59 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. NIETZSCHE E CORPO: AFIRMAÇÃO DA VIDA NIETZSCHE AND BODY: AFFIRMATION OF LIFE DECLÍNIO DECLINE E AND LEAL, Julie Christie Damasceno1 LEAL, Mauro Lopes2 RESUMO O presente artigo almeja desenvolver uma interpretação do pensamento grego antigo, tendo como pressuposto os escritos de Nietzsche, a partir da perspectiva que associa tal pensamento a afirmação da vida em todos os seus aspectos. Levando-se em consideração a forma como os gregos da era trágica lidavam com a questão da morte, desenvolver-se-á uma articulação entre o modo grego e o enfoque moderno, no que se refere à temática elencada, buscando demonstrar os contrapontos existentes entre as diferentes abordagens. Para tanto, far-se-á uma elucubração que visa apontar alguns sintomas de adoecimento do homem na modernidade, o qual se dá, inicialmente, por influência do socratismo e platonismo, e posteriormente, da moral cristã. Posto isso, pretende-se evidenciar que, a filosofia na época dos gregos antigos, esboçava de maneira singular, os contornos trágicos da existência, pois se impunha como uma filosofia da vida na qual o corpo é colocado em destaque. Palavras-chave: Nietzsche. Corpo. Vida. ABSTRACT This article crave to develop an interpretation of ancient greek thought, with the assumption the writings of Nietzsche, from the perspective that combines such thinking the affirmation of life in all its aspects. Taking into consideration the way the greeks of the tragic was dealing with the issue of death, will be conducted on a link between the greek way and the modern approach, with regard to the subject cited, seeking to demonstrate existing counterpoints between the different approaches. Therefore, far-there will be a profundity that aims to point out some illness symptoms man in modernity, which takes place initially under the influence of socratism and platonism, and later, of christian morality. That said, it intends to show that the philosophy at the time of the ancient greeks, outlined in a unique way, the tragic contours of existence, it imposed itself as a philosophy of life at which the body is placed in the spotlight. Keywords: Nietzsche. Body. Life. Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal do Pará – UFPA. E-mail: [email protected]. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/5187330372003136. 2 Mestrando em Letras pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected]. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/0092850690902693. 1 Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 59-71, jan/dez2015. 60 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Introdução Em Genealogia da moral, Nietzsche expôs o processo de inversão dos valores nobres, vistos como sadios, em valores negativos, reprováveis e questionáveis aos olhos do escravo. Instaurou-se, entre outras consequências, a moral do ressentimento3 e o adoecimento do homem, que nesse processo foi reprimido. Seu corpo, negligenciado em nome de uma criação metafísica que passou a ser o cerne da vida humana: a alma. Desse modo, o corpo foi posto em um patamar de imperfeição, falibilidade e, acima de tudo, mortalidade. Este é um dos principais sintomas observados por Nietzsche no que se refere à guerra deflagrada entre aristocratas e sacerdotes. 4 3 A moral do ressentimento, conforme Nietzsche (1998) personifica-se por meio do conflito entre moral nobre e moral escrava. A primeira caracterizase por um dizer ‘sim’ a si mesmo, e também pela vontade criadora; a segunda se delineia por intermédio da reação, ou seja, a ação do homem regido pela moral escrava nada mais é do que uma reação ao ‘outro’, um sonoro dizer ‘não’ a algo exterior a si, posto que, ao invés de voltar-se para si mesmo, o ressentido prefere dirigir-se para ‘fora’, para um ‘não eu’. Assim, o homem do ressentimento é o indivíduo amargurado e fragilizado, incapaz de esquecer e que, por isso mesmo, acumula lembranças negativas e se consome solitário, pelo desprezo de si e desgosto do outro. 4 Segundo Hatab (2010), o sacerdote é um personagem central na interpretação genealógica nietzschiana, uma vez que ele assume diferentes facetas. Sabe-se que, em primeira instância, o sacerdote é um indivíduo considerado nobre, que detém a função de estabelecer o elo entre as esferas humana e espiritual através de rituais de cunho religiosos. Em segunda instância, ele marca a vida dos indivíduos, sobretudo por introjetar nos costumes e morais as posturas consideradas ascéticas e elevadas espiritualmente, a saber: aquilo que se relaciona a pureza, a bondade, as únicas que podem levar o homem a elevação. E, ao suscitar a internalização de tais posturas ascéticas, o sacerdote irá promover a desvalorização dos valores vitais em favor de valores além-mundo, depreciadores da vida e do corpo. Enfim, para Nietzsche, o sacerdote “... é aquele que muda a direção do ressentimento. Pois Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. Entretanto, a questão não se encerra nesse ponto, espraia-se para outros contextos, avança sobre temas como arte, saúde, estética, vida. A moral escrava adentrou não apenas no que se refere à concepção moral de mundo, mas também na forma do homem ver o mundo e seus mais diversos aspectos. A questão sobre vida e morte é, inegavelmente, um desses pontos. O homem moderno, domesticado, arrebanhado, tornado dócil através da dor, da promessa e da constante presença do pecado em suas atitudes, pensamentos e escolhas, estas que poderão resultar em uma perpétua punição, tornou-o fraco, enfermo. Viu-se obrigado a reprimir seus instintos, seus impulsos, sua vontade de guerra, seu desejo de sangue, pois a paz, conforme o que se demonstrou em inúmeras ocasiões de guerra no decorrer da história, nada mais é do que uma errônea ideia de convivência harmoniosamente beatificada com o outro. Em nenhum momento do percurso do homem, este viveu completamente isento e livre de conflitos, pois não se pode ignorar a natureza individualista do homem, o seu incessante desejo, o seu querer constante. Pelo quê? Prestígio, prazer, melhores remunerações, beleza, juventude, glória, dinheiro, poder. Schopenhauer inaugurou com o conceito de vontade essa nova vertente na filosofia, antes impregnada de ideais, concepções metafísicas, alma, além, bem em si. Com a abertura da linha da vontade, não racional, perene, inconsciente, o corpo e os impulsos passam a assumir um papel relevante, posto que tais aspectos se encontrassem encobertos pelo viés da tríade: ‘ideia’, consciência, razão. Com a reinserção do corpo no compito filosófico desde a contribuição decisiva de Schopenhauer, a visão romantizada que associava o homem a busca por harmonia ou uma ordem pacífica todo sofredor busca infinitamente uma causa para o seu sofrimento.” (NIETZSCHE, 1998, 116) Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 59-71, jan/dez2015. 61 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 e tranquila das coisas se desfaz na contemporaneidade, pois o homem se demonstra um campo de batalha e o corpo torna-se o principal meio de expressão desse conflito de forças. O que seria, portanto, o homem? Nada mais do que um animal domesticado, que anda, veste-se, comunica-se, pensa, seguindo determinadas ideologias, impostas a ferro e fogo na carne do homem: através da espada, outros deuses foram sufocados, diminuídos ou simplesmente aniquilados, restando um único deus para a grande maioria dos homens modernos. Através do cárcere, do flagelamento, da execução, delimitou-se o que é certo e errado, concepção essa que se espraiou para a concepção de vida e morte. Os gregos antigos falavam em “boa morte”. Mas o que vem a ser tal expressão? Significa a morte gloriosa, honrada, o fim que inevitavelmente adveio, mas não sem combate, sem resistência. O que faz o homem moderno diante da inevitabilidade e proximidade da morte? Encolhe-se, temeroso, escapando-lhe, das mais diversas formas, tanto por meio de cirurgias faciais, remédios, drogas, quanto por orações, rezas, promessas, tudo o que possa de algum modo, prolongar a sua existência na terra. Neste estudo, visar-se-á o aprofundamento de tal questão, a percepção da morte na antiguidade e na modernidade sob o prisma da visão nietzschiana e como a filosofia, a partir de Sócrates, e a moral cristã, mostraram-se cruciais na modificação da postura do homem diante da vida e da morte, posto estas sejam a personificação mais paradoxal e imediata uma da outra. A morte na época trágica dos gregos: contraponto com a modernidade Para Nietzsche, a essência do cristianismo foi plantada por Sócrates e regada por Platão. Esses dois filósofos decretaram, cada um ao seu modo, uma modificação no pensamento ocidental, visto Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. que prepararam de forma majestosa no seio da Grécia antiga, o solo propício ao surgimento dos mecanismos de coerção e de sedução que culminaram no que hoje se apresenta: uma forma de controle e nivelamento. Ao distinguir dois planos, o mundo das ideias, perfeito, ao qual somente a lama imortal tem acesso, em contraposição ao mundo físico, perecível, imperfeito, Platão fincou, conforme Nietzsche, as bases alicerçantes de um pensamento que desestruturou o homem naquilo que ele tinha de mais nobre e vital, a sua corporeidade. A filosofia tradicional, nesse aspecto, apresentou um desempenho relevante, pois reforçou tal mentalidade, rechaçando os aspectos mais palpáveis da vida humana, como o corpo, em nome de um ideal que se julgava o verdadeiro. Por conta disso, para Nietzsche, a filosofia tradicional se apresenta como uma má compreensão do corpo: O inconsciente disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da objetividade, da ideia, da pura espiritualidade, vai tão longe que assusta – e frequentemente me perguntei se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma interpretação do corpo e uma má compreensão do corpo. Por trás dos supremos juízos de valor que até hoje guiaram a história do pensamento se escondem más compreensões da constituição física, seja de indivíduos, seja de classes ou de raças inteiras. 5 Logo, Nietzsche expressa que a busca desenfreada pela objetividade, seja no campo das ciências ou da filosofia, como uma propriedade científica que permite estabelecer afirmações precisas e passíveis de serem testadas, ou enquanto algo que possui validade universal, respectivamente, revela-se uma obliteração às necessidades fisiológicas. Além desse aspecto, o ponto de vista filosófico que erige a ideia e a pura 5 NIETZSCHE, 2012, p. 11. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 59-71, jan/dez2015. 62 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 espiritualidade como parâmetros de interpretação do corpo, evidencia, na verdade, uma má compreensão do corpo, conforme enunciado por Nietzsche, pois tal compreensão se sustenta em valorações morais e conceituações que não levam em conta os instintos e o caráter pulsional que marcam a multiplicidade humana. Desse modo, Nietzsche, o filósofo da suspeita e da perspectiva, põe em marcha a sua tentativa de recuperação do homem, da paixão, da vida/morte em contraposição à alma, razão e vida eterna. Em Anticristo, Nietzsche afirma a concepção do cristianismo como “hostilidade de morte” (2007, p.26) aos senhores, aos nobres, apresentando-o como uma força que se antagoniza contra todo aquele que se mostra desfavorável aos seus postulados dogmáticos. A partir da morte daquele que Nietzsche considerou como o único cristão, Jesus, desencadeou-se toda uma série de erros e equívocos que marcaram a história do cristianismo como “a história da má compreensão” (2007, p.43). Pergunta-se: má compreensão de quê? Da interpretação que se faz da morte de Jesus na cruz, pois deste acontecimento em diante, toda culpa, todo pecado, todo erro devem ser redimidos através da dor, do castigo e da morte. O pecado, conforme a mítica cristã, representa um desvirtuamento do percurso ideal que o homem deve trilhar para alcançar o plano edênico. Um equívoco dessa magnitude não pode ser redimido simploriamente, é preciso sacrifício para a redenção. O cristianismo, equivocadamente mal interpretado, volta-se para um desvirtuamento das palavras do messias cristão: a práxis, que deveria ser uma constante e a verdadeira conduta do cristão, foi subtraída em nome de cerimônias e rezas como forma de religiosidade. A ação prática de Jesus, que se deixou crucificar em nome de um todo, não é repetida pelos chamados cristãos da atualidade, não no sentido efetivo da palavra, mas na abnegação, no auxílio, no chamado amor ao outro, que não se efetua, pois o cristianismo Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. nada mais é do que uma experiência subjetiva e pessoal que marca a postura do indivíduo que se volta para seus próprios interesses, seus desejos particulares. A concepção de morte, nesse contexto ideológico, mostrou-se como uma grande ferramenta de coerção e apequenamento do homem: a invenção de ideias como “inferno”, “purgatório”, “imortalidade”, “pecado”, convergem para a intenção de, através de uma pressão quase psicológica, amedrontar e tornar débil o espírito humano, evitando-se dessa forma questionamento, confrontos e qualquer outra forma de afronta que possa vir a surgir entre os sacerdotes e os seus rebanhos humanos. Nesse sentido, a morte é inserida, pela perspectiva cristã, em um plano de desnaturalização que visa introjetar no homem o medo do porvir, daquilo que deveria ser visto como algo comum, perfeitamente aceito no ciclo de nascimento, crescimento, envelhecimento e morte. No budismo, a morte é concebida como um retorno que visa saldar dívidas da vida anterior, até se alcançar o estágio de plenitude existencial. No hinduísmo, caracteriza-se a reencarnação, baseada na Lei do Carma, que, basicamente, afirma que a alma pode retornar em um corpo humano ou animal, dependendo das ações praticadas na vida anterior. Mas, atingindo o nível mais elevado de consciência, essa alma deixa de reencarnar e retorna ao seu lugar de origem. No candomblé, inexiste a concepção de céu ou inferno. O homem, ao realizar na terra o seu destino, estará pronto para morrer e retornar à companhia dos seus ancestrais. Aqueles que não conseguirem alcançar seus objetivos reencarnam até que tenham êxito. Esta última religião aproxima-se significativamente da postura dos gregos antigos no que se refere à vida e à morte, aos quais estas se apresentam em consonância e indissociáveis. Foi somente com o advento do cristianismo que uma foi separada da outra, posicionando-as em Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 59-71, jan/dez2015. 63 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 polos antagônicos. No cristianismo, percebe-se, como apresentado acima, a ausência de uma possibilidade de retorno, como se fosse possível definir de forma efetiva acerca da natureza humana, atribuindo-lhe os designativos: bom e mal, digno e indigno, certo e errado. Não há retornos no cristianismo, o que impõe certa crueldade fatalista: ou perdição ou salvação, inexistindo a possibilidade de uma terceira opção. O homem grego antigo, ao contrário, não se via exposto a semelhante sofrimento existencial, como explicita Vernant (1978) através do exemplo de Aquiles, ao qual são apresentados dois destinos: o da brevidade da vida, mas permeada de honra e glórias eternas; e a vida longa e obscura, destituída de qualquer reconhecimento e triunfo. Em verdade, não havia o que escolher, pois nunca existiu opção, uma vez que Aquiles e seu espírito guerreiro jamais aceitariam uma velhice inglória. Nietzsche, desde as suas primeiras obras, aborda a questão da vida grega em contraposição ao mundo moderno, redarguindo os períodos pré-socrático e pós-socrático e de como essa mudança se configurou como um desnível para a existência do homem grego, antes fundamentada, conforme Nietzsche, em dois pontos essenciais para uma vida saudável: o apolíneo e o dionisíaco. Em A filosofia na era trágica dos gregos, Nietzsche estabelecerá as bases embrionárias de uma crítica à filosofia tradicional, empreendimento que se efetuará por meio do contraponto com a filosofia grega pré-socrática, interligando a cultura e o pensamento gregos em oposição ao mundo moderno e suas especificidades, permitindo-nos estabelecer pontos de contato com a questão religiosa e a concepção de vida e morte, tanto para os gregos antigos, quanto para a civilização moderna. Busquemos agora pela maior autoridade naquilo que se pode chamar de saúde de Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. um povo. Os gregos, como os verdadeiramente saudáveis, justificaram de uma vez por todas a filosofia simplesmente pelo fato de terem filosofado; e, com efeito, muito mais do que os outros povos. (...)... Os gregos souberam começar no momento propício... 6 Os gregos do período trágico, cujo apego à vida e à saúde são ressaltados por Nietzsche na referida obra, tornaram-se inventores de um tipo de filosofia cujos pressupostos consistem em uma exaltação das formas naturais, do corpo, da relação entre forças físicas e mentais, aspectos estes que, repercutem inclusive no modo como se relacionavam com as divindades, representações das forças terrestres que atuavam de maneira efetiva sobre a vida das pessoas. O antropomorfismo dos deuses também legitima o que foi dito, posto que nos permite concluir que a forma humana se evidenciava como a mais natural para se imprimir às divindades. A filosofia na era trágica dos gregos converge em Nietzsche, acima de tudo, para uma crítica à modernidade, e como tal, reivindica uma retomada dos aspectos trágicos da existência cultivados pelos gregos antigos, a saber, o cerne do embate harmonioso entre os impulsos apolíneos e dionisíacos que permeavam o modo de vida dos gregos nesse período. Segundo Miguel Angel de Barrenechea (2014), o trágico se anunciava, para o filósofo alemão, como um complexo de forças em conflito, representativo da cultura grega em seu momento de maior fascínio e magnificência. Posto isso, Nietzsche enuncia: O juízo desses filósofos sobre a vida e sobre a existência em geral é muito mais significativo do que um juízo moderno, porque tinham diante de si a vida numa plenitude exuberante e porque neles o sentimento do pensador não se enreda, como em nós, na cisão do desejo da 6 NIETZSCHE, 2013, p. 27. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 59-71, jan/dez2015. 64 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 liberdade, da beleza, da grandeza da vida, e do instinto de verdade, que só pergunta: o que a vida vale? 7 Ao homem moderno, cujas preocupações básicas volta-se para a incessante busca pela manutenção da sua existência, em alguns casos bastante precária, dada a natureza cruel e desigual que se estabeleceu nas sociedades modernas, que exige do homem qualificação constante, velocidade, produtividade incessante, dinamismo, para que possa ser classificado como um cidadão produtivo; para esse homem a vida tornouse uma constante luta por preservação. Acrescenta-se a isto as tendências, as ideologias consumistas que exigem desse homem um padrão de vida que muitas vezes se mostra inacessível. Assim, a angústia, a estafa, a constante competição com o outro, por emprego, ascensão social, restos de comida, assento nos ônibus, tornam esse homem um autômato, cuja vida alterna-se em dias destituídos, muitas vezes, de qualquer finalidade, existindo e resistindo por causa da sacralidade da vida, situada e projetada pelo campo religioso como a maior dádiva concedida por um deus e que por isso somente a ele cabe a retirada dessa mesma existência. Vida, morte, helenismo e modernidade Ao homem moderno, a morte apresenta-se como um tema paradoxal e complexo. O homem moderno agarra-se à vida como se fosse viver infinitamente, ignorando o fato de que nascer é, simultaneamente, também morrer, uma vez que uma condição está imbricada na outra de forma indissociável. O que vale a vida para o homem moderno? Qual o sentido de se viver por mais alguns dias de angustiosa existência, liga-se a tubos e maquinário que irá executar, por mais algum tempo, a função que órgãos vitais, agora debilitados 7 Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. por alguma doença moderna, executavam, mantendo-o vivo? Por que o homem da contemporaneidade, ao contrário do grego antigo, apega-se desesperadamente à vida, mesmo que isso signifique, em alguns casos, mais alguns dias, ou meses, de sofrimento físico? A beleza da vida dilui-se na contramão das exigências modernas, diferentemente dos gregos trágicos. Nietzsche argumenta que o modo de enxergar e viver a realidade, próprio dos gregos da era trágica, é essencial para que se possa levar a cabo o projeto de remodelação da cultura moderna, uma vez que esta se encontrava muito mais comprometida com a vontade de verdade que busca consolidar pontos fixos e imutáveis de compreensão do mundo, responsável pelo nivelamento do homem e supressão de instintos e vontades intrínsecos. Com o instinto de verdade, segundo Nietzsche, promove-se uma normatização da vida, pois ela passa a ser gerida e enquadrada em parâmetros de pensamento cujo propósito seja elaborar conceitos que possam servir de sustentação para a mesma, deixando de lado os aspectos não cobertos pelo pensamento consciente, isto é, os desejos, as pulsões, o orgânico. Enfim, atribui-se valor à vida, sem se questionar sobre o valor desses valores. Vê-se que aqui já estão postas, de forma embrionária, as questões que darão sustentação ao projeto nietzschiano de crítica a filosofia nos seus aspectos mais intrínsecos, uma vez que tais valores, difundidos por várias instâncias sociais, como Igreja, escola, dentre outros, visam a alienação do homem e sua enfermidade. Pulsões reprimidas acarretam inúmeros problemas à psique e ao organismo humano. As leis, os preceitos religiosos, os deveres e obrigações, instituem uma existência para o homem que se baseia, fundamentalmente, na manutenção de um sistema dessemelhante e excludente, diferentemente dos gregos que tornavam sagrado tudo aquilo que era NIETZSCHE, 1995, p. 22. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 59-71, jan/dez2015. 65 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 demasiadamente humano 8. Em Nascimento da tragédia, evidenciam-se, quase imediatamente, o fascínio que as poesias de Homero exerciam sobre as concepções do jovem Nietzsche. A visão grega de corpo construiu-se a partir de elementos herdados da filosofia do século V a. C., assim como também de alguns aspectos já esboçados por Homero antes do primado da filosofia. Suas obras descrevem não apenas os hábitos sociais, costumes religiosos e posicionamentos políticos dos antigos gregos, mas também os conflitos de forças e os embates humanos personificados pela força plástica da guerra e pela referência frequente a morte, mais especificamente à bela morte (kalòs thánatos9), a mais venerável pelos heróis homéricos. Este ponto é significativo para o presente trabalho, uma vez que, apontando-se outra vez a concepção da morte para o grego trágico em comparação do que ela vem a ser para o homem moderno, evidencia-se a significativa distância entre os dois 8 “Talvez nada seja mais estranho, para quem contempla o mundo grego, do que descobrir que de quando em quando os gregos davam como que festas a todas as suas paixões e más inclinações naturais, e chegaram a instituir uma espécie de programa oficial festivo do seu demasiado humano: eis o propriamente pagão do seu mundo, pelo cristianismo jamais compreendido, jamais compreensível e sempre combatido e desprezado da maneira mais implacável” (NIETZSCHE, 2008, p.100) 9 Em seu texto, Jean-Pierre Vernant descreve magistralmente no que consiste a bela morte dos guerreiros: “Para aqueles que a Ilíada chama anéres (Andrés), os homens na plenitude de sua natureza viril, ao mesmo tempo machos e corajosos, existe um modo de morrem em combate, na flor da idade, que confere ao guerreiro defunto, como o faria uma iniciação, aquele conjunto de qualidades, prestígios, valores, pelos quais, durante toda a sua vida, a nata dos áristoi, dos melhores, entra em competição. Esta “bela morte”, kalòs thánatos, (...), faz aparecer, à maneira de um revelador, na pessoa do guerreiro caído em batalha, a eminente qualidade de anèr agathós, homem valoroso, homem devotado. (...) A bela morte é também a morte gloriosa, eukleès thanatós.” (VERNANT, 1978, p. 31-32). Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. pensamentos. A bela morte, portanto, significava morrer em ação, de forma gloriosa, no auge da juventude e de suas forças físicas. O guerreiro não se esquiva à batalha, mesmo que isso acarrete a sua morte, pois é preferível morrer de maneira valorosa, em conformidade com o destino traçado, do que padecer velho e decrépito pela ação do tempo. Todos esses elementos demonstram que o corpo do guerreiro é atravessado por relações de poder, posto que todo o seu percurso de vida tenha sido primorosamente traçado para alçar àquele momento. A morte gloriosa seria então a ocasião em que o guerreiro suplanta a ação da crueldade do tempo que tudo apaga, para permanecer vivo, através de seus feitos, na memória dos homens. Com efeito, compreende-se que as concepções de morte e de vida cultivadas pelos gregos antigos diferem absolutamente da percepção moderna. Na era trágica, os gregos, conforme Vernant, exaltavam a bela morte, porque acreditavam ser preferível evitar a decrepitude do corpo ocasionada pela velhice, a qual levava consigo todos os elementos que, representativos da vida pulsante, configuravam-se como mais valorosos especialmente para os jovens guerreiros, isto é, graça, beleza, pujança, destreza etc. Por isso, elogiavam a morte em campo de batalha, em tenra idade, o que possibilitava ao herói a conquista da juventude inabalável. Tal digressão ratifica que a relação que os gregos antigos tinham com a morte não se enraizava no medo, e sim no enfrentamento e aceitação da mesma como uma etapa natural da vida, já que é inegável o fato de que os homens e mesmo os deuses do mundo homérico possuíam um forte apelo à natureza: “‘Natureza’ é a grande palavra nova, que o espírito grego amadurecido contrapõe à magia arcaica. E daí decorre em linha reta o caminho que leva à arte e a ciência dos gregos.” 10. O apego à perspectiva natural 10 OTTO, 2005, p. 32. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 59-71, jan/dez2015. 66 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 propagado pelo helenismo grego fundamentou o modo de ver nietzschiano11 até o seu pensamento maduro, uma vez que o filósofo corrobora com o posicionamento de que a morte deve ser aceita enquanto um estágio natural da existência humana. Logo, querer a morte ou decidir o momento exato em que se deve morrer se apresenta como algo positivo se levarmos em consideração a afirmação da liberdade de escolha para a morte ou a noção de “morte voluntária”. Contudo, a morte não deve ser buscada como uma forma de negação ou fuga da vida tornada medíocre. Para Nietzsche, a vida deve ser vivida em todos os seus aspectos, dos mais elevados aos mais sombrios, e não é almejável fazer dessa vida um estágio de preparação para a morte, como se a mesma pudesse trazer alento ante uma vida de dor e sofrimento, abrindo-se as portas de outro mundo, um “mundo melhor” onde a angústia inexiste, tal como ocorre no ideário cristão. O filósofo alemão se contrapõe a tal visão, visto que a morte não deve ser desejada por ser algo inevitável, e menos ainda, segundo a percepção do cristianismo, almejada como etapa derradeira pela qual se deve devotar uma vida inteira de abstenções físicas e de outras espécies, já que “Todos dão grande peso ao fato de morrer: mas a morte ainda não é uma festa. Os homens não aprenderam como consagrar as mais bonitas festas.” 12. Em algumas sociedades e culturas, a morte é vista como algo a ser festejado 13, 11 Pois, para o filósofo alemão, no prefácio intitulado A disputa de Homero: “Quando se fala de humanidade, a noção fundamental é a de algo que separa e distingue o homem da natureza. Mas tal separação não existe na realidade: as qualidades “naturais” e as propriamente chamadas “humanas” cresceram conjuntamente. O ser humano, em suas mais elevadas e nobres capacidades, é totalmente natureza, carregando consigo seu inquietante duplo caráter.” (NIETZSCHE, 2005, p. 65). 12 NIETZSCHE, 2011, p. 69. 13 No México, por exemplo, há o Dia dos Mortos, comemorado no dia 02 de novembro e que tem por objetivo honrar aqueles que se foram, pois, acredita- Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. em outras, é considerada a etapa de encerramento de um ciclo, mas para as sociedades modernas, atravessadas pelos valores morais cristãos, a ideia de morte perpassa pelo sentimento de medo, possibilidade de redenção e culpa, pois “Existem pregadores da morte; e a terra está cheia daqueles a quem se deve pregar o afastamento da vida.” 14. Nietzsche irá se esquivar a última hipótese, especificamente por considerar que o medo da morte pode acarretar o declínio do indivíduo, que mais preocupado em cultivar uma vida ascética pela via da supressão dos instintos corpóreos, acaba por adoecer fisicamente e psiquicamente. Nasser (2008) assinala que a “reinterpretação da morte”, empreendida pelo filósofo, possui um duplo dimensionamento, aquele que aponta para o viés da “morte covarde”, e outro que especula acerca da “morte voluntária”. No primeiro caso, almeja-se a morte porque a vida é breve e efêmera, além de levar à decrepitude do corpo e das forças, ocasionando enfermidades, angústias e sofrimentos considerados insuportáveis. Os “pregadores da morte”, conforme Nietzsche (2011) denomina esse tipo de homem, dão maior ênfase à hora da morte de um indivíduo do que às experiências e prazeres vivenciados. Para o referido tipo de homem a morte deve ser desejada como o momento capital, pois proporciona a expurgação dos pecados que o indivíduo carregou em vida, o anestesiamento das dores infligidas e a passagem de um mundo cruel para um “mundo melhor”, no qual ele estará livre de todas as máculas, porquanto “Há os tuberculosos da alma: mal nasceram já começam a morrer e anseiam por doutrinas do cansaço e da renúncia.” 15. No segundo caso, “morte voluntária” significa a afirmação do querer do homem, pois a morte deve ser afirmada como um se, que estes retornaram nesse dia para visitar seus parentes vivos. É um dia de festejo e alegria. 14 NIETZSCHE, 2011, p. 44. 15 NIETZSCHE, 2011, p. 45. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 59-71, jan/dez2015. 67 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 momento indissociável da vida, logo afirmar a vida é o mesmo que aceitar a morte, não como algo a ser evitado a todo custo, e sim a ser celebrado, caso o indivíduo tenha usufruído a vida em todas as possibilidades que ela oferece. Aquiles, citando outra vez o herói grego, não se esquivou à guerra de Tróia, mesmo sabendo que aquela seria a sua última batalha. Para Nasser (2008, p. 106), “A maneira de querer a morte agora distingue-se daquela cultivada pelos pregadores da morte. Antes de desejar a morte porque se morre, o adepto da morte voluntária quer a morte para afirmar a si mesmo”. Em vista disso, conclui-se que a concepção de morte voluntária compreende também a afirmação do próprio homem em todos os aspectos que o compõem, isto é, nas dores e prazeres. Logo, cultivar o medo da morte pode levar ao declínio dos instintos corpóreos, porque temer a morte seria o mesmo que negar a vida, suprimindo-lhe a dor. O objetivo da filosofia para Epicuro, grosso modo, resumia-se à concepção de que os homens aproximavam-se dos eventos prazerosos e afastavam-se dos dolorosos, por considerar que a felicidade só estivesse acessível por via da ausência de dor. Para Nietzsche, a dor não pode ser evitada, negada ou suprimida, porque é inerente ao ser humano sentir dor, assim como a morte também o é. Entretanto, retornando à obra Nascimento da tragédia, Nietzsche se propõe a investigar o florescimento da cultura ocidental a partir da influência grega, considerada decisiva para se pensar a tragédia. Empreende, assim, um estudo filológico que teria como arauto, até aquele momento, o projeto musical de Richard Wagner16 e, acima de tudo, uma 16 É importante frisar que, a princípio, Wagner concebe a arte trágica em acepção estética muito próxima daquilo que Nietzsche compreende por arte, a saber, enquanto afirmação do caráter trágico da vida. Posteriormente, entretanto, o próprio músico alemão empreende uma ruptura com tal perspectiva, assumindo para si a acepção schopenhauriana de Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. compreensão estética vislumbrada na oposição entre os deuses Apolo e Dionísio, representantes de forças ao mesmo tempo díspares e complementares, as quais contribuem, de forma efetiva, para a compreensão de corpo em Nietzsche, aproximando-o significativamente da concepção grega acerca do mesmo tema, conforme já antecipamos. Nessa perspectiva, aponta Machado: O apolíneo é para Nietzsche o princípio de individuação, um processo de criação do indivíduo, que se realiza como uma experiência da medida e da consciência de si. [...] Apolo é o brilhante, o resplandecente, o solar. [...] Por outro lado, intrinsecamente ligada à ideia do brilho está a da aparência. [...] Já o dionisíaco é pensado por Nietzsche a partir do culto das bacantes [...] trata-se de uma experiência de reconciliação das pessoas com as pessoas e do homem com a natureza [...]. A experiência dionisíaca é a possibilidade de escapar da divisão, da individualidade [...] o dionisíaco produz a desintegração do eu, a abolição da subjetividade [...]. 17 A estabilidade da existência do homem grego, fundada basicamente em arte, idealista e pessimista, contraposta a visão nietzschiana. Outro elemento que possibilitou o distanciamento entre o filósofo e o músico alemão fora a conversão do mesmo ao cristianismo, conversão essa, que reverberou sobre a sua música, a qual passou a ser composta com a finalidade de arrebatar as massas pela grandiosidade de estilo: “O artista da décadence – eis a palavra. E aqui começa a minha seriedade. Estou longe de olhar passivamente, enquanto esse décadent nos estraga a saúde – e a música, além disso!” (NIETZSCHE, § 5, 1999, p. 18)). Para Nietzsche, o músico deve ser refutado tanto pelo viés estético, quanto pelo aspecto fisiológico, pois enquanto artista da décadance, a sua música reflete a negação dos instintos vitais e o declínio do corpóreo. A propósito disso, elucida Ernani Chaves, “Não por acaso, O Caso Wagner procura mostrar a exaustão, que os temas wagnerianos giram em torno da castidade, da pureza e da inocência, contra os perigos do corpo, do pecado, da devassidão.” (CHAVES, 2007, p. 61). 17 MACHADO, 2005. p. 7-8. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 59-71, jan/dez2015. 68 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 dois polos, o apolíneo e o dionisíaco, foi desfeita na modernidade. Os gregos, cuja visão de mundo era pautada pela efetividade e apego aos instintos corpóreos, tinham uma noção mais ampla e definida de que a vida é também constituída de valores negativos, de perigos e adversidades. Contudo, a postura de tais homens perante esse aspecto da vida é bem distinta da atitude do homem moderno, que se entrega ao pessimismo, à desilusão e ao apequenamento. O homem grego, por sua vez, utilizava a arte como contraponto a tais aspectos negativos da vida. Apolíneo representa o campo da sobriedade, da beleza, do comedimento, da individualização, da medida certa, que concebia a possibilidade de entusiasmo perante a vida, se os traços obscuros da existência fossem embelezados artisticamente. No que se refere ao dionisíaco, este se volta mais para a afirmação da vida nas suas contingências, desmedida, excesso, êxtase, o que situa o homem no plano do real, no terreno do incerto, do vir a ser. Esses dois polos, antes em harmonia, pois o homem necessita de ambos, são desequilibrados pelo culto à razão da filosofia. Será esta razão que agora irá governar o pensamento do homem, ditandolhe regras, leis, morais, valores, diretrizes que devem ser seguidas, pois são frutos da racionalidade, ou seja, o homem social, urbanizado, evoluído, age racionalmente, pondo em segundo plano os seus apetites, as suas inclinações. De acordo com Barrenechea (2014), o jovem Nietzsche compreende a tragédia grega como o momento de maior exuberância do período helenista, porque aquela se transfigura em demonstração mais cristalina de exaltação das forças vitais e potência de instintos próprios dessa cultura, e tem na arte sua expressão mais bem acabada. A interpretação nietzschiana de mundo helênico, cuja plasticidade se delineia particularmente nas tragédias, tem como mote, de um lado, a alegria, o riso, a Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. serenojovialidade, e de outro, a desmesura dos instintos, a dor, o sofrimento, como diferentes facetas de compreensão da realidade e do caráter efêmero do mundo que se mesclam de forma singular. O filósofo cogita, de fato, promover uma revalorização da cultura grega antiga em sua era de glória, com o objetivo de retirar o homem moderno, de uma vida pálida e superficial, para uma nova era trágica: “Desde a sua juventude, o filósofo antevê o retorno ao espírito grego, a possibilidade de restaurar uma cultura vital, forte, esplendorosa.” 18. Assim, promove-se uma retomada dos princípios estéticos que nortearam o helenismo, pois a cultura ocidental havia caído em incontestável declínio desde Sócrates. As principais evidências do referido declínio são: o desequilíbrio dos afetos e dos instintos, a desvalorização dos impulsos corpóreos e a decadência das forças, características estas que marcam o homem da modernidade. Desde a concepção racionalista socrática, seguida pelo platonismo, judaísmo e pelo cristianismo, o Ocidente desvalorizará e condenará todas as potências trágicas da vida, acreditando em utopias de pretensos mundos perfeitos, em quimeras de supostos além-mundos. Nietzsche visualiza, então, haver uma concepção trágica que declina após os primeiros gregos e uma concepção antitrágica que dominará todo o devir do Ocidente, num processo doentio que exaure forças e tira da humanidade todo sentido, todo valor, em prol de fantasias escatológicas, em prol da adoração de “ídolos” inconsistentes. 19 Nesse contexto, tem-se o declínio da tragédia, especialmente a partir da concepção racionalista socrática, responsável pela degeneração dos instintos helênicos afirmadores da vida e, por conseguinte, dos aspectos corpóreos antes relacionados à força, ao espírito guerreiro, a 18 19 BARRENECHEA, 2014, p. 14. BARRENECHEA, 2014, p. 14. Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 59-71, jan/dez2015. 69 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 vitalidade, a saúde. Em lugar dessa concepção trágica de existência, Sócrates preparará o solo grego para o primado da razão, a qual encetará seus dardos de forma vertiginosa por todo o pensamento ocidental. Com o “socratismo” 20 advém uma concepção de mundo pautada nos âmbitos racional e inteligível, que busca, antes de qualquer coisa, ratificar o papel da razão enquanto mantenedora da conduta humana virtuosa, pois a razão seria, segundo essa concepção, a única que poderia disciplinar e dominar os instintos corpóreos em desequilíbrio. A sabedoria instintiva mostra-se, nessa natureza tão inteiramente anormal, apenas para contrapor-se, aqui e ali, ao conhecer consciente, obstando-o. Enquanto, em todas as pessoas produtivas, o instinto é justamente a força afirmativa-criativa, e a consciência se conduz de maneira crítica e dissuadora, em Sócrates é o instinto que se converte em crítico, a consciência em criador – uma verdadeira monstruosidade per defectum! 21 Assim, evidencia-se com o socratismo uma espécie de inversão ou, como dirá Barrenechea (2014, p. 13), “uma transvaloração dos valores trágicos”, que acarretará em um contramovimento antinatural, pois os instintos afirmadores da vida, os impulsos corpóreos, serão desvalorizados em prol da razão, do intelecto, da consciência. Para o socratismo importa detectar o que diz a razão ou a consciência sobre o corpo, tornado refém do aparelho intelectivo. Não é o corpo quem deve falar. Na verdade, o corpo passará, a partir desse momento decisivo, a ser silenciado, vilipendiado em favor da 20 Terminologia crítica utilizada por Nietzsche como expressão máxima da dissolução dos afetos vitais, transformados em impulsos declinantes, promovida pelo racionalismo socrático. O socratismo propôs-se fazer uso da razão enquanto mecanismo de controle dos instintos caóticos que assolavam a sociedade grega à época. 21 NIETZSCHE, 2007, p. 83. Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. negação da vida, pois “... o socratismo condena tanto a arte quanto a ética vigentes; para onde quer que dirija o seu olhar perscrutador, avista ele falta de compreensão e o poder da ilusão; dessa falta, infere a íntima insensatez e a desestabilidade do existente.” 22. A questão do corpo, intimamente conectada com a questão de vida e morte, não poderia ser ignorada por Nietzsche, que, em Assim falou Zaratustra, sentencia: “E quero me tornar de novo terra, de modo a ter sossego naquela que gerou.” 23. O processo de nascimento e morte, assim posto por Zaratustra, não engendra nenhum processo metafísico e místico; ao nascer o homem compactua com a terra uma união que se representa pelo seu corpo e a interação deste com o mundo. Ao fim da existência, tal corpo deve, necessariamente, retornar ao lugar de onde surgiu, encerrando-se um ciclo, natural, de perecimento de todas as coisas. Para os gregos antigos, o corpo era significativamente importante. Aos grandes heróis, tombados em combate, restava a cremação, pois somente após esse processo é que a morte efetivamente completa-se, uma vez que, aqueles que não são cremados, são condenados a vagar, sem rumo, em um plano que não é nem vida e nem morte, como afirma Vernant: “O herói, cujo corpo é assim largado à voracidade das feras, é excluído da morte ao mesmo tempo em que é diminuído da condição humana.” 24 . Não era sem motivo que, vencido um valoroso guerreiro em combate, outra contenda iniciava-se entre os soldados dos dois exércitos, mas desta vez para disputar o corpo do herói. A imortalidade, a eternidade, o ad infinitum, dentre outras concepções articuladas e manipuladas pelos preceitos cristãos, são ideias criadas pelo homem perante o temor da morte, concepção esta 22 NIETZSCHE, 2007, p. 82. NIETZSCHE, 2011, p.71. 24 VERNANT, 1978, p.58. 23 Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 59-71, jan/dez2015. 70 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 que possui grande representatividade na modernidade. Vida e morte coadunam-se na existência humana. Aceitar estas duas condições é fator indispensável para uma existência satisfatória, sem a angústia do fim da vida como um perecimento, um decair. “Morrer no tempo certo” diz Zaratustra, nem cedo nem tarde demais, tal como os heróis gregos, tal como Aquiles. Considerações finais O homem tornou-se refém das suas próprias ideologias, dentre as quais se destacou aqui a concepção de morte que afeta diretamente a forma de agir, pensar e se relacionar humana, especialmente no que se refere ao aspecto da existência que é, ou ao menos deveria ser, interpretada como natural. A crença em concepções desfiguradoras do homem, iniciadas com o platonismo, que, por sua vez, demarcou a distinção arbitrária entre “verdadeiro” e “falso”, “mundo ideal” e “mundo sensível”, segundo Nietzsche, marcou de forma indelével o pensamento do homem desde então, em um longo percurso caracterizado pela descrença e depreciação do homem em relação a si, ao seu corpo e às suas potencialidades, que chega até os dias atuais, menos vigoroso, é necessário frisar25, mas ainda assim atuante e digno de atenta observação. A compreensão do mundo grego se efetuava, conforme Barrenechea (2014, p.53), sem “máculas nem defeitos”, em uma existência que se pode considerar plena em si mesma. Não há pecado, sentimento de culpa no sentido cristão, nem postulados fatalistas e degeneradores das forças orgânicas, como ocorre no mundo moderno, no qual, teme-se o próprio pensamento mediante a possibilidade de transgressão de algum dogma religioso. A vida, para tal 25 O niilismo na atualidade marca um processo de questionamento e rompimento com muitas concepções cristãs, assinalando o processo que Nietzsche nomeou de “a morte de Deus”. Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. homem, tornou-se privação, insuficiência, prisão, deformação e necessidade constante de agir e pensar conforme os limites estabelecidos no plano social, cultural e moral. Tem-se, sob tal aspecto, o aprisionamento instintivo do homem moderno, que a tudo teme e necessita reprimir-se constantemente. Seu aspecto guerreiro, sobrepujados pelas ideias de paz, segurança, moralidade e dever, retorna ao seu interior, em um processo antinatural que marca o seu adoecimento. Não se está aqui defendendo a barbárie ou o crime, mas abordando que o homem é uma complexa junção de forças, apolíneas e dionisíacas, e um desnível nessa organização marca a enfermidade, a debilidade, muitas vezes, mascaradas por meio do conceito de civilização. O homem civilizado teme a morte e ao agir dessa forma macula a sua própria vida, pois se torna incapaz de fruir a vida de forma plena. De acordo com Nietzsche (2007, p. 26), tal homem reconhece que vive a sedução de um sonho, mas ainda assim deseja continuar sonhando. A responsabilidade pelo viver pesa a tal tipo, que prefere, no estado enfermo em que se encontra depositar sua liberdade aos pés de sacerdotes, que se autodenominam pontes entre o homem e a divindade, e decidem, dessa forma, como o homem moderno deve ou não viver. Posto isso, Nietzsche observa nos gregos antigos um posicionamento totalmente diverso do sustentado pelo homem da modernidade, uma vez que aqueles homens sabiam exatamente como filosofar e se colocar perante a vida. Esta fruída em todas as suas possibilidades, em meio ao conflito de forças inerente aos sentimentos e afetos humanos. Morte e vida, assim, manifestavam-se para os gregos antigos, enquanto facetas que poderiam depor acerca de quem o homem é, pois a morte gloriosa era mais desejável para os guerreiros antigos que uma vida depauperada e inglória. Por esse aspecto, o Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 59-71, jan/dez2015. 71 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 10, Edição 17, Ano 2015. filósofo alemão não se esquivará a apontar a era trágica dos gregos como um dos momentos mais peculiares da história da humanidade, pois tal época ressalta a filosofia enquanto afirmação da vida, o que Nietzsche denominará como o momento de maior elevação do corpo e dos instintos que lhe são próprios. Para os gregos da era clássica, que souberam viver e filosofar de maneira singular, conforme o filósofo alemão, filosofia da vida e da morte, sem dúvida, articula-se em uma linha bastante tênue, uma vez que tais homens não negaram a vida, apesar da dor, sofrimentos, conflitos e fugacidade constitutivos da efetividade. Buscaram, ao contrário, a afirmação da vida em todas as suas nuances, porque a morte, algoz dos homens modernos, era interpretada pelos gregos antigos como uma etapa da vida. _______. Assim falou Zaratustra. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Referências OTTO, W. F. Os deuses da Grécia: A imagem do divino na visão do espírito grego. São Paulo: Odysseus, 2005. BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e a alegria do trágico. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014. CHAVES, E. Considerações sobre o ator: uma introdução ao projeto nietzschiano da fisiologia da arte. Trans/Form/Ação [online], vol.30, p. 51-63, n.1, 2007. _______. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. 3ª ed. Tradução e prefácio Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. _______. Genealogia da moral. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. _______. O caso Wagner: um problema para músicos/Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. _______. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. 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