Maria Olívia Ferreira Leite, Sueli Ângelo Furlan

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VI Seminário Latino-Americano de Geografia Física
II Seminário Ibero-Americano de Geografia Física
Universidade de Coimbra, Maio de 2010
COMITIVA DE BOIADEIROS NO PANTANAL SUL-MATO-GROSSENSE:
MODO DE VIDA E LEITURA DA PAISAGEM.
LEITE, Maria Olivia Ferreira*; FURLAN, Sueli Ângelo – Universidade de São
Paulo/USP - Programa de Pós Graduação em Ciência Ambiental (PROCAM)
[email protected]; [email protected]
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa aborda o modo de vida e a leitura da paisagem dos boiadeiros no
Complexo Pantanal Sul-Mato-Grossense. O boiadeiro é uma figura típica na região
pantaneira e representa parte dos trabalhadores da pecuária, principal atividade
econômica da região. Montados em burros, viajam por diversas paisagens e conduzem
boiadas que pertencem a pecuaristas.
As Comitivas de boiadeiros têm sido realizadas em diversos países há milhares de
anos, e possuem importância histórica, sócio-econômica e ambiental, estando
associadas às ocupações humanas em diferentes paisagens. Em muitas regiões esta
forma de manejo se extinguiu com a modernização tecnológica, mas no Pantanal
persiste, principalmente, devido ao alagamento de sua planície e em muitas ocasiões é
a única alternativa de transporte.
1. ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA
A abordagem teórica deste estudo está fundamentada na interpretação da
paisagem como lugar no contexto de populações tradicionais1, considerando o
significado dado pelas experiências vividas e representações simbólicas.
É um tema interdisciplinar, onde a paisagem é construída a partir de “expêriencias
compartilhadas”, e pensada “como um vasto campo de significados, tensões e
contradições”. Além disto, ela é considerada “instável, um permanente vir a ser e
permanência em transformação”. (SANDEVILLE, 2005, p. 1-9).
1
Levando em consideração a complexidade deste tema, optou-se pelo conceito de populações
tradicionais, pois apesar de generalizar uma grande sociodiversidade, tem sido amplamente utilizado na
literatura e na legislação brasileira. Esta definição apóia-se nos traços culturais que os distinguem,
fazendo parte de grupos que reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos
isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza, desenvolvendo modos
particulares de existência. Uma das características marcantes destas populações é a auto-identificação
ou identificação pelos outros de se pertencer a uma cultura distinta. (ARRUDA & DIEGUES, 2001).
1
Tema 3 – Geodinâmicas: entre os processos naturais e socioambientais
Neste sentido, Cabrera et al. (2001) definem que as áreas culturais contextualizadas
por uma região geográfica são complexos culturais inter-relacionados que seguem
uma continuidade no espaço-tempo.
Sobre o espaço, uma categoria complexa para a Geografia, entende-se como as
idéias de um grupo, a partir da experiência cotidiana. É o campo de representações,
simbolismos, que permite sentidos de movimento: “como a localização relativa de
objetos e lugares’'. O lugar é um mundo de significado organizado, sendo
essencialmente um conceito estático. É cada pausa no movimento, onde torna possível
que localização transforme-se em lugar. Até mesmo nas sociedades em constante
movimento, como no mundo dos nômades, há uma percepção intersubjetiva de
lugares conectados por um caminho. (TUAN, 1983, p.14).
Para conhecer os lugares é necessária a identificação de locais significantes. Estes
objetos e lugares são “núcleos de valor”, por receber ou possuir nomes, concebendo
diversas percepções2. Comumente são habilidades aprendidas não pela instituição
formal, mas ao nível do subconsciente. (TUAN, 1983, p.20). No espaço das Comitivas
estes “núcleos” podem ser representados por referenciais nas paisagens pantaneiras.
Nesta pesquisa, caminhou-se para o objeto de estudo através da intencionalidade
do sujeito, atribuindo significados a estrutura da consciência, exposta nas descrições
contextualizadas. Nelas estão as essências do que se busca conhecer, e por serem
feitas em segunda ou terceira mão, são interpretações subjetivas.
A construção dos resultados foi elaborada considerando-se que é importante situarse (no universo imaginativo do dos boiadeiros). Isto quer dizer que se procurou
conversar com eles, diferentemente de falar por eles, além de observar e compreender
relações, experiências, selecionar e entrevistar informantes, transcrever textos,
aprender vocabulários, mapear campos, manter um diário. (GEERTZ, 1989).
Finalmente, foi feita a “análise de conteúdo” dos significados que emergiram do
espaço vivido, sendo produzido um sistema de categorias tematizadas. (BARDIN, 1995,
p.34).
Devido à escassez de material disponível na literatura, os dados foram obtidos,
principalmente, por meio de métodos empíricos fundamentados em dados primários,
durante esta pesquisa e em trajetórias de vida anteriores na região estudada3. Foram
coletados relatos, de entrevistas com interlocutores locais, suas histórias de vida e
2
Por exemplo, por meio de símbolos numéricos ou verbais, como marcha para os boiadeiros, que
representa um dia de viagem (cerca de 12 km ou 2 léguas).
3
Já existia uma relação com o tema abordado, devido a uma das pesquisadoras trabalhar como guia de
ecoturismo e residir no Pantanal (MS).
2
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pelo acompanhamento presencial de Comitivas de viagem. As entrevistas foram
gravadas (cerca de 8 horas), e transcritas e as Comitivas acompanhadas, totalizaram
por volta de 170 quilômetros percorridos em 11 dias.
Outro importante instrumento para colher os relatos foi o método descritivo,
baseado na leitura da paisagem. Compreende-se que nas paisagens há marcos
referenciais que contém sistemas simbólicos e podem ser apreendidos e lidos, na
medida em que há apropriação de uma linguagem do espaço (FURLAN, 2009) 4.
Para registros dos dados foram utilizados diários de campo, gravador, GPS, máquina
fotográfica e 1 mapa das fazendas do Pantanal- EMBRAPA (1996).5 A pesquisa foi
realizada no Pantanal Sul-Mato-Grossense, mais especificamente nos pantanais de
Miranda, Aquidauana, Nabileque, Abobral e Rio Negro.
2. PERSPECTIVA HISTÓRICA
O Pantanal é a maior planície inundável do mundo. Sua área total é de 210.000
Km2, abrangendo o Brasil, a Bolívia e o Paraguai. Deste total, cerca de 70% estão no
Brasil, distribuídos entre os Estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (ALHO;
LACHER JUNIOR & GONCALVES, 1988). Neste último Estado, presente área de estudo,
corresponde a 64,64% da área do Pantanal no Brasil (ABDON & SILVA, 1998).
Está sujeita a um regime das águas fortemente sazonal, com precipitação média de
1.400 mm, variando entre 800 e 1.600 mm. O período de chuvas vai de outubro a abril,
concentrando cerca de 70 a 80% da média anual. Existe um atraso de
aproximadamente quatro meses entre o pico da cheia do norte e do sul do Pantanal. A
temperatura média anual é de 24 ºC, com médias mínimas e máximas de 20 ºC e 38 ºC,
respectivamente. As altitudes na planície variam de 60 a 150 metros. (Agência
Nacional De Águas et al., 2004).
A vegetação é influenciada pela Floresta Amazônica, Cerrado (predominante),
Chaco e Floresta Atlântica. ADAMOLI (1981 apud HARRIS et al., 2005) 6. Devido a este
mosaico de fisionomias vegetais, a região é considerada como Complexo Pantanal,
sendo declarada Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera.
(Organização Das Nações Unidas Para A Educação, A Ciência E A Cultura, 2009). As
4
FURLAN, S. Â. Informação fornecida em 20 de agosto, 2009.
EMBRAPA Pantanal. [1996], Fazendas do pantanal. Ministério da Agricultura e
Abastecimento, Corumbá. Escala 1:750.000.
6
ADÁMOLI, J. 1981, `O Pantanal e suas relações fitogeográficas com os cerrados.
Discussão sobre o conceito de “Complexo do Pantanal”`, Anais do XXXII Congresso
Nacional de Botânica. Teresina, Sociedade Brasileira de Botânica, pp. 109-119.
5
3
Tema 3 – Geodinâmicas: entre os processos naturais e socioambientais
principais razões por este reconhecimento podem ser elencadas: trata-se de um
complexo de ecossistemas únicos no mundo e revela uma sociodiversidade peculiar,
dada ao processo histórico de formação sócio-espacial.
A origem do Pantaneiro é
produto da miscigenação entre
as
diversas
sociedades
indígenas que habitavam a
região,
os
colonizadores
portugueses e espanhóis e os
escravos negros africanos que
chegaram após o século XVI.
(DIEGUES JUNIOR, 1952). A
pecuária, iniciada há mais de
duzentos anos, continua com o
mesmo regime de corte e
criação extensiva nas pastagens
(ARRUDA & DIEGUES, 2001),
com um rebanho bovino
estimado em 3,8 milhões de
indivíduos. (POTT; VIEIRA &
Mapa 1-Pantanal. (Agência Nacional Das Águas et
COMASTRI FILHO, 2008). O
al, s/d).
transporte das reses pode ser
realizado por rodovia, via fluvial, dependendo da disponibilidade e métodos de
comercialização (ABRÃO, 1983). Porém, o regime das águas do Pantanal tem sido fator
decisivo na criação do gado como atividade viável e, assim para existência das
Comitivas. Estas são indissociáveis e costumam ocorrer antes da estação da cheia, pois
há áreas alagáveis onde não é possível manter o gado.
3. COMITIVA DE BOIADEIROS: MODO DE VIDA
Neste tema buscou-se traçar o tipo cultural dos boiadeiros, retratar o cotidiano e
seus ofícios executados na condução do gado, durante as Comitivas de viagem.
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Com raras exceções, observou-se que o boiadeiro do Pantanal é, antes de tudo, um
pantaneiro7. Segundo o Cozinheiro da terceira Comitiva8, boiadeiro é aquele que vive
boiadeando, ou seja, viajando com o gado.
Na década de 70, Rondon definiu o boiadeiro como “o comprador de gado para
revender, um comerciante de gado, o intermediário entre os fazendeiros criadores e os
invernistas ou açougueiros.” (RONDON, 1972, p. 98). Atualmente, o comprador de
gado ainda é denominado de boiadeiro, porém não é o mesmo que viaja em
Comitivas. Há o boiadeiro comprador-vendedor de gado, que costuma ser o
proprietário ou gerente de fazenda e o peão - boiadeiro, que viaja nas Comitivas.
Este último faz parte do tema desta pesquisa. Conduzem grandes boiadas por
centenas de quilômetros e viajam até meses, montados em burros e penetrando
inúmeras paisagens, onde muitas vezes, não há outra opção de acesso. Estas boiadas
pertencem a fazendeiros criadores e invernistas que necessitam transportá-las com
objetivo de executar o manejo entre fazendas durante as fases de cria, recria ou
engorda do gado, ou por motivos de compra/venda entre fazendas ou frigoríficos.
Percebe-se então, que há um contraste sócio-econômico, pois enquanto os
boiadeiros transportam boiadas que valem milhões, recebem cerca de um salário
mínimo por mês9. O experiente Cozinheiro Biguá (2009) 10 afirma também que muitos
deles gastam seu dinheiro com bebidas e prostituição: “bebe, tem lugar que passa em
bera das corrutela [prostíbulo] por aí e toma memo.”
Outro problema neste ofício é sua informalidade. Normalmente, não há contrato ou
registro de trabalho, poucos são os dados estatísticos e estão marcados pela
invisibilidade. Porém, isto não significa que estão alienados, costumam utilizar
celulares, rádio de pilha e comunicar-se com moradores das fazendas e municípios
durante as viagens.
No cotidiano, os boiadeiros costumam acordar antes de o sol nascer. Desfazem o
acampamento, retiram redes e mosquiteiros, que são guardados em seus dobros
(malas). Encilham a tropa e então partem para apanhar o gado. Só irão parar quando
estiverem no ponto de almoço e então, partem para nova jornada, que segue até o
ponto onde irão pousar. E é enquanto tomam o mate ao amanhecer, em volta do fogo,
7
Apesar desta definição não abarcar os demais grupos sociais, considerou-se que pantaneiros são
pessoas que residem e/ou trabalham nas fazendas do pantanal, em caráter permanente ou transitório e
que se autodenominam desta forma. (BANDUCCI JUNIOR, 1995).
8
Terceira Comitiva significa o número da ordem de participação presencial da pesquisadora.
9
Podem conduzir cerca de 1.000 cabeças de gado. Se forem vacas adultas o valor estimado, em março
de 2010, é de R$ 900.000 (€373,490.9803) e o salário mínimo R$510 (€ 211.645).
10
Os entrevistados estão apresentados no texto, por meio de seus apelidos, e ano de entrevista.
5
Tema 3 – Geodinâmicas: entre os processos naturais e socioambientais
ou o tereré11 na marcha da boiada, que costumam contar alguma anedota,
emprestando termos de seu trabalho. O que parece ser a maior diversão do boiadeiro
é cartiá, “contá vantagem, coisa duvidosa” (Entrevista com Juarez, 2009). Isto significa
caçoar, desafiar, de forma maliciosa e criativa.
Usualmente vestem calça jeans; guarda (calça de couro); cinto e botas de couro;
guaica (onde guardam arma de fogo e balas); faixa paraguaia (feita de tear) e o
machete (faca e chaira para amolar); camisa; chapéu de carandá ou feltro. A traia
engloba o conjunto de materiais para montaria, e pode ser o único bem que possui,
havendo uma relação afetuosa, de orgulho por estes objetos.
Fig.1- Acampamento boiadeiro. Fonte: Gödény (2009)
Fig. 2- Condutor. Fonte: Rocha (2005)
As Comitivas de viagem são realizadas por uma equipe de sete a nove boiadeiros,
de acordo com o tamanho da boiada, sendo que cada componente possui um
determinado ofício. O Condutor é o chefe da Comitiva, “responsável pelo gado”
(Entrevista com Juarez, 2007) e posiciona-se atrás da boiada. Costuma possuir o
equipamento para viagem, como utensílios da cozinha e a tropa de burros, e assim,
prestar serviço aos compradores de gado, além de contratar a equipe de boiadeiros.
Um interessante fenômeno observado é sua exímia técnica12 de contagem dos bois.
Isto ocorre pela manhã, podendo recontá-las, se houver desconfiança de ter perdido
alguma rês.
Próximos ao Condutor ficam posicionados dois Meeiros (ou Culatreiros), na lateral
direita e esquerda, e à frente de cada um destes estão os Fiadores. Eles “têm a
11
Estas bebidas são típicas na região. Dentro de uma guampa (chifre de boi), coloca-se a bomba (pipeta
de metal com um tipo de filtro/peneira), um punhado de erva mate, água, e bebe-se através desta
bomba. O mate é tomado com água quente e o tereré com água fresca ou gelada.
12
Entende-se como técnica tradicional aquela que é passada através da imitação, mimese e caminhamse para regionalismos. Difere-se das técnicas modernas, por estas últimas estarem vinculadas à
escolaridade, dependente das ciências contemporâneas. KATINSKY (1967 apud FERNANDES, 1997).
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responsabilidade de não deixar gado abrir ou entrar para o mato” (NOGUEIRA,
2002:109). O Ponteiro posiciona-se à frente da boiada, “vai na guia” (JUAREZ, 2007).
Está sempre com o berrante, instrumento feito do chifre do boi, tocado para orientar a
boiada e comunicar-se com os membros da equipe. À frente do Ponteiro posiciona-se
a tropa de burros, substitutas de montaria. Dependendo da distância da viagem e do
número de cabeças de gado, são cerca 20 burros guiados por um cavalo mansopolaqueiro.
Outro ofício exercido pelo boiadeiro é o do Cozinheiro. Ele conduz a tropa de
cargueiros (que levam os dobros e bruacas com mantimentos) e viaja a frente da
boiada, devendo chegar ao ponto de parada com a refeição pronta para os boiadeiros.
Nestes pontos, especialmente, há diversas regras de convívio social, por exemplo,
quando se servem da comida seguram a tampa panela com a mão esquerda, junto
com o prato e com a mão direita pegam a colher. Se isto for descumprido, deve-se
pagar um frango ao grupo. Desta forma, à cozinha na Comitiva, com elementos e
regras organizadas, revela o significado de lugar, é a referência onde se alimentam,
descansam, dormem e reúnem-se.
Quando se trata da viagem no estradão, percebe-se que o princípio de ser e
conduzir boiadas está ligado ao movimento, revelando um valor onírico com símbolos
de paisagens variadas, mas que segue, normalmente, um ritmo lento, caracterizado
pela sua sensibilidade e paciência em orientar reses e muares. Este situar do boiadeiro
no estradão ou mundão traz a impressão de que sua referência de moradia é a
estrada, como Nogueira (2002, p.38), considera-se que são “nômades pela própria
natureza do ofício”.
Sai cedo, levanta, arruma a mala, e aí cê vai pegá o burro. Aí cê vai sortá o gado (...)
dando pasto pro gado, vai devagarzinho até chegá no ponto de armoço. Aí o
Cozinheiro vai tá lá já, esperando cum armoço pronto. Aí armoça e troca de animar
também de novo, sorta aquele que tá de manhã, pega outro à tarde procê chegar até
na outra fazenda, mas devagar, né? (Entrevista com Barriga, 2009).
O cotidiano do boiadeiro mostra parcialidades que vão desde como reconhecem
uma rês parida pelo olfato, até como servem o almoço e conduzem o gado. No que foi
possível observar, este modo de vida não contribui apenas para organização da
Comitiva, mas está imbuído de valores humanos e condutas que legitimam sua cultura.
7
Tema 3 – Geodinâmicas: entre os processos naturais e socioambientais
CAPÍTULO 4 - COMITIVA PANTANEIRA: LEITURAS DA PAISAGEM
Este capítulo trata da interpretação do modo como os boiadeiros lêem as paisagens
pantaneiras, a partir da idéia de lugar baseada em uma interpretação da
espacialização. Apesar de não existir na literatura mapas dos roteiros de Comitivas de
viagem, os boiadeiros se utilizam de roteiros definidos, marcados pelos pontos de
parada para almoço e pouso13. São mapas mentais transmitidos oralmente.
A gente tem um roteiro traçado (...). Por exemplo, nóis tamo aqui na São Sebastião,
daí a gente tem que vim aqui, vamos supor, na Novo Horizonte, onde a gente tem que
pousar, dá doze quilômetros. Normalmente, na média de cinco a seis quilômetros, na
metade da caminhada, o Cozinheiro tem uma água boa por ali. (JUAREZ, 2007).
Estas leituras são constituídas por matizes de formas de linguagem
que se expressam, sobretudo, por meio do reconhecimento de
marcos referenciais nas paisagens e da interpretação de sistemas
simbólicos. Assim, foram identificadas diversas formas de orientação
e significados atribuídos pelos boiadeiros. As interferências antrópicas
decorrentes da atividade pecuária estão entre suas principais
referências, assim como os nomes das fazendas de gado: “do
Livramento nóis vai na Juazeiro, da Juazeiro nóis vai na São José, da
São José nóis vai na São Sebastiãozinho, da Sebastiãozinho nóis vai na
Novo Horizonte” (Entrevista com Juarez, 2009). Há outras referências
que constitui a paisagem da fazenda, tais como pontes, portões e
estradas.
Um interessante sistema de comunicação dos boiadeiros são as
marcas que deixam nas paisagens. Estas podem ser feitas em árvores,
com o uso de uma faca e ajudam as Comitivas na indicação do
caminho correto, como escritos com informações sobre sua viagem,
mas foram observadas ainda, em vários pontos de parada, expressões
grafadas com mensagens de amor, escritos vulgares e desenhos. Em
Fig.3 - Marca de
boiadeiro em alguns destes pontos também havia lixos, como pacotes de cigarro e
ponto
de roupas velhas.
parada. Fonte:
Além disto, os boiadeiros são capazes de identificar espécies e
Elaboração
própria (2009).
fisionomias vegetais, o que contribui na sua orientação e pode ter
utilidade para fins medicinais. Outras referências apontadas pelos boiadeiros
ocorrem pela observação do comportamento de animais silvestres e domesticados.
13
Equivalendo a cerca de seis e doze quilômetros, respectivamente.
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Notou-se que os boiadeiros possuem uma percepção acurada destes. São sensíveis
para perceberem, facilmente, pegadas, cheiros, sons, como a presença de cobras e
onças, que podem assustar a tropa e a boiada. Um exemplo é a posição dos ovos de
caramujo em determinada altura, que indica que o nível das águas não irá subir acima
do local de postura.
Já as referências topográficas no Pantanal, não são tão comuns, tendo em vista que
o relevo praticamente não se altera. São mais empregados os termos sobre as
formações aquáticas ou vegetais resultantes da sutil variação de altitude, como por
exemplo, as baixadas, os campos altos, os capões e cordilheiras que são mais elevados
do que suas adjacências, de um a dois metros.
As formações aquáticas e os níveis de disponibilidade hídrica, de acordo com a
mudança das estações são referências essenciais para o boiadeiro. Isto inclui
informações sobre o ciclo enchente, cheia, vazante e seca e sobre a disponibilidade de
água para dessedentação, preparo de refeições e banho. É por meio da leitura das
estações que os trajetos de viagem são definidos, o que pode ser externalizado, por
exemplo, por meio das seguintes formas de linguagem: o gado tá nadano, lá é lugar de
nado, tá molhando a ponta do pelego. Estas medições de profundidade do corpo
d´água, irão determinar a maneira e o local da travessia. Há um sistema de
comunicação entre os viajantes das estradas e moradores locais, para assim, ser
decidido qual o melhor caminho a ser seguido. “Tem a ver com a água, se tivesse
enchido como nessa época, era muito difícil de passá aqui, porque tem muito brejo
fundo memo, é muita água”. (Entrevista com BIGUÁ, 2009).
Fig. 4- Comitiva acompanhada na estação da
cheia. Fonte: Elaboração própria (2007).
Fig. 5- Comitiva acompanhada na estação da seca.
Fonte: Elaboração própria (2007).
Além da dificuldade na travessia de rios e áreas alagadas, os boiadeiros sofrem por
estar constantemente com sua traia e roupas molhadas. No período de estiagem, a
situação se inverte e há preocupação com a escassez de água, até para consumo. No
acompanhamento das Comitivas, percebeu-se que no período das águas é mais difícil
se localizar, pois as marcas na estrada tornam o “batidão” da boiada menos visível.
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Tema 3 – Geodinâmicas: entre os processos naturais e socioambientais
Durante as estações climáticas, as paisagens pantaneiras por onde marcham se
modificam e cada época exige dos boiadeiros destrezas distintas. Além disso, agentes
advindos de interferências antrópicas também conformam diferentes relações.
Segundo alguns boiadeiros, conduzir Comitivas na seca é o mais difícil, pois fora a
poeira na estrada, há chances de ficarem períodos sem água. Entretanto, para a
maioria, a pior época é a cheia. Já o entrevistado Biguá (2009) coloca que “o pantanal
é, ele é ingrato dos dois lado”. Percebe-se, então que há um sentido contraditório
sobre a questão da água, pois apesar dos problemas relatados na cheia, a chegada do
tempo das águas também possui sentido de purificação e limpeza.
A análise de identificação dos marcos referenciais revela que a leitura das paisagens
pantaneiras pelos boiadeiros está relacionada ao significado de lugares, o que
contribui como forma de orientação nas viagens. Esta interage ainda, com a leitura
sobre a hidrodinâmica do Complexo do Pantanal, imprescindível na execução das
Comitivas, e compreende tanto questões relacionadas à prática executadas, quanto ao
universo simbólico experienciado dos boiadeiros. Desta forma, as leituras dos
boiadeiros permeiam seu cotidiano vivenciado e constituem-se por meio de linguagens
intersubjetivas, estreitamente relacionadas às paisagens pantaneiras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A interpretação dos dados revela que os boiadeiros representam um tipo cultural
associado ao Complexo Pantanal Sul-Mato-Grossense. Desta forma, buscou-se
desvendar um pouco sobre seu modo peculiar, por meio da análise destas paisagens
culturais pantaneiras, considerando que sofrem múltiplas influências, conformações
de processos naturais e humanos e estão em constante processo de transformação.
Além das técnicas para prática cotidiana do oficio, as Comitivas de boiadeiros
possuem um diversificado sistema de símbolos significantes que contribuem para sua
organização, comunicação e orientação. Isto entrelaça as diferentes concepções e
percepções de sua existência como indivíduo e de sua cultura. Assim, considera-se que
a construção do modo de ser, de agir, de pensar está intimamente ligada à organização
do espaço, ao sentido de lugar e à maneira como é percebida por quem é responsável
ou a experimenta. (CLAVAL, 2001).
Uma das percepções desse estudo é alusivo a permanência, contradições e
adaptações às mudanças sócio-econômicas, sendo um tema recorrente a esta
discussão. O boiadeiro está inserido no universo agropecuário, considerado uma das
atividades mais impactantes para o meio ambiente. Não obstante seja considerado
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uma aptidão agroecológica ao Pantanal (MOURÃO, 2000), o gado é uma espécie
exótica, que pode acarretar conseqüências, principalmente se considerarmos a
pressão econômica para produção em grandes escalas comerciais. Além disto, as
Comitivas também geram impactos, tal como o pisoteamento da boiada e à
disseminação de espécies exóticas.
Portanto, para efeito deste estudo buscou-se considerar diferentes escalas
temporais que convivem em permanente trânsito, muitas vezes automático, e que em
certos momentos, podem significar tensões entre preceitos preservacionistas,
conservacionistas nos espaços físicos, nas utilizações e representações das paisagens.
Ainda que os boiadeiros persistam enquanto o Pantanal alagar, os próprios
suscitam a problemática do ofício relativa à desvalorização, baixa remuneração e a
diminuição das viagens em tempo de freqüência e duração, devido à modernização
dos transportes.
Quantos são os boiadeiros? Estão desaparecendo? Estas são difíceis perguntas para
responder, mas compreender esse ir e vir de sujeitos que interagem no mundo e com
o mundo, não significa negar sua legitimidade, pois há uma pluralidade nas relações do
homem com o mundo (FREIRE, 1983). Isto significa que repensar os modos e o agir de
uma cultura para buscar avaliar princípios, abre possibilidades para apreender
diferentes formas de manejo e abrigar o conhecimento sobre práticas sociais distintas.
Diegues (2000) ressalta a importância de se reconhecer o conhecimento de
populações tradicionais e recomenda a integração da visão dos cientistas naturais e
especialista local na co-pesquisa para o co-manejo.
Conclui-se que faltam outras pesquisas sobre o tema, sendo sugeridos os estudos:
socioeconômicos; etnoecológicos; percepção hidrodinâmica; mapeamento de roteiros
boiadeiros; comparação entre modos de vida do boiadeiro brasileiro e/ou estrangeiro.
Assim, esta pesquisa permite revelar o valor cultural dos boiadeiros e iniciar o debate
sobre a permanência desta categoria de trabalhadores na pecuária.
As percepções apresentadas podem ser subjetivas, efêmeras e particulares, mas
não deixam de ser uma realidade humana. No entanto, compreende-se que para
conhecer um pouco de como o ser boiadeiro se apropria das paisagens pantaneiras,
não basta referir-se a esta ou explicá-la é preciso vivê-la ou ao menos compartilhá-la
com aqueles que a experienciam.
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Tema 3 – Geodinâmicas: entre os processos naturais e socioambientais
BIBLIOGRAFIA
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