GT – 11: PRÁTICAS CULTURAIS NA PRODUÇÃO DA CIDADE A DIFERENÇA ÉTNICA E RACIAL NO ESPAÇO URBANOMETROPOLITANO DE GOIÂNIA Alecsandro (Alex) J. P. Ratts LaGENTE/IESA/UFG – Bolsista FAPEG [email protected] RESUMO A partir de estudos anteriores, realizados e/ou orientados, identifiquei que uma parte significativa dos grupos negros (ou afro-brasileiros), com destaque para as irmandades e congadas, a capoeira e o candomblé, se deslocavam temporária ou definitivamente entre Goiânia e municípios da Região Metropolitana, em face da localização da residência de suas lideranças e/ou das suas organizações e das áreas de realização de suas expressões culturais. Nesta comunicação, trago um material que advém do trabalho de campo com um afoxé e com as festas do Rosário realizadas em Goiânia, além da revisão de vários estudos, apresentando em duas partes uma abordagem da diferença étnica e racial no espaço urbano-metropolitano e observada em várias escalas: 1. Da cidade ao espaço metropolitano; 2. Da rua à cidade-região. Palavras-chave: grupos negros, cultura afro-brasileira, cidade, região metropolitana 1 1. Introdução: a diferença e a cidade Ao imaginarmos as cidades de Salvador ou São Luís e suas áreas metropolitanas temos em mente que sua população é em grande parte negra. Esperamos, então, que nestas capitais existam expressões culturais “afro-brasileiras”. O contrário pode ser imaginado para as capitais do sul do país e causa espécie o fato de que há quilombos e religiões de matriz africana em Porto Alegre, assim como estas e outras coletividades negras em Curitiba e Florianópolis. Nas quatro cidades mencionadas, a presença indígena e cigana é pensada respectivamente como pretérita e passageira. No caso de Goiânia a ausência negra e indígena nas representações públicas também se associa à ideia de um passado agro-pecuário e à predominância de um gosto musical pelo estilo chamado de sertanejo. O espaço urbano visto pela dimensão cultural está estruturalmente ligado às esferas econômicas e políticas (CORRÊA, 2003), afirmação que exige a (re)elaboração de uma abordagem. A partir de estudos anteriores, realizados ou orientados por mim (pesquisas de iniciação científica, mestrado e doutorado), identifiquei que uma parte significativa dos grupos negros ou afro-brasileiros, com destaque para as irmandades e congadas, a capoeira e o candomblé, se deslocavam temporária ou definitivamente entre Goiânia e municípios da Região Metropolitana, em face da localização da residência de suas lideranças e/ou das suas organizações e das áreas de realização de suas expressões culturais. Trago um material que advém do trabalho de campo com um afoxé e com as festas do Rosário realizadas em Goiânia e de vários estudos, apresentando em duas partes uma abordagem da diferença étnica e racial no espaço urbano-metropolitano e observada em várias escalas: 1. Da cidade ao espaço metropolitano; 2. Da rua à cidaderegião. 2 2. A diferença étnico-racial: da cidade ao espaço metropolitano A formação das cidades brasileiras, oriundas ou não de planejamento, incluindo aquelas que se tornaram metrópoles, é pouco estudada no campo da Geografia em relação com a presença de grupos étnicos e raciais, tomados aqui como quilombos, ciganos, indígenas e população negra1. O caso de Goiânia, em grande parte, segue este percurso. Goiânia, formada em 1933, foi uma cidade construída a partir da concepção modernista e capitalisticamente planejada, no que diz respeito ao atual centro expandido, o que implica em discursos e arranjos espaciais que não incluem negros e indígenas, a não ser em falas, poemas e monumentos que se referem ao passado colonial do estado. Como registro de um momento histórico, há o “Monumento às Três Raças” na Praça Cívica, marco central da cidade, e o “Monumento ao Bandeirante”, entre as Avenidas Goiás e Anhanguera, no principal cruzamento urbano. Dito de outra forma, uma modernidade que nega ou subestima a diferença social, étnica e racial no espaço urbano. No que refere às relações raciais, Goiânia foi considerada em certo senso comum “como cidade sem racismo, democrática, onde qualquer pessoa nela „chega, enrica e sobe na vida‟, seja negro ou branco” (BAIOCCHI, 1983, p. 12-13). Em 1970, Mari Baiocchi ao estudar o bairro rural negro de Cedro, em Mineiros, localizado no sudoeste goiano, volta-se para Goiânia, por ser a cidade com maior densidade populacional. Através de questionários, ele visava compreender como, nos discursos, as pessoas e coletividades negras são vistos em Goiás. E conclui que há certa separação racial: [...] onde as relações associativo-profissionais se caracterizam por relações assimétricas, de dominação e sujeição, onde o negro participa ativamente do processo produtivo, sofrendo discriminação, que lhe dificulta inserir-se na sociedade local e usufruir os seus bens, levando1 Vale ressaltar os ensaios de Santos, M. (1987; 1997; 1999), sobre “cidadanias mutiladas”; as proposições de Ratts (2003, 2004) sobre grupos étnico-raciais; e de Santos, R. (2012), Campos (2012; 2005) sobre relações raciais e espaço urbano, assim como o estudo mais remoto de Rolnik (1989). 3 o à marginalização como indivíduo e como grupo de cor (BAIOCCHI, 1983, p. 12) A partir de questionários respondidos por intelectuais goianos, a maioria sendo professores universitários, a autora demonstra como o racismo e a discriminação no discurso dos entrevistados contribuíram para certa invisibilidade da população negra no estado de Goiás. A interpretação do processo de miscigenação como um mito de três raças harmônicas, pode ser considerada uma “ideologia geográfica” (MORAES, 1989) que parece nos discursos negar o negro e sua cultura em Goiás. Por outro lado, em Goiânia, segundo Garcia (2007), estudioso do movimento hip hop afirma que [...] podemos deduzir que a continuidade da exclusão e a manutenção da subalternização negra, tanto material como psicologicamente, também contribuiu grandemente para sua desaparição, reafirmando a idéia de que diante de relações racistas e de dominação o negro tendeu a se “auto-branquear” como forma de ter reconhecida sua cidadania e dignidade. (2007, p. 40) No entanto, deve-se observar que nenhum processo destes é conclusivo. O que observei parcialmente nesta pesquisa, que se desdobra em outras, é como ocorre a reconfiguração destes grupos étnicos e raciais na metrópole goiana. Cabe retomar o processo de definição da Região Metropolitana de Goiânia (RMG). No final de 1999 ocorreu a implantação e consolidação da RMG. Este espaço metropolitano, instituído pela Lei Complementar 027, de 31 de dezembro de 1999, era constituído por onze municípios. Após a Lei Complementar Estadual de número 78, aprovada em 25 de março de 2010, a “Grande Goiânia” passou a abranger vinte municípios (Figura 01). 4 Figura 01: Região Metropolitana de Goiânia – 2010 Fonte: Lei Complementar Estadual de número 78, 25/03/2010. A Região Metropolitana de Goiânia foi se consolidando e crescendo no contexto de expansão da economia capitalista, da conseqüente valorização da terra urbana, da riqueza concentrada nas mãos de poucos e da exploração do trabalho. Possuindo hoje, mais de dois milhões de habitantes (IBGE, 2010) e seus diversos problemas de ordem social e política (ARRAIS, 2013) . 5 Goiânia não se diferencia de muitas cidades brasileiras no que corresponde à presença das tendências à homogeneização, diferenciação e desigualdade social e espacial resultando em locais segregados por classe, raça e gênero. A população de baixa renda excluída que chega à cidade vai residir nas “franjas” ou em áreas centrais, mas irregulares, constituindo as ocupações sem nenhuma estrutura. Na Região Metropolitana de Goiânia, a população negra, segundo censo de 2000, correspondia a 45,13% do total (Tabela 01). Preta Goiás % RMG % Goiânia Parda Branca Amarela Indígena Sem Total Declaração 226.963 2.176.260 2.538.412 12.052 14.110 36.399 5.004.197 4,53 43,48 50,73 0,24 0,28 0,72 100 70.462 669.586 877.794 4.811 4.312 12.550 1.639.516 4,29 40,84 53,54 0,3 0,26 0,77 100 41.202 411.663 625.922 3.386 2.920 7.915 1.093.007 % 3,77 37,66 57,26 0,31 0,26 0,72 100 Tabela 01: População residente por cor/raça em Goiás, Região Metropolitana de Goiânia e Goiânia – 2000. Fonte: IBGE,Censo 2000. No censo de 2010 o dado de cor/raça foi incorporado ao questionário básico (até 2000 encontrava-se apenas no questionário da amostra) possibilitando a obtenção da informação na base de microdados dos municípios, isto é, por setor censitário. No caso dos dados para os municípios da Região Metropolitana em foco, como se pode observar na tabela abaixo (02), podemos destacar que o percentual de negros é 54, 50% para Goiânia e maior para os outros três maiores municípios: Trindade 60,14%, Aparecida de Goiânia 62,19%, Senador Canedo 67,17%. A pesquisa de Machado (2011) acerca de trajetórias de ativistas negros(as) e o estudo de Ferreira (2014) sobre diferenciação e segregação racial, apontam, por caminhos distintos, que há concentrações negras nesta cidade, a exemplo dos setores Vila João Vaz, que tem uma irmandade negra e uma Festa de N. S. do Rosário (DAMASCENA, 2012; SOUSA, 2012) e o Setor Pedro Ludovico que abriga um terreiro de candomblé e dois de umbanda, uma escola de samba, uma organização do movimento negro e um grupo de capoeira, também observados em campo (Figura 02). 6 Figura 02: População Negra por setor censitário em Goiânia-GO Fonte: IBGE, Censo 2010. Elaboração LaGENTE. No mesmo sentido, no que se refere a outros grupos negros (ou afro-brasileiros) na Região Metropolitana de Goiânia, os estudos de Ricardo (2007) e Silva (2014), sobre o candomblé e a capoeira respectivamente, apontam uma aglutinação dos terreiros de religiões de matriz africana nas regiões administrativas centro e sul da capital se direcionando para o município conurbado de Aparecida de Goiânia e o deslocamento de mestres de capoeira angola para periferias populares de Goiânia e Aparecida de Goiânia. 7 Na referida Região Metropolitana há dois quilombos certificados pela Fundação Cultural Palmares, um em Aparecida de Goiânia (Jardim Cascata), alvo de estudos recentes em outras áreas e outro em Trindade (quilombo Vó Rita) (RATTS & FURTADO, 2010). É relativamente conhecida a presença cigana em Trindade, referida no estudo antropológico de Rodrigues (2012) e no trabalho inicial de Vieira (2014). No caso dos indígenas, há referências a locais de passagem, a exemplo da Casa de Saúde do Índio no Setor Santo Antônio e os dados do censo de 2010 do IBGE que apontam 2135 indígenas na capital, conformando 0,15% da população geral (FERREIRA, 2014) 2. A diferença na casa/terreiro e na rua: um afoxé e as Festas do Rosário Para o estudo em pauta optei pelo retorno como pesquisador a duas expressões culturais afro-brasileiras: 1. O afoxé Axé Omo Odé, criado nos anos 1990 e recriado em 2008, a partir da casa de candomblé Ilê Ibá Ibomim no Setor Pedro Ludovico (formada no início dos anos 1970), cujos(as) organizadores(as) se transferiram para Aparecida de Goiânia e mantém o cortejo do afoxé no bairro goianiense mencionado; 2. As irmandades de N. S. do Rosário e as congadas realizadas nos setores Vila Mutirão, Vila Abajá/Campinas e Vila João Vaz das quais vários(as) realizadores(as) passaram a residir em bairros da periferia de Goiânia e de Aparecida de Goiânia. 2.1. O afoxé Axé Omo Odé em Goiânia e seu principal cortejo Os afoxés são cortejos de rua formados a partir de uma ou mais casas de candomblé, também denominadas terreiros, que agregam candomblecistas, participantes de outras religiões de matriz africana e interessados(as) nas expressões culturais afrobrasileiras (RATTS & TEIXEIRA, 2014). Iniciados em Salvador, se estenderam para Pernambuco e para outras cidades e regiões do país. No caso de Goiânia a primeira casa de candomblé reconhecida é o Ilê Ibá Ibomin, formada no início dos anos 1970 por João Martins Alves, conhecido como Pai João de Abuque, natural de Juazeiro, Bahia 8 (TEIXEIRA, 2009; ULHOA, 2011), acompanhado de sua esposa Luzia Pereira Rodrigues. João de Abuque, iniciado no candomblé na nação angola, em sua terra de origem, migra para Brasília em meados dos anos 1960 e, após alguns percalços, se dirige a Goiânia. Luiza Rodrigues é originária de Afrânio, Pernambuco, cidade localizada próxima a Petrolina e Juazeiro, o que me permite dizer que é uma família nordestina que se instala em terras goianas. Tendo residido no setor Norte Ferroviário, onde reinicia suas atividades religiosas, João de Abuque passa a morar com a família do atual Setor Pedro Ludovico, então denominado de Macambira, no início da década seguinte, que era uma área de ocupações irregulares e anteriormente fora uma fazenda. No Setor Pedro Ludovico também residia Geraldina Barbosa que em 1965 funda no mesmo bairro o Centro Espírita São Sebastião, casa de umbanda (RICARDO, 2008). João de Abuque e Geraldina Barbosa participam em conjunto com outras autoridades da fundação da Federação de Umbanda e Candomblé do Estado de Goiás (FUEGO) em 1969 (NOGUEIRA, 2009). Ainda na década de 1970, no mesmo bairro, Sebastião Pereira da Silva cria o Grêmio Recreativo e Escola de Samba Brasil Mulato. O período dos anos 1970 é fértil para as expressões culturais afro-brasileiras em Goiânia: chegada de Mestre Bimba (Manuel Machado dos Reis), fundador da capoeira regional no Brasil, junto com familiares e amigos(as) e que passa a residir no Setor Pedro Ludovico; formação da Irmandade 13 de Maio (em 1971) na Vila Abajá, no entorno do setor Campinas, posteriormente transferida para a Vila Mutirão; e, formação da Irmandade de N. S. do Rosário da Vila João Vaz, formada por migrantes de Catalão, Goiás, registrada somente em 1988 (SOUSA, 2011). O Afoxé Axé Omo Odé é um espaço social de aglutinação de candomblecistas, umbandistas, capoeiristas, congadeiros(as) e militantes dos movimento negros (TEIXEIRA & RATTS, 2014). Após a morte de João de Abuque em 2006, a casa de candomblé ficou fechada por um ano, como é prescrito na religião. Em maio de 2008, Mestre Luizinho, Luís Lopes Machado, filho de mestre Bimba, ogã (músico e dirigente) do Ilê Ibá Ibomin, retoma o afoxé que estava sem desfilar desde os anos 1990. Como se percebe, a principal liderança do grupo é masculina, mas há uma notória participação feminina na 9 organização do grupo e no cortejo, sobretudo, na chamada “ala das baianas” e no canto. O cortejo do grupo passa a ser realizado anualmente no mês de setembro, rememorando o período da morte do fundador, e é intitulado de “Caminhada em homenagem aos mestres e mestras da tradição afro-brasileira”. Cabe registrar que em 2014, se verifica uma dissidência na casa de candomblé e que o referido ogã e esposa, Maria do Socorro Alves, transferem sua residência para uma chácara da família de João de Abuque situada no bairro Cidade Satélite São Luiz, do município de Aparecida de Goiânia e retomam a vida religiosa com a casa denominada recentemente de Ilê Ojú Odé (dados de campo). Em 2012, em período anterior a esta pesquisa, a caminhada iniciou na rua, em frente ao antigo terreiro, local também de outras manifestações como a “Chamada dos Tambores” (realizada no mês de novembro, por ocasião das celebrações do Dia Nacional da Consciência Negra) (figura 03). Figura 03 – Divulgação da 4ª. Caminhada em Homenagem aos Mestres e Mestras das Tradição Afro-Brasileira. Goiânia, Setor Pedro Ludovico, 2012. 1 0 O deslocamento de lideranças do candomblé de Goiânia, particularmente da região sul da capital do estado, para Aparecida de Goiânia, cidades conurbadas e imbricadas em um processo de urbanização desigual, também foi observado por Silva (2013): Esse processo de urbanização entre os setores periférico e central de uma cidade constitui-se por um espaço diferenciado, em que as atividades secundárias e terciárias são os vetores que promovem o movimento de conurbação. Esse movimento é vivenciado entre as cidades de Goiânia e Aparecida de Goiânia, por diversas atividades e por diversas formas de vida urbana. Em face desse desordenamento o terreiro é submetido às digressões espaciais, sobretudo, promovidas pela ausência do poder público. (p. 121) 2 No entanto, residindo em Aparecida de Goiânia, as lideranças do Afoxé Axé Omo Odé mantém a “Caminhada” pelas ruas do Setor Pedro Ludovico, iniciando e encerrando o cortejo no Jardim Botânico, utilizado anteriormente pelo grupo do terreiro como área ritual (TEIXEIRA, 2009) (figura 04). 2 O estudo da autora teve como foco três terreiros de candomblé, dois deles situados em Aparecida de Goiânia e um na capital do estado. Os dois primeiros têm vinculação inicial com o Ilê Ibá Ibomin e com Pai João de Abuque. 1 1 Figura 04 – Divulgação da 6ª. Caminhada em Homenagem aos Mestres e Mestras das Tradição Afro-Brasileira. Goiânia, Setor Pedro Ludovico, 2013. A presença do antigo terreiro e as relações de vizinhança e rituais com a área, fazem do bairro um lugar de referência para este grupo social. Observamos aqui um tipo de rugosidade espacial (SANTOS, M. 1997) e cultural na cidade de Goiânia, como se pode observar na Festa de N. S. do Rosário no Setor Campinas, no mês de maio, que será tratada abaixo. 1.2. As Festas do Rosário em Goiânia: Setores Campinas/Santa Helena/Vila Abajá, Vila Mutirão e Vila João Vaz As Festas de N. S. do Rosário que são realizadas por irmandades e acompanhadas de congadas constituem um vasto complexo cultural no Brasil que se concentra em Minas Gerais, Goiás e São Paulo. No caso de Goiás identificamos uma distribuição espacial que indica uma aglutinação no Sudeste Goiano (com foco em 1 2 Catalão) e no centro do estado (com foco em Goiânia) (RATTS, 2013). No caso de Goiânia, a memória dos(as) congadeiros(as0 aponta a existência de uma irmandade na Vila Santa Helena e no Setor Campinas desde os anos 1940, ou seja, ainda na primeira década de formação da cidade (DAMASCENA, 2012). No período entre 1933 e 1960 a capital goiana é denominada por Oliveira (2003) como a “pequena cidade” e certa oposição entre a área central e o setor Campinas, núcleo urbano que antecede Goiânia: “pode-se dizer que o que marcou a história cultural de Goiânia de 1933 até à década de 1960 foi a rivalidade com Campinas. Rivalidade essa que se refletiu de forma mais intensa no lazer e no futebol de Goiânia” (Oliveira, 2003, p. 14). Posso dizer que no campo da religiosidade popular a mesma polarização se observa; na área central e adjacências (Vila Nova, por exemplo) se constitui a catedral católica (pouco imponente), algumas igrejas evangélicas e o primeiro centro espírita (NOGUEIRA, 2009). No conjunto formado pelos setores Campinas/Vila Abajá/Santa Helena, além dos clubes Campinas e Atlético, constitui-se a irmandade do Rosário cujo principal cortejo acontece na Matriz do bairro no segundo de maio. No período posterior, entre 1960 e 1980, Oliveira (2003) denomina Goiânia de “grande cidade” e este é o momento em que mais duas irmandades negras se formam: a 13 de Maio na Vila Santa Helena (que posteriormente se transfere para a Vila Mutirão, bairro periférico) e a de N. S. do Rosário da Vila João Vaz (formada nos anos 1970 e registrada em 1988). Duas festas “do Rosário” se consolidam na cidade. Uma em maio, próximo ao dia 13, data da abolição da escravidão e dia dos “pretos velhos” (para a umbanda), tendo como ápice um cortejo dos ternos de congos na manhã do segundo domingo do mês que se encerra na casa da filha do antigo Rei. Realizavam esta festa as Irmandades da Vila Santa Helena e 13 de Maio. A outra festa ocorre na Vila João Vaz em setembro, um mês antes da que ocorre em Catalão, de onde boa parte dos(as) congadeiros(as) são originários(as). No período deste estudo a irmandade reconhecida com a primeira da cidade e que se situava na Vila Santa Helena não organizou sua festa no referido setor, pois o 1 3 principal capitão de terno (e sua família) há vários anos estava residindo em Aparecida de Goiânia o que dificultava a realização do evento na capital. O referido capitão fundou um terno em Aparecida de Goiânia que se apresentou na festa da Vila João Vaz em 2014. Dirigentes e integrantes da Irmandade 13 de Maio, antes residentes na Vila Santa Helena, se transferem para a Vila Mutirão, conjunto habitacional popular construído nos 1980, e tentam manter sua festa no local habitual. Após outras tentativas, passam a fazer sua festa desde 2012 no bairro atual em que os(as) dirigentes residem. No entanto, uma parte significativa de outros(as) integrantes do mesmo grupo reside no Jardim Itaipu em Aparecida de Goiânia, o que dificulta a realização da festa. Figura 05 – Localização dos Bairros onde estão as Congadas em Goiânia – 2013. Fonte: DAMASCENA, 2012; RATTS, 2015. No segundo domingo de maio, o terno se desloca primeiramente à pé pelas ruas da Vila Mutirão (figura 06) e vai, de ônibus fretado ou cedido, até a Matriz de Campinas (figura 07) onde acontece a “Missa dos Congos” e o encontro com outros ternos. 1 4 Figura 06 – Irmandade e Terno de congo 13 de Maio nas ruas da Vila Mutirão Foto: RATTS, A. J. P. Maio, 2012. Figura 07 – Irmandade e Terno de congo 13 de Maio n Matriz de Campinas Foto: LOURENÇO, A. L. . Maio, 2012. 1 5 Na Vila Mutirão, a casa do fundador da irmandade local, guarda os instrumentos musicais do grupo e abriga um terreiro de umbanda, dirigido por sua filha que, por sua vez, é presidente da irmandade. Vários integrantes são também candomblecistas. O grupo também promove uma folia de reis. Outra família que participa da festa no bairro tem vínculos com uma escola de samba que não está em funcionamento, e também tem membros umbandistas. Este quadro indica a correlação entre expressões culturais e religiosas afro-brasileiras no bairro, na cidade e na região metropolitana3: Terreiros podem ser considerados casas, termo pelos quais muitas vezes são denominados. A casa remete a um grupo – não homogêneo, diferenciado internamente, mas relativamente coeso. (TEIXEIRA & RATTS, 2012, 332-361) No caso da Vila João Vaz, em uma única rua estão situadas a casa da Rainha, de dois capitães, de outras famílias do grupo e o “Espaço da Congada” (figura XX). No horizonte econômico, este é um bairro popular, loteado nos anos 1970. A dimensão cultural aponta que ali há lugares e trajetos de congadeiros(as), negros(as) e de outros(as) segmentos étnico-raciais e religiosos 4 . A memória e as trocas sociais, culturais e religiosas entre dirigentes e membros da irmandade consolidam a Festa do Rosário no local. 3 Outros(as) dirigentes e integrantes dos ternos de congo e moçambique de Goiânia estão vinculados a religiões de matriz africana. Dois dentre eles(as) pertencem à linhagem de Pai João de Abuque, acima mencionado, fundador do candomblé e do afoxé em Goiânia e em Goiás. 4 Neste bairro um dirigente é ligado ao candomblé e ao samba e outro pertence à umbanda. Ao longo de muitos anos de contato, não tenho notícia de terreiros de umbanda ou de candomblé no bairro. 1 6 Figura 06 – Lugares da congada – Vila João Vaz – Goiânia, 2013. Fonte: dados de campo (RATTS, 2015, CORADO, 2014). No caso da Vila João Vaz, vale ressaltar que a migração de trabalho de alguns catalanos que também são congadeiros, está na base da formação do bairro e da festa de N. S. do Rosário (CORADO, 2014). Decorre disto o fato de que a festa local ocorre em setembro, um mês antes da que acontece em Catalão, Goiás. Uma questão que as irmandades negras goianienses permitem colocar é a localização das residências dos(as) congadeiros(as) em Goiânia, Aparecida de Goiânia e outros municípios metropolitanos 5 face às dificuldades para manter a expressão cultural em atividade na capital do estado. Cabe aqui a proposição de Arrais (2008) sobre o uso do conceito de cidade-região, uma escala de ação e de análise (2012), que não se restringe aos processos econômicos e políticos, para a qual o autor indica que também se relaciona a mediações culturais (ARRAIS, 2014). 5 O terno de congo “Verde e Amarelo”, segundo integrantes entrevistados por Damascena (2012) foi formado em Goiânia nos anos 1970, retomado em 1995 e desde 2009 realiza uma festa no município de Goianira, região metropolitana. 1 7 3. O TRÂNSITO CULTURAL NEGRO/AFRO-BRASILEIRO ENTRE GOIÂNIA E APARECIDA DE GOIÂNIA Como se pode perceber, esteja o foco no Afoxé Axé Omo Odé, nas irmandades e congadas ou, ainda, na trajetória de algumas lideranças das expressões culturais afrobrasileiras, há um trânsito cultural de pessoas e coletividades negras entre Goiânia e Aparecida de Goiânia que se correlaciona com as condições econômicas e sociais de residência das lideranças e participantes, assim como da continuidade de suas ações com pouco ou nenhum apoio público. O espaço urbano, na escala metropolitana, é visto habitualmente em termos de imbricamento de processos econômicos, políticos e sociais. No entanto, a dimensão cultural pode contribuir no entendimento de permanências recriadas de ações e eventos de grupos populares que cruzam cidades regularmente com poucos recursos. A inscrição espacial de grupos negros culturais e políticos – candomblé, umbanda, congada, capoeira e movimento social – indica que por entre os processos econômicos e para além deles, a diferença – étnica, racial e de gênero se ancora em rugosidades, mas também em ressignificações: um terreiro de candomblé pode reivindicar e conseguir o reconhecimento enquanto um quilombo urbano, a exemplo da casa Manzo Ngunzo Kaiango de Belo Horizonte (QUEIROZ, 2012) A noção de rugosidade para Santos (1997) diz respeito a formas espaciais pretéritas que têm um papel de “inércia dinâmica” no processo de produção e reprodução do espaço: “As rugosidades não podem ser apenas encaradas como heranças físicoterritoriais, mas também como heranças socioterritoriais ou sociogeográficas.” (p. 36) . Situados fora do planejamento urbano e regional, da gestão das cidades e das ações metropolitanas, os sujeitos negros, brancos, femininos, feministas, indígenas, quilombolas e ciganos, se refazem e se recolocam no espaço urbano por meio de uma presença nem sempre perceptível, mas também por uma ausência preenchida pelo simbólico: como é o caso da previsão e construção de monumentos com referências a 1 8 bandeirantes, indígenas e africanos escravizados na parte inicialmente planejada de Goiânia. A identificação recente de quilombos urbanos – Jardim Cascata em Aparecida de Goiânia e Vó Rita em Trindade -, a notória presença cigana (pouco reconhecida e estudada) também em Trindade, tem um contraponto na permanência (não devidamente identificada) de indígenas em Goiânia. Gomes (2002) identifica a presença da diferença – cultural, religiosa – no espaço urbano, mas receia que esta afirmação retraia o espaço público. Discordo do autor, no senido de que o reconhecimento social e espacial da diferença amplia a cidadania de determinados grupos. Mesmo correndo o risco de enunciar uma tautologia, posso dizer que a diferença étnica e racial “faz diferença” na vida social, no espaço geográfico em todas as escalas, e, especialmente no espaço urbano-metropolitano onde é pouco imaginada, vista e/ou reconhecida. 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRAIS, Tadeu Alencar. A produção do território goiano: economia, urbanização, metropolização. Goiânia: UFG, 2013a. ________. Morar na metrópole, viver na praia ou no campo: A segunda residência e o mercado imobiliário. Goiânia, Editora UFG, 2013b. ________. A escala de análise metropolitana em questão: considerações sobre o processo de metropolização. Revista do Departamento de Geografia/USP, São Paulo, v. 24, 2012, p. 4-23. __________. A cidade e a região/a cidade-região: reconhecer processos, construir políticas. 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