O r g a n i z a ç ã o : André Masseno e Tiago Barros Filosofia e Cultura Brasileira A CAIXA Cultural tem a satisfação de apresentar "Filosofia e Cultura Brasileira", um ciclo de palestras abordando o que há de comum entre a filosofia ocidental e a cultura brasileira. O projeto, selecionado pelo Programa de Ocupação dos Espaços da CAIXA Cultural, pretende ao longo quatro dias de debates, mostrar um pouco da história de nossa cultura e os pensamentos filosóficos que a influenciaram e ajudaram a moldá-la e enriquecê-la. Ao patrocinar esse projeto, a CAIXA espera trazer ao público uma importante colaboração para a reflexão sobre a filosofia e a cultura brasileira, reforçando seu papel institucional de estimular a discussão artística, ao mesmo tempo em que reafirma sua vocação social e sua disposição de democratizar o acesso a seus espaços. edição única CAIXA ECONÔMICA FEDERAL Rio de Janeiro Quintal Rio Produções Artísticas Ltda ISBN: 978-85-64438-01-9 2012 Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 3 f APRESENTAÇÃO O ciclo de palestras Filosofia e Cultura Brasileira tem por objetivo difundir e debater pensamentos que ofereçam um panorama do diálogo da tradição filosófica com o percurso cultural do Brasil contemporâneo. Seguindo este propósito, e como forma de ampliar o alcance dessa iniciativa, o evento promove a publicação deste livro, em que o leitor tem a oportunidade de entrar em contato não apenas com os eixos temáticos do ciclo, mas também, e principalmente, com alguns dos pensadores que estão promovendo a reflexão da cultura brasileira, haja vista que, em suas áreas de atuação e experiência, todos os convidados têm promovido importantes contribuições ao tema. Abrindo o debate, Antônio Cicero apresenta a perspectiva de que a primeira filosofia conduz a uma verdade absoluta, universal e necessária que corresponderia ao que diversos filósofos classificaram como niilismo. Na seqüência, Ana Cristina Chiara, a partir da performance O Confete da índia de André Masseno, examina variáveis de figurações do corpo da índia/índio, do corpo da negra/negro, no trabalho de artistas brasileiros modernos e contemporâneos. Por sua vez, Luiz Carlos Maciel trata da importância da idéia da liberdade em sua formação pessoal e na experiência de sua geração Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 4 dos anos 1960/70. Patrick Pessoa reflete sobre a autonomia estética da obra de Machado de Assis. Adriany Mendonça discute os principais aspectos filosóficos presentes na noção de antropofagia desenvolvida por Oswald de Andrade, enquanto Alexandre Mendonça explora a valorização da cultura popular feita pelo filósofo Nietzsche. Já Rosa Dias reconstrói a importância da produtora cinematográfica Belair e do filme A família do Barulho de Júlio Bressane no cenário filmico, político e cultural brasileiro dos anos 1970. E, encerrando, Jorge Mautner escreve a respeito da atualidade do amálgama cultural brasileiro, expresso através de suas emblemáticas frases "Ou o mundo se Brasilifica ou se tornará nazista" e "Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé". Com o patrocínio da Caixa Econômica Federal, temos o prazer de oferecer ao leitor um material que servirá de referência aos estudos do interessado na relação Filosofia e Cultura Brasileira. Os organizadores Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 5 índice 09 Filosofia e Niilismo Antônio Cicero 30 0 salto da índia: corpos na cultura brasileira Ana Cristina Chiara 46 0 sol da liberdade 59 Brás e o Brasil: a Filosofia da Arte de Machado de Assis 76 Aspectos filosóficos da antropofagia oswaldiana Adriany Mendonça 90 Filosofia e cultura popular Alexandre Mendonça 98 A Família do Barulho na Belair de Júlio Bressane 106 Luiz Carlos Maciel A amálgama do Brasil universal Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 7 Jorge Mautner Patrick Pessoa Rosa Dias Filosofia e cultura popular perspectivas de problematização. N e s s e sentido, o p e n s a m e n t o de Alexandre Mendonça Nietzsche se destaca e marca a contemporaneidade pela virulência de seus ataques à tradição de origem socrático-platônica, pelos seus (...) o povo é o inventalínguas (...) Haroldo de Campos esforços para suspender, pelo m e n o s em seus escritos, as fronteiras que separariam a filosofia da poesia, e pela surpreendente reavaliação da importância atribuída à cultura popular. Tendo nascido de forma múltipla e heterogênea, pulverizada Já em sua primeira publicação, O nascimento da tragédia, pela variedade de escolas que então proliferavam, a filosofia surge c h a m a a atenção o apreço que Nietzsche parece nutrir por elementos como u m a das mais cintilantes novidades trazidas pela série de radicais que atestariam a riqueza e a força da cultura popular na Grécia Antiga. transformações pelas quais a cultura grega teria passado no período Suas teses sobre o nascimento da tragédia a partir da música, do teatro compreendido entre os séculos VII a.C. e V a.C. Se podemos pensar que a partir dos rituais dionisíacos, e toda a sorte de elogios dedicados à entre o discurso que tem voz através dos primeiros filósofos e a poesia arte trágica - interpretada c o m o m á x i m a expressão da saúde da cultura de origem popular - em especial, a emergente poesia dramática - a grega - são evidências desse seu posicionamento. Posicionamento relação seria de sintonia e complementaridade, a aparição de Sócrates que se desdobra no diagnóstico de que o acontecimento Sócrates e o sentido impresso a esta aparição pelos diálogos de Platão parecem seria signo de um processo de corrupção e decadência da cultura, tornar essa relação problemática. Na medida em que a filosofia passa que p o u c o a p o u c o teria se aprofundado, difundido e generalizado, r a forjar para si certa unidade, certa identidade e, sobretudo, um lugar aniquilando a cultura trágica e fundando as bases de um racionalismo de superioridade, identificando-se à imagem da verdadeira sabedoria, ainda presente de m o d o h e g e m ô n i c o no cientificismo m o d e r n o , do deflagra-se um processo de cisão entre o que poderíamos considerar qual nossas instituições de ensino e boa parte dos dispositivos que como o campo da cultura popular e aquele próprio ao exercício do j u l g a m o s produtores e difusores de cultura seriam tributários. Criando, P^ns^mento filosófico. Processo que se intensifica ao longo do que se nesse m o m e n t o e a seu m o d o , alianças c o m Kant, Schopenhauer e tornou a história do pensamento ocidental. Wagner, Nietzsche parece ter a intenção de contribuir para a reversão Contudo, a p a s s a g e m do século X V I I I ao X I X d.C„ traz à desse processo, para o aniquilamento do racionalismo socrático, para tona u m a série de vozes que contribuem para o abalo da suposta o renascimento de u m a cultura trágica. Se aqui reverbera a oposição autoridade conquistada pela filosofia e apontam para a reversão do entre u m a instância acadêmica - qualificada por Nietzsche como gesto que teria inaugurado a cisão entre filosofia e cultura popular. falsamente erudita - e outra ligada aos saberes, valores e discursos Essa tendência se dissemina e nos deixa como legado inusitadas que p r o v ê m do p o v o , isto se dá em proveito de u m a retomada das Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 90 Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 91 possibilidades de valorização do que o autor entende c o m o autênticas tese de que o pai seria de o r i g e m metafísica. Se por um lado aqui expressões da cultura popular. ressoa algo da h e r a n ç a r o m â n t i c a de N i e t z s c h e e isso hoje p o d e soar Em seus escritos imediatamente posteriores, redigidos quando a n a c r ô n i c o , ou pior, inoperante e p o u c o p r o d u t i v o , n a d a nos i m p e d e ainda atuava c o m o professor na Universidade da Basiléia, Nietzsche de seguir o p r ó p r i o e n c a m i n h a m e n t o que é dado ao seu p e n s a m e n t o leva esta proposta adiante. Nesses que ficaram conhecidos c o m o em seus escritos seguintes. C o m isso, p o d e m o s tentar desfazer seus Escritos sobre educação - e que incluem tanto a série de cinco os inconvenientes do uso de u m a terminologia p o u c o apropriada, conferências intitulada Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de c o l o c a d a em j o g o n u m m o m e n t o em q u e o autor, c o m o s u g e r e m ensino quanto a consideração extemporânea Schopenhauer educador seus próprios textos autocríticos, ainda não teria d e s e n v o l v i d o u m a - , Nietzsche parece ser bastante sensível a u m a distinção entre o que l i n g u a g e m própria para p e n s a m e n t o s tão próprios. P o d e m o s ainda seria a cultura popular genuína e aquilo que se poderia chamar de reter e levar adiante aquelas que talvez sejam suas contribuições cultura de massas. Longe de atribuir qualquer traço de vulgaridade à m a i s inquietantes. cultura popular, longe de pensá-la c o m o algo da ordem do h o m o g ê n e o , N ã o precisamos nos afastar por completo desses primeiros ele concebe sua constituição c o m o plenamente heterogênea, rica em escritos para encontrar pistas que apontem nessa direção. Em variações e estilizações. À cultura popular é conferida certa nobreza: algumas passagens de suas conferências sobre o futuro de nossos tratar-se-ia de um terreno acolhedor, produtor e disseminador da estabelecimentos de ensino, Nietzsche empresta um sentido ao termo diferença em estado bruto, não domesticada, não submetida a " g ê n i o " que prescinde de qualquer implicação metafísica. Nelas, o^ padronizações e modelos de identidade prévios. Mais que isso, gênio é identificado àquele que reúne tudo aquilo que está disperso aparece em tais textos a idéia de que seria justamente a riqueza viva na heterogeneidade da cultura popular, explora suas relações e nos e exuberante da cultura popular que tornaria possível o surgimento apresenta o resultado de u m a elaboração sintética, mais adensada e do que quer que possa ser c h a m a d o de cultura superior. Estabelece-se cintilante: a i m a g e m produzida por um espelho transfigurador, onde a assim u m a relação de dependência entre a força, a saúde da cultura cultura pode ver a si própria, p o r é m mais nítida, clara e intensamente. popular e a possibilidade de emergência de u m a cultura superior, da Por outro lado, a idéia de se atribuir ao gênio u m a paternidade qual o gênio seria a expressão máxima. A cultura popular c o m o m ã e metafísica p o d e ser interpretada c o m o u m a primeira estratégia para do gênio, c o m o aquela que se deixa fecundar, c o m o aquela que gera, se preservar o enigma e o mistério que a c o m p a n h a m o nascimento de dá à luz e cria o gênio. tudo o que nesses textos é qualificado c o m o superior. Talvez se trate C u r i o s a m e n t e , a paternidade do gênio é lançada para o c a m p o do não-identificável. N i e t z s c h e chega m e s m o a colocar em j o g o a Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 92 de u m a primeira solução para se driblar a tendência socrática de tudo querer decifrar, de tudo querer controlar, de tudo querer traduzir por Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 9 3 relações de causa e efeito identificáveis. Assim, p o d e m o s entender Elas estavam a serviço da necessidade de geração e ampliação do lucro. que, se a origem do gênio é misteriosa, isso se dá não porque ela N e s s e sentido, a cultura m o d e r n a parece exigir e realizar a se encontra em u m a esfera transcendente, mas sim por ela estar na instauração de um m o d e l o de saber que só se constitui c o m o superior própria história, por estar nos acasos que constituem a história e e universal a partir da negação da multiplicidade de saberes, valores que escapam a u m a lógica de compreensão baseada na causalidade e m o d o s de viver que c o m p õ e m a heterogênea cultura popular. E linear, contínua e teleológica - esta sim, idealista e (im)propriamente a partir da negação da cultura popular que se forja a ignorância do metafísica. p o v o . Ignorância que é forjada, m a s que passa a ser naturalizada e Por essa perspectiva, a existência de u m a cultura superior t o m a d a c o m o um dado óbvio. Em contraposição à ignorância forjada dependeria da saúde da cultura popular, mas dependeria ainda e pressuposta se ergue então o m o d e l o de saber a ser legitimado e do acaso. Sim, seria preciso cuidar da cultura popular, investir difundido pelas instituições de ensino. O que hoje c h a m a m o s de cultura no seu fortalecimento. M a s se isso implicasse, necessariamente, de massas não seria senão o efeito de um processo homogeneizante acolhimento, cultivo, produção e disseminação da diferença, ainda produzido por toda a sorte de dispositivos próprios da decadente assim nada nos garantiria a linha reta e ascendente c o m o via de cultura moderna. Processo que teria por base a p r o m o ç ã o da ruptura acesso a u m a cultura superior. Tal observação pode funcionar c o m o entre o p o v o e o regime poético através do qual ele estabeleceria u m a um perturbador e salutar estímulo para que se repense o que hoje relação direta e autêntica com o m u n d o que o cerca. c h a m a m o s de políticas culturais e educacionais, para que se discuta o Encontramos aqui, nesse m o d o pelo qual a cultura m o d e r n a valor dos próprios critérios aos quais nos submetemos na avaliação de opera a desqualificação da cultura popular, nessas artimanhas para nossas intervenções. Quanto à cultura de base científica e cientificista, forjar sua suposta superioridade, todos os traços fundamentais pelos disseminada pelas instituições de ensino modernas, estes primeiros quais Nietzsche, em obras posteriores c o m o Além do bem e do mal escritos não deixam dúvidas em relação à posição de Nietzsche: a e Genealogia da moral, identifica um m o d o vil e vulgar de valorar: cultura moderna é decadente e vulgar, não é popular n e m superior a preponderância do pathos negativo, a intolerância para com a ^ e r h b o r a forje certa i m a g e m de "superioridade" para si. Se, nesse alteridade, a negação da alteridade c o m o condição para a afirmação da m o m e n t o de emergência do capitalismo industrial e constituição do identidade do que se pretende superior, a conversão desta identidade Estado burguês, o que estava em j o g o era principalmente a produção em m o d e l o universal. em massa da subjetividade do trabalhador/consumidor, as instituições Tendo em vista tal diagnóstico, podemos intuir por que Nietzsche de ensino cumpriam o papel de legitimar e difundir valores e saberes acabou por se afastar da vida acadêmica, abandonando suas atividades comprometidos com um novo m o d o de organização da vida social. de professor na U n i v e r s i d a d e da Basiléia. T a m b é m e n c o n t r a m o s Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 94 Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 95 seu c a n t a n d o Diamante verdadeiro. E s t a c a n ç ã o t o c a n d o alto em todas p e n s a m e n t o e o d e s e n v o l v i m e n t o da s i n g u l a r i d a d e de sua filosofia as rádios, em todas as vitrolas, em todas as casas da vizinhança, l e v a r a m a d i a n t e u m a v a l o r i z a ç ã o c a d a v e z m a i s p e c u l i a r d a arte. q u a n d o eu era criança... aí p i s t a s p a r a c o m p r e e n d e r p o r q u e a r a d i c a l i z a ç ã o de A aliança q u e o a u t o r e s t a b e l e c e d e s d e seu p r i m e i r o escrito c o m a arte trágica e, p o s t e r i o r m e n t e , a q u e l a q u e p a s s a a e s t a b e l e c e r c o m a p o e s i a p r o v e n ç a l , c h e g a n d o m e s m o a se referir à sua p r ó p r i a f i l o s o f i a p o r v e z e s c o m o "filosofia t r á g i c a " , p o r outras c o m o " g a i a c i ê n c i a " - t e r m o p e l o qual se d e s i g n a a s a b e d o r i a p r ó p r i a dos t r o v a d o r e s p r o v e n ç a i s - são m a r c a s i m p o r t a n t e s desta i n t e r v e n ç ã o pela qual N i e t z s c h e p r o c u r a r e c o n d u z i r a filosofia ao solo fértil da cultura popular. N ã o é de se e s t r a n h a r q u e sua filosofia t e n h a e n c o n t r a d o e ainda e n c o n t r e resistência e m c í r c u l o s e s t r i t a m e n t e a c a d ê m i c o s . Ou q u e , n e s s e s a m b i e n t e s , ela hoje t e n h a sua v i r u l ê n c i a a t e n u a d a , s e n d o c o n v e r t i d a e m objeto d e e s t u d o p o r parte d e especialistas que disputam a posse da "verdadeira interpretação". Por outro lado, t a m b é m n ã o é de se e s p a n t a r q u e m u i t o s de seus pensamentos tenham chegado ou cheguem a nós, m e s m o que s e m a m a r c a de seu n o m e , d i s f a r ç a d o s , transfigurados, m a s ainda a s s i m p o t e n c i a l i z a d o s p o r artistas q u e i n s i s t e m na força da cultura popular. N i e t z s c h e d e v o r a a cultura popular. A cultura p o p u l a r devora Nietzsche. O s w a l d A n d r a d e e a A n t r o p o f a g i a . Zé C e l s o e o Teatro Oficina. H é l i o Oiticica e a Tropicália. A Tropicália. A Tropicália e C a e t a n o Veloso. C a e t a n o Veloso e a s e q ü ê n c i a de d i s c o s : Outras palavras, Cores e nomes, Uns. P a r a d a s de s u c e s s o . M a r i a B e t h a n i a Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 96 Filosofia e C u l t u r a Brasileira | 97