão ou tumulto” ou Ahn Byung-Mu, “Jesus and the minjung in the gospel of Mark”, em Minjung Theology: people as the subjects of history, Edited by The Commission on Theological Concerns of the Christian Conference of Asia (CTC- CCA), New York: Maryknoll, 1983, p.149. 29 Carlos Bravo Gallardo, Jesus homem em conflito: o relato de Marcos na América Latina, São Paulo: Paulinas, 1997. (Coleção Estudos Bíblicos). 30 John S. Kloppenborg, Q Parallels: Synopsis Critical Notes & Concordance, Sonoma: Polebridge, 1988. 31 Tomando como referencial o Evangelho de Lucas, essas passagens seriam: 3,7; 7,9; 7,24; 11,14; 11,29 e 12,54. Com exceção de 3,7, que refere-se às multidões que buscavam o batismo de João, as demais passagens estão relacionadas a um contexto de cuidado de Jesus com as pessoas, ensino ou realização de milagres, aparentemente sem nenhuma conotação especial. 32 Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1743 / Theological Dictionary of The New Testament (Gerhard Friedrich) p.582. 44 com ovcle,w, “impelir ou causar problemas”. Seu significado, num primeiro momento, denotaria uma multidão de pessoas reunidas, um ajuntamento de várias pessoas, em contraste com o individual/privado e em contraste também com a aristocracia ou pessoas importantes. Essa “aglomeração de pessoas simples”, sem poder, pode ser entendida com o que chamaríamos hoje de “massa”, e a palavra parece ter alto grau de depreciação moral (que pode ser ainda mais evidente se considerarmos a relação desse substantivo com os verbos citados acima!). A palavra era usada ainda para referir-se a um destacamento militar, ou a pessoas que serviam ou acompanhavam um exército, encarregadas de trabalhos servis – não se referindo nunca a qualquer tipo de liderança, mesmo nesse caso33. Na Septuaginta, a palavra aparece cerca de 60 vezes apenas, especialmente em textos tardios do Antigo Testamento, normalmente usada de modo pejorativo ou para referir-se a um grupo indefinido de pessoas, uma “grande multidão”. O termo parece indicar, nas passagens da Septuaginta, tanto um fator numérico – uma grande quantidade de pessoas – quanto o social – a “massa”, uma aglomeração irregular, diferenciada de “povo” ou “povo de Deus”. Verificando alguns textos da Septuaginta em que a palavra é usada, percebemos também ênfase numa conotação militar (Ezequiel 23,46; Josué 6,13; 2 Samuel 15,22; 2 Crônicas 20,15; 1 Macabeus 1,17; 20,29, dentre outros). Na maioria dos casos percebemos que a palavra é usada com referência ao exército inimigo, também em contraste com os judeus. Dessa forma, em 2 Crônicas 20,15, por exemplo, o termo é usado para distinguir o exército inimigo em oposição ao povo de Deus: 33 33 Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1743/Theological Dictionary of The New Testament (Gerhard Friedrich) p.582. 45 kai. ei=pen avkou,sate pa/j Iouda kai. oi` katoikou/ntej Ierousalhm kai. o` basileu.j Iwsafat ta,de le,gei ku,rioj u`mi/n auvtoi/j mh. fobei/sqe mhde. ptohqh/te avpo. prosw,pou tou/ o;clou tou/ pollou/ tou,tou o[ti ouvc u`mi/n evstin h` para,taxij avllV h' tw/| qew/|/ 34 “Prestai atenção vós todos de Judá e habitantes de Jerusalém, e tu ó rei Josafá! Assim fala Iahweh: Não temais, não vos deixeis atemorizar diante dessa imensa multidão; pois esta guerra não é vossa, mas de Deus”.35 Assim, podemos perceber que o;cloj não é um termo “neutro”, mas é uma palavra carregada de sentido simbólico, através da qual se expressa juízo de valor, em que o contraste com o grupo dos “socialmente bons” torna-se evidente e caracteriza o grupo de pessoas identificado por o;cloj como marginal. Considerando o Evangelho de Marcos, a freqüência com que a palavra é utilizada, e a forma como são apresentadas as pessoas a quem o;cloj faz referência podemos perceber que o termo faz parte da estrutura narrativa do autor, que também não é neutra. Assim, precisamos verificar, no Evangelho de Marcos, qual o significado e o valor atribuído a o sentido o;cloj , tentando perceber se tal sentido coaduna com corrente da palavra, e qual a intenção de Marcos demonstrada pelo seu uso. No Evangelho de Marcos, o;cloj aparece 36 vezes, sem contar as vezes em que é referido ou sugerido por pronomes indicativos, e designa um grupo de pessoas que se relaciona com Jesus em toda a narrativa. São pessoas que estão com Jesus desde o início até o fim de seu ministério, tornando-se “o;cloj” um personagem importante da narrativa, assim como podemos considerar o grupo dos discípulos (de quem o;cloj é claramente diferenciado) e o grupo dos “doze” (também diferenciado em Marcos). Essa diferenciação entre os grupos também 34 35 Versão LXX. Bible Works 7. Grifo nosso. Tradução Bíblia de Jerusalém – Nova Edição Revista e Ampliada: Paulus, 2002. Grifo nosso. 46 deve ser percebida como fundamental à estrutura do livro e à intenção do autor, como procuraremos verificar adiante. 1.2.2. Quem é o;cloj no Evangelho de Marcos? A primeira vez que a palavra aparece no Evangelho é em Mc 2,4, na perícope que relata a cura do paralítico que é descido pelo teto de uma casa, na cidade de Cafarnaum: kai. mh. duna,menoi prosene,gkai auvtw/| dia. to.n o;clon avpeste,gasan th.n ste,ghn o[pou h=n( kai. evxoru,xantej calw/si to.n kra,batton o[pou o` paralutiko.j kate,keitoÅ “E não podendo trazer (o mesmo) a ele por causa de a multidão descobriram o teto onde (ele) estava, e fazendo abertura baixam a maca onde o paralítico estava deitado.36 Essa passagem é bastante significativa, pois o;cloj, a multidão, é o grupo de pessoas que “atrapalha” a entrada do paralítico na casa. Essa característica de o;cloj, como veremos, será marcante nesse Evangelho, e parece coadunar com uma das conotações correntes da palavra: pessoas que causam tumulto ou confusão. Ao longo de toda narrativa, o;cloj personagem estará presente, como já dissemos, como um importante da história, e essa conotação de “atrapalhamento” será várias vezes utilizada. Apesar desse sentido, que poderia ser considerado como pejorativo, percebemos que Marcos usa a palavra o;cloj para referir-se às pessoas sem nome e sem status que chegavam a Jesus e que eram aceitas e atendidas por ele, aparentemente sem exigências. Marcos parece deixar claro que apesar de o;cloj representar um grupo sem identidade definida, confuso e marginal, Jesus não lhes atribuía os 36 Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004. Grifo nosso. 47 juízos de valor da época, que fariam com que ele não aceitasse tais pessoas nem delas se aproximasse. Marcos aparentemente não esquece o sentido corrente da palavra, ao contrário, parece usá-lo intencionalmente para demonstrar a ousadia e a novidade de Jesus em relacionar-se com tais pessoas. Como dissemos anteriormente, Marcos usa a palavra conscientemente, sabendo o que sua menção significava e sem desprezar isso, mas parece querer atribuir novas possibilidades a esse grupo a partir da postura de Jesus diante dessas pessoas. Segundo Ahn Byung-Mu, essa palavra indica uma classe social composta por pessoas excluídas religiosamente, que ele identifica como “pecadores”37. Para esse autor, o uso da palavra é paradigmático, uma vez que a exclusão religiosa e a alienação social eram realidades complementares, e o relacionamento de Jesus com tais pessoas mostraria que Jesus não compartilhava dessa opinião acerca dessas pessoas, mas as via como seres humanos dignos do cuidado e amor de Deus. Embora compartilhemos da opinião de que Jesus (na descrição de Marcos) enxergava a humanidade e as possibilidades das pessoas que compunham o;cloj, não concordamos que o;cloj represente em Marcos uma classe social propriamente dita, ou que seja composta de pessoas constantemente marginalizadas. Observando seu uso no Evangelho, percebemos tratar-se de um termo usado de forma relacional. As pessoas que compõem a multidão não são fixas, nem pertencem a uma mesma classe, mas são o;cloj a partir de seu relacionamento com outras pessoas e com a sociedade. Dessa forma, não podemos dizer que o;cloj compõem-se apenas dos pobres, pois havia cobradores de impostos entre aqueles que são designados dessa forma – sendo evidente que a questão não se regia por separação 37 Ahn Byung-Mu, “Jesus and the minjung in the gospel of Mark”, em Minjung Theology: people as the subjects of history, edited by The Commission on Theological Concerns of the Christian Conference of Asia (CTC- CCA), New York: Maryknoll, 1983, p.142–146. 48 puramente econômica – entre pessoas das mesmas condições, poderia haver os marginalizados por algum motivo e os aceitos socialmente. Além disso, um grupo que num lugar poderia ser identificado como o;cloj, em outro poderia deixar de sê-lo. Tomamos como exemplo do que queremos dizer um texto do Evangelho de Marcos que consideramos emblemático e crucial para a compreensão desse termo e do uso que o evangelista parece querer dar ao mesmo. Trata-se do capítulo 3 do referido Evangelho, versos 7 a 9: Kai. o` VIhsou/j meta. tw/n maqhtw/n auvtou/ avnecw,rhsen pro.j th.n qa,lassan( kai. polu. plh/qoj avpo. th/j Galilai,aj Îhvkolou,qhsenÐ( kai. avpo. th/j VIoudai,aj kai. avpo. ~Ierosolu,mwn kai. avpo. th/j VIdoumai,aj kai. pe,ran tou/ VIorda,nou kai. peri. Tu,ron kai. Sidw/na plh/qoj polu. avkou,ontej o[sa evpoi,ei h=lqon pro.j auvto,nÅ kai. ei=pen toi/j maqhtai/j auvtou/ i[na ploia,rion proskarterh/| auvtw/| dia. to.n o;clon i[na mh. qli,bwsin auvto,n\ “E Jesus com os discípulos dele retirou-se para o mar, e grande multidão de a Galiléia [seguiu]; e de a Judéia e de Jerusalém e de a Iduméia e de além do Jordão e ao redor de Tiro e Sidom, multidão[2] grande[1] ouvindo (eles) as coisas que fazia veio para ele. E disse aos discípulos dele para que (um) barco estivesse preparado para ele por causa de a multidão para que não apertassem a ele;”38 Nesse texto, temos em primeiro lugar a identificação de dois grupos: o grupo dos discípulos e a “multidão”. Todavia, há duas classes de multidão envolvidas no texto, e isso chama a atenção! O primeiro grupo é a multidão que viera da Galiléia, que até então havia sido identificado no texto como identificado por plh/qoj o;cloj mas que aqui é - palavra que designa povo, um ajuntamento numericamente grande, mas sem a ênfase depreciativa de o;cloj, uma vez que a palavra pode ser usada para designar “plenitude” ou mesmo 38 Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004. Grifo nosso. 39 Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, volume 2, p.1669. 49 uma assembléia39, indicando que as pessoas que compõem esse grupo tinham algo em comum, que as tornava um “povo”. Dessa forma, aqueles que eram o;cloj na Galiléia e nas demais regiões citadas no texto, que não tinham nada em comum e que não formavam um grupo, ao relacionarem-se com outros grupos, de outras regiões, tornavam-se plh/qoj, pois tinham algo em comum que os diferenciava do outro grupo (eram da Galiléia, ou da Judéia, ou da Iduméia). Da mesma forma, quando esses plh/qoj distintos se juntam, no verso 9, e novamente tornam-se uma multidão indistinta, sem identidade de grupo, são chamados novamente o;cloj! Outro texto surpreendente que nos demonstra essa função relacional dada ao termo pelo evangelista é o de Mc 12,41: Kai. kaqi,saj kate,nanti tou/ gazofulaki,ou evqew,rei pw/j o` o;cloj ba,llei calko.n eivj to. gazofula,kionÅ kai. polloi. plou,sioi e;ballon polla,\ kai. evlqou/sa mi,a ch,ra ptwch. e;balen lepta. du,o(... “E tendo-se assentado diante de o gazofilácio observava como a multidão coloca dinheiro em o gazofilácio. E muitos ricos colocavam muito; e vindo uma viúva pobre colocou moedinhas[2] duas[1],...”40 Esse texto chama a atenção porque nele o termo o;cloj é usado para referir-se a pessoas ricas! Esse fato nos demonstra claramente que o termo não se refere simplesmente a uma classe econômica ou social distinta, mas aponta para uma forma de posicionamento das pessoas diante da sociedade e do mundo, indicando uma condição de indistinção que poderíamos chamar de falta de identidade. Dessa forma, algumas características de o;cloj podem ser percebidas: este é um grupo de pessoas reunidas sem terem necessariamente alguma coisa em comum e que causam tumulto e confusão, e muitas vezes “atrapalham”. Essas pessoas, ao comporem 40 Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004. Grifo nosso. 50 o;cloj perdem sua identidade individual, tornando-se parte do aglomerado, da massa. Se verificarmos o uso da palavra no Evangelho de Marcos, perceberemos claramente que o;cloj, embora seja alvo dos ensinos e dos milagres de Jesus, tende a atrapalhar sua movimentação,41 kai. avph/lqen metV auvtou/Å kai. hvkolou,qei auvtw/| o;cloj polu.j kai. sune,qlibon auvto,nÅ E (Jesus) foi com ele. E seguia a ele grande multidão e apertavam a ele. avkou,sasa peri. tou/ VIhsou/( evlqou/sa evn tw/| o;clw| o;pisqen h[yato tou/ i`mati,ou auvtou/\ tendo ouvido a respeito de Jesus, tendo vindo em a multidão por detrás tocou na veste dele;42 os próprios milagres43, kai. evpeti,mwn auvtw/| polloi. i[na siwph,sh|\ o` de. pollw/| ma/llon e;krazen\ ui`e. Daui,d( evle,hso,n meÅ e repreendiam a ele (Bartimeu) muitos (multidão) para que se calasse; mas ele muito mais gritava: Filho de Davi, tem compaixão de mim. 44 chegando a colocar a vida e o bem estar de Jesus em risco45: Kai. e;rcetai eivj oi=kon\ kai. sune,rcetai pa,lin Îo`Ð o;cloj( w[ste mh. du,nasqai auvtou.j mhde. a;rton fagei/nÅ E chega em casa; e ajunta-se novamente a multidão, a ponto de não poderem eles nem pão comer. kai. le,gei auvtoi/j\ deu/te u`mei/j auvtoi. katV ivdi,an eivj e;rhmon to,pon kai. avnapau,sasqe ovli,gonÅ h=san ga.r oi` evrco,menoi kai. oi` u`pa,gontej polloi,( kai. ouvde. fagei/n euvkai,rounÅ Vinde vós mesmos a sós para lugar deserto e descansai um pouco, pois eram muitos os que vinham e os que iam, e nem para comer tinham tempo.46 41 Por exemplo, Marcos 5,24 e 27 em que a multidão comprime Jesus. Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004. Grifo nosso. 43 Marcos 2,4 já mencionado na página 25 e 10,48 – a cura de Bartimeu, por exemplo. 44 A multidão e Bartimeu são mencionados no versículo 46 do capítulo 10. Grifo nosso. 45 Em Marcos 3,20 e 6,31, por exemplo, quando a multidão o impede de comer. 42 51 Não é de admirar que os líderes judeus tivessem medo desse grupo47: avlla. ei;pwmen\ evx avnqrw,pwnÈ & evfobou/nto to.n o;clon\ a[pantej ga.r ei=con to.n VIwa,nnhn o;ntwj o[ti profh,thj h=nÅ Mas (se) dissermos: De seres humanos? – temiam o povo; todos pois tinham João realmente que profeta era. Kai. evzh,toun auvto.n krath/sai( kai. evfobh,qhsan to.n o;clon( e;gnwsan ga.r o[ti pro.j auvtou.j th.n parabolh.n ei=penÅ kai. avfe,ntej auvto.n avph/lqonÅ E procuravam a ele prender, e temeram a multidão, pois souberam que contra eles falou a parábola. E deixando a ele partiram.48 Percebemos, portanto, que o termo o;cloj não representa um grupo fixo de pessoas, mas designa um relacionamento e uma forma de comportamento das pessoas e grupos. Embora represente um personagem marcante no Evangelho de Marcos, notamos também que não se trata sempre do mesmo grupo de pessoas – muito ao contrário, vários grupos distintos, de diferentes lugares e posições sociais, são chamados pelo evangelista de o;cloj, por apresentarem as mesmas características destacadas acima. Essas pessoas, ao serem representadas em diversas ocasiões pela mesma palavra – palavra marcante e com forte significado, como vimos, aproximam-se de Jesus a partir de alguma expectativa – expectativa de milagres, de curas, de exorcismos... Essas expectativas podem ser satisfeitas ou não, mas o fato é que, ao aproximar-se de Jesus, o;cloj o;cloj49. espera receber algo, e essa é outra característica de Tais expectativas e a resposta que Jesus dá a elas, como veremos adiante, são determinantes no desenrolar da narrativa de 46 O versículo 34 do capítulo 6 deixa claro tratar-se de o;cloj. Grifo nosso. Marcos 11.32; 12.12. 48 Novo Testamento Interlinear Grego Português: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004. Grifo nosso. 49 Elizabeth Struthers Malbon, “Disciples / Crowds / Whoever: Markan Characters and Readers”, em Novum Testamentum, volume 28, nº.2, Leiden, 1986, p.104-130. 47 52 Marcos, e definirão as atitudes desse “personagem” do Evangelho diante de Jesus – atitudes que vão da aclamação ao pedido de morte! Podemos entender que Marcos usa a palavra sem esquecer de seu sentido corrente, ou seja, não ignora nem disfarça o sentido de “confusão” associado à mesma. Especialmente se considerarmos o sentido militar da palavra (como destacado na Septuaginta), e o temor dos líderes judeus à multidão, esse potencial de o;cloj de causar tumulto pode ser percebido no texto marcano (potencial destacado ainda mais pela apresentação de o;cloj como um grupo que muitas vezes tende a atrapalhar Jesus, como mencionamos). Apesar disso, no Evangelho de Marcos é perceptível também que o;cloj tem um potencial positivo pois, como veremos a seguir, é um grupo que apresenta possibilidades e é recebido e tratado por Jesus com carinho e atenção. 1.2.3. A multidão e os discípulos em Marcos Outro fator a ser destacado é que, no Evangelho de Marcos, como já mencionamos, ou seguidores de o;cloj é claramente diferenciado dos discípulos Jesus. Essa distinção parece-nos bastante significativa, e é claramente estabelecida em toda a narrativa. No entanto, não podemos pensar nesses grupos como oponentes, mas como grupos distintos que refletem tipos diferentes de relacionamento com Jesus. Interessante observarmos que, à exceção de referências abertas e não definidas em que usa as palavras “todos” (Marcos 1,27; 1,33; 1,37) e “muitos” (2,2), a primeira menção a um grupo distinto ocorre em Marcos 2,4, e refere-se a o;cloj. Embora já tenha ocorrido no texto o chamado de Jesus a Simão, André, Tiago e João (Marcos 1,16-20), a 53 palavra “discípulos” (maqhth,j) é usada pela primeira vez apenas em Marcos 2,16! Esse fato parece-nos bastante significativo por indicar não apenas a presença dos dois grupos distintos, mas por sugerir uma progressão lógica que cremos estar presente (mesmo que como possibilidade) no texto de Marcos: da multidão sem rosto e sem nome (o;cloj) podem formar-se discípulos (maqhth,j). No entanto, o Jesus de Marcos não espera essa transformação para agir em prol da multidão. Ao contrário, o texto marcano apresenta-o dando atenção à multidão de forma surpreendente. A multidão é, sem dúvida, objeto das ações e do ensino de Jesus, e foco de seu ministério. No entanto, com o estabelecimento desse “novo grupo” – os discípulos, algumas atitudes descritas por Marcos – tanto dos referidos grupos como de Jesus para com eles – passam a ser diferenciadas. Dessa forma, percebemos algumas diferenças na postura das pessoas de cada um dos grupos com relação a Jesus. Embora ambos sejam chamados por ele, a multidão e os discípulos apresentam-se com expectativas distintas. A multidão apresenta-se com expectativas de receber algo em seu próprio benefício, sejam milagres ou o ensino de Jesus, e é apresentada como pessoas que se aproximam de Jesus, que vão até onde ele está. Essa postura demonstra, sem dúvida, disposição e interesse em Jesus, e expectativa de que o mesmo poderia atendê-las. Os discípulos, por sua vez, são caracterizados por sua ação em nome de outros, não aparecendo, na maioria das vezes, como 54 recebedores diretos dos milagres50, e são caracterizados como pessoas que seguem Jesus, acompanhando-o por onde ele vai51. Sem dúvida, os discípulos são também destinatários diretos dos ensinos de Jesus, e o texto de Marcos demonstra um interesse especial de Jesus no ensino dos mesmos52. Nota-se também que, embora o evangelista deixe claro que Jesus ensinava à multidão, o conteúdo desse ensinamento normalmente não é mencionado. Quando Jesus está com os discípulos, porém, o evangelista mais de uma vez descreve o conteúdo dos ensinos de Jesus (que geralmente é associado à sua paixão e ressurreição53). Além disso, é aos discípulos, e não à multidão54, que Jesus questiona55, desafia56 e instiga57. Podemos pensar que essa postura de Marcos com relação aos ensinos de Jesus, bem como o fato de Jesus se retirar com seus discípulos (não apenas para ensinar, mas numa demonstração de convívio58) faz parte da estrutura narrativa de Marcos para salientar a necessidade de um ensino específico aos discípulos a fim de poderem cumprir seu papel como “assistentes” de Jesus no evangelho e “continuadores” de seu ministério, uma vez que esse evangelho os apresenta dessa forma. Assim, podemos estabelecer alguns pontos semelhantes e outros divergentes acerca dos posicionamentos de Jesus com relação à 50 Percebemos certa dinâmica no texto, pois as pessoas recebem os milagres de Jesus antes de tornarem-se seguidores ou seguidoras; a partir daí, tais pessoas podem ou não tornarem-se seguidoras, e essa decisão definirá o tipo de relacionamento que terão com Jesus. 51 Elizabeth Struthers Malbon, “Disciples / Crowds / Whoever: Markan Characters and Readers”, em Novum Testamentum, volume 28, nº.2, Leiden, 1986, p.104-130. 52 Note-se que por vezes Jesus os ensina em particular: 4,10; 4,34; 7,17; 9,28; 10,10; 10,26; 13,4. 53 Marcos 8,31; 9,31. 54 Embora haja passagens em que apareçam ou sejam sugeridas perguntas de Jesus em meio à multidão (Marcos 4,13; 12,35), parece não haver o mesmo desafio direcionado aos discípulos, podendo essas perguntas serem entendidas como perguntas retóricas, que não esperavam resposta! 55 Marcos 9,33. 56 Marcos 4,40; 8,17-21; 8,36-37. 57 Marcos 4,21; 4,30; 9,11-12. 58 Marcos 3,9; 4,36; 6,31; 6,45; 7,17. 55 multidão e aos discípulos: ambos são chamados por ele59 e recebem seu ensino60, e os dois grupos respondem ao ensino e aos milagres de Jesus com surpresa, admiração61. No entanto as posturas diante de Jesus serão diferenciadas: enquanto a multidão vai até Jesus em busca da satisfação de suas expectativas (de milagres ou de ensino), os discípulos seguirão Jesus, isto é, estarão com ele onde este estiver, e serão estimulados a agir em prol dos outros e especialmente, em prol da multidão62. Essa insistência de Jesus, bem como o já citado “ensino diferenciado” sugere que, no caso dos discípulos, havia um processo de mudança de expectativas a partir de uma compreensão mais profunda da proposta de Jesus e do discipulado proposto por ele. Essa compreensão estabelece uma tensão no Evangelho de Marcos, entre o chamado e o desafio de seguir a Jesus, o desejo de fazê-lo e os perigos (dor, sofrimento) que isso implica. Compreender essa diferença de postura – tanto com relação às expectativas como em sua atuação, parece-nos fundamental para a compreensão do Evangelho de Marcos, quando considerado em seu difícil contexto, pois indica a intenção do autor do evangelho em confrontar seus destinatários e orientá-los a partir tanto da atitude de Jesus quanto da identificação com algum dos grupos descritos. 1.2.4. O Jesus de Marcos e o;cloj: um relacionamento paradoxal A partir dessa diferença em sua postura e em seu relacionamento com Jesus, cremos ser possível pensar em pelo menos duas conclusões: O Jesus de Marcos, em seu relacionamento com a 59 60 61 62 Ver Marcos 7,14 e 8,34, por exemplo. Verificar Marcos 3,13. Marcos 2,12; 4,41; 5,15; 9,15; 10,24; 10,26; 11,18. Por exemplo, Marcos 9,41; 10,17-22. 56 multidão, era um exemplo de como a comunidade deveria ser, uma vez que os discípulos de Jesus, nesse Evangelho, são claramente chamados para agir como ele. Em segundo lugar, e fundamental para nossa compreensão do texto, percebemos que existe uma intenção de que as pessoas da multidão saiam da mesma e “mudem de grupo”. Percebemos essa possibilidade em passagens como Marcos 7,14 e 8,34, por exemplo, nas quais pessoas saem ou emergem do o;cloj / multidão e se apresentam diante de Jesus como indivíduos que são transformados e reintegrados à comunidade de forma restaurada. Essa nova postura representaria uma mudança de perspectiva e de expectativa, a partir de uma nova compreensão da missão de Jesus e de um novo tipo de relacionamento com ele e com o mundo. Essa possibilidade parece consistir um objetivo de Marcos ao apresentar o;cloj. Dessa forma, temos estabelecido um paradoxo: ao mesmo tempo que Jesus se relaciona com o;cloj de forma radicalmente livre de preconceitos, aceitando essas pessoas perto de si, ensinando-as e realizando milagres em seu benefício sem fazer nenhuma exigência, Marcos apresenta o desejo de transformação dos indivíduos que compõe o;cloj, a fim de que possam torna-se discípulos ou seguidores de Jesus. Ao caminhar pelo Evangelho de Marcos, percebemos que não podemos tratá-lo como um texto neutro, mas temos que considerar seu contexto (de extremo conflito, como esboçamos acima).Também não podemos considerar seus elementos – palavras ou estruturas, de forma simplista. Dessa forma, ao tratarmos do uso do termo o;cloj neste Evangelho, temos que tentar compreender sua complexidade. o;cloj não é apenas uma palavra. Remete a pessoas: as pessoas que viviam e sofriam no contexto que descrevemos acima, e que tinham suas vidas permeadas pelas expectativas descritas – 57 expectativas de mudança e libertação através da vinda de um “messias davídico”, de uma ação divina direta ou de uma revolução o;cloj armada. Ou ainda poderia representar pessoas sem muita expectativa, desiludidas e apáticas diante da realidade, para quem não havia mais nenhuma esperança de transformação. Sabemos que, em sua época, Jesus não foi o único líder a conseguir arrebanhar seguidores, e descrevemos há pouco alguns exemplos de movimentos que eclodiram na Palestina durante o primeiro século. Esse fato demonstra, como já mencionamos, o desejo e as expectativas das pessoas, e podem nos ajudar a compreender a postura de Jesus e da multidão no decorrer do Evangelho. Marcos escreve num contexto de forte opressão política e econômica, conseguida e mantida às custas de opressão militar, dominação ideológica e tentativa de aculturação de povos conquistados pelos romanos. O Império Romano estabeleceu-se e manteve-se dessa maneira, e o Evangelho de Marcos expõe essa realidade de diversas formas. Nesse sentido, a escolha de uma palavra de forte significação social e com certa conotação militar não pode passar despercebida. Às perguntas iniciais acerca de o;cloj no Evangelho de Marcos – quem eram essas pessoas e por que Marcos escolhe deliberadamente uma palavra tão cheia de significados – junta-se uma outra: como entender as diferenças de postura de o;cloj diante de Jesus, se pensarmos que a mesma palavra é usada para descrever as pessoas que, do capítulo 2 ao 12, ouvem Jesus com alegria, recebem seus milagres e querem até aclamá-lo como rei, em Mc 14,43 participam de sua prisão e, no capítulo 15 (versos 6 a 15), participam ativamente de sua condenação, pedindo sua morte? Por que Marcos usa deliberadamente a mesma palavra, indicando tratar-se do mesmo personagem de seu Evangelho? Teria havido algum “engano” da parte 58 de Marcos, ou havia uma intenção esboçada desde o início da narrativa, que pretende levar seus destinatários a alguma nova compreensão acerca da realidade? Por que o;cloj muda tão radicalmente sua posição e sua atitude diante de Jesus? Procuraremos responder a essa questão estabelecendo um paralelo entre o texto e contexto de Marcos e algumas situações representativas do Império Romano, que cremos terem permeado a mente não apenas de Marcos, mas de seus destinatários naquele momento específico, buscando identificar de que forma o Jesus de Marcos se relacionou com a visão de mundo do Império que, de certa forma, era compartilhada pelo povo judeu, embora, nesse caso, fosse apresentada apenas como expectativas. O capítulo seguinte nos remeterá, pois, ao Império Romano e algumas das características representativas de sua visão de mundo, a fim de podermos estabelecer o paralelo desejado e prosseguirmos em nossa busca pela compreensão do papel de Marcos, e da postura de Jesus diante de o;cloj o;cloj. no Evangelho de 59 2º Capítulo O IMPÉRIO ROMANO DIRIGINDO O MUNDO “Você espera sempre mais Você não se conforma Você não se satisfaz Todo mundo diz acreditar na paz E você acredita ou não? E então, o que você faz pela paz? O que você faz pela paz? O que você faz pela paz? Todos são capazes da guerra Mas ninguém luta por você Você ainda está sozinho Ninguém acredita em ninguém E você acredita ou não? E então, o que você faz pela paz? O que você faz pela paz? O que você faz pela paz?” Pela Paz Branco Mello, Nando Reis, Sérgio Britto, Charles Gavin, Paulo Miklos Gravação: Titãs 60 2.1. O MUNDO DOS DOMINADORES Roma nos fascina! As várias imagens e ideias transmitidas a nós pela história e pelas artes através dos séculos, e sempre avivadas em cada geração, fazem com que cada um de nós tenha uma – ou várias – percepções acerca do mundo romano. Dessa forma, ao falar do mundo romano, logo nos vem à mente, dentre outras ideias que compõe nosso imaginário, a visão de uma sociedade promíscua e violenta, em que as pessoas (especialmente a plebe, ou o povo comum) preocupavam-se apenas com diversões e prazeres considerados atualmente “imorais”. Tais ideias foram criadas e transmitidas graças às imagens e representações de Roma que se formaram em diferentes momentos históricos, motivadas pelas realidades e necessidades de cada momento, uma vez que cada historiador interpreta o passado e constrói seu discurso a partir de sua própria percepção da realidade63. Essas percepções, contudo, têm se mostrado superficiais, uma vez que não contemplam a complexidade dessa sociedade, separada de nós por tantos anos e por uma cultura que tantas vezes não compreendemos. Além disso, tendem a ignorar que as ideias apresentadas acerca dessa sociedade podem não representar a realidade da grande maioria das pessoas que compunham esse ambiente tão diversificado e cheio de nuances que nos acostumamos a chamar de “Império Romano”. Certamente, não temos condições, neste trabalho, de apresentar um estudo exaustivo dessa sociedade, nem é esse nosso objetivo, embora a tentação de nos aprofundar nesse tema seja bastante grande. Devemos nos ater ao período da história romana relacionado com o texto bíblico estudado, bem como salientar, dentro da 63 Renata Senna Garrafonni, Gladiadores na Roma Antiga – dos combates às paixões cotidianas, São Paulo: Annablume / Fapesp, 2004, p.34. 61 complexidade de temas e assuntos possíveis, aqueles que julgamos fundamentais à nossa análise, por serem relevantes à compreensão do referido texto. Dessa forma, situamos nossa análise no primeiro século da era cristã, período que pode ser considerado como intermediário na história da antiga Roma, época da “infância” do Império Romano. As agitações, os conflitos e as mudanças ressaltadas na Judéia – província romana, como anteriormente mencionado – são também vivenciados, embora de forma diferenciada, em toda extensão da heterogênea área dominada, e na própria estrutura do Império em formação. O Império Romano não pode ser entendido, como muitas vezes o fazemos, como um Estado moderno, não representava uma organização social homogênea e singular, mas abrigava sociedades distintas, das quais a judaica é uma delas. Os processos de conquista militar e centralização política difundidos por Roma não se abstiveram de conflitos, numa dinâmica de assimilação, ajustamento, negociação e resistência presentes não apenas na Judéia, mas em diversas outras regiões dominadas. A eclosão da revolta judaica dos anos 66 a 70 d.C., período em que situamos historicamente o texto evangélico estudado, não pode ser considerado como um fato isolado, assim como a exploração econômica, política e social ao qual aquele povo foi exposto também não o foram. Precisamos, portanto, verificar melhor o período a que nos referimos, procurando perceber ao menos em parte seu contexto e sua complexa realidade, a fim de termos condições de melhor analisar e entender o texto do Evangelho de Marcos, que nasceu sob essa visão de mundo e que carrega, em sua narrativa, elementos desse período. Situando o texto de Marcos entre os anos 66 a 70 d.C., como o fizemos, colocamo-lo num período em que o nascente Império 62 estabelecia-se politicamente como um Principado – o primeiro período do Império Romano, que sucedeu à República64. Torna-se muito difícil estabelecer uma data para essa mudança na forma romana de governo, uma vez que o final do período republicano pode ser entendido como um processo que se iniciou em cerca de 133 ou 121 a.C., com a morte dos irmãos Tibério e Caio Graco65. Apesar dessa dificuldade no estabelecimento de uma data precisa, podemos entender que os vários elementos de desagregação da República66, que fizeram com que esta perdesse sua força como “guardiã dos interesses públicos” diante dos crescentes interesses privados, foram estimulados pelo crescimento da dominação territorial romana e todas as mudanças advindas desse crescimento. Essa mudança no modo de governo significou também uma transformação cultural gradativa, que influenciaria todo o modo de vida daquela sociedade e das diversas sociedades que passariam a fazer parte do Império. Embora estejamos falando de um período de transição, em que os elementos não são facilmente distinguíveis, podemos considerar como marco para o estabelecimento do poder pessoal que define o Principado os governos de Caio Graco, Sila, Pompeu e Júlio César67. 64 O Principado pode ser compreendido como o “primeiro período” da recém restaurada monarquia romana (entre os anos 27 a.C. e 193 d.C.), constituindo um período político híbrido que conservava as instituições republicanas, mas colocando-as sob a tutela do Princeps. Foi seguido historicamente por um “segundo período” monárquico denominado Dominato. 65 Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 2006, p.22. Verificar também Leon Bloch, “Luchas Sociales” em La Antigua Roma, Buenos Aires: Editorial Claridad, 1934. 66 Podemos citar, de acordo com Norma Musco Mendes, o conflito entre individualismo X coletivismo, as lutas pelo exercício do poder, que formaram coligações políticas, o uso de violência na vida pública e especialmente a criação de um exército profissional e permanente como fatores básicos para o desenvolvimento de um poder pessoal, p.22. 67 Acerca desse período da história romana, verificar: Leon Bloch, “Luchas Sociales” em La Antigua Roma, Buenos Aires: Editorial Claridad, 1934; Gilvan Ventura Silva e Norma Musco Mendes, Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 63 Especialmente o último pode ser considerado como o responsável por lançar as bases de um poder pessoal absoluto, com forte ênfase militar, que se desenvolveria até consolidar-se na monarquia romana. Mesmo não tendo tido tempo hábil para consolidar-se como regente, é sobre suas bases que essa monarquia seria erguida. Otávio Augusto, filho adotivo e sucessor de Júlio César, foi quem estabeleceu o sistema monárquico através do Principado, não sem uma disputa anterior68, e ainda necessitando, para isso, do apoio do Senado. Apresentando-se como “defensor da tradição romana” contra a ameaça oriental (simbolizada por Marco Antonio e sua aliança com o Egito, especialmente), Otávio ganha a simpatia tanto da aristocracia quanto do povo de Roma e, especialmente depois da batalha em que derrota Marco Antonio, em 31 a.C., estabelece-se como o “restaurador da liberdade e da paz” que garantiria a proteção do Estado e dos cidadãos romanos, além de manter a dominação do mundo conquistado. O desenvolvimento desse Principado por Otávio, bem como a obtenção de cada vez mais poder e autoridade foram gradativos e muitas vezes não perceptíveis, pois havia a aparência de que a soberania do Senado e do povo estava mantida, embora na prática ambos tenham se tornado, como veremos adiante, em “clientes” do Princeps, dentro do sistema do Patronato. O Principado trouxe a Roma e a todo o Império nascente algumas consequências importantes. Marcou o fim do pouco que ainda restava de decisão popular, pois a liberdade eleitoral foi quebrada e as questões políticas passaram a não serem mais debatidas em público, como ocorria durante a República. O exército passou a ser regular e 2006, 300p.; Theodor Mommsen, História de Roma (Excertos), Rio de Janeiro: Editora Opera Mundi, 1973. 333p. 68 Referimo-nos às disputas ocorridas durante o chamado Triunvirato, período em que o governo romano foi dividido entre Lépido, Marco Antônio e Otávio, especificamente a disputa entre Otávio e Marco Antônio (Lépido havia morrido), que deu ao primeiro a vitória e a posição de regente único de Roma. 64 sustentado pelo Estado, cujo representante máximo era o Imperador, o que estabeleceu um vínculo fortíssimo entre ambos. Foram criados diversos cargos públicos a fim de manter o novo regime, o comando do exército e a administração das províncias, muitos deles assumidos pelos Senadores que, ao mesmo tempo, tinham seu poder cada vez mais reduzido. Essas mudanças, obviamente, acarretaram num aumento de gastos, criando-se a necessidade de aumento das receitas. Essa necessidade de aumento das receitas impeliu a criação de impostos. Conhecendo o cadastro provincial, Augusto criou o tribunum capitis, um imposto “por cabeça” do qual a Itália estava isenta, e o tribunum soli, imposto “sobre as propriedades”, cobrado de todos os proprietários de bens imóveis. Além desses, foram criados impostos indiretos aliados às taxas de alfândega e circulação de mercadorias. A política monetária era prerrogativa do Príncipe, que se constituiu, assim, como o cidadão mais rico do Império. Essa noção também é muito importante para a prática do Patronato, como veremos a seguir. Os sucessores de Augusto procuraram consolidar seu sistema administrativo e ampliar o poder imperial. A partir da ditadura de Júlio César, o Senado já havia perdido seus poderes principais. Augusto dissimulou essa impotência política dando novas atividades ao Senado, que se tornou um corpo de funcionários civis que anunciava ou confirmava as decisões do Príncipe. Ao mesmo tempo, ao povo restou um poder de decisão apenas figurativo, uma vez que a confirmação dos poderes ou decisões do Príncipe era apenas nominal e não influenciava nas decisões já tomadas. Além disso, o contato físico entre os cidadãos e entre estes e as instâncias de poder, desenvolvido durante a República, foi substituído gradativamente pelo aparelho de Estado recém criado. 65 Como mencionamos anteriormente, todas essas mudanças marcaram não apenas a política e a economia da sociedade romana, mas sua cultura e visão de mundo. Citando Mendes: “À nova identidade política do Princeps como tutor de todo processo decisório civil e militar se aliou a ideia de início de uma nova era, durante a qual Roma, pela vontade divina e providencial, havia superado um momento de caos dominado pelas guerras civis e estava destinada a organizar e controlar o mundo conhecido.”69 Com o fim das guerras civis que marcaram o final da República, a união do povo romano sob um mesmo líder e a expansão territorial e financeira, estava inaugurada a “Paz Romana”, a Paz de Augusto, com todas as consequências sociais, culturais e políticas que adviriam dessa dominação e de sua manutenção. 2.1.1. Um Mundo Romano: Processos de Expansão e Dominação Conforme citado anteriormente, o processo de expansão territorial romano foi longo (compreendendo desde o século 5 a.C. ao século 2 d.C., aproximadamente), com intensidade variada no decorrer desse período, e foi acompanhado por transformações sociais, políticas e, consequentemente, culturais. Com as transformações políticas que outorgaram a dominação para uma só pessoa, Otávio assumiu o título de imperator, derivado da palavra imperium, termo revestido de caráter sagrado, que significava “uma força transcendente, criativa e reguladora, capaz de agir sobre o 69 Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 2006, p.37. 66 real e de o submeter à sua vontade”70. Acreditava-se que esse poder era prerrogativa do deus Júpiter, concedido por este ao magistrado escolhido pelo povo romano, capacitando-o ao governo e ao mesmo tempo identificando-o com a divindade. Essa ideologia coadunava com o pensamento oriental de um “benfeitor universal”, assumido por Otávio Augusto e por seus sucessores. Um fator importante, que marcou profundamente a visão de mundo e a postura romana é que por tradição, o imperium deveria ser concedido no campo de batalha pelos soldados vitoriosos que aclamavam seu chefe ou general, concedendo-lhe o título de imperator. Somente uma vitória em batalha permitia tal aclamação, que deveria ainda ser confirmada pelo Senado. Durante o período do Principado, especialmente na época de nosso maior interesse, percebemos que essa tradição era bastante forte, uma vez que a sucessão dos Imperadores não era hereditária (nem poderia ser, pelos ideais republicanos ainda presentes). Esse título e a tradição a ele vinculada acentuam a importância e a força que o exército romano teve na história não apenas da expansão e conquista territorial romana, mas em sua manutenção71. Dessa forma, após a morte de Otávio em 14 d.C., o poder é assumido por Tibério, que havia sido escolhido e preparado por Otávio e confirmado pelo Senado (sem seguir a tradição mencionada acima, embora houvesse recebido o comando militar superior antes da morte de Otávio). Contudo, com a morte de Tibério em 37 d.C., como não havia regras definidas para a sucessão, o exército aclama Calígula, 70 Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 2006, p.38. 71 Esse interesse do exército pelo Imperador pode ser compreendido também pelo fato de, nessa época, o exército ser permanente e depender do Estado (ou do Imperador) para sua manutenção! 67 cuja designação é confirmada pelo Senado72. A tradição de aclamação prossegue: em 41 d.C, com a morte de Calígula, os pretorianos73 aclamam Cláudio, tio de Calígula, decisão também confirmada pelo Senado; em 54 d.C, com a morte de Cláudio, acontece a aclamação de Nero (também pelos pretorianos), mais uma vez ratificada pelo Senado74. Com a morte de Nero, em 68 d.C. (portanto, exatamente no período de nosso maior interesse, em meio à Guerra Judaica), inicia-se a primeira crise sucessória do Império Romano. Durante o período de um ano (entre 68 e 69 d.C.), quatro Imperadores assumem o governo: Galba, Oto, Vitélio e Vespasiano, que havia sido aclamado pelo exército e é confirmado pelo Senado, apesar de não ser legitimamente romano (Vespasiano era proveniente de uma família rica da região da Sabina, província romana)75. Vespasiano consolida sua autoridade apesar de inicialmente ter a seu favor, aparentemente, apenas o sucesso militar conseguido através da Guerra Judaica. É a partir de seu governo que a “autoridade” do Princeps passa a ser reconhecida constitucionalmente e não mais como uma “concessão temporária” dada pelo Senado (o que viria a ser uma prerrogativa para a monarquia absoluta). Buscando a estabilidade e temendo uma nova crise, como a acontecida nos anos 68 e 69 d.C., Vespasiano designa seus filhos como seus sucessores, tendo-os como colaboradores principais de seu governo. Dessa forma, com sua morte em 79 d.C., seu filho Tito o 72 Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 2006, p.44. 73 Originalmente, o termo “pretor” referia-se ao magistrado romano responsável pela administração da justiça e era, por isso, responsável pelo seu policiamento. Os pretores constituíam, dessa forma, uma força militar citadina, responsável especialmente pela segurança do Imperador. 74 Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 2006, p.44. 75 Ibid, p.45. 68 sucede por apenas dois anos, sendo seguido por seu irmão Domiciano em 81 d.C., finalizando o que poderia ser chamada de “dinastia” iniciada por Vespasiano. A partir de então, acontecem alterações nas formas de escolha dos Imperadores, que deveriam ser indicados pelo Imperador ainda reinante e ser a pessoa mais qualificada para exercer essa tarefa. Apresentamos essa breve exposição das sucessões de Imperadores desse período de início e consolidação do Principado para demonstrar como a noção de imperium estava ainda vinculada, nesse período, à vitória militar que dava autoridade a um general para ser aclamado, e como essa noção foi assimilada à política de Roma e ao seu representante máximo, o Princeps ou Imperador. Essa compreensão acerca do imperium transformou também a visão de mundo romana acerca da abrangência dessa palavra, que passou a significar não apenas o poder ou ato de governar, mas também a própria região governada. Assim, a expressão Imperium Romanum passou a designar não apenas o poder concedido ao Princeps, mas o espaço em que este exercia seu poder. Essa seria a gênese da ideia de Império transmitida desde então, da qual o Império romano tornar-se-ia paradigma. Esse Imperium era concebido pelos romanos como sendo composto por dois espaços principais, a Urbs, identificada pela cidade de Roma, que era o centro do mundo, e a Orbis Terrarum Imperium, que seria constituída por duas partes: um território organizado e submetido às leis civis romanas, e as externae gentes, representadas pelas terras não anexadas mas que reconheciam a superioridade romana. Não podemos dizer, contudo, que as diversas áreas conquistadas pelo Império Romano tenham sido anexadas obedecendo a um programa elaborado, nem que houve algum planejamento econômico acerca da exploração dessas terras. As palavras que 69 poderiam ser utilizadas no contexto de exploração das terras conquistadas e anexadas seriam integração e articulação: o Império romano integrou as economias e as culturas conquistadas, procurando articular seus interesses com os interesses das elites nativas, a fim de gerar algum tipo de unidade que assegurasse a manutenção de suas conquistas. Percebemos que, na estrutura concêntrica do Império nascente, em que Roma simbolizava o centro político e econômico (embora essa centralidade econômica seja também questionável, e sofra transformações devido ao estímulo do comércio), a integração entre centro e áreas integradas (periféricas ou semi-periféricas) era feita através de relações de troca de poder e riqueza entre as partes. Esse tipo de relação, característico do sistema conhecido como Patronato, será melhor explanado adiante, e é uma das razões da manutenção, sempre que possível, de estruturas de poder nativas e da cooptação de suas elites. Temos que salientar, também, que as relações de exploração exercidas por Roma também sofreram alterações, e não se mantiveram iguais durante o período do Império. Num primeiro momento, que aconteceu ainda durante o período republicano, o interesse na expansão e consolidação do domínio romano (sobre a Itália, inicialmente, e depois sobre os demais territórios), a exploração consistiu na anexação de terras e obtenção de espólios de guerra (bens materiais e humanos). Em seguida, houve um período que pode ser entendido como “exploração desenfreada”, comandada por ações e interesses individuais, sem sistematização, o que favoreceu a corrupção e extorsão, o arrendamento de serviços públicos e a cobrança de altas taxas de juros nos empréstimos feitos às províncias. Com o Principado, temos uma terceira fase da exploração, mais sistematizada e organizada, em que o “amadorismo” civil e militar anteriores foram dando lugar a um burocrático aparelho de Estado que 70 visava um melhor e mais efetivo controle e uma exploração mais racional das áreas dominadas. Obviamente tal descrição é tipológica, e sabemos que esses períodos de exploração não foram claramente definidos, uma vez que o processo de conquista foi longo, e as províncias apresentavam estágios diferentes desse processo e formas diferenciadas de reação – que muitas vezes definia o tipo de tratamento que tal província receberia. Além anteriormente realidades que disso, sobre a temos que “política compunham o de considerar o integração” Império, que que das fez dissemos diferentes com que o relacionamento fosse diferenciado. No entanto, percebemos que os territórios conquistados, independentemente de sua situação, eram considerados como áreas legítimas de exploração, terras públicas de Roma. 2.1.2. Reorganização do Espaço Como Tática de Dominação Através do exposto, percebemos que já estava arraigada, no primeiro século de nossa era, uma auto compreensão romana de superioridade diante de outros povos. Por isso, Roma deveria cumprir sua missão “civilizadora” e estabelecer seu domínio universal sobre esses povos. Nesse contexto, o processo de conquista territorial e dominação assume funções que vão além da ocupação militar e exploração econômica acima esboçados, utilizando diversos outros mecanismos a fim de propagar o que poderíamos chamar de um “projeto cultural” que difundisse a identidade romana aos povos conquistados e anexados ao Império. 71 Esse processo de propagação é o que tem sido chamado de Romanização76 – um esforço por parte da metrópole, Roma, para difundir seu modo de pensar e viver aos povos conquistados. Ao falarmos sobre esse termo e sobre o sentido do mesmo, entretanto, precisamos ter cuidado, pois como tantos outros, esse tem sido um termo mal compreendido e por vezes utilizado de forma simplista nos estudos acerca da história desse período. Conforme mencionamos, precisamos ter em mente que os processos romanos de expansão e conquista aconteceram de forma heterogênea e complexa, com diversas fases e também diversas formas de percepção e reação. Não podemos ser simplistas ao verificar esses fenômenos, ou reduziremos sua dimensão. O termo “romanização” foi utilizado muitas vezes para designar a forma de mudança cultural resultante da incorporação de uma cultura por outra, vinculado ao termo “aculturação”, que indicaria um tipo de transmissão de cultura do povo dominador sobre o dominado de forma uniforme e “progressista” (concordando com a ideia de que a cultura romana, nesse caso, seria “superior”). Sabemos, entretanto, que a interferência entre culturas não se processa dessa forma e, especialmente no que concerne a povos dominados, os graus de assimilação e resistência são muito variados. Além disso, havemos de considerar que esse processo sempre representa, ainda que de forma desigual, algum nível de intercâmbio, ou seja, o pensamento romano também era influenciado, muitas vezes, pelos costumes e culturas dos povos conquistados. De qualquer forma, havia um interesse em estabelecer um “modo romano de viver” a partir da crença na superioridade romana e em sua missão de civilizar o mundo. Dentre as estratégias utilizadas para esse fim, de forma consciente ou não, destacaremos algumas que consideramos relevantes para a compreensão do contexto da Palestina 76 Termo que surge na historiografia em fins do século 19 e início do 20, significando o contato entre os romanos e outros povos e a difusão de seus padrões a esses povos. 72 no período de escrituração do texto de Marcos, salientando trataremse de apenas alguns aspectos dos complexos mecanismos de relação entre Roma e os povos conquistados. Uma das estratégias utilizadas pelo Império Romano para promover a já citada integração das terras conquistadas foi a reestruturação e redefinição do espaço e dos territórios conquistados. Essa reestruturação poderia acontecer pelo menos de duas formas diferentes: através de aliança, em que os líderes e elites dos povos dominados eram incluídos na órbita romana, aceitando a hegemonia política romana, ou através de subjugação, em que, após resistência, os povos derrotados eram submetidos ao jugo romano – massacrados ou escravizados, tendo suas terras tomadas e divididas entre os romanos e seus aliados77. Em muitos casos, como na região da Palestina, parece ter havido formas híbridas de dominação, pois as formas de resistência eram variadas. Percebemos, contudo, que havia uma tendência maior à revolta nos meios rurais, tradicionalmente periféricos, enquanto nas cidades, onde se concentrava a maior parte da elite, as alianças eram estabelecidas. Além disso, diante do costume romano de estabelecer colônias romanas entre os povos conquistados, concedendo terras a camponeses (cidadãos romanos) e aos soldados (como forma de reconhecimento/pagamento), havia uma grande ameaça aos meios de sobrevivência dos camponeses, que dependiam da terra para sua subsistência. Como mencionamos no capítulo anterior, esse costume parece ter acentuado e acelerado o processo de empobrecimento dos camponeses da região da Palestina e da Galiléia, mais especificamente. Destaca-se também, nesse processo de reestruturação do espaço, uma ênfase no estabelecimento, desenvolvimento ou remodelamento de cidades romanas (civitates), que representavam o ideal romano de vida e serviam para estabelecer certa unidade ao 77 Pedro Paulo de Abreu Funari, Grécia e Roma, São Paulo: Contexto, 2004, 142p. 73 Império, dando-lhe certa coerência. As cidades serviam, além disso, como um centro organizador das áreas rurais e como centralizadoras econômicas, possibilitando o gerenciamento do excedente produtivo e a centralização dos tributos. Além disso, representavam os centros da cultura romana e reproduziam o modo romano de viver. Nesse sentido, podemos compreender melhor as diversas obras de Herodes Antipas, citadas no capítulo anterior, como uma tentativa de “adequação” do território aos gostos e interesses romanos, assumindo assim seu papel como “rei cliente” – papel que seria também desempenhado por seus sucessores, e mesmo pelos procuradores romanos. O estabelecimento das colônias, a reestruturação do espaço urbano e a ampliação das redes de acesso viário, enfim, todo o programa de reestruturação do espaço aplicado por Roma às províncias funcionaram como demonstração de sua dominação sobre essas regiões, e serviram como meios de inserção que acarretaram mudanças econômicas, políticas e culturais significativas, aumentando, pelo menos na região da Judéia, os desníveis econômicos e acirrando as diferenças sociais locais. Precisamos entender melhor, nesse ponto de nossa análise, a relação política estabelecida entre Roma e as províncias. Para isso, analisaremos mais detalhadamente o que seria essa forma de governo que temos chamado de Principado. 2.1.3. Princeps, Patrono e Imperador Como dissemos anteriormente, o período político conhecido como Principado estabeleceu-se como um regime que mesclou padrões e costumes antigos (vindos do período republicano) e novos. Dentre as concepções antigas, reapropriadas e resignificadas pelo Principado estão os conceitos de Princeps e Patrono, ambos de 74 significado amplo e complexo, altamente importante para a compreensão das relações políticas do período. Segundo Paul Veyne78, “clientela” e “patronato” eram palavras que os romanos utilizavam para pensar as mais diferentes relações, integrando o cotidiano de pessoas de todas as classes sociais romanas. Significava um tipo de relação pessoal estabelecida pela prestação de algum favor ou benefício entre pessoas, que poderiam ser “pares” (ou seja, pessoas de mesmo nível social) ou não (nesse caso, o favor era prestado normalmente pelo detentor da condição mais alta). Esse processo geraria uma relação de troca recíproca, em que o patrono provaria seu meritum através de suas ações, que deveriam, por sua vez, ser respondidas com gratia, ou seja, reconhecimento e lealdade. As pessoas recebedoras dos favores do patrono eram chamadas de amigos (amici), em caso de terem o mesmo nível social, ou mais frequentemente de clientes. Dessa forma, o termo patrono era usado para descrever o papel que um indivíduo tinha na sociedade, e a consequente atenção que recebia em função de suas capacidades morais e materiais, que lhe dava autoridade (auctoritas) para atuar publicamente. Assim, um patrono poderia ser conhecido pela quantidade de “amigos” ou “clientes” que conseguia devido às suas virtudes e às suas realizações, sendo necessário, portanto, certo grau de riqueza para que pudesse ser considerado um benfeitor e, dessa forma, ter destaque ou fama. O patronato constituía uma relação de troca, pois assim como os amigos ou clientes precisavam da ação do patrono, este também precisava do reconhecimento e da fidelidade destes para mostrar sua dignidade e mérito. Esse era um fator de valor moral importantíssimo, inclusive para que tal patrono pudesse vir a ter algum cargo público. 78 Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1, p.111. 75 Assim, estabeleceu-se nas cidades romanas, desde períodos republicanos, a figura de notáveis locais que se destacavam por suas ações em favor de seus clientes e das próprias cidades, como forma de demonstrar sua dignidade. Veyne usa a expressão evergetismo79 para descrever esse tipo de ação, em que tais notáveis ofereciam à cidade e seus cidadãos edifícios públicos, festas, banquetes e espetáculos (como os de gladiadores, que veremos adiante). Esses notáveis eram chamados, ainda no período republicano, de Príncipes Civitates, o “Príncipe da Cidade”, função que se tornou uma obrigação pública daqueles que desejavam mostrar que pertenciam à classe governante80. O Princeps deveria ser, nesse contexto, o cidadão mais proeminente de uma cidade, o “primeiro entre os pares”, destacado por sua popularidade, dignidade e autoridade. O sistema político do Principado, com sua centralização de poder (advinda da centralização da cidade de Roma como centro do Império e cidade mais importante) fez nascer um regime instituído pela monarquia de um chefe intitulado significativamente Princeps. Essa representação é muito importante para nós, pois apresenta o governante romano como um “cidadão especial”, alguém com papel de destaque que deveria desempenhar, como veremos, sua função como “máximo patrono” do Império Romano e de seu povo! A nova estrutura política estabelecida no Principado, em que o governante detinha o Imperium, o poder de governar (como vimos anteriormente), foi marcada por relações de trocas pessoais baseadas no sistema do patronato, em que o Princeps/Imperador desempenhava a função de “Supremo Patrono” de Roma, seu sumo benfeitor. As relações políticas estabelecidas – inclusive no que concerne à eleição e nomeação para cargos políticos, mesmo nas províncias, obedecia à 79 Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1, p.114. 80 Ibid, p.114, 115. 76 estrutura de clientelismo e dependia, obviamente, de um bom relacionamento com o Imperador ou com sua rede de amigos mais próximos. Mais uma vez, ressaltamos a necessidade de perceber que o processo político aconteceu de forma dinâmica, e que cada Imperador lidou com o poder de forma diferenciada, assim como cada província e cada grupo governante local respondeu de forma também diferenciada. No entanto, importa-nos saber que essa rede de relacionamento foi mais um fator de agregação do Império, uma vez que os líderes nativos das províncias, bem como os procuradores romanos designados para tais cargos (como foi o caso da Judéia), tinham interesse em manter sua posição e privilégios e, por isso, precisavam demonstrar gracia, (reconhecimento e lealdade) ao Imperador conservando a paz e a ordem em sua região, bem como mantendo a fidelidade no envio de tributos e presentes. A habilidade com que cada um desses líderes faria isso, tornando-se também “patronos” da população em cada região, demonstraria sua capacidade de permanecer ou não no cargo ocupado81. O paradoxo dessa posição do Imperador como Princeps e Patrono de Roma, porém, é que à medida que crescia seu poder (e diminuía o poder do Senado), foi sendo criado um cada vez mais apurado aparelho de Estado que tornava o Princeps gradativamente mais distante da população de quem devia ser o benfeitor, alterando o caráter de relacionamento direto que era uma marca do patronato. Ao mesmo tempo, como vimos anteriormente, esse distanciamento significou a perda de poder da população. Além disso, com o estabelecimento desse sistema no relacionamento entre as províncias e a capital do Império, coube aos 81 Não havia interesse, da parte de Roma, de que as populações das províncias se revoltassem, daí a necessidade de as elites e governos locais estabelecerem meios de controle e manutenção da paz. Percebemos que, no caso das províncias da Palestina, não houve essa habilidade, e o agravamento das diferenças econômicas acentuou o clima de revolta da população. 77 lideres nativos, como dissemos, a tarefa de demonstrar constantemente seu reconhecimento ao Imperador, o que acirrou as diferenças econômicas e sociais nas províncias e estimulou a exploração dessas elites nativas sobre as populações locais, a fim de que estas pudessem cumprir fielmente suas obrigações econômicas com Roma, e até excedê-las através de presentes, quando possível. Percebemos que o patronato no período do Principado tinha dois lados: estabelecia uma rede de relações cada vez mais hierárquicas, cujo ápice era o Princeps, das quais as elites e lideranças faziam parte ainda que de forma distante, e ao mesmo tempo estabelecia níveis cada vez maiores de marginalidade, tendo o Princeps e Roma como referencial. Dessa forma, tomando a Palestina como exemplo, esta poderia ser considerada como periferia do Império e, dentro dela, a Galiléia, zona predominantemente rural, era a periferia. Da mesma forma, se a liderança nativa era cliente e devedora do Imperador, a população local da província o era (ou deveria ser) desses líderes, que deveriam proporcionar (mas de fato não o faziam, na maior parte das vezes) à população algum tipo de benefício. Construção de edifícios públicos, promoção de festas, banquetes e espetáculos, e distribuição de donativos estavam entre esses benefícios que deveriam ser concedidos à população pelo benfeitor. No caso da capital do Império, a cidade de Roma, o Imperador era o responsável pela manutenção dessa obrigação e, nos demais lugares, seus representantes deveriam fazê-lo. Analisaremos a seguir um fenômeno do mundo romano que compunha essa gama de “benefícios”, e que se destacou como uma das marcas dessa civilização, transmissor dos valores romanos e de “romanização” e, ao mesmo tempo, pode ser entendido como um meio de manifestação popular: as lutas de gladiadores. 78 2.2. O FENÔMENO DOS MUNERA Durante séculos, as lutas de gladiadores (munera82) atraíram os olhares e interesses do público romano. Ainda hoje, por diversos motivos, esse fenômeno chama a atenção, suscitando comentários que vão desde o estranhamento pela violência dos espetáculos à procura pelo significado dos mesmos. A origem dos munera é incerta, e compõe ainda fonte de discussão entre pesquisadores da área. Renata Senna Garraffoni apresenta a data provável de 264 a.C. para a apresentação do primeiro combate de gladiadores em Roma, embora saliente que esse dado ainda é discutível, assim como a tradicionalmente aceita origem etrusca de tais combates83. Na atualidade os combates de gladiadores continuam sendo alvo de interesse e atenção, constituindo fonte para os mais diversos sentimentos, que vão da curiosidade para entender a razão do fascínio exercido tanto tempo pelos espetáculos à repulsa pela violência dos mesmos, tão enfatizada. De fato, imaginar que grandes públicos, formados por pessoas das mais diferentes condições sociais e culturais, se aglomerassem em anfiteatros para assistir a combates sangrentos, caçadas, execução de criminosos ou simulações de batalhas navais (naumáquias) soa-nos estranho e muitas vezes incompreensível. 82 Munus, palavra latina cujo plural é munera, é um termo de caráter jurídico-social cujo significado pode ser “empenho”, “presente”, obrigação”, gratificação”, representando um dever que um cidadão deveria prestar aos demais (como a obrigação de um magistrado com relação a seus encargos, bem como as obrigações dos nobres das cidades para com sua população). O vínculo com os combates de gladiadores parece advir do fato de que, inicialmente, tais combates, de significação religiosa, representava uma homenagem de honra que deveria ser prestada a um falecido ilustre (múnus funebre), constituindo uma “obrigação” de seus familiares. Acerca dos significados do termo, conforme Pedro Paulo de Abreu Funari, Cultura Popular na Antiguidade Clássica, São Paulo: Editora Contexto, 1989. 83 Renata Senna Garraffoni, Gladiadores na Roma Antiga – Dos Combates às Paixões Cotidianas, São Paulo: Fapesp/ Anablume, 2005, p.19. 79 Talvez realmente não sejamos capazes de compreender esse fenômeno e a influência que exerceu na vida e na mentalidade romana por mais de seis séculos84, mas cremos que muito de nosso estranhamento deve-se ao fato de que os conhecimentos que temos sobre as lutas de gladiadores tendem a ser simplistas, exaltando apenas um lado ou uma parte das mesmas, sem considerar a necessidade de verificar tal fenômeno como algo complexo, composto por vários aspectos e realidades (como temos ressaltado diversas vezes nesse trabalho). Em outras palavras, a percepção simplista que recebemos acerca das lutas de gladiadores (como de outras realidades históricas) tende a nos tornar preconceituosos e nos impede de ver que há muito mais significados envolvidos nesse fenômeno. Dessa forma, nossa proposta é tentar verificar melhor a complexidade do fenômeno dos munera e seus significados, especialmente no período histórico de nosso maior interesse, ou seja, o primeiro século da era cristã, considerando o contexto de mudanças políticas e sociais desse período, nos aspectos apresentados acima. Ao procurar compreender os combates dessa forma dinâmica e complexa, percebemos, através da verificação dos discursos historiográficos acerca do mundo romano, que os autores tenderam a ressaltar aspectos parciais do fenômeno, dando a estes uma condição por vezes dogmática de “única interpretação possível”. Felizmente, esse tipo de posicionamento tem sido questionado e repensado pela historiografia consideram moderna, as que complexidades tem e as apresentado pesquisas diversas possibilidades que de interpretação dos fatos históricos. As pesquisas sobre os munera remontam ao século 19, juntamente com pesquisas acerca de outros tipos de espetáculos (os 84 Consideramos as datas prováveis de 264 a.C. para a realização do primeiro combate público em Roma e a data de 313 d.C, em que o Imperador Constantino proibiu os combates, como marcos referenciais, embora saibamos que os mesmos aconteceram desde antes dessa data, bem como se estenderam pelo menos por mais alguns anos após o decreto de Constantino. 80 jogos circenses e o teatro), e existe uma diversidade de percepções acerca de como se organizavam os espetáculos, seus significados e funções sociais. Assim, no século 19 e início do 20 os espetáculos, especialmente os combates de gladiadores, foram interpretados como parte da chamada política do “pão e circo”, que visava alimentar e divertir uma população ociosa e desinteressada. Essa visão, bem como a expressão que a denomina, tornou-se popular. Já nos anos de 1970, propõe-se uma interpretação das arenas como espaço de confronto entre o povo e o Imperador, alterando a visão de que a população era desinteressada, dando um caráter mais político aos combates, todavia continuando com a tradição de visão única e homegeneizante do fenômeno. Na década de 1980, os estudiosos passam a perceber a possibilidade de interpretação levando em conta aspectos culturais dos espetáculos, suas particularidades e complexidade85. Nesse contexto, Garraffoni86 apresenta sua pesquisa acerca dos munera de forma diferenciada, considerando não apenas as diversas possibilidades interpretativas desse fenômeno ao levar em conta as diferenças regionais e temporais (uma vez que os combates aconteceram por um período muito longo, numa vasta região), mas também dando lugar à pesquisa que busca identificar um tipo de manifestação popular sobre os combates, fato até então pouco observado, uma vez que os estudos costumam levar em conta normalmente materiais escritos em sua maior parte pelas elites. Consideraremos, contudo, o estudo e opiniões dos diversos classicistas mencionados como passos importantes para a compreensão dos munera, passos que, se verificados à luz de outras possibilidades, podem nos indicar pistas de análise bastante interessantes, se relacionadas e vistas como partes do complexo 85 Renata Senna Garraffoni, Gladiadores na Roma Antiga – Dos Combates às Paixões Cotidianas, São Paulo: Fapesp/ Anablume, 2005, p.59- 90. 86 Renata Senna Garraffoni, Gladiadores na Roma Antiga – Dos Combates às Paixões Cotidianas, São Paulo: Fapesp/ Anablume, 2005, 225p. 81 imaginário romano. Sabemos que ainda dessa forma não poderemos supor “desvendar definitivamente” esse fenômeno complexo e amplo, mas cremos ser possível identificar elementos que nos ajudem na compreensão de parte da realidade vivenciada e expressa nos combates de gladiadores no primeiro século da era cristã, e relacionálos com a estrutura narrativa do texto bíblico estudado, estabelecendo um diálogo entre o texto e os munera. 2.2.1. Além do Sangue: Princípios e Valores nos Munera Um primeiro aspecto que chama a atenção com relação aos munera é, como salientamos anteriormente, a violência dos combates, e o fato de pessoas dos mais diferentes níveis sociais e culturais se reunirem para assistir a tais demonstrações de violência. Ao analisar os combates temos que ter em mente, porém, que os conceitos de “violência” são relativos e dinâmicos, socialmente criados, assim como a maioria dos conceitos morais que utilizamos. Essa ideia pode parecer chocante à nossa “sensibilidade contemporânea”, mas não devíamos nos espantar, uma vez que percebemos, mesmo em nossa época, que os padrões que definem quais níveis de violência são “moralmente aceitos” são diferentes em cada cultura, e são constantemente transformados. Portanto, para um romano não consistia nenhum crime abandonar filhos indesejados (ou filhas, na maioria das vezes) aos apetites dos animais na floresta, ou à mercê de mercadores de escravos ou de quem as desejasse, nas cidades87, da mesma forma que não é chocante em muitas sociedades contemporâneas a prática de aborto, a doação de crianças indesejadas para adoção ou a eutanásia. 87 Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1, p.23- 26. 82 Não podemos julgar com nossos padrões morais uma sociedade formada e mantida através de princípios e valores militares rígidos, como o era a sociedade romana, por encarar com naturalidade (e até entusiasmo) a morte apresentada nos combates da arena, chamados de “espetáculos”. Na verdade, a arena expressava, como veremos adiante, a visão de mundo e os valores dessa sociedade, materializando-os e tornando-os palpáveis. Esses valores, inclusive o conceito de morte e o significado da morte na arena, precisam ser compreendidos, a fim de que possamos superar a ideia de que as arenas eram apenas uma demonstração bizarra de sadismo. Em sua origem, os munera eram ritos sagrados privados, uma homenagem oferecida por um falecido ilustre e, por isso, desempenhava uma função sagrada de comunicação com os deuses e ao mesmo tempo de sacrifício ritual. Segundo essa idéia, o sangue derramado nos combates servia para aplacar a ira dos deuses e tinha um poder de manter a alma do falecido em segurança88. Ao popularizar-se em Roma, os munera foram resignificados, e perderam gradualmente grande parte desse caráter sacro, mas podemos crer que seu significado “vicário” sempre esteve presente, sob outras formas de compreensão e manifestação, embora as formas de culto, a religião e a sociedade tenham mudado. O aspecto de manutenção da ordem ou de vitória sobre o caos adjacente ao rito acima descrito, por exemplo, pode ser encontrado na idéia de soberania de Roma sobre seus inimigos, presente nos combates em que os gladiadores eram prisioneiros de guerra vencidos, ou através da apresentação e execução de criminosos (especialmente criminosos políticos) que haviam perturbado a paz do Império, ou nas demonstrações de superioridade diante da natureza e do mundo 88 J. Garrido Moreno, “El Elemento Sagrado En Los Ludi Y Su Importancia En La Romanizaciòn Del Occidente Romano”, em Ibéria: Revista de La Antiguidad, ISSN 1575-0221, nº 3, 2000, p.51-82. Disponível em http//www.dialnet.unirioja.es/servlet/articulo/codigo201019 83 “bárbaro”, quando animais eram caçados nas arenas. No Principado, não havia mais sacrifício aos deuses ou aos ancestrais, mas um “sacrifício” ao Império e ao Imperador (a quem também se devia culto), para manutenção da paz e da ordem! Com o desenvolvimento dos combates e a gradativa diminuição, pelo menos oficialmente, de seu caráter sagrado/religioso, os combates passam a ser identificados pelo termo ludi89, assim como os jogos circenses, as corridas de carros e o teatro. O caráter religioso desses espetáculos nunca deixou de existir (como salientamos acima), mas ao passarem a ser considerados como “jogos”, foram agregados outros aspectos e significados aos mesmos, fazendo com que a comunicação estabelecida nos combates se desse não apenas com a divindade, mas entre as pessoas. Isso porque os jogos, em sua natureza, eram uma forma de reprodução da relação que as pessoas tinham com o mundo e, ao mesmo tempo, uma forma de poder, por transmitirem ideais e valores compartilhados que deveriam ser seguidos. Esses valores, como mencionamos anteriormente, expressavam os ideais em que a mentalidade romana estava alicerçada: virtude, coragem, disciplina e paciência ou destemor diante da morte, além da fama, da glória e da manutenção da paz e da ordem. Os munera, de certa forma, criavam um paradoxo, pois os gladiadores, personagens centrais nesses eventos, eram em sua maioria pessoas consideradas infames pela sociedade: criminosos, prisioneiros de guerra. Mesmo os homens livres que se “vendiam” para o trabalho na arena passavam a ser considerados dessa forma. No entanto, ao adentrarem à arena, de acordo com seu desempenho, poderiam adquirir “fama” e, de certa forma, ser “aceitos” socialmente. O reconhecimento e a fama poderiam vir tanto através da vitória como da derrota: se vencesse, o gladiador poderia 89 construir uma “carreira” que lhe daria glória e Plural de ludus, palavra geralmente traduzida como “jogo”, que foi usada também para identificar escolas de gladiadores, em que estes treinavam para os espetáculos. 84 reconhecimento; se perdesse, mas tivesse lutado bravamente, 90 demonstrado uirtus , poderia ser perdoado ou ter uma morte digna (pela espada), concedida apenas aos cidadãos romanos. O poder de decisão acerca do destino do gladiador derrotado era, pelo menos teoricamente, da multidão. Acerca desse poder, há muito a ser questionado porque a última palavra cabia, na verdade, ao Imperador (ou seu representante) que era, no Principado, quem oferecia o espetáculo. Além do significado religioso e de expressão de valores morais da sociedade romana, a arena funcionava também como símbolo dos poderes políticos e da superioridade de Roma, responsável pela “paz” e pela “ordem” que deveriam ser mantidas. Nesse sentido os munera podem ser vistos como um meio de controle social e político, de legitimação das estruturas sociais e como meio de coerção. A arena serve para demonstrar o destino daqueles que se opõe de alguma forma ao poder Imperial. Essas significações presentes e adjacentes aos munera não devem ser entendidas, contudo, como percepções totalmente racionais, compreendidas pelas diversas pessoas que realizavam ou assistiam aos espetáculos. Tampouco devemos pensar que tais significações e percepções eram as mesmas entre pessoas de diferentes classes sociais ou lugares. Por exemplo, a percepção que um habitante da cidade de Roma acerca de um espetáculo e seus valores adjacentes seria deveras diferente da de um habitante de 90 Virtus era um conceito que representava a integração de valores morais que concediam ao homem a excelência global e a solidez de caráter que deveriam caracterizar o “homem ideal romano”. Dentre as “virtudes” a serem desenvolvidas destacavam-se a pietas (piedade) referente aos deuses, à família e à compaixão com os vencidos, a fides (lealdade) relativa ao respeito aos pactos políticos, militares e individuais e a gravitas (dignidade), que expressava o domínio de si mesmo, a capacidade de enfrentar situações difíceis (inclusive a morte) com serenidade e a emissão de juízos. Esses valores faziam parte do ideal da elite, e eram esperados dos homens públicos, especialmente, mas de certa forma eram valores compartilhados que faziam parte do imaginário popular como o perfil do “homem ideal romano”. 85 Província. Temos que ter em mente que não apenas os significados poderiam ser diversos, mas as formas de pensar acerca dos mesmos seriam dinâmicos e diversos. Dessa forma, não podemos supor, por exemplo, que os valores apresentados como fundamentais à mentalidade romana “oficial” (como o conceito de uirtus e o desejo de recuperar a fama, por exemplo) fossem aceitos por todas as pessoas, indistintamente. Podemos questionar quais ideias outras regiões do Império – a Palestina, por exemplo – apresentavam acerca desses valores. 2.2.2. Os Munera e o Exercício de Poder Voltando aos conceitos de “patronato” e “evergetismo” citados anteriormente, e lembrando o papel ocupado pelo Princeps como o maior benfeitor de Roma e supremo patrono, e dada a importância simbólica e factual dos combates de gladiadores, o Princeps/Imperador torna-se, desde Otávio Augusto, o responsável pelo oferecimento desse tipo de espetáculo à população, assim como pela distribuição de grãos à mesma, na cidade de Roma. Nas demais cidades e províncias do Império, essa tarefa seria assumida pelos representantes do Imperador, os governantes nomeados pelo mesmo91. Dessa forma, os munera passaram a ser cada vez mais relacionados ao Estado Romano, tanto no que se refere à sua realização como aos seus significados, embora nesse caso as mudanças sejam mais gradativas e diferenciadas, uma vez que dependiam de fatores subjetivos que escapavam ao controle do Estado. De qualquer forma, é interessante observarmos como os processos de transformação caminham de forma semelhante: a 91 Ana Teresa Marques Gonçalves, “As Festas Romanas”, em Revista de Estudos do Norte Goiano, volume 1, nº 1, ano 2008, p.51. 86 religião, outrora familiar e representada pelo “pai”92, que era o sacerdote, foi se institucionalizando a ponto de, já no período da República, passar a ser representada pelo Princeps da cidade e depois pelo Imperador, assim como os espetáculos de gladiadores, que outrora eram privados e oferecidos pelas famílias, depois pelo Princeps da cidade e, finalmente, pelo Imperador, o Princeps de Roma! Podemos, a partir dessa constatação, concordar com a historiadora Ana Teresa Marques Gonçalves, “os rituais não são máscaras para o poder, mas uma forma de poder”93, pois “num momento festivo ou ritualístico se definem várias formas de interação e de relacionamento social, criando-se hierarquias e estruturando-se formas de poder”94. No período do Principado, cremos que essa manifestação de poder realmente acontecia nos combates de gladiadores de forma dinâmica, ao mesmo tempo manifestando o poder de Roma e do Imperador e a participação ou intenção da plebe, da população. Em outras palavras, cremos que as arenas eram espaços de transmissão de ideias e ideais, de oferecimento de rituais e ao mesmo tempo de confronto e conflito. Do ponto de vista dos detentores do poder oficial, o fato de a realização dos espetáculos ter sido assumido pelo Imperador já é bastante significativo. Demonstra que havia consciência da importância desses eventos e das possibilidades que os mesmos representavam – possibilidades de construção e transmissão de ideias, de justificação e manutenção das estruturas sociais. Embora não possamos dizer que havia qualquer tipo de hegemonia no Império Romano, nem no campo das ideias, os valores simbólicos compartilhados adjacentes aos munera serviam para validar e fortalecer as ideias transmitidas neles e através deles e, nesse sentido, deter o “controle” dos combates era 92 Numa Denis Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga – Estudos Sobre o Culto, o Direito, as Instituições da Grécia e de Roma, São Paulo: Editora Hemus, 1975, p.188- 195. 93 Ana Teresa Marques Gonçalves, “As Festas Romanas”, em Revista de Estudos do Norte Goiano, volume 1, nº 1, ano 2008, p.26. 94 Ibid, p.26. 87 deter o poder de influenciar e produzir idéias socialmente aceitas, o que é, segundo Faversani, “elemento fundamental para a construção de hierarquias e objeto de luta social”95. Em outras palavras, ideias são poder, e as oportunidades de reafirmação e propagação dos valores romanos presentes nos munera constituíam uma oportunidade ímpar de exercício de poder. Além disso, ao assumir o controle sobre os espetáculos sob as estruturas do patronato, cria-se uma relação de benefício/dívida que não pode ser ignorado. A ingratidão era um tipo de comportamento intolerável. Por isso, ao aceitar um benefício, os compromissos de reconhecimento e lealdade deveriam ser exercitados. Nesse caso, embora não houvesse também hegemonia nesse aspecto, especialmente durante os espetáculos, em que a aglomeração de pessoas facilitava o anonimato e dava por isso a possibilidade de uma manifestação mais livre por parte do público, talvez houvesse o desejo de produzir aquele tipo de sentimento. Acerca dessa possibilidade de manifestação, a percepção dos munera como lugar de confronto e conflito significa que estas eram ocasiões em que as pessoas poderiam manifestar-se diante dos magistrados, dos nobres e do próprio Imperador. Ao mesmo tempo que para o Imperador era uma forma de “testar” sua popularidade, as pessoas podiam também manifestar-se. Em um contexto político em que a participação popular havia se extinguido, como era o caso, e em que o contato entre o povo e o Imperador (e mesmo os senadores) havia deixado de acontecer, esse encontro era uma grande oportunidade de manifestação, especialmente se destacarmos o fator da facilidade de anonimato mencionado acima. Todavia, esse contato não abalava de nenhuma forma o Imperador, que certamente se resguardava de qualquer ameaça, e pode ser entendido como uma 95 Fábio Faversani, “Pequenos Impérios e Sociedade Na Roma Imperial”, em Fábio Vergara Cerqueira e outros, Guerra e Paz No Mundo Antigo, Pelotas: IMP e LEPAARQ, 2007, p.225. 223- 237p. 88 “liberdade concedida” exatamente com a intenção de demonstrar “disponibilidade” “acessibilidade”, gerar nas pessoas das mais diferentes classes e condições sociais um sentimento de pertencimento ao glorioso Império Romano (que era negado no dia a dia à maioria das pessoas) e inibir qualquer tentativa real de mudança, que seria entendida como traição ao Império. 2.2.3. Apresentando os Munera: Na Arena Mencionamos acima que os combates de gladiadores, em seu início, eram vinculados a funerais privados, oferecidos por grandes famílias romanas, tornaram-se espetáculos públicos desde 264 a.C., popularizaram-se depois dessa data a ponto de serem considerados, até hoje, como um marco e símbolo da civilização romana. Verificamos também que tais espetáculos passaram a ser oferecidos pelos princeps das cidades e que, a partir de Otávio Augusto, todos os combates passaram a ser realizados em nome do Princeps de Roma, o Imperador. Procuramos perceber, dentre a imensa gama de possibilidades interpretativas desse fenômeno, algumas possibilidades de compreensão de seus significados e a forma como esses significados foram assimilados e utilizados na construção da identidade romana. Falta-nos verificar, ainda, como aconteciam os espetáculos, e o que era esperado num dia de “jogos gladiatórios”. Primeiramente, precisamos diferenciar os munera das venationes. Os primeiros eram combates realizados entre homens (eventualmente mulheres), relembrando batalhas do passado ou fazendo parelhas de combatentes, enquanto as segundas eram lutas entre animais ou caçadas realizadas nas arenas dos anfiteatros. Os anfiteatros eram construções que poderiam ser desmontáveis (de madeira) ou permanentes, de pedra, de formato oval, e recebem esse 89 nome exatamente porque correspondiam ao formato de “dois teatros”. A existência de anfiteatros de madeira nos indica que eram espetáculos que poderiam ser transportados pelas mais diversas regiões do Império, fato que nos ajuda a compreender melhor a extensão do alcance desse fenômeno. Nos anfiteatros, os lugares eram determinados e demarcados de acordo com a classe social do público, sendo reservado, na primeira fileira, o podium para o Imperador e seus convidados. Depois, havia as arquibancadas (maeniana), divididas em andares. Os gladiadores, que preparavam-se para os espetáculos em uma escola própria, formavam grupos chamados de famílias, chefiadas por negociantes especializados em combates. Na véspera dos combates, que eram amplamente anunciados, participavam de um lauto banquete (cena libera) do qual o público podia participar. Desde Otávio Augusto, os espetáculos passaram a ser organizados e a seguirem um padrão. Pela manhã, por volta das nove horas, aconteciam as matutina, com a apresentação das venatione – os combates entre animais, combates de homens contra animais (bestiari) e caçadas, como mencionamos anteriormente. Ao meio-dia, no chamado meridiani, faziam-se execuções públicas de criminosos, e apresentavam-se danças e competições atléticas. Finalmente, à tarde, eram realizados os combates entre gladiadores, a parte mais esperada do dia96. Percebemos nessa estrutura dos espetáculos muitos valores e significados que, como vimos, passaram a ser usados como instrumento romano não apenas de propagação de ideias, mas de manutenção da ordem e coerção, e nesse sentido chama a atenção a inserção, nos eventos de combates, da realização das summa suplicia, as penas capitais romanas destinadas às pessoas de mais baixa 96 Kyle D. G., Sport and Spectacle in the Ancient Word, Oxford: Blackwell, 2007, p.297298. 90 condição social, que se caracterizam por sua natureza expositiva, ignominiosa e, ao mesmo tempo, exemplar e ordálica. Eram: a crucificação (crux), um suplício servil (servile supplicium) que, além da lenta agonia, tinha um sentido de exposição ignominiosa do corpo perante a comunidade; a cremação (crematio), em que a pessoa era queimada viva; e a arena (ad bestias), em que o réu era condenado a enfrentar sem armas feras ou gladiadores armados. Devemos distinguir esse tipo de execução da condenação ad gladium ludi, que era um tipo de condenação de um criminoso à arena para lutar com outros criminosos, que não era exatamente uma pena capital, porque o vencedor (ou sobrevivente) poderia conseguir perdão ou conseguir uma morte “digna”, pela espada. Havia também a condenação ad ludum gladiatorium, que obrigava o condenado a ser gladiador, como um “trabalho forçado”, que também não representava uma pena capital. As summa supplicia eram as formas de morte mais dolorosas e cruéis existentes no mundo romano, aplicadas, salvo raríssimas exceções, apenas a escravos e a homens livres da mais baixa condição social, especialmente em casos de crimes políticos que desafiassem a soberania de Roma. Inserir essas execuções na estrutura dos munera transforma esses suplícios em um espetáculo, ao mesmo tempo em que transforma os munera num sistema eficaz de manutenção da ordem sociopolítica e demonstração de poder, utilizando os valores e significados já presentes nos combates de gladiadores para demonstrar a vitória sobre inimigos de qualquer tipo, internos e externos, atualizando rituais e demonstrando a plenitude dos ideais de força viril acalentados pela sociedade. O ponto máximo do dia, entretanto, era o espetáculo da tarde, o combate entre gladiadores, e é esse o momento esperado pela grande maioria dos espectadores. É para essa hora que é esperada, inclusive, a presença do Imperador ou seu representante. O público que se 91 reúne na arena espera um grande espetáculo, com duelos emocionantes e justos, em que cada combatente dê o melhor de si, demonstrando uirtus. Para que isso acontecesse, era preciso que houvesse compatibilidade entre as armas e condições dos gladiadores, e o público estava sempre atento à manutenção dessa “justiça”. Como mencionamos anteriormente, a morte poderia fazer e por vezes fazia parte do espetáculo, mas não necessariamente. Havia casos em que, devido à grandeza da luta e pelo fato de ambos terem demonstrado destemor diante da morte, as expectativas do público eram superadas de tal forma que nenhum gladiador morria. Os munera eram eventos que, além de carregar todos os significados acima expostos, deviam satisfazer ao público, às expectativas das pessoas reunidas. O preço para a frustração das expectativas era a morte daquele que havia “decepcionado”. 2.3. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PLEBE ROMANA Começamos este capítulo apresentando alguns aspectos do nascente Império Romano no primeiro século da era cristã, destacando as mudanças políticas, sociais e culturais que esse período de transição na forma de governos apresentou e algumas maneiras de inserção utilizadas por Roma para tentar dar coesão às diferentes realidades das terras conquistadas. Buscamos também apontar que esse processo romano de extensão territorial e conquista não foi homogêneo nem harmonioso, acarretando diversos tipos de reações entre as populações a quem se dirigiu. No que se refere à capital do Império, Roma, muitas mudanças também acompanharam esse período – mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais. Até aqui, entretanto, apresentamos essas mudanças do ponto de vista do poder imperial estabelecido, apesar de termos salientado 92 em diversas ocasiões, a complexidade dos fenômenos e situações descritas, que implicam numa variedade de reações. Com relação aos munera, destacado em nosso texto como um símbolo da cultura romana e ao mesmo tempo abraçado e utilizado como símbolo de poder e mecanismo para seu exercício, apontamos a presença de pessoas das mais variadas classes sociais – especialmente dos setores subalternos da população – mas cumpre-nos esclarecer quem seriam essas pessoas e qual a importância de sua presença e manifestação nos munera. Durante séculos, tem se estabelecido a visão da população romana (e aqui se destaca a população da cidade de Roma, capital do Império, mas as visões acera da plebe são gerais) sendo composta por uma massa amorfa, desinteressada pela política e pelo trabalho, desejosa de “pão e circo”, de viver às custas do Estado e divertir-se. Essa imagem, derivada da reprodução irrefletida das fontes da antiguidade (fontes que representavam, em sua maioria, a visão de mundo e a opinião das elites), foi propagada por classicistas dos séculos 19 e 20, como mencionamos anteriormente, de forma bastante simplista, homogeneizante e acrítica. Dessa forma, a tendência de muitos estudiosos97 foi de considerar sob o rótulo de “povo” todos os segmentos populares, indistintamente. Bandidos, gladiadores, escravos, libertos e pobres em geral eram vistos como pertencentes ao mesmo grupo e teriam, portanto, a mesma visão de mundo e as mesmas ideias. Obviamente, essa percepção desconsidera as particularidades de cada grupo específico e as possibilidades de conflito entre os mesmos98. 97 Conforme Theodor Mommsen, História de Roma (Excertos). Rio de Janeiro: Editora Opera Mundi, 1973; J. Carcopino, Roma no Apogeu do Império, São Paulo: Companhia das Letras, 1990; J. N. Robert, Os Prazeres de Roma, São Paulo: Martins Fontes, 1995; M. Rostovtzeff, História de Roma, Rio de Janeiro: Zahar, 1977. 98 Precisamos ter em mente que a dicotomia simplista “elite/plebe” não corresponde à complexa realidade do período. Além da divisão social entre cidadãos e não cidadãos havia a divisão entre pessoas livres e não livres. Entre os “livres”, havia os livres de nascimento e os libertos e, entre os cidadãos, também havia ordens: plebéia, 93 A respeito da possibilidade de conflitos, a opinião geral entre esses pesquisadores, destacada por Veyne99, é a de que esses grupos (ou esse grupo, a plebe) teria internalizado de tal forma os valores da elite que as diferenças de classe e de condição social (de quem poderia usufruir as benesses do Estado, os excedentes da economia e assim por diante) era consideradas como naturais. Para esse autor, as classes populares buscavam apenas beneficiar-se através das relações pessoais do patronato, e os conflitos que poderiam advir seriam devidos a essa relação: ou conflitos entre clientes pela preferência/acesso ao patrono, ou conflitos entre clientes de patronos diferentes para a ascensão de seu benfeitor e consequentemente maior acesso aos benefícios do sistema. Outro ponto salientado pelos estudiosos, nesse contexto, seria a pretensa ociosidade do povo romano, que o levava a viver às custas do Estado e dessas relações patronais, compreensão que deu extensão à popular e errônea idéia de que o “povo” romano (como um todo) andava ansioso apenas por “pão e circo”100, que eram oferecidos pelo Estado na forma de doação de trigo e oferecimento de espetáculos regulares, entre os quais se incluíam os munera. eqüestre e senatorial. Além dessas divisões, havia as divisões econômicas entre os grupos. A enorme gama de possibilidades de associação entre essas divisões nos permite perceber a impossibilidade de simplificar a questão acerca da composição social de Roma, bem como nos impede de pensar que não havia conflitos entre esses grupos. 99 Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1, p.61-121. 100 A expressão deriva de uma Sátira de Juvenal, autor latino (62-67 a.C. a 130 d.C., aproximadamente), conhecido por seu tom pessimista acerca da sociedade romana, que muitas vezes beirava ao trágico, com áridas críticas ao comportamento social e descrição exagerada de cenas e personagens. Pelo fato de descrever situações cotidianas em detalhes, os escritos de Juvenal tornaram-se referência para os estudos modernos, especialmente por apresentarem informações acerca dos mais baixos estratos sociais romanos, muitas vezes inexistentes em outras fontes. Todavia, a tendência de desconsiderar as características estilísticas desses escritos e deslocá-los de seu contexto tem criado interpretações simplistas e irreais, como aparentemente é o caso da interpretação corrente dada à expressão acima. Considerada em seu teor irônico e em comparação com o contexto maior da obra, percebemos uma crítica à corrupção dos valores da sociedade como um todo, especialmente com relação ao apego à riqueza. Existe de fato apresentação de uma imagem negativa da plebs, mas esta encontra-se em um contexto mais amplo, cujo significado é mais amplo do que o corrente e que merece ser melhor analisado. 94 Entretanto, essa visão despolitizada e totalmente dependente acerca da plebe romana, assim como a ideia de que as pessoas das classes subalternas da sociedade poderiam ser consideradas como um mesmo grupo coeso precisa ser questionada. Embora percebamos que havia uma visão pejorativa por parte das elites (de onde deriva a maioria das fontes escritas do período, como mencionamos anteriormente) com relação a essas classes populares, essas mesmas fontes indicam que tais pessoas eram socialmente ativas, possuíam atividades rentáveis que proviam à sua subsistência e, ainda, tinham um potencial político que poderia se manifestar. Em sua tese de doutorado defendida em 2007, Luciane Munhoz de Omena101 apresenta uma análise da visão do filósofo estóico Sêneca (4 a.C – 65 d.C) acerca dos setores subalternos da sociedade romana buscando desconstruir essa imagem de “plebe ociosa”, demonstrando que os escritos do filósofo apontam os trabalhos e ofícios desempenhados por essas pessoas para sua manutenção. Embora o filosofo apresente esses ofícios de forma bastante desdenhosa e pejorativa, assim como faz com as próprias pessoas que os desempenham, constata-se que a suposta ociosidade do povo, embora pudesse ser um ideal, defendido pela elite como condição para se desenvolver a uirtus102, não era a realidade dessas camadas subalternas da população. 101 Luciane Munhoz de Omena, Pequenos Poderes na Roma Imperial: O Povo Miúdo na Ótica de Sêneca, Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Faculdade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Norberto Luis Guarinello. São Paulo, 2007. 102 O ócio e a repulsa ao trabalho eram, no mundo romano, valores cultivados pela elite e devidos aos cidadãos nobres, pois quem fosse obrigado a ganhar seu sustento trabalhando, de acordo com essa opinião, não poderia desenvolver-se moralmente. O trabalho era admitido para as classes mais baixas (pois era uma necessidade para a manutenção do Estado e para a ocupação da plebe), mas eram separados em categorias, pois havia atividades que poderiam ser exercidas pelos cidadãos pobres, e outras que só deveriam ser executadas por não cidadãos. Conforme Paul Veyne, “O Império Romano”, em G. Duby e P. Áries (organizadores), História da Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 1. 95 Segundo Omena, as palavras utilizadas por Sêneca em suas obras para referir-se a essas camadas subalternas demonstram seu desprezo e seu sentimento de superioridade: populus, plebe, turba, humilli são palavras de conotação pejorativa, que indicam uma multidão sediciosa, delinquente, insensata e autodestrutiva, associada à mediocridade, à ira, à guerra e à luxúria103. No entanto, o mesmo filósofo, ao aconselhar o Imperador Nero, orienta que o mesmo cultive uma boa convivência com essas pessoas assim como com a elite, a fim de obter a admiração, aprovação e fidelidade de todo o povo, coisas sem as quais não poderia governar, pois por mais absoluto que fosse o poder, não seria possível exercê-lo sozinho104. Essas indicações nos levam a duas conclusões. A primeira é que havia um desprezo pelas camadas populares por parte das elites romanas (das quais Sêneca é representante). A segunda é de que havia o receio de que essas camadas populares viessem a causar problemas à administração do Império, realidade que não pode ser ignorada. Dizer que a população de Roma era composta por uma massa despolitizada e amorfa mostra-se, portanto, como uma declaração irreal. A vida contradições, e e a cultura essas eram da população sentidas nos eram marcadas seios das por camadas subalternas da sociedade. No entanto, devemos compreender que essa percepção formava um paradoxo, pois as formas de manifestação populares não eram sistemáticas, não havia a elaboração de pensamentos “transformadores”, como nos acostumamos a pensar que 103 Luciane Munhoz de Omena, Pequenos Poderes na Roma Imperial: O Povo Miúdo na Ótica de Sêneca, Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Faculdade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Norberto Luis Guarinello. São Paulo, 2007, p.98. 104 Luciane Munhoz de Omena, Pequenos Poderes na Roma Imperial: O Povo Miúdo na Ótica de Sêneca, Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Faculdade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Norberto Luis Guarinello. São Paulo, 2007, p.67. 96 as manifestações políticas devem ser. Os elementos citados acima, que compunham a visão de mundo acerca do que era a sociedade romana compunham uma imagem permeada de sentidos simbólicos que dificultava grandemente qualquer ideia de transformação. Ainda assim, havia a preocupação, como apontado por Sêneca, de que o Princeps mantivesse as coisas em ordem, não desagradando à população. Dessa forma, consideramos que o oferecimento de espetáculos era um instrumento usado com esse objetivo não porque as pessoas fossem politicamente desinteressadas, mas ao contrário, porque precisavam de um “paliativo político” que amenizasse a perda de poder sentida (mencionada acima) com o estabelecimento do Principado e as diferenças sociais e econômicas, dando a sensação ao mesmo tempo de pertencimento ao grupo, de colaboração com a manutenção do Império, de proximidade com o Imperador (quando presente aos espetáculos) e de decisão, ao determinar o destino de um gladiador. Percebemos que a compreensão acerca da plebe pode ser comparada com o uso frequente da palavra o;cloj utilizada por Marcos na composição de seu Evangelho. Pretendemos agora aproximar os dois “mundos” apresentados até aqui: o mundo do Império Romano colonizador e dominador, e o mundo da Palestina, periferia do Império e dominado, para ver que relações o texto de Marcos tem com esses mundos, e qual a relação entre o texto estudado, o Império Romano e, mais detalhadamente, o fenômeno dos munera. Passemos, pois, ao próximo capítulo. 97 CAPÍTULO 3 O TEXTO DE MARCOS: REALIDADES E REPRESENTAÇÕES “A minha alma tá armada e apontada Para cara do sossego! Pois paz sem voz, paz sem voz Não é paz, é medo! Às vezes eu falo com a vida, Às vezes é ela quem diz: ‘Qual a paz que eu não quero conservar, Prá tentar ser feliz?’ As grades do condomínio São prá trazer proteção Mas também trazem a dúvida Se é você que tá nessa prisão Me abrace e me dê um beijo, Faça um filho comigo! Mas não me deixe sentar na poltrona No dia de domingo, domingo! Procurando novas drogas de aluguel Neste vídeo coagido... É pela paz que eu não quero seguir admitindo É pela paz que eu não quero seguir É pela paz que eu não quero seguir É pela paz que eu não quero seguir admitindo!” Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero) Composição: Marcelo Yuka Gravação: O Rappa 98 3.1. Um Pouco sobre o Texto 3.1.1 Unindo o Texto e o Contexto Nesse capítulo, pretendemos propor uma “conversa” entre o que vimos a respeito do Evangelho de Marcos e o uso singular que este faz da palavra o;cloj no decorrer de toda a sua obra e o que descrevemos acerca do Império Romano, especialmente acerca dos munera, característica marcante e distintiva desse Império. Sem nos afastar ou esquecer do contexto maior representado pelo Evangelho de Marcos, estudaremos de forma especial o texto apresentado no capítulo 15 versos 6 a 15 do mesmo, cena que descreve a apresentação de Jesus a Pilatos e a entrevista entre ambos, diante da multidão e dos líderes judeus, que termina com a condenação de Jesus à morte. Nossa intenção será verificar, através da percepção da estrutura narrativa do texto e de seu desenvolvimento, os papéis e funções atribuídos a cada personagem do mesmo e a forma como esses personagens se relacionam para conduzir ao desfecho da cena (a condenação de Jesus), dando especial atenção ao papel atribuído a o;cloj /multidão. Paralelamente, pretendemos contrastar esses papéis e funções atribuídos aos personagens da narrativa à estrutura dos munera e aos papéis e funções atribuídos a cada grupo participante dessa prática caracteristicamente romana: o Imperador, o público e os gladiadores. Dessa forma, o texto de Marcos será compreendido como uma paródia interdiscursiva que dialoga com a realidade e procura esclarecer e subverter essa realidade através de uma proposta de inversão de valores. Procuraremos perceber de que forma Marcos procurou inserir o texto no contexto da dominação romana e da guerra judaica, e que atitudes esperava despertar em seus ouvintes/leitores. 99 Sabemos que tal proposta é ousada, pois embora tenha sido sugerida por outros pesquisadores105, não foi desenvolvida a contento. Além disso, essa possibilidade de interpretação dá a todo texto de Marcos (e não apenas ao capítulo 15) uma interpretação extremamente politizada, engajada e consciente, difícil de ser admitida à primeira vista. No entanto, quando lemos esse Evangelho com atenção e à luz do que conhecemos acerca da dominação romana, percebemos o quanto o texto está marcado com referências e símbolos do Império Romano e dessa dominação. Desde o nome do demônio que aflige o jovem na cidade de Gadara (Legião)106 e o fato de pedirem para serem enviados aos porcos (animal símbolo das legiões romanas)107, as menções da grande admiração das pessoas a Jesus, que poderiam ser comparadas (ou dar ensejo) à aclamação108 (lembrando a aclamação dos Imperadores romanos), referências aos tributos a serem pagos a César109 e a própria cena da entrada de Jesus em Jerusalém110, que pode ser comparada com uma cerimônia de adventus do Imperador111, caminhamos no texto de Marcos com varias indicações de presença romana, até chegarmos ao nosso texto de estudo. Paralelamente a essas referências à presença romana, Marcos faz também o;cloj caminhar em seu Evangelho, estando presente, com suas expectativas, nessa cena crucial e determinante. À luz dessas observações, a proposta de que o texto apresentado a seguir foi composto como uma paródia dos munera 105 Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.452. A legião romana era a divisão fundamental do exército romano. Variavam entre 8.000 e 4.000 homens, dependendo das baixas que eventualmente sofressem nas batalhas. Para além dos soldados, há que contar com os inúmeros servos, escravos e seguidores que as acompanhavam. 107 Marcos 5,1-14. 108 Por exemplo: Marcos 1,28; 2,12, ente outros. 109 Marcos 12,13-17. 110 Marcos 11,1-11. 111 A cerimônia do Adventus era uma festividade romana celebrada quando o Princeps visitava uma cidade. Tratava-se de uma cerimônia de recepção em que as ruas eram enfeitadas com flores, tochas e incensos e o Princeps recebia as chamadas ovationes da população (incluindo os nobres e soldados), que eram aclamações de aprovação pelos seus feitos. 106 100 pode ser impressionante e ousada, mas tem de ser considerada como uma possibilidade bastante plausível, que procuraremos demonstrar nas páginas seguintes. Antes disso porém, convém conhecermos um pouco melhor o texto de Marcos 15,6-15. 3.1.2 O texto de Marcos Apresentamos abaixo o texto do Evangelho de Marcos capítulo 15, versos 6 a 15, conforme apresentado no Novum Testamentum Graece, seguido de tradução própria, com a qual trabalharemos adiante: 6. Kata. de. e`orth.n avpe,luen auvtoi/j e[na de,smion o]n parh|tou/ntoÅ 7. h=n de. o` lego,menoj Barabba/j meta. tw/n stasiastw/n dedeme,noj oi[tinej evn th/| sta,sei fo,non pepoih,keisanÅ 8. kai. avnaba.j o` o;cloj h;rxato aivtei/sqai kaqw.j evpoi,ei auvtoi/jÅ 9. o` de. Pila/toj avpekri,qh auvtoi/j le,gwn( Qe,lete avpolu,sw u`mi/n to.n basile,a tw/n VIoudai,wnÈ 10. evgi,nwsken ga.r o[ti dia. fqo,non paradedw,keisan auvto.n oi` avrcierei/jÅ 11. oi` de. avrcierei/j avne,seisan to.n o;clon i[na ma/llon to.n Barabba/n avpolu,sh| auvtoi/jÅ 12 o` de. Pila/toj pa,lin avpokriqei.j e;legen auvtoi/j( Ti, ou=n Îqe,leteÐ poih,sw Îo]n le,geteÐ to.n basile,a tw/n VIoudai,wnÈ 13. oi` de. pa,lin e;kraxan( Stau,rwson auvto,nÅ 14. o` de. Pila/toj e;legen auvtoi/j( Ti, ga.r evpoi,hsen kako,nÈ oi` de. perissw/j e;kraxan( Stau,rwson auvto,nÅ 15. o` de. Pila/toj boulo,menoj tw/| o;clw| to. i`kano.n poih/sai avpe,lusen auvtoi/j to.n Barabba/n( kai. pare,dwken to.n VIhsou/n fragellw,saj i[na staurwqh/|Å 6.Durante (a) festa, soltava para eles qualquer prisioneiro que pediam. 101 7.estava o chamado Barrabás preso junto com rebeldes112 que na rebelião cometeram assassinato. 8.e subindo113 a multidão começou pedir conforme fazia a eles 9.Pilatos respondeu a eles dizendo: quereis que (eu) liberte a vós o rei dos judeus? 10.Pois sabia que por inveja o entregaram os sacerdotes 11.(mas) os sacerdotes incitaram a multidão para que Barrabás fosse libertado para eles 12.Pilatos novamente respondendo disse a eles: Que então quereis que eu faça a quem chamais o rei dos judeus? 13.Mas novamente gritaram: crucifica-o! 14.Pilatos disse a eles: que mal fez? Ainda mais gritaram: crucifica-o! 15.Pilatos querendo satisfazer114 às multidões soltou para eles Barrabás e entregou Jesus (para) ser açoitado, para que fosse crucificado. O texto de Marcos é, à primeira vista, claro e simples. Não apresenta dificuldades relevantes a ponto para de a sugerir tradução alguma nem variantes dúvida acerca textuais de sua composição. No entanto, tal “simplicidade” não deve nos iludir, pois apresenta uma estrutura complexa e bem montada. Os versos que antecedem o texto estudado, a saber, Marcos 15,1-6, apresentam a 112 A palavra stasiastw/n, traduzida como “rebeldes”, não é encontrada em nenhuma outra passagem do Novo Testamento, o que deixa seu significado bastante impreciso mas, ao mesmo tempo, nos dá liberdade maior de interpretação sem “pressupostos”. Advém da mesma raiz da palavra sta,sei, que traduzimos como “rebelião” e que é usada poucas vezes no Novo Testamento, e cada uma delas com sentido diferente: além de nosso texto, aparece em Atos 15,2 significando contenda ou divergência, e em Hebreus 9,8 com sentido de permanecer, subsistir. 113 O aparato textual do Novum Testamentum Graece apresenta como variante e conseqüentemente possível leitura a palavra Avnabohsaj particípio aoristo do verbo Avnaboaw (gritar), que pode ser traduzida como “gritando”: e gritando a multidão, começou a pedir...”. Nesse caso, dar-se-ia a impressão de que a multidão já estava presente durante o processo de Jesus, e perder-se-ia a noção de movimento. Como veremos adiante, cremos que isso seria improvável, do ponto de vista do processo judicial romano ao qual Jesus havia sido submetido, bem como parece não condizer com o movimento que Marcos da à cena, pois não há descrição da multidão entre os presentes nos versos 1 e 2 do capítulo 15. Dessa forma, cremos que o texto utilizado é de fato o mais coerente. 114 Literalmente, a tradução das palavras to. i`kano.n poih/sai seria ”fazer o suficiente”. Contudo, trata-se de uma expressão que pode ser traduzida como contentar ou satisfazer. 102 cena do julgamento de Jesus por Pilatos de forma curiosamente paralela à estrutura da cena anterior de julgamento de Jesus diante dos líderes judeus, o Sinédrio115. Não nos deteremos na discussão acerca desses dois julgamentos, mas temos que observar que ambos fazem parte de um plano narrativo formulado pelo autor e não podem ser considerados casuais. Percebemos que o julgamento de Jesus diante de Pilatos acontece nos versos anteriores, em Marcos 15,1-5. Curiosamente, porém, a cena do julgamento é interrompida para a introdução do episódio de Barrabás. Dizemos que a cena foi interrompida porque, se considerarmos que Jesus é submetido a um tribunal romano e a um processo judicial romano, como Marcos descreve, esse processo é interrompido antes do ato que o concluiria, a saber, a declaração do veredicto e a aplicação da pena. De acordo com Joachim Gnilka116, havia quatro princípios que assinalavam um processo judicial romano: 1) o julgamento é público; 2) a acusação, que é privada (de onde entendemos que a multidão não estava presente em toda a cena); 3) direito de defesa e 4) veredicto e proclamação da sentença, que é o que terminava o processo. Temos essa estrutura presente na descrição de Marcos: ao amanhecer, os líderes judeus levam Jesus amarrado até o governador romano Pilatos, que era o responsável pela administração da justiça. Pode-se entender que o julgamento de Jesus não seria o único caso a ser julgado naquele dia, e que Pilatos cumpria com sua obrigação normal (não estava lá por causa de Jesus)117. Esse é o momento que 115 Marcos 14,53-64. O verso 65, integrante da perícope, forma também um paralelo com Marcos 15,16-20, referentes ao escárnio e zombaria sofridos por Jesus, primeiro por “alguns” (talvez os guardas do Templo) e depois pelos soldados romanos. 116 Joachim Gnilka, Jesús de Nazaret – Mensaje e História, Barcelona, Editorial Herder, 1993, p.364-365. 117 Joachim Gnilka, Jesús de Nazaret – Mensaje e História, Barcelona, Editorial Herder, 1993, p.366. Considerando que a residência do governador era Cesaréia e que este deveria estar em Jerusalém por conta da festa da Páscoa, é bastante provável que houvesse vários casos para serem julgados, para “aproveitar” sua presença ou, 103 identificamos como a “instituição do processo” contra Jesus diante do tribunal romano, e esse ato certamente foi público, ou seja, num local aberto118. Em seguida, acontecem dois momentos em que Jesus tem oportunidade de defesa: nos versos 2 e 4. No primeiro momento, após a pergunta (sarcástica, por sinal) de Pilatos: “És tu o rei dos judeus?”119, Jesus responde (também com sarcasmo): “Tu o dizes”120. Essa resposta de Jesus poderia ser considerada por Pilatos como uma confissão, o que faria com que os outros atos do processo não fossem necessários, mas Marcos relata que Pilatos não considerou dessa forma, pois novamente questiona Jesus e lhe dá oportunidade de defesa no verso 4, ao que Jesus não responde, demonstrando descaso e desprezo que não teriam passados despercebidos por Pilatos121, e que o teriam irritado muitíssimo, pois não era concebível ignorar o governador romano, símbolo máximo do poder imperial naquela região! Entre as duas possibilidades (“desperdiçadas”) de defesa, o verso 3 apresenta o que poderia ser considerado o testemunho da acusação, realizado pelos sacerdotes. Nesse ponto a narrativa do processo é interrompida, e só é retomada na parte final do verso 15: “... e, após mandar açoitar a Jesus, entregou-o para ser crucificado”122. Aqui estaria marcado o fim do processo de Jesus: a sentença/veredicto e a entrega à penalidade. No caso de Jesus, condenado à crucificação, o flagelo anterior (açoites) fazia parte da mesmo se assim não fosse, o costume era o de que os julgamentos romanos eram feitos no alvorecer, nas primeiras horas do dia, o que combina com o relato de Marcos. 118 Marcos 15,1. 119 Conforme tradução de João Ferreira de Almeida, 2ª Edição Revista e Atualizada, publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. 120 Conforme tradução de João Ferreira de Almeida, 2ª Edição Revista e Atualizada, publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. 121 Marcus J. Borg e John Dominic Crossan, A Última Semana: um relato detalhado dos dias finais de Jesus, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p.143. 122 Conforme tradução de João Ferreira de Almeida, 2ª Edição Revista e Atualizada, publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. 104 pena, e dessa forma compõe o castigo de alguém condenado por crime político contra Roma e pertencente ao estrato mais baixo da população (as penalidades romanas ao mesmo crime variavam de acordo com o status do condenado). Entre a condenação de Jesus, sugerida no verso 5, e o ato que o declarava réu de morte no verso 15, entra em cena a multidão e desenrola-se o episódio de nosso particular interesse. Portanto, quando o verso 6 (e o texto que estudamos mais detalhadamente) começa, Jesus já está julgado – já é um condenado por crime político, pois as perguntas que Pilatos lhe dirige são a respeito de uma suposta realeza que Pilatos com certeza não entende como “espiritual”, mas como uma dentre tantas tentativas de restauração do reino político de Judá (“És tu o rei dos judeus?”, em 15,2). Concluímos que a cena que se desenrola entre os versos 6 a 15 não é de julgamento, mas um relato acerca de uma suposta oportunidade de anistia, de “não punição” pelo crime, e a comparação com os munera não teria sentido se não fosse dessa forma. Jesus e Barrabás são apresentados por Pilatos como iguais: ambos já estavam condenados à morte, aparentemente pelo mesmo tipo de crime: crime político contra Roma123. Porém, um deles poderia alcançar a libertação através do “costume de libertar um prisioneiro” que de acordo com o direito romano, segundo Gnilka, poderia acontecer antes ou depois da proclamação do veredicto: sendo antes, funcionaria como uma anulação do processo, sendo depois, seria a anulação da sentença124. Veremos, entretanto, que existe uma 123 Embora no caso de Barrabás haja o agravante do assassinato, que parece ter sido colocado para salientar a agressividade e violência de Barrabás e seu grupo e não para alterar o tipo de crime cometido 124 Joachim Gnilka, Jesús de Nazaret – Mensaje e História, Barcelona, Editorial Herder, 1993, p.369. Esses dados, contudo, referem-se ao direito romano conforme conhecido e praticado em Roma, e pode não corresponder à realidade das províncias, em que os governadores assumiam o papel de máximo juiz e muitas vezes agiam de forma diferenciada. Voltaremos a essa questão da “anistia” adiante. 105 problemática a respeito dessa “anistia pascal”, que tem levantado muitas dúvidas a respeito da confiabilidade do texto de Marcos. 3.1.3 O texto como realidade: historicidade ou plausibilidade? Ao trabalharmos com um texto da forma como temos feito, tentando perceber seu contexto e os significados nele contidos, precisamos estar atentos à realidade de que estamos diante de dois períodos distintos: a época do autor do texto (em nosso caso, a época de Marcos, descrita nesse trabalho) e a época que o texto representa (o período anterior, em que Jesus viveu e morreu). Essa consciência é imprescindível para evitarmos equívocos perigosos com relação à interpretação do texto. Como união de duas realidades o texto apresenta dados dos dois períodos, que precisam ser identificados. Mesmo os dados referidos, os dados do passado, que poderíamos chamar de “históricos” serão lembrados e utilizados a partir da realidade do autor e não serão neutros, mas interpretações e leituras do passado feitas pelo mesmo. Marcos 15,6-15 é apresentado, dessa forma, como um relato do encontro de Jesus com Pilatos acontecido certamente entre os anos 26 a 36/37 d.C. (período em que Pilatos governou a Judéia), mas sob o ponto de vista e com elementos da realidade de Marcos, que escreveu entre os anos 66 a 70 d.C. Apesar de crermos que muitos elementos desses períodos distintos não eram diferentes, até porque o tempo decorrido entre as duas realidades pode ser considerado breve, não podemos confundir as épocas distintas. Outro ponto que precisamos salientar acerca do relato de Marcos é a discussão acerca de sua “historicidade” – ponto que desperta muito interesse de pesquisadores desejosos de saber se as coisas 106 aconteceram exatamente como foram relatadas. Essa preocupação demonstra, em nosso ponto de vista, uma dificuldade em compreender o texto como composição literária complexa, que une elementos selecionados do passado com a intenção do autor de transmitir uma mensagem que transponha tal período e alcance sua própria época, e tem sido fonte também de equívocos e de uma certa desconsideração com o texto bíblico porque, em não se comprovando a “veracidade do fato narrado”, o texto perde seu valor. O que podemos saber de “concreto” acerca do relato de Marcos é que Jesus foi crucificado por ordem do governador romano Poncio Pilatos, conforme relatam fontes alheias aos Evangelhos, como os historiadores Flávio Josefo e Tácito125, e que sua condenação obedeceu aos preceitos de uma condenação romana destinada a culpados por crimes políticos: a crucificação, certamente com todos os requintes de crueldade que esse tipo pena representava. Podermos afirmar tão pouco a respeito dos “fatos” não significa que devamos desprezar o texto de Marcos (e tantos outros textos do período) e considerá-lo sem valor histórico. Como documento, é certo que o mesmo apresenta dados relevantes, mas estes devem ser considerados à luz de sua intenção e de sua própria época, por isso é preciso saber discernir os elementos presentes no texto e verificar quais as possibilidades de as coisas terem acontecido conforme relatado. Nesse sentido, o conceito de plausibilidade histórica passa a ser mais importante que o de historicidade propriamente dita: não podemos afirmar que as coisas aconteceram de determinada forma, mas podemos tentar verificar, de acordo com os dados, quais eram as possibilidades de acontecerem e, assim, podemos perceber melhor o que foi apropriado pelo autor, de que forma e com que objetivo, bem 125 Haim Cohn, O julgamento de Jesus, O Nazareno, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990. p.16-17. O autor descreve as controvérsias acerca das obras dos referidos historiadores, mas aponta as citações como passíveis de credibilidade pelo menos no que se refere aos personagens. 107 como podemos discernir mais claramente aquilo que se trata de criação literária sem vinculação histórica. Acerca do texto de Marcos, muitas cenas podem ser compreendidas a partir dessa perspectiva de plausibilidade, e uma das que mais tem chamado a atenção – especialmente devido a uma procura excessiva pela “historicidade” do fato, é a menção de Marcos ao costume de libertar um preso na ocasião da Páscoa – a “anistia pascal”. A dificuldade em encontrar paralelos históricos a esse “costume” tem levado muitos pesquisadores a simplesmente negar essa possibilidade e a considerar o texto como uma criação do evangelista como recurso para transferir a responsabilidade da condenação de Jesus para os judeus. Esse tipo de interpretação fere aquilo que acreditamos ser o objetivo de Marcos, como veremos a seguir126. Queremos propor, pois, que a cena descrita pelo evangelista seja considerada como uma possibilidade, como plausível, embora não possamos afirmar se tal prática representaria um “costume” judeu, romano ou pessoal (de Pilatos, como procurador), e qual a origem e extensão do mesmo. A respeito dessa plausibilidade, Robert L Merritt, em um artigo publicado no Journal of Biblical Literature127, apresenta vários possíveis paralelos de origem babilônica, assíria, grega e romana – todas vinculadas a ritos religiosos – como referências que podem ter sido usadas para compor a idéia desse “costume”. Contudo, o autor permanece na idéia de que tal costume foi usado no texto de Marcos para eximir Pilatos e consequentemente os romanos da culpa pela crucificação de Jesus, colocando a culpa de tal condenação na 126 Percebemos que a grande maioria dos comentaristas atribui essa cena da multidão a uma tentativa de Marcos (utilizada posteriormente pelos outros evangelistas) de eximir os romanos da culpa pela morte de Jesus, colocando a culpa unicamente nos judeus. Verificaremos, no decorrer de nosso estudo, que acreditamos que a intenção de Marcos foi exatamente contrária a esse ponto de e vista. 127 Robert L. Merritt, Jesus, Barabbas and the Paschal Pardon, em: Journal of Biblical Literature, vol 104, n 1 (março 1985), p.57-68 URL: http://www.jstor.org/stable/3260593 108 multidão. Esperamos ter deixado claro, contudo, que não compartilhamos dessa opinião, uma vez que acreditamos que quando a multidão entra na cena Jesus já está condenado, e que tal condenação era prerrogativa apenas e tão somente do governador romano. A multidão participará na escolha de um prisioneiro, já condenado, para ser libertado, mas a condenação já havia pressuposto a execução. Gnilka trabalha com a possibilidade desse costume ser um desdobramento dos preceitos do direito romano, e essa parece uma idéia bastante interessante. Todavia, não podemos afirmar que o direito romano, conforme apresentado por este autor, fosse executado nas províncias ou, mais especificamente, na Judéia128. Gostaríamos de agregar outra possibilidade, considerando os elementos que conhecemos acerca da dominação romana e dos munera, que podem nos ajudar a pensar essa cena e esse “costume”. A dominação romana havia sido estabelecida e era executada através de políticas que visavam manter a “paz” conquistada militarmente, e que essa paz dependia muito da “fidelidade” (ou submissão) das massas. Por isso, cremos que em todo o Império (e não apenas em Roma), havia espaços de liberdade concedidos, ações que visavam agradar às pessoas a fim de que estas não se revoltassem. Em outras palavras, era preciso manter uma ilusão de liberdade e de participação. As revoltas, sublevações e rebeldias, embora pudessem ser e fossem passíveis de repressão e controle militar, não eram desejadas e deveriam ser evitadas. Considerando o contexto de dominação romana na Palestina e as expectativas messiânicas sempre presentes em sua população, a Páscoa, como a principal festa religiosa e também a de maior valor simbólico – pois relembrava a libertação do antigo povo de Israel da 128 Joachim Gnilka, Jesús de Nazaret – Mensaje e História, Barcelona, Editorial Herder, 1993, p.369. 109 escravidão sob o Egito – era sempre um período perigoso, em que afloravam os sentimentos de nacionalismo e de descontentamento diante da dominação. Era um período em que os líderes deviam estar atentos, por ser muito propício para revoltas populares. Conceder um “espaço de liberdade” num momento assim pode ter consistido numa estratégia empreendida pelo Império Romano, e não representaria uma fraqueza por parte do governador romano, mas uma demonstração (necessária) de habilidade política. Essa proposta pode ser ainda mais interessante se considerarmos que a cena representa um múnus129, pois dentre outros significados, os munera representavam uma forma desse tipo de concessão de liberdade, como verificamos no capítulo anterior. Assim, embora não possamos comprovar o citado (e debatido) costume de libertar um prisioneiro na festa da Páscoa, podemos considerá-lo como uma possibilidade bastante justificável naquele contexto. Embora para nosso estudo de Marcos essa constatação não fosse absolutamente necessária, uma vez que empreendemos uma leitura do texto da forma como se apresenta, consideramos tal verificação importante não apenas por propor uma alternativa à compreensão do texto, mas por demonstrar o dinamismo do autor em utilizar elementos “históricos” e elementos comuns de sua época para compor sua narrativa, combinando-os a fim de transmitir sua mensagem. Além disso, essa compreensão nos liberta da necessidade de “comprovar” um texto antes de estudá-lo ou valorizá-lo, e nos ajuda a respeitar o texto, seu conteúdo e sua intenção. O texto é criação literária que apresenta fatos realmente acontecidos (ou possíveis de terem acontecido), mas sob o olhar, a perspectiva e seguindo a intenção do autor. Dessa forma, podemos considerar o texto com mais liberdade, não descrendo de suas 129 Singular de munera 110 possibilidades de fornecer dados históricos, mas percebendo que o mesmo não foi produzido para este fim. 3.1.4 Uma realidade por trás do texto Quando estudamos um texto, seja este bíblico ou não, um dos pontos comumente observados é a influência que o mesmo recebeu de outras fontes e a forma como o autor do referido texto se apropriou e usou essas fontes, que podem ser outros textos, tradições, obras de arte ou situações. De certa forma, a procura por essas influências no texto não nos é estranha. No entanto, a percepção de um nível de transtextualidade como a que sugerimos ao texto de Marcos parecenos ainda desconfortável, por estarmos acostumados a valorizar aquilo que nos acostumamos a chamar de “originalidade” e porque tal perspectiva acerca do texto pode nos levar, novamente, a questionar a “verdade” contida no mesmo. Quando tratamos de um texto revestido com o caráter sagrado, essa dificuldade em considerar a possibilidade de que o mesmo tenha recebido influências alheias ou à verdade factual (ponto que discutimos acima) ou à “inspiração” genuinamente divina aumenta. Contudo, precisamos aprender a enxergar os autores bíblicos como o que de fato são: autores, que têm uma mensagem a transmitir e que utilizam, para isso, dos recursos disponíveis. Por isso, nossa proposta é procurar a intertextualidade de Marcos 15,6-15, e queremos esclarecer o que queremos dizer com esse termo: trata-se de estudar, dentro do texto, os elementos presentes de outro texto ou situação e como esses elementos se relacionam. A intertextualidade pode se manifestar de diversas formas: através de citações, alusões, plágios, paráfrases e paródias, entre outras. Cada uma dessas formas de apresentar a “fonte” ou as 111 ideias que compõem o texto demonstra uma intenção, um objetivo diferenciado. Com relação ao texto de Marcos 15,6-15, o termo normalmente utilizado (inclusive sugerido por Myers130) para compor o tipo de relação entre o texto e a situação que o inspirou é paródia – um tipo de relação textual em que os elementos de um texto (em nosso caso de uma realidade paradigmática) são retomados e trabalhados com novas e diferentes intenções, normalmente com o objetivo de inverter os valores da obra original. Dessa forma, uma “paródia” não representa uma repetição, mas uma “imitação com distância crítica”.131 A paródia propõe um processo de desconstrução e reconstrução de ideias que tem como pressuposto que o ouvinte/leitor reconhecerá a obra ou cena original (e consequentemente seus valores) e compreenderá a inversão sugerida. Por isso, as alusões feitas através da paródia devem ser conhecidas do público a quem esta deseja alcançar, caso contrário o processo de comunicação ficará comprometido. Em nosso caso específico, por exemplo, podemos crer que se Marcos construiu seu texto tendo como referência os munera, é porque esperava que seus ouvintes/leitores reconhecessem tal alusão e percebessem a inversão de valores proposta. A paródia é, pois, um diálogo entre textos, ou entre realidades. Diálogo crítico entre aquilo que é parodiado e a paródia. Pode ser entendida como um recurso para a tomada de consciência, uma forma de as pessoas perceberem sua realidade a partir desse diálogo, pois as ironias e inversões características das paródias expõem ideologias e valores muitas vezes não percebidos. Cremos que esse foi um dos objetivos de Marcos ao utilizar esse recurso literário em um ponto crucial de sua obra – ideia que concorda com nossa posição inicial de que o texto de Marcos não é de forma nenhuma neutro, mas 130 131 Ched Myers, O Evangelho de Marcos, São Paulo: Paulinas, 1992, p.152. Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, Lisboa, Edições 70, 1989. p.54 112 carregado de sentidos e intenções que vão se desenvolvendo e esclarecendo no decorrer de toda a narrativa do Evangelho. Marcos queria, com seu texto, “escancarar” a realidade diante de seu público. Uma dificuldade que talvez se levante acerca dessa sugestão é que o termo paródia tem sido normalmente identificado como representante de um estilo burlesco, satírico ou cômico. De fato, embora esse tipo de discurso (a paródia) seja muito mais antigo, foi através da produção satírica latina que ganhou notoriedade. No entanto, autores modernos têm percebido que esse fenômeno não se ateve apenas a essas características burlescas, reconhecendo relações intertextuais sérias – sugerindo para esses casos o nome de transposição, como forma de diferenciação do termo paródia. Para os objetivos desse trabalho, não nos cabe aprofundar nessas questões literárias, bastando-nos reconhecer essas características críticas, subversivas e desafiadoras dessa forma de discurso132, bem como sua existência em contextos que vão além das sátiras e comédias133. 3.2 Os Personagens da Cena de Marcos 3.2.1 Sacerdotes, Escribas, Anciãos: A Nata da Sociedade! Embora em seu ministério na Galiléia e adjacências Jesus tenha gerado incômodo e conflito graças à sua postura e ensinamentos (especialmente com os fariseus), é em Jerusalém que a ameaça de 132 Tratamos a paródia como forma de discurso e não como gênero literário por entendermos tratar-se de um “metagênero”, que se serve de diversos recursos e gêneros literários em sua composição. 133 Não podemos deixar de comentar que, mais uma vez, Marcos surpreende ao usar um recurso que, como dissemos, se difundiu entre os romanos e foi consagrado na literatura romana, especialmente no 1° século de nossa era. Já se comentou, inclusive, que os romanos se especializaram em “imitar” a literatura grega, fazendo isso não apenas através de paródias. Como exemplo, podemos citar a “encomenda” que o Imperador Augusto fez a Virgílio para que escrevesse a Eneida, que deveria ser uma epopéia “perfeita”, que superasse as obras do grego Homero. 113 morte começa a se configurar de forma mais real, através de outros personagens: os sacerdotes, os anciãos e os escribas. Esses grupos podem ser considerados como formadores da aristocracia judaica, a elite da sociedade, e eram as pessoas que compunham o Sinédrio, a principal instância nativa de exercício de poder. Desenvolvem, de acordo com o Evangelho de Marcos, um ódio mortal a Jesus, desejando, planejando e atuando de forma ativa em sua prisão e morte. Por “principais sacerdotes”, expressão muito utilizada em Marcos, pode-se entender o Sumo Sacerdote que está ocupando o cargo (na época de Jesus era Caifás), seus predecessores e os ocupantes dos altos cargos sacerdotais, como o capitão e o tesoureiro do Templo – na época de Jesus, todos cooptados e nomeados pelo governo romano e obviamente colaboradores do mesmo134. Eram os representantes da aristocracia religiosa, administradores da lei e as pessoas autorizadas a determinar quem poderia participar da religião e, consequentemente, de toda vida civil e social da Judéia (por serem as pessoas responsáveis pela realização dos sacrifícios e pela “declaração de pureza”). Certamente, esse grupo de sacerdotes de Jerusalém não ficou feliz com as notícias acerca de um líder Galileu que pregava o perdão e aceitação de Deus sem a necessidade de sacrifício no Templo, pois esse ensino representaria não apenas uma perda de autoridade, mas uma perda econômica significativa, dada a importância do Templo nesse aspecto. Os anciãos, por sua vez, eram os representantes da aristocracia laica, e era um grupo formado por ricos chefes de família de origem pura. Segundo Morin, o poder romano escolhia entre eles quem responderia com sua fortuna pessoal pela entrada dos impostos 134 Giuseppe Barbaglio, Jesus, Hebreo de Galilea – Investigación Histórica, Salamanca: Secretariado Trinitario, 2003, p.471-475. 114 devidos, determinados pelo Império135, fator que colocava sobre eles uma preocupação grande acerca do controle da arrecadação e os tornava rigorosos com seus concidadãos (em outras palavras, tornavaos exploradores de seus pares). Os escribas podem ser considerados o grupo menos coeso dentre os três. Formavam a aristocracia intelectual e, diferentemente dos outros grupos, não eram todos ricos nem compartilhavam todos da mesma simpatia pelo poder romano. Eram os especialistas na Lei e acredita-se que muitos eram fariseus. Dentre os grupos que compunham o Sinédrio, é o que mais frequentemente aparece no Evangelho de Marcos, inclusive na Galiléia, e por isso devem ser diferenciados – certamente, havia muitos escribas que não faziam parte da elite, assim como muitos sacerdotes que não eram “os principais”. Existia estratificação social e econômica mesmo entre esses grupos representativos, e precisamos estar atentos a essa realidade a fim de não cedermos à tentação das generalizações. O Sinédrio era um conselho composto por esses três grupos, responsável pela administração nativa, poder concedido pelo Império Romano como forma de aliança com os povos dominados. Não sabemos exatamente qual a extensão do poder do Sinédrio no tempo de Jesus, nem podemos precisar sua composição exata, mas a denominação aparece no texto de Marcos, como dissemos, como instituição responsável pela sua condenação juntamente com a instituição romana de poder. Não vamos nos aprofundar acerca das causas que levaram esses grupos a hostilizarem Jesus de forma tão radical, uma vez que cremos que essa discussão seria assunto para uma pesquisa específica136, mas 135 E.Morin, Jesus e as Estruturas de Seu Tempo, São Paulo, Paulus, 1981, p.106. Cremos não ser possível falar de apenas um motivo como a causa de tal hostilidade, mas de uma confluência de razões, das quais citamos a “fama” de milagreiro de Jesus e o conteúdo revolucionário de sua mensagem, especialmente no que se refere ao Templo, a admiração que Jesus conquistara das massas, que poderia ser considerado como fator de risco de sublevação e de conflito contra Roma, a atitude 136 115 podemos notar no decorrer da narrativa que esses personagens se articulam e trabalham para alcançar a morte de Jesus: • Em Marcos 11,18 (depois da cena da “Entrada Triunfal” de Jesus em Jerusalém), os sacerdotes e escribas procuram um motivo para matar Jesus devido à sua influência sobre a multidão (seria um medo político, de algum tipo de “messianismo davídico” da parte de Jesus?); • Em 12,12 “eles” (aludindo aos principais sacerdotes, escribas e anciãos) desejam prender Jesus, mas temem a multidão; • Em 14,1 temos um planejamento para prender Jesus à traição; • Em 14,10 o plano segue com Judas negociando a “entrega” de Jesus com os sacerdotes; • Em 14,43 Judas “entrega” Jesus, acompanhado dos representantes dos sacerdotes, escribas e fariseus; • Em 14,53 Jesus é conduzido ao Sumo Sacerdote e aos principais sacerdotes, escribas e anciãos; • Em 14, 55 os principais sacerdotes e o Sinédrio procuram um testemunho para condenar Jesus, o que fazem em 14,56-64 (num julgamento ou tribunal um judaico, recolhimento seria de um provas primeiro para o julgamento de Pilatos); • Finalmente, em 15,1, os principais sacerdotes, anciãos, escribas e todo o Sinédrio entregam Jesus a Pilatos. Na sequencia dessa série de aparições que configuram um plano ardiloso para executar Jesus, diante da possibilidade de que Jesus de Jesus com relação ao Templo. Contudo, como dissemos, a verificação dessas percepções carece de pesquisa mais aprofundada, fora do âmbito deste trabalho. 116 fosse solto pelo apelo popular, devido à anistia pascal, os principais sacerdotes incitam a multidão (a mesma que temiam, no texto anteriormente citado) a pedir que Barrabás fosse solto. Interessante percebermos que, no texto de Marcos, os principais sacerdotes não pedem à multidão para crucificar Jesus, mas para soltar Barrabás! Era óbvio que, como Jesus já estava condenado, como vimos acima, se Barrabás fosse solto consequentemente Jesus seria executado, por isso os principais sacerdotes, presentes à cena, não precisam desafiar a multidão ou correr o risco de que esta se levantasse contra eles. Conhecendo as expectativas da multidão e a fama de Barrabás, eles ardilosamente “sugerem” que Barrabás fosse solto “de preferência”. Embora os líderes judeus não simpatizassem com Barrabás nem com a ideia de qualquer tipo de revolta contra Roma, consideraram que Barrabás era menos nocivo e menos perigoso às estruturas de poder do que Jesus, posição com a qual concordamos, e logo veremos porque. 3.2.2 Durante O representante do Imperador: Pilatos séculos, os textos dos Evangelhos tem sido interpretados sob um ponto de vista que apresenta Pôncio Pilatos, o governador romano da Judéia entre os anos 26 a 36/37 d.C., como uma pessoa fraca, indecisa ou neutra, que “lava as mãos” diante da decisão mais importante da história, para mostrá-lo como “simpatizante” de Jesus e disposto a libertá-lo, tendo sido impedido por ter medo da multidão, que pedia a condenação de Jesus. Um estudo dos dados acerca de Pilatos, contudo, mostra que essas interpretações estão longe de representar a verdade tanto acerca de sua pessoa como acerca do mundo imperial romano. 117 Em primeiro lugar, precisamos entender que a figura do governador era estratégica e fundamental para a manutenção do sistema romano de dominação, o que torna inconcebível a visão de um procurador ou governador romano fraco e comandado pelas multidões, ou mesmo pelos líderes nativos (no caso, o Sinédrio). O governador romano deveria apresentar-se como figura poderosa que pudesse de fato representar o Império e o Imperador. Além disso, deveria manifestar os valores romanos e estabelecer, junto às províncias, alianças com as lideranças nativas que eram, juntamente com os tributos e o poder militar, formas efetivas de estabelecer o controle sobre essas regiões. Essas alianças obedeciam aos critérios do sistema de patronato, anteriormente descrito, em que a troca de favores deveria ser uma constante. Especificamente no caso do governador Pilatos, todo histórico referente à sua pessoa depõe contra a imagem fraca ou indecisa tradicional: perdeu o cargo em 36-37 d.C. devido a inúmeras queixas referentes às arbitrariedades de seu governo, e deixou uma imagem descrita por termos como suborno, rapina, ofensas, execuções sumárias (sem processo judicial), crueldade inaudita e intolerável, criador de conflitos que poderiam ser evitados se exercesse prudentemente o cargo. Essa “descrição”, atestada por historiadores como Filón e Flavio Josefo, mostram a natureza dura e truculenta de Pilatos, e uma certa falta de reverência e respeito para tratar dos assuntos dos judeus137. Apesar dessa reconhecida irreverência e crueldade de Pilatos, que talvez colocassem mais dúvidas acerca da plausibilidade da concessão da “anistia pascal”, algumas circunstâncias podem nos ajudar a compreender e a perceber como factível a cena apresentada pelo evangelista Marcos: o fato de já ter sido repreendido oficialmente 137 Gerd Theissen, Colorido Local, Contexto Histórico em Los Evangelios – Uma contribución a la historia de la tradicion sinóptica, Salamanca: Ediciones Sigueme, 1997, p.189-211. 118 por Roma por sua má administração dos negócios da Judéia, e o exemplo recente do que havia acontecido com Sejano, Prefeito do Pretório e Cônsul138 na época do Imperador Tibério, que havia sido condenado à morte devido a denúncias de violência excessiva, execuções sumárias e traição139, podem ter feito com que Pilatos percebesse ser o momento de demonstrar moderação e uma certa simpatia para com o povo sob sua administração. Em outras palavras, Pilatos não podia se dar ao luxo, naquele momento, de descontentar nem a liderança nativa judaica nem a multidão, que poderia causar uma sublevação que seria muito perigosa. Ele precisava mostrar disposição em estabelecer um relacionamento forte com os líderes judeus e, ao mesmo tempo, manter boas relações com o povo. O evento do julgamento de Jesus, nesse contexto delicado, deve ter sido uma situação difícil, pois colocou Pilatos numa posição em que precisaria ser hábil o suficiente para ao mesmo tempo satisfazer as expectativas dos dois grupos, que possivelmente não eram as mesmas. E Pilatos consegue isso com a ajuda dos sacerdotes, dando à multidão presente na cena a oportunidade de escolher entre dois prisioneiros, contentando a multidão com a impressão de que era ela quem decidia o destino de Jesus enquanto na verdade era sua vontade (em aliança com os sacerdotes) que prevalecia, uma vez que era sua a última palavra. A interpretação corrente entre exegetas e biblistas de que Pilatos demonstrou simpatia com Jesus ou que não queria realmente condená-lo mostra-se longe de ser verdadeira. Pilatos não estava 138 Durante a República, os cônsules eram os mais importantes magistrados romanos: comandavam o exército, convocavam o Senado, presidiam os cultos públicos e, em épocas de "calamidade pública" (derrotas militares, revoltas ou catástrofes), indicavam o ditador que seria referendado pelo Senado e teria poderes absolutos por seis meses. Durante o Império Romano, o consulado tornou-se uma magistratura puramente honorífica, mas ainda abria caminho para alguns cargos efetivos, como o exercício de certos governos provinciais (proconsulado). 139 A morte de Lúcio Élio Sejano aconteceu em 31 d.C. Este havia sido considerado o homem mais importante do Império, abaixo do Imperador, e seu “braço direito”. Sua morte causou uma série de tumultos em Roma. 119 interessado em Jesus (ou em Barrabás), mas em si mesmo e na manutenção de seu poder. Ardilosamente, apresenta diante da multidão um outro prisioneiro, alguém que representaria, aos olhos do povo, os ideais de libertação nacionalista que a época da Páscoa despertava (era um revolucionário) e com isso consegue dissuadir a multidão de qualquer menção a libertar Jesus. Toda a narração de Marcos, nesse sentido, caminha para demonstrar que a libertação de Barrabás com a consequente condenação de Jesus contentou aos dois grupos: à liderança judaica, representada pelo Sinédrio, e à liderança romana, representada por Pilatos. Ambas estavam preocupadas e interessadas na manutenção de seu poder e consideravam Jesus uma ameaça – para o Sinédrio, as acusações estavam relacionadas à postura de Jesus anti-Templo e ao messianismo e, para Pilatos, à sua postura anti imperial, representada pela acusação “rei dos judeus” e pela postura de Jesus diante de sua autoridade, como vimos acima. Dessa forma, podemos perceber que Pilatos tem um papel central na crucificação de Jesus. Não é por acaso que a morte de Jesus ocorre do modo típico de controle imperial romano: Ele é crucificado, morte destinada às pessoas do mais baixo estrato social e culpados de crimes políticos, o tipo de morte que, nas províncias, servia como instrumento para dissuadir as idéias de rebeldia patriótica e para causar terror140. Pilatos não foi em nenhum momento “fraco” ou indeciso, mas foi ardiloso e agiu em seus próprios interesses, de forma bastante sarcástica (as perguntas que faz à multidão demonstram desprezo e sarcasmo), trabalhando em favor de si mesmo e de seus aliados políticos locais. Ao menos é assim que Marcos o descreve. E nesse sentido, assume de fato uma posição que pode ser realmente comparada à postura do Imperador quando concede à multidão, na arena, o direito de decidir pela vida ou morte de um gladiador. 140 Giuseppe Barbaglio, Jesus, Hebreo de Galilea – Investigación Histórica, Salamanca: Secretariado Trinitario, 2003, p.463-469. 120 3.2.3 Barrabás, Um Gladiador Marcos introduz, nessa parte de sua narrativa, um novo personagem, muito importante para a construção da cena e que tem causado discordância entre os estudiosos do Novo Testamento: Barrabás. Descrito por Marcos como um “rebelde” participante de um ato em que acontecera um assassinato, esse personagem é contraposto a Jesus e apresentado como uma opção de prisioneiro a ser libertado. Marcos não nos aponta claramente a natureza da “rebeldia” de Barrabás mas, considerando o contexto de escrituração do livro, torna-se fácil supor algumas alternativas: ele poderia fazer parte (ou representar) algum tipo de liderança revolucionária contrária a Roma existente no tempo do evangelista (um zelota ou um sicário, por exemplo141) ou ser um “mercenário” contratado por um membro da elite como responsável por sua segurança, uma vez que diante das constantes revoltas e ameaças (especialmente dos sicários), os membros da elite judaica, inclusive sacerdotes, contratavam esse tipo de serviço que, via de regra, gerava mais turbulência e violência. Na verdade, não há como precisar a natureza exata do delito de Barrabás142, mas Marcos parece querer salientar seu caráter violento através da menção ao assassinato cometido. Diferentemente de Jesus, independente da posição política de Barrabás (revolucionário contra Roma ou contratado pela elite pró-romana), este havia realmente cometido um crime (não era apenas uma ameaça contra o poder imperial). Interessante também percebermos que a palavra usada por Marcos para descrever seu crime, stasiastw/n/rebelde, é diferente da usada para os ladrões ao lado de quem Jesus foi crucificado: lh|sta,j 141 Lembramos que essas categorias de revolucionários não existiam no tempo de Jesus, mas no de Marcos. Talvez seja essa a razão de Marcos ter usado uma palavra aparentemente “neutra”. 142 A palavra usada por Marcos para descrever a causa de sua prisão, traduzida como “rebelde”, tem apenas essa aparição no Novo Testamento, o que torna difícil sabermos com exatidão em que consistia essa “rebeldia”. 121 (literalmente “ladrões”, mas a palavra era usada para descrever os “bandidos sociais” surgidos no 1º século, mencionados anteriormente como aqueles que viriam a formar o grupo dos zelotas. Essa palavra tem, obviamente, forte sentido social, e é significativo que Jesus esteja literalmente entre eles!143). Como dissemos, as opiniões acerca desse personagem divergem, especialmente no que tange à “historicidade” de sua existência e à identificação de sua pessoa. Nada é conhecido sobre ele além de sua menção nos Evangelhos – e a primeira menção é conseqüentemente a contida em nosso texto, uma vez que cremos ser o primeiro dos Evangelhos a ser escrito. Mais importante do que tentar verificar a historicidade de sua pessoa ou sua origem é significativo percebermos algumas singularidades apresentadas por Marcos. Entre elas, chama a atenção o nome do personagem: Barrabás (Barabba/j) é uma composição de palavras aramaicas que significa algo como “filho do pai” – sugerindo tratar-se mais de um título ou apelido do que um nome próprio. Esse título, “filho do pai” é deveras significativo, tanto para a tradição judaica quanto para o mundo romano no qual Marcos e a Palestina estavam inseridos. Tradicionalmente, temos aprendido que o termo Abba é usado frequentemente por Jesus para referir-se a Deus como Pai. No entanto, um estudo do Novo Testamento indicará que a palavra é usada apenas três vezes, sendo uma delas pelo evangelista Marcos, em 14,36144: 143 Aliás, essa é a mesma palavra usada na prisão de Jesus, em 14,48: “E respondendo Jesus disse a eles: como contra um bandido saístes com espadas e porretes para prender a mim?” (tradução conforme o Novo Testamento Interlinear. Grifo nosso). 144 As outras passagens são Romanos 8,15 e Gálatas 4,6. 122 “E dizia: Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este cálice; contudo, não seja o que eu quero, e sim o que tu queres.”145 Essa passagem é a única em todos os Evangelhos em que o termo é colocado na boca de Jesus146, exatamente em sua oração angustiada nos momentos que antecedem sua prisão, e parecem querer indicar ao mesmo tempo a relação de Jesus com Deus e sua submissão a Ele e à Sua vontade. A passagem, de certa forma, identifica Jesus como Filho de Deus, e é como tal que será preso e chegará à cena do julgamento. Não nos parece casual que o nome do condenado com quem Jesus é confrontado diante da multidão seja chamado de “filho do pai”, e nossa pergunta é: se Marcos descreve anteriormente Jesus como filho de Deus e Barrabás é “filho do pai”, quem seria esse “pai” de Barrabás, a quem o mesmo representa? Temos uma sugestão a essa questão que nos parece um tanto ousada, mas plausível. Somos conhecedores de que as sociedades tradicionais antigas, não apenas a judaica, mas também a romana, obedeciam uma estrutura familiar em que cabia ao pai toda autoridade sobre os componentes da casa (não apenas familiares, mas também escravos). Esse sistema, conhecido como patriarcado, era vivido nas esferas pessoais e reproduzido nas esferas coletivas, e Roma é um grande exemplo disso, especialmente a partir de Otavio Augusto, que consagrou o imperialismo romano. A fim de que o acúmulo de poderes que conquistou não soasse como tirania, e devido ao fato de o imperador ser considerado como um benfeitor, que deveria “cuidar” da população, da paz e da ordem, foi naturalmente atribuído ao mesmo o título de Pai da Pátria. Em outras palavras, para a mentalidade 145 Conforme tradução de João Ferreira de Almeida, 2ª Edição Revista e Atualizada, publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. 146 Consideramos que tal raridade pode dever-se ao fato de os Evangelhos terem sido escritos em grego, e compreendemos isso com naturalidade. O que chama a atenção, no caso, não é a ausência do termo nos demais Evangelhos, mas seu uso por Marcos, o lugar escolhido para usá-lo e a seguinte composição do nome Barrabás! 123 romana, um único homem passou a unificar e integrar a sociedade romana, unindo cada família particular à grande família romana cujo príncipe era o Pater Patriae147. Isso significava que o Imperador tinha total autoridade sobre as pessoas de todo o Império, como um pai teria sobre seus filhos, no sistema patriarcal e, ao mesmo tempo, significava que as pessoas, os “filhos”, deveriam representá-lo e honrar seu nome148. Os filhos deveriam representar os princípios e valores do pai. Pode parecer estranho falar do conceito de Pater Patriae na identificação de um personagem de nome (ou epíteto) Barrabás, de composição aramaica, mas não será tão estranho se considerarmos o contexto em que esse nome está inserido (o confronto com Jesus, o Filho de Deus), os valores que representa (rebelião, violência, revolta armada) e o contexto romano do Evangelho de Marcos, que já destacamos. Queremos dizer com isso que o Barrabás apresentado por Marcos, apesar de ser judeu e de ter um nome genuinamente judaico, representava os valores do Império Romano e de seu pai, o Imperador: valores de poder pela violência. Dois filhos, representando a visão de mundo e valores de dois “pais”. Esse parece ser o confronto sugerido por Marcos ao identificar esse “rebelde” cujos valores, como veremos, são preferidos pela multidão. 3.2.4 A última cena da multidão O texto que estudamos apresenta a última aparição, no Evangelho 147 de Marcos, desse personagem tão marcante, que Norma Musco Mendes, “O Sistema Político do Principado”, em Gilvan Ventura Silva e Norma Musco Mendes, (Org.), Repensando o Império Romano - Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural, São Paulo: Editoras FCAA, Edufes e Mauad, 2006, p.42. 148 Essa seria, inclusive, a motivação (pelo menos inicial) do culto imperial, derivado dos rituais antigos de cultos familiares em memória ou honra aos ancestrais! 124 acompanhou Jesus desde o início da narrativa. E essa despedida de o;cloj acontece de forma um tanto significativa, tanto pela repetição da palavra – três vezes em um texto consideravelmente pequeno (versos 8, 11 e 15), como por apresentar aparentemente uma postura diferenciada em relação a outras passagens do Evangelho, especialmente no seu relacionamento com Jesus, como vimos no primeiro capítulo deste trabalho. Após uma pequena ausência da palavra o;cloj no período de “estadia” de Jesus em Jerusalém (última referência acontecera em 12,41), o termo volta a ser usado de forma espantosa em 14,43 identificando a “turba” que havia ido prender Jesus a mando dos sacerdotes, escribas e anciãos. O uso da palavra o;cloj nessa passagem é realmente muito surpreendente, chega a ser chocante, e não pode ser considerado como destituído de significado! Nessa passagem da narrativa, a posição da multidão começa a ser diferente da apresentada até então. Esta ainda “procura” Jesus, de certa forma, mas não mais como mestre ou líder, uma vez que o;cloj, nesse texto, está liderada pelos sacerdotes, escribas e anciãos. No entanto, quando chega diante de Jesus, essa “turba” apresenta atitudes contraditórias: um dos presentes parece querer começar uma “revolta” sacando a espada e ferindo um dos servos do sumo sacerdote e, ao final da cena, Marcos descreve que “todos” (isso inclui o;cloj ?) fugiram (ficando provavelmente os guardas para levar Jesus ao Sinédrio). Temos a descrição de uma multidão confusa, talvez em dúvida em relação às suas expectativas (estimuladas pela época da Páscoa) e facilmente influenciável, uma vez que aparentemente estava ao lado dos líderes judeus no início da cena, mas se dispersa ao seu final, depois de encontrar Jesus. Em Marcos 15,8 a multidão/o;cloj reaparece para pedir a Pilatos que cumprisse com o costume de soltar um prisioneiro, por ser a 125 Páscoa. De acordo com a estrutura do texto de Marcos, é possível que a multidão não soubesse que Jesus estava entre os prisioneiros, que já havia sido julgado (conforme vimos, nos versos 1 a 5 do capítulo 15) e condenado à morte. A multidão se dirige ao palácio do governador para pedir a libertação de qualquer preso, por causa do costume. Vai literalmente a um “espetáculo” concedido pelo representante de Roma para contentar a população dominada, pelo “presente de Páscoa” concedido por Pilatos. Ao chegar ao palácio do governador, a multidão encontra-se com os líderes judeus, que haviam ido entregar Jesus a Pilatos, e é informada, talvez pelo próprio Pilatos, da presença de Jesus. Não podemos afirmar se no decorrer da cena Jesus e Barrabás estariam presentes ou seriam apenas referidos. Marcos nos informa que Barrabás já estava preso com outros rebeldes, mas Jesus havia sido julgado há pouco e não há indicação a respeito dele, se continuava ali ou não. Considerando que a cena se desenvolve no palácio de Pilatos, cremos ser pouco provável que os condenados estivessem ali, o que nos faz considerar a idéia de que a multidão não estava vendo nem Jesus nem Barrabás. Os verbos utilizados no verso 15 para indicar a libertação de Barrabás e a entrega de Jesus aos soldados (para a sessão de flagelos que antecedia a crucificação), avpe,lusen/soltou e pare,dwken/entregou, estão ambos conjugados na forma indicativa do aoristo, indicando mais um aspecto (o efeito da ação) do que um tempo propriamente dito, e não podem ser entendidos como ações que aconteceram ao mesmo tempo ou exatamente na sequência do verso 14, mas como uma conseqüência do mesmo. Marcos continua descrevendo a cena com a opção dada por Pilatos de libertar Jesus, diante do pedido da multidão. No entanto, Pilatos faz isso de forma sarcástica e astuta, pois não se refere a Jesus pelo nome, mas pelo suposto título que deu origem à sua acusação e 126 condenação e que refletia, para o Império Romano, um indício de rebeldia e traição: rei dos judeus. É possível que essa referência de Pilatos tenha despertado receio na multidão, que era certamente conhecedora da crueldade do governador e de sua tendência a represálias violentas. Embora esse medo de ser considerada como traidora seja bastante plausível, e possa ser entendido como um astuto recurso de Pilatos, o evangelista destaca o papel dos sacerdotes (aliados dos romanos) influenciando a decisão popular: são eles que incitam a multidão a preferir Barrabás. Em outras palavras, a escolha foi dos sacerdotes, e foi adotada pela multidão. De forma muito interessante, Marcos demonstra nessa cena que a decisão final seria, de qualquer forma, de Pilatos. Ele não precisa obedecer à multidão, assim como o Imperador não precisava aceitar a opinião do público ao decidir o destino de um gladiador numa arena. Mas, como o Imperador que quer contentar as massas, Pilatos quer satisfazer à multidão, porque sua situação política o obriga a fazê-lo. Como mencionamos há pouco, ele e os líderes judeus dirigem a cena a fim de que a multidão pareça realmente participar ativamente da decisão acerca da vida de Jesus, e assim esta decide algo que, na verdade, já estava decidido. Se de fato Jesus e Barrabás não estivessem presentes na cena, o fato de a multidão ter sido tão facilmente manipulada pode ser compreendida mais facilmente, pois poderia haver algum paralelo com a postura descrita em 14,43, texto que demonstra posturas diferentes da multidão quando longe de Jesus e influenciada pelo líderes judeus e quando perto dele. Embora seja uma possibilidade relevante, cremos que o fator determinante dessa postura da multidão deve ser entendido pelas visões de mundo, valores e expectativas representados por cada um dos prisioneiros, que assumem os papéis de gladiadores em um combate verdadeiramente ideológico, cujo final demonstra não apenas a confusão da multidão, mas sua incapacidade 127 de superar expectativas ingênuas e irreais, o que a torna facilmente influenciável. A multidão/o;cloj se despede do Evangelho de Marcos de forma triste: como uma massa de pessoas influenciáveis e que se contenta com os paliativos dados pelo dominador para apaziguar e diluir seus anseios por transformação real, contentando-se, como veremos, com idealizações ilusórias de transformação. 3.3 A Cena Montada: Um Munera 3.3.1 Colocando Os Personagens na Arena Temos procurado demonstrar, até aqui, que Marcos estruturou sua narrativa como se fosse um combate de gladiadores, e apresentamos, de acordo com o texto, alguns personagens da cena descrita. Percebemos que Pôncio Pilatos, o governador romano e representante do poder imperial, é apresentado como o Imperador ou como o patrono. Ele é quem oferece o espetáculo (a libertação do prisioneiro, que é o que atrai a multidão), e se comporta na cena como aquele que de fato detém o poder, mas que permite à multidão a decisão – uma decisão controlada, com limites estabelecidos, e que não colocasse em risco sua autoridade. O Sinédrio, principal instância de poder nativo, é representado por seus componentes, escribas, anciãos e sacerdotes, que podem ser entendidos como as elites que também freqüentavam os munera e que demonstravam as polaridades sociais e as divergências de interesses mas que, de certa forma, simbolizavam os valores da sociedade – porque o conceito de uirtus, por exemplo, tão apreciado e desejado nos gladiadores, era um conceito fundamentalmente elitista, não alcançável pela plebe. Os sacerdotes representam, além disso, a estrutura social e econômica judaica e a ideologia excludente do 128 Templo, fatores formadores de marginalidade, como vimos no Primeiro Capítulo. Além disso, temos a multidão, o grupo de pessoas tão queridas e atendidas por Jesus durante toda a narrativa e que, neste momento da mesma, posiciona-se contra Jesus. Apresenta-se na cena de uma forma bastante paradoxal, pois tem a iniciativa de ir ao “espetáculo” oferecido por Pilatos para pedir a libertação de um prisioneiro qualquer mas, ao saber da situação de Jesus e ter a oportunidade de escolher libertá-lo, escolhe Barrabás, motivada por líderes que na verdade não a representava. Tal escolha aparentemente é feita de forma irrefletida, ao calor das emoções. Por fim, temos os “gladiadores”, Jesus e Barrabás, pessoas que são “jogadas” na cena, que dela participam sem oportunidade de escolha e alheios à sua vontade (ao contrário de todos os demais, que estavam ali porque queriam!). Não são necessariamente inimigos, mas representam posturas e propostas diferentes e conflitantes, visões de mundo e modos de agir diferenciados que os identificam149 e que determinarão a derrota de um e a vitória do outro. Essas duas pessoas, transformadas na cena de Marcos em gladiadores, são jogadas na arena montada por Pilatos e, como num combate real, têm a oportunidade de lutar por suas vidas, cada um com suas “armas” e seus recursos. A idéia que esboçamos acima, de que ambos já eram, nesse ponto da narrativa, prisioneiros condenados, combina com o que descrevemos acerca do tipo de punição romana que condenava o réu a combater na arena (ad ludum gladiatorium), e não pode ser confundida com o outro tipo de condenação descrito como “espetáculo sangrento” do summa suplicia. No primeiro caso, que cremos ser o que Marcos descreveu, havia a possibilidade de o prisioneiro/gladiador 149 Cada um desses “gladiadores” já tem uma fama, já é conhecido por um tipo de postura e comportamento! 129 conseguir, por seu desempenho, o perdão e a liberdade, depois de sobreviver a certo número de combates. É possível ainda que Marcos tenha aludido a condenados na outra forma dessa arena para lutarem punição, que colocava os até só que restasse um combatente, cujo destino seria decidido pelo Imperador ou pelo público, se este lhe desse esse privilégio (ad gladium ludi). De qualquer forma, ao fim do “duelo” apresentado por Marcos, um dos gladiadores, Barrabás, recebe a liberdade, enquanto outro, o derrotado, é condenado à morte. Porém, essa morte não é a morte “digna” que os gladiadores podiam conseguir por desempenhar um bom combate, mas é um suplício humilhante e terrível: a cruz. 3.3.2 A arena e o duelo de ideologias Jesus ou Barrabás? Chegamos, finalmente, ao confronto entre os dois “gladiadores” na estrutura montada por Marcos. Dois condenados são confrontados, não por vontade própria, e entre essas duas pessoas se revelam semelhanças e diferenças. De semelhante, verificamos o fato já salientado de que ambos estavam presos e condenados por crimes políticos, crimes contra a ordem romana. Os dois representavam algum tipo de oposição e ameaça à ordem estabelecida. No entanto, o que se destaca são suas diferenças, e são essas que determinam o desfecho da cena. Barrabás representa um tipo de revolta violenta e armada, condizente com a época de Marcos e facilmente compreendida no contexto da Revolta Judaica em que o texto está inserido. É um tipo real de oposição, conhecida e vivenciada pelos ouvintes/leitores de Marcos, que provavelmente eram assediados para que dela fizessem parte. 130 No entanto, conforme destacado na exposição que fizemos do nome Barrabás, essa posição, embora direcionada contra Roma, guardava os mesmos princípios e a mesma visão de mundo do dominador: a vitória pela força, imposta pela violência. Não representava nem desejava uma mudança na estrutura das situações de injustiça, mas uma mudança de conjuntura: desejava inverter a ordem de dominação, sem questionar as estruturas de poder. Deixar de ser dominados e tornarem-se dominadores, sem questionar a existência dessa estrutura que divide as pessoas entre esses grupos (de dominadores e dominados). Nesse sentido, Barrabás era “filho” do Império Romano: havia internalizado seus valores e sua forma de conduta, e reproduzia isso. Jesus, por outro lado, apresenta uma opção extremamente radical, que é entendida por Marcos como mais perigosa, por atacar exatamente a lógica e a estrutura do sistema de dominação. A revolta proposta por Jesus é a do tipo que, embora pacífica, “não deixaria pedra sobre pedra”, pois questionava a validade do sistema e conscientizava as pessoas acerca de sua realidade e da necessidade de estabelecer um novo tipo de postura no mundo baseado em relações restauradas e em laços de solidariedade que tornassem as regras estabelecidas obsoletas. Essa postura de Jesus, contudo, necessitava de um nível de desprendimento das velhas formas de vida e de comprometimento com o novo que a maioria das pessoas (que o;cloj) não pode compreender ou assumir. De fato, o tipo de revolta proposto por Barrabás permite um comprometimento “em massa” e promete “resultado imediato” para si mesmo, diferente da proposta de Jesus, que tem que ter comprometimento pessoal em prol da comunidade, e que não promete soluções imediatas. Essas eram as propostas de cada um dos dois gladiadores, e é por essas propostas e visões de mundo que ambos se faziam 131 conhecidos. Quando são confrontados, são seus ideais e sua visão de mundo que duelam, e é a partir deles que seus destinos – e o destino da Judéia – serão determinados. A multidão escolhe libertar Barrabás, dá a ele a vitória do duelo e condena Jesus à morte. Por quê? Porque a postura de Jesus é lida e entendida como fraqueza, ele é visto como alguém que se recusa a lutar – e de fato se recusa. Jesus não apresenta um bom espetáculo, não é um bom gladiador porque não assumiu as armas e as formas imperiais e correntes nem de submissão nem de revolta. Mereceu morrer porque não demonstrou uirtus. E a multidão fez o seu papel: escolheu de fato o melhor gladiador, de acordo com suas expectativas. Dissemos anteriormente sobre a postura contraditória e confusa da multidão, sobre sua tendência de procurar Jesus para satisfazer suas necessidades e desejos. Conhecemos um pouco de sua situação de extrema opressão e os desejos de liberdade e justiça que alimentavam, bem como suas expectativas messiânicas que, certamente, foram depositadas em Jesus. Na Galiléia, a multidão havia tido suas expectativas satisfeitas por Jesus, e é muito provável que acreditasse que Jesus estava indo para Jerusalém para “completar” essas expectativas através da reivindicação messiânica (afinal, Jerusalém era o lugar ideal para isso). No entanto, diante da postura de Jesus em Jerusalém, a multidão se frustra, talvez percebendo que Jesus não assumiria o papel de messias, rei ou revolucionário que esta desejava. Cremos, portanto, que o que determina a escolha da multidão, no Evangelho de Marcos, é sua frustração. A multidão esperava que Jesus apresentasse uirtus, a “virtude” romana, com os padrões romanos, como Barrabás o fez. A multidão crê que é possível derrotar o Império com as mesmas armas, que é possível acabar com a opressão com uso de armas que oprimem e matam, e não 132 compreendem o fato de Jesus recusar-se a apresentar tal comportamento. Ironicamente, se para os líderes judeus, ricos, aliados de Roma, beneficiários do sistema de dominação e opressão, Jesus era mais perigoso do que Barrabás, para a multidão oprimida, desesperada e explorada, ele não correspondia às expectativas. Talvez porque os líderes compreendessem que a transformação proposta por Jesus era muito mais efetiva do que a de Barrabás... E talvez seja por isso que Marcos quis apresentar essa cena dessa forma:como um múnus, como um combate tipicamente romano em que se revela o que está por trás das ações: os valores e princípios. No duelo montado por Marcos, inegavelmente Jesus perdeu. Ele recusa-se a demonstrar as virtudes desejadas pelo Império, que são as mesmas desejadas pela multidão. Jesus perde porque, depois de acompanhá-lo em todo seu ministério, a multidão continua tendo os mesmos valores, desejando as mesmas coisas, continua sendo o;cloj. 133 Para Concluir... Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. Ente eles, considere a enorme realidade, O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história. Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela. Não distribuirei entorpecentes ou cartas suicida. Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, A vida presente. Carlos Drummond de Andrade Começamos nossa pesquisa motivados por um questionamento: por que a postura da multidão, identificada pela palavra o;cloj e bem definida como personagem importante no Evangelho de Marcos, muda tão radicalmente no final do Evangelho? Se, como temos verificado, o termo refere-se a um personagem que aparece acompanhando Jesus, recebendo seus ensinos e seus milagres, tendo sua atenção e cuidado e demonstrando prazer em sua companhia e admiração ao seu ensino a ponto de querer fazê-lo rei, qual a explicação para tal mudança? Será que a explicação corrente de que a multidão, como “massa de 134 manobra” foi manipulada pelos líderes judeus é satisfatória e convincente? Ao longo de nossa pesquisa, percebemos que as questões acerca da postura e da identidade de o;cloj/multidão são muito mais complexas do que pensávamos de início, e esperamos ter demonstrado um pouco dessa complexidade na verificação de que o termo, no Evangelho de Marcos, é usado de forma relacional, não significando uma classe social propriamente dita, mas representando uma postura diante da vida e das pessoas – postura marcada pelo anonimato, pela procura da satisfação de suas próprias necessidades e interesses, muitas vezes assumindo posições que atrapalham o desenvolvimento do ministério de Jesus. Percebemos também que, paradoxalmente, as pessoas que compõem o;cloj são identificadas pela possibilidade – possibilidade de emergir da multidão, ser identificadas e transformadas em sua visão de mundo e em sua postura. Muitas pessoas, no decorrer da narrativa de Marcos, passaram por esse processo, saíram da multidão e tornaram-se seguidoras de Jesus. Ao verificar essa complexidade, percebemos que trabalhávamos com a questão errada. Marcos não apresenta, no capítulo 15 de seu Evangelho, uma postura diferenciada da multidão. Ao contrário, o “problema” reside no fato contrário: apesar de conviver com Jesus, de receber seu ensino, atenção e milagres, o;cloj não mudou! Deveria ter mudado. Poderia ter mudado, mas não mudou. Por isso, ao final do evangelho, suas expectativas e sua visão de mundo continuam as mesmas do início: satisfação de suas necessidades imediatas, esperança de que um líder resolveria imediatamente todos os problemas relacionados à opressão e injustiças expectativas não transformadas é que levam Barrabás em detrimento de Jesus. sofridos. o;cloj Essas a escolher 135 Saímos, portanto, do “lugar comum” que tende a enxergar o;cloj de forma simplista, vendo-a como composta por pessoas ingênuas que, devido à sua simplicidade, são facilmente induzidas ou influenciadas. A multidão de Marcos não é assim: é composta por pessoas reais, nem totalmente boas nem completamente más, pessoas que vivem em realidades complexas e que têm desejos egoístas (muitas vezes motivados pelo desespero), mas também têm grandes possibilidades. Não são vítimas nem vilões, mas podem ser as duas coisas, conforme suas escolhas. Quando falamos anteriormente que a multidão foi influenciada pelos líderes judeus para escolher a libertação de Barrabás o que queremos dizer é que os líderes conheciam as expectativas dessa multidão e trabalharam com aquilo que sabiam que já estava em sua mente e visão de mundo. Não teriam tido êxito se, em vez de o;cloj tivessem encontrado seguidores comprometidos com Jesus, por mais “humildes” que esses seguidores pudessem ser. Entendemos, portanto, que Marcos apresenta, em seu Evangelho, duas possibilidades de relacionamento com Jesus, dentre as quais seus ouvintes/leitores teriam que escolher: continuar na multidão, ou sair dela e tornar-se discípulo ou seguidor de Jesus. Nesse caso, há necessidade de transformação da visão de mundo e das expectativas a fim de poder compreender a proposta de transformação de Jesus, seus compromissos e riscos, pois não há garantias de satisfação pessoal, mas compromisso com a missão restauradora de Jesus. A diferenciação apresentada no Capítulo 1 entre os discípulos (ajudadores de Jesus) e a multidão (ajudados por Jesus) ganha uma significação ainda mais profunda, pois Marcos não nega a presença sempre constante da multidão, e desafia sua comunidade a ter a mesma postura que Jesus teve, apesar da inconsistência da mesma. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, desafia sua platéia a que se posicione. 136 Esse posicionamento ganha definições políticas definidas, que devem ser também compreendidas. Marcos apresenta a postura antiimperialista de Jesus de forma clara. Seu Evangelho, como vimos, está repleto de referências críticas à dominação romana e procura desvendar os mecanismos dessa dominação, assim como o faz com a dominação econômica, ideológica e religiosa exercida pela liderança judaica. Mas o tipo de resistência de Jesus é diferente de tudo que sua comunidade conhece. Em um contexto de guerra, em que sua comunidade estava sendo desafiada a tomar um posicionamento ou de alienação e separação total (como os essênios, por exemplo) ou de aceitar e fazer parte da revolta armada, o Jesus de Marcos apresenta outra opção: resistência pacífica baseada na restauração das relações de solidariedade e ajuda mútua que caracterizavam o antigo Israel. Jesus propõe o Reino de Deus como uma realidade em que não existam dominadores e dominados, mas ajuda mútua. Marcos entende que qualquer tentativa de rebelião armada seria suicida (como de fato foi) e, ao mesmo tempo, sabe que o conformismo e a alienação sedimentariam cada vez mais a situação de injustiça e opressão. Nenhuma dessas duas posturas representaria o compromisso com Cristo e os valores do Reino. Dessa forma, entendemos a opção de Marcos em estruturar o texto do confronto entre este e Barrabás da forma como o fez: como um munera, um evento símbolo da dominação romana, certamente conhecido e facilmente reconhecido por seus ouvintes/leitores. Os anos de dominação romana, o convívio com soldados romanos na capital e no interior da província, o esforço das lideranças nativas em agradar ao Império e propagar seus valores certamente haviam dado à população a oportunidade de conhecer esse fenômeno tão característico e carregado de significados, que seriam percebidos pela sua comunidade. Mais do que isso, o confronto entre a ideologia 137 imperial “disfarçada” de nacionalismo, representada por Barrabás, certamente provocariam o choque e a compreensão dos valores expostos na atitude de Jesus: não adiantava querer opor-se ao dominador com as mesmas armas do mesmo (até porque ele seria muito mais forte), não adiantava querer mudar apenas a conjuntura e inverter os papéis entre dominadores e dominados, exploradores e explorados. Era preciso ir além: questionar e derrubar as estruturas, o modo de pensar e se posicionar que faz com que seja necessário existir essas divisões. Jesus perde o duelo porque quer. Ele deliberadamente assume o risco de sua atitude, e não se pode dizer que tenha morrido “injustamente”, diante das posições que assumiu. Em sua morte, não há mal entendido ou equivoco, pois Jesus morreu por aquilo que havia decidido ser, pelo que era, por suas decisões e valores, pelo “Pai” que representava. Na cena descrita por Marcos, sua recusa em participar do confronto com as mesmas “armas imperiais” determinaram sua morte, porque isso significaria ter que internalizar os valores do Império, e isso Jesus não faz. Sua atitude, que poderia ser lida como fraqueza, como falta de uirtus, demonstra na verdade uma coragem radical que não é compreendida pela multidão: coragem de manter sua identidade e o projeto do Reino de Deus pelo qual vivera. E esse é o confronto máximo no qual a comunidade de Marcos também estava inserida e devia posicionar-se. Assumir os riscos do discipulado seria assumir uma identidade diferenciada da multidão, sair de o;cloj e estar disposto a correr os riscos. Mas, em Marcos, os seguidores de Jesus também não estão presentes, também o abandonam... Fugiram como “todos”, na cena de sua prisão (Marcos 14,50). Também são apresentados como humanos, também têm medo e ficam confusos. Mas há uma diferença em Marcos – uma diferença crucial: o abandono não é a palavra final. Os discípulos reaparecem, depois da ressurreição, no chamado de Jesus 138 para que se encontrem com ele na Galiléia – onde tudo começou. Porque com os discípulos, com os seguidores, o relacionamento continua mesmo diante da frustração, dos riscos e dos fracassos. Isso é compromisso, assumido apenas por quem tem coragem de sair de o;cloj e aprender novos valores e nova forma de viver. Terminamos esse trabalho com uma certeza: não chegamos à verdade. Apenas demos mais um passo em direção à compreensão de um texto que procurou revelar a importância do fenômeno Jesus em uma realidade complicada, cheia de injustiças, conflitos e gente aflita – realidade como a nossa. O esforço do Evangelista Marcos em compreender sua realidade e ao mesmo tempo torná-la compreensível aos seus ouvintes/leitores, apresentando Jesus e o Reino de Deus como a verdadeira solução nos desafia a dar mais um passo: seguir seu exemplo! “Podemos, dessa maneira, distinguir dois tipos de busca da verdade. O primeiro é o que nasce da decepção, da incerteza e da insegurança e, por si mesmo, exige que saiamos de tal situação readquirindo certezas. O segundo é o que nasce da deliberação ou decisão de não aceitar as certezas e crenças estabelecidas, de ir além delas e encontrar explicações, interpretações e significados para a realidade que nos cerca”150. 150 Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo: Ática, 2000, p.114-115. 139 Bibliografia AHN, Byung Mu, “Jesus and the Minjung in the Gospel of Mark”, em Minjung Theology, People as the Subjects of History, Maryknoll: Orbis, 1981, p.138-152. 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