108 4. Conceitos básicos para a análise Este capítulo é destinado à exposição dos conceitos na base dos quais desenvolveremos a análise do nosso corpus. 4.1. O contexto sociocognitivo Antes de definir e desenvolver a noção de contexto sociocognitivo, convém salientar que ela nos será útil por nos permitir fazer ver, durante a prática de análise, como a cultura se faz presente nas representações coletivas de mundo. Vimos que Halliday não chega a desenvolver uma teoria do contexto e, tendo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA assumido uma abordagem antimentalista da linguagem, não lhe foi possível explicar a interface entre contexto de situação e uso da língua. O conceito de contexto sociocognitivo se assenta no pressuposto de que há uma interface cognitiva entre texto e contexto. Ele está, evidentemente, implicado na abordagem sociocognitiva de contexto de Dijk (2012), que trouxemos à cena no capítulo anterior. Para efeito de análise dos corpora, ele tem um valor operacional importante que trataremos de demonstrar doravante. Começaremos, pois, notando, com Koch (2006, p. 21), a diversidade de concepções de contexto que se acha na literatura linguística. Observa a autora que os conceitos de contexto variam bastante não só no tempo, como também entre um autor e outro; ademais casos há em que um mesmo autor define o termo de modo diferente em vários momentos de seu trabalho, sem ter disso consciência. Particularmente notável é o fato de Koch referir as contribuições de Malinowski (1923) e Firth (1957), cujos estudos, nesse tocante, influenciaram o pensamento de Halliday. A autora reconhece ter sido Malinowski quem cunhou os conceitos de “contexto de situação” e “contexto de cultura”, não sem notar, contudo, que ele não propôs “um modelo de como o contexto é determinado e do papel que desempenha na interpretação dos enunciados” (p. 22). De Firth nos diz que enfatizou o conceito de “contexto de situação”, de tal sorte que coube a ele postular que as palavras e frases não tinham sentido se não fossem consideradas em seus contextos de uso. 109 A autora lembra ainda que autores como Halliday e Labov, orientando-se por uma perspectiva sociolinguística, retomaram a noção de contexto. Escusa dizer que Halliday (1978), ao esposar a noção de ‘contexto de situação’, segue de perto Malinowski e Firth. Finalmente, Koch lembra Hymes (1964), que também adota o termo ‘contexto de situação’ em seus trabalhos, sem, contudo, deixar de mencionar a perspectiva cognitivista de contexto de Goodwin & Duranti (1992), para quem o contexto é um frame.64 O problema, nessa matéria, parece repousar na dificuldade de delimitação do próprio conceito, a saber, onde ele inicia e onde ele acaba. Após fazer alusão às contribuições dos referidos autores, Koch (p. 23) apresenta os cinco fenômenos que devem ser recobertos pelo conceito de contexto. Assim, segundo a autora, o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA contexto deve recobrir: 1. cenário; 2. entorno sociocultural; 3. a própria linguagem como contexto – o modo como a fala mesma simultaneamente invoca contexto e fornece contexto para outra fala; isto é, a própria fala constitui um recurso dos mais importantes para a organização do contexto; 4. conhecimentos prévios; 5. contexto analisado como um modo de práxis interativamente constituído: evento focal e contexto estão numa relação de figura-fundo. Convém observar que o item 3, no qual se diz que a própria linguagem produz contexto, leva-nos à posição de Halliday, para quem, como vimos, o texto produz contexto. Considerando-se o que nos ensinam Butt e Fahey, a posição de Halliday, nesse tocante, expressa-se nos seguintes termos: “This unity [context] of purpose gives a text both texture and structure. (…) a text always occurs in two contexts, one within the other” (Butt e Fahey, 1997, p. 11)65. Os dois tipos de contexto propostos por Halliday - o contexto de cultura e o contexto de situação -, o primeiro dos quais recobre ou inclui o segundo, podem ser entrevistos nos itens 1 e 2. Recordando aqui essa distinção, o contexto de cultura encerra “the differences in forms of adress, in cerimonies, in politeness 64 O frame é um modelo cognitivo, isto é, “um conjunto de conhecimentos armazenados na memória sob certo “rótulo”, sem que haja qualquer ordenação entre eles” (Koch, 2003, p. 72). 65 Esta unidade de sentido [contexto] confere ao texto textura e estrutura (...) um texto sempre ocorre em dois contextos, um dentro do outro. 110 and significant activities between one culture and another” (ibid.id.)66. O contexto de situação, a seu turno, interno ao primeiro, inclui o ‘cenário’, no qual encontram-se os participantes da situação de interação, seus comportamentos, objetos e as palavras produzidas, formando um complexo de relações de tipo variado. Convém ainda atentar para o que se segue, no tocante à relação entre texto e contexto: (...) a relação entre a língua e os seus contextos de uso, ou dito de outra forma, a relação entre um texto e o seu contexto, é de tal forma motivada que, a partir de um contexto, será possível prever os significados que serão activados e as características linguísticas potenciais mais previsíveis para as codificar em texto (Gouveia, 2009, p. 25) Dispensando-se pormenores, não está claro para nós como a distinção estabelecida por Halliday entre contexto de situação e contexto de cultura podePUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA nos ajudar a descrever e explicar os usos dos verbos “ser” e “estar” na perspectiva de PL2E: por um lado, não está claro como o contexto de situação possa dar conta das crenças, pressupostos e conhecimentos partilhados entre os interlocutores; pensá-lo como ‘cenário’ não nos é suficiente para compreender as implicações contextuais envolvidas nas escolhas entre ser e estar, quando articulados a adjetivos, por exemplo; por outro lado, o contexto de cultura, tal como esboçado na LSF, parece ser mais profícuo a uma análise de orientação interculturalista e que se ocupe de aspectos mais gerais relativos ao discurso, donde se segue a preocupação com convenções, atualização da polidez, etc. De qualquer modo, o problema aqui é que nem Halliday nem seus seguidores chegaram a desenvolver uma teoria do contexto. Não está claro, insistimos, como também o contexto de cultura chega a determinar as escolhas linguísticas que fazemos. O componente cognitivo não parece ter sido devidamente contemplado e desenvolvido nos estudos da LSF. É, portanto, em Koch (2006, pp. 23-24), que nos apoiaremos ao operar com a noção de contexto. A autora propõe o conceito de ‘contexto sociocognitivo’, que se situa no interior de uma abordagem sociocognitiva da linguagem, da qual Dijk é um representante. O contexto sociocognitivo, conforme assinalará a autora, é global; por conseguinte, inclui todos os outros tipos de contexto. 66 (...) as diferenças em termos de formas de discurso, cerimônias, polidez e atividades significativas entre uma cultura e outra. 111 Para que duas ou mais pessoas possam compreender-se mutuamente, é preciso que seus contextos cognitivos sejam, pelo menos, parcialmente semelhantes. Em outras palavras, seus conhecimentos – enciclopédico, sociointeracional, procedural etc. – devem ser, ao menos em parte, compartilhados (visto que é impossível duas pessoas compartilharem exatamente os mesmos conhecimentos). Assim é que o contexto sociocognitivo compreende todos os conhecimentos, crenças, valores, etc. representados na memória dos interactantes. Tais conhecimentos (crenças, valores, opiniões) são mobilizados na interação verbal. Disso se segue que a escolha entre ser e estar dependerá da mobilização desses conhecimentos ou crenças pressupostos como compartilhados entre os participantes da interação. Também daí se segue que o falante dirá aquilo que é necessário ou relevante para que o seu interlocutor reconstrua a interpretação PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA desejada. Veja-se um exemplo disso, considerando-se as duas frases que seguem: (11) A praia está boa (12) A praia é boa. Numa situação em que os interlocutores estão desfrutando da praia, à produção de (11) pode subjazer a intenção de comunicar que a praia naquele momento mesmo está agradável, ou seja, ‘boa’. Na perspectiva do falante, ‘boa’ é uma qualidade circunstancial da praia, já que decorrente de uma avaliação que ele faz com base em sua experiência subjetiva circunstancial. No entanto, se esse falante também fosse um desfrutador assíduo da mesma praia há anos e se, nas muitas vezes em que esteve nela, a praia lhe agradou, ele poderia produzir um enunciando como (12), para comunicar que a qualidade de ‘boa’ insere a “praia” na classe ou grupo das praias que ele considera “boas”. O uso de “ser” opera, portanto, uma categorização da entidade ‘praia’, com base numa avaliação feita sobre as condições da praia. Sendo um desfrutador assíduo da praia em questão, é razoável supor que o interlocutor compartilhe com, pelos menos, alguns membros de sua cultura a opinião de que a praia costuma ser boa para banho. O exemplo (13), abaixo, ilustra a situação em que o interlocutor poderia discordar da avaliação feita pelo seu parceiro de comunicação sobre a praia, quando da produção de (11). A discordância, no caso, não se dá em termos da qualidade atribuída a ela, mas em termos do modo como essa qualidade foi atribuída. Em 112 outras palavras, a discordância se dá na escolha da forma mais adequada entre as opções “ser” ou “estar”. (13) Está boa não, ela é boa. A oposição discursiva subjacente ao uso de “ser” e “estar” fica aqui patente. Se o amigo, sem nunca ter ido àquela praia, dissesse (11), e o outro, que é um freqüentador assíduo, o advertisse, dizendo (13), poderíamos concluir que, para este, a escolha de ‘ser’ é mais adequada: a praia tem como característica reconhecidamente constante o fato de ser boa.. O não-frequentador da praia avaliou-a de sua perspectiva atual, circunstancial, já que não dispunha do conhecimento prévio de que (quase) sempre a praia é agradável àqueles que desfrutam dela. Poder-se-ia se tratar de uma praia famosa, que agradando às PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA pessoas que a frequentam, atrai muitos turistas e nativos da região. Nesse caso, o falante que retifica dispõe de um conhecimento sociocultural que falta ao amigo. É este conhecimento sociocultural que lhe garante, inclusive, credibilidade na sua avaliação que, em todo caso, é subjetiva (a qualidade “boa” não está na praia em si, mas é algo atribuído à praia, é um valor projetado e intersubjetivamente negociado). Importa ver que a escolha das expressões linguísticas que nos parecem adequadas ao que pretendemos comunicar estará sempre sujeita à refutação, à rejeição, à retificação; e as “disputas pelo sentido adequado” dependerão dos modos como percebemos/ interpretamos nossas experiências culturais ou de mundo. Compartilhar, ainda que parcialmente, um modelo de mundo (um contexto sociocognitivo) é indispensável para que os significados possam ser negociados; é indispensável para que a própria interação seja levada a bom termo. O amigo não-frequentador poderia até negar que a praia é boa; provavelmente, porém, não seria bem-sucedido em sua empresa argumentativa, visto que lhe faltaria a experiência de assiduidade na presença como desfrutador da praia – experiência esta que lhe asseguraria tomar parte do conhecimento de base comum compartilhado pelos demais membros de uma cultura. 113 4.2. Operadores de categorização, de circunstancialização e de identificação As tentativas de explicar o uso de “ser” e “estar” com base na oposição semântica ‘qualidades inerentes’ e ‘qualidades temporárias’ não dão conta da problemática que, neste trabalho, procuramos identificar e resolver. Além da vagueza que se depreende dessas designações, que nos envolve em dificuldades tais como a de determinar em que medida adjetivos que servem à apreciação de atributos estéticos, como “feio”, “bonito”, “horrível”, etc., exprimem qualidade “inerente”, quando usado com “ser”, ou ainda a de manter a razoabilidade da ideia duração de tempo em que a entidade designada pelo substantivo deve comportar a qualidade (duração esta sugerida pela semântica do adjetivo ‘temporário’), em casos em que a própria semântica do adjetivo exclui uma interpretação que torne PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA válida a ideia de ‘qualidade temporária’ (cf. O jogo está encerrado), aquela oposição não é satisfatória sempre que a escolha entre “ser” e “estar” implica efeitos de sentido. Ademais, ela é evocada, quase exclusivamente, para explicar a ocorrência de “ser” e “estar” articulados a adjetivo, tendo seu poder descritivoexplicativo claramente enfraquecido quando é o que nos ocupa é a ocorrência desses verbos com SN e SP. De passagem, no exemplo que fornecemos entre parênteses, a saber, “O jogo está encerrado”, não há incompatibilidade entre a ideia ‘estado resultante de mudança’, pressuposta no uso de “encerrado” (trata-se de uma mudança definitiva) e a ideia de circunstancialização marcada pelo uso de “estar”. O verbo “estar”, nesse caso, exprime a ideia de ‘estado atual’ ou a circunstância em que se encontra o jogo no momento da enunciação. Se, por um lado, naturalmente, “encerrado” desautoriza uma explicação que apele para a noção de ‘temporário’; por outro lado, se presta a uma explicação que evidencie a circunstancialização no próprio estado-de-coisas designado – circunstancialização esta marcada pelo uso de “estar”. Abandonando aquela oposição na tentativa de explicar os usos de “ser” e “estar”, propomos que estes verbos sejam vistos como operadores (noção que guarda seu valor instrumental) que tornam possível a realização de atividades discursivas de base socicognitiva. Ao verbo “ser”, atribuiremos as funções de operador de categorização e de operador de identificação; ao verbo “estar”, a função de operador de circunstancialização. 114 Ao propor os termos operador de categorização e operador de circunstacialização, para definir a função discursiva que está na base da distinção, para efeito de uso, entre “ser” e “estar”, queremos com eles sugerir que as atividades de categorizar e circunstancializar uma qualidade designada pelo adjetivo se realiza no âmbito discursivo. A essas atividades subjaz a intenção ou o propósito do falante. É o falante que, ao escolher “ser”, opera uma categorização do sujeito com base na qualidade predicada dele. É também o falante que, ao escolher “estar”, opera uma circunstancialização da qualidade predicada do sujeito. A liberdade do falante na escolha entre a operação de categorização com “ser” e a de circunstancialização com “estar” será limitada pela natureza semântica do adjetivo predicador. Neves (2000) distingue entre “adjetivos classificadores ou classificatórios” e “adjetivos qualificadores”67. Essa distinção nos importa porque ela nos permite sistematizar o uso dos referidos verbos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA relativamente à tipologia do adjetivo. Assim é que se pode dizer que os adjetivos classificadores, porque “colocam o substantivo que acompanham em uma subclasse, trazendo em si uma indicação objetiva sobre essa subclasse” (Neves, 2000, p. 185) combinam-se com “ser” e quase nunca com “estar”. É justamente porque o verbo “ser” é um operador de categorização que tais adjetivos de tipo “classificatório” podem-se combinar com ele, e raramente com “estar”. Por outro lado, os adjetivos qualificadores, porque “têm algumas qualidades ligadas ao próprio caráter vago que se pode atribuir à qualificação” (Neves, ib.id.), admitem tanto “ser” quanto “estar”. Antes de ilustrarmos o que dissemos até aqui e explicitarmos de que modo operam os verbos “ser” e “estar” entendidos, no âmbito discursivo, como “operadores”, convém definir aqueles três termos que enunciamos no limiar desta seção. O verbo “ser” é um operador de categorização porque constitui um recurso pelo qual o sujeito é inserido numa categoria ou classe definida pela qualidade atribuída a ele na predicação. O verbo “estar” é um operador de circunstancialização porque constitui um recurso graças ao qual, na atribuição da qualidade ao sujeito, essa qualidade é entendida como circunstancial. No primeiro caso, a qualidade predicada define não só a entidade ou objeto designado pelo sujeito, mas toda uma classe da qual essa entidade ou objeto faz parte. No 67 Destinaremos uma seção para o tratamento desses tipos de adjetivos, com base na lição de Neves (2000), no capítulo em que analisaremos o uso de “ser” e “estar” com sintagmas adjetivais. 115 segundo caso, a qualidade não define, tão só caracteriza, ou é interpretada como adquirida pelo sujeito circunstancialmente. É com base nessa distinção que podemos explicar por que certos adjetivos cujas qualidades designadas podem ser tomadas numa perspectiva “objetiva” combinam-se com “ser” e não (ou quase nunca) com “estar”. Considerem-se as seguintes ocorrências: (14) O evento é privado. (15) O muro é alto. (16) O muro está alto. (17) O menino é inteligente. O exemplo (14) ilustra a situação em que o adjetivo “privado” pode ser tomado numa perspectiva mais “objetiva”. Em outras palavras, não se trata de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA uma qualidade atribuída ao sujeito em função de uma avaliação subjetiva do falante. O uso de “estar”, nesse caso, é inaceitável, porquanto o adjetivo é do tipo classificatório e, como tal, combina-se com “ser”. Em termos mais precisos, “privado” é um predicador que seleciona “ser” e não “estar”. Os casos (15) e (16) são diferentes. Nesses casos, temos um predicador “alto”, que designa uma qualidade que pode ser representado na predicação como uma qualidade ‘definitiva’ ou ‘não-definitiva’ do sujeito (tomando-se o plano estritamente sintático-semântico da predicação). Como não é um adjetivo “classificatório”, mas “qualificador”, a atribuição dele ao sujeito se presta a uma avaliação mais ou menos subjetiva do falante. O adjetivo “alto” – que é o predicador – admite tanto “ser” quanto “estar”. A escolha entre um verbo e outro dependerá da situação comunicativa. Por exemplo, um engenheiro após inspecionar uma obra pode se deparar com um muro e concluir que “ele está alto” (resultado de mudança); alguém pode, por outro lado, passeando pela calçada avistar uma casa e dizer “O muro daquela casa é alto”. No primeiro caso, o engenheiro dispunha do conhecimento prévio de que o muro estava sendo construído, ou seja, ele estava ciente do processo de construção do muro, estava ciente de que se trata de um muro específico (por exemplo, o da casa que ele planejou). No segundo caso, o transeunte simplesmente vê um muro e o classifica como um muro pertencente à classe dos “muros altos”. Em outras palavras, nesse momento, ele insere o “muro” na categoria dos muros que considera alto. É claro que nada impediria que ele 116 escolhesse “estar” e produzisse “Esse muro está alto!”, mas, nesse caso, teria ativado (e marcado linguisticamente) o conhecimento de mundo geral segundo o qual esse muro, como seja um ‘dado’ artificial da realidade, foi construído pela força do trabalho humano, a saber, ele é produto de uma atividade humana (portanto, resultado de mudança). O que determina o uso de um ou outro verbo é a intenção do falante de atribuir a qualidade designada pelo adjetivo “alto” por meio de categorização ou de circunstancialização. Escolhendo “ser”, o falante opera uma categorização do sujeito com base na qualidade predicada dele; escolhendo “estar”, opera uma circunstancialização dessa qualidade predicada do sujeito. Considerando-se, por outro lado, o caso (17), e tendo em conta que aí figura o adjetivo “inteligente”, que denota uma qualidade normalmente interpretada como inerente a todo ser humano normal, o uso do “ser” (que introduziria uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA ‘qualidade definitiva’) parece ser, via de regra, o mais aceitável entre os falantes nativos de português. Embora a inteligência seja uma propriedade que desenvolvemos ao longo de nossas experiências de mundo, o ser humano nasce pré-disposto a ela. A própria natureza semântica do adjetivo pode repelir o uso de “estar”, que indicaria ser possível ter a inteligência num determinado momento, e não dispor dela noutro, como se ela fosse algo episódico. Sucede diferente com o adjetivo “esperto” que, a despeito de situar-se no mesmo campo semântico de inteligência, não é sinônimo de inteligente, designando, portanto, uma qualidade de alguém que é hábil, astuto, podendo sê-lo numa dada circunstância, donde se segue a possibilidade de usar “estar” (cf. O menino está esperto). Devemos ponderar, contudo, sobre a possibilidade da ocorrência de um enunciado como (17a), produzido numa situação em que uma mãe fala, com satisfação, sobre seu filho a uma amiga: (17a) Ele está muito inteligente. A explicação para a ocorrência de “estar” com “inteligente”, a despeito do que dissemos sobre a semântica desse adjetivo anteriormente, parece repousar sobre a hipótese segundo a qual se o adjetivo, ainda que seja, normalmente, considerado como denotativo de uma qualidade inerente ou passível de categorização do sujeito, permitir uma leitura ‘processual’, de tal modo que o 117 emprego de “estar” marca uma etapa no desenvolvimento desse processo, o uso desse verbo encontrará aceitação entre os falantes nativos de português. Gostaríamos de insistir na importância de atentar para a semântica do predicador (o adjetivo), a fim de explicar a flutuação entre os verbos “ser” e “estar” em casos em que, via de regra, apenas um dos verbos seria mais largamente aceito. Uma das generalizações mais notáveis sobre o uso de tais verbos com adjetivos diz respeito à ocorrência sistemática de “ser” com adjetivos ligados à identidade ou a atributos morais. Veja-se, por exemplo, o caso do adjetivo “honesto”. Uma frase como (18), em que figura “ser”, é o tipo mais usual entre os falantes nativos de português: (18) Pedro é honesto. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA O predicador “honesto” seleciona “ser” e tenderia a rejeitar “estar”. Pelo uso de “ser”, o falante insere o sujeito na classe das pessoas que ele considera “honestas”. Devemos reconhecer, contudo, a possibilidade de ouvirmos uma frase como (18a): (18a) Pedro está tão honesto (ultimamente) É notável, contudo, a ironia que ela pode comportar, além, é claro, do pressuposto que constitui a condição mesma de sua enunciação, qual seja, o de que Pedro não era sempre honesto, ou não é, normalmente, reconhecido como tal. O uso de “estar”, nesse caso, é adequado para marcar justamente esse pressuposto, já que deixa entrever uma mudança de estado, de modo de ser/ comportar-se de Pedro. Veja-se, agora, o exemplo seguinte: (19) O evento é privado. Nesse caso, ocorre um adjetivo de sentido descritivo (cf. Azeredo, 2002) ou classificatório (Neves, 2000). Adjetivos de sentido descritivo ou de função classificatória selecionam “ser” e não “estar” (cf. O território agora é asiático; Estas escolas são públicas). Outros exemplos são os que seguem: 118 (20) A escola é particular. (21) Esta decisão é política. (23) O acordo estabelecido foi internacional. (24) Esse regime é comunista. O que há em comum nas qualidades designadas por esses adjetivos do tipo descritivo ou classificatório é que elas são encaradas como propriedades objetivas das coisas ou objetos às quais são atribuídas. Certo nos parece que elas definem, na atribuição, o conteúdo dos seus respectivos sujeitos, de tal sorte que não permitem uma interpretação que perspective sua circunstancialização (ou seja, que as encare como qualidades atribuídas circunstancialmente, segundo o ponto de vista do enunciador). Do exposto até aqui, esperamos tenha ficado clara a relação entre a função PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA discursiva de categorização, mediante o uso de “ser”, e o conteúdo ‘definitivo’ deduzido da relação entre a qualidade designada pelo adjetivo e o sujeito a que se refere; por outro lado, clara esperamos que esteja a relação entre a função discursiva de circunstancialização, mediante o uso de “estar”, e o conteúdo de ‘não-definitivo’ (circunstancial) inferido da relação entre aquela qualidade e o sujeito. A lição segundo a qual “ser” serve à atribuição de qualidades inerentes; e “estar”, à atribuição de qualidades não-inerentes será de todo rechaçada por nós. À medida que ponderamos sobre ela, nos vimos envolvidos em algumas questões muito mais de ordem filosófico-antropológica do que propriamente linguística. Por exemplo, se dissermos “Pedro é bonito”, podemos entender “bonito” como uma qualidade inerente a Pedro, ainda que reconheçamos que padrões de beleza são determinados culturalmente? É claro que essa pode ser uma questão de menor importância para os nossos propósitos (e podemos evitá-la), mas isso depende de que assumamos que, ao usar o verbo “ser” com um adjetivo como “bonito”, que caracteriza o sujeito com base numa apreciação positiva no domínio estético, o falante quer tão-só dizer que, na sua perspectiva, Pedro é uma pessoa que ele incluiria na classe das pessoas que ele, falante, considera “bonitas”. Estamos cientes de que essa discussão nos levaria longe demais, especialmente se 119 considerarmos outro exemplo como “Pedro é magro”.68 Nesse caso, num primeiro momento, somos levados a admitir a magreza como uma propriedade física acessível à experiência sensória comum a qualquer pessoa (mais facilmente objetivada); por outro lado, o fato de haver pessoas que sofrem de bulimia é indicativo do fato de que a realidade experienciada parece ser mais produto de nossos cérebros moldados culturalmente, não sem o concurso de uma complexa relação entre percepção-cognição e linguagem, do que um ‘dado’, algo pronto que se nos impõe à consciência para que seja avaliado e classificado. Não precisamos de demasiados floreios filosóficos para constatar, por experiência, que as pessoas divergem na opinião sobre o que é ser magro e o que é ser gordo, por exemplo. Ao preferir adotar a noções de ‘qualidades (tomadas como) definitivas’ e ‘qualidades (tomadas como) não-definitivas’, evitamos as complicações decorrentes da vagueza do conceito de ‘inerência’ (e seu contraditório), como as PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA sugeridas acima. Destarte, por exemplo, em face de ocorrências como “O ser humano é bípede” e “O ser humano é ingrato”, evitamos especular sobre qual dos dois adjetivos designam uma qualidade mais inerente (haveria graus de inerência?). Claro nos parece que “bípede” é mais inerente (já que a qualidade está pressuposta na própria definição do sujeito “ser humano”) do que “ingrato”. Ademais, a primeira é mais objetivável do que a segunda, a qual resulta de uma avaliação subjetiva do enunciador sobre a natureza humana. Para nós, “bípede” e “ingrato” são qualidades definitivas do sujeito “ser humano”.69 As qualidades (tomadas como) definitivas serão introduzidas por “ser”; as (tomadas como) “nãodefinitivas”, por “estar”. É forçoso reconhecer – e estamos atentos a isto neste trabalho – que, malgrado o fato de ser válido descrever e explicar os usos de “ser” e “estar” com base na oposição entre ‘qualidade tomada como inerente’ e ‘qualidade tomada como não-inerente’, a ocorrência de certos advérbios podem suspendê-la. Por exemplo, um advérbio como “hoje”, referindo-se ao dia mesmo em que uma 68 A história da filosofia nos legou um caso bastante emblemático dessa problemática, encarnada na figura de Nietzsche, mestre da suspeita e demolidor dos “ídolos” da racionalidade que remonta aos antigos gregos, desde o aparecimento de Sócrates. Particularmente interessante foi o fato de ele ter notado bem que as línguas seccionam a realidade de modo arbitrário, que elas não permitem acesso a uma verdade absoluta ou transcendente e que as qualidades que dizemos reconhecer nas coisas e nos seres não estão neles, mas são atribuídas a eles pelos homens. 69 O adjetivo “bípedes” só admite o uso de “ser”; ao contrário, “ingrato” parece admitir “estar” quando o sujeito não é genérico (p. ex. Meu primo está muito ingrato). 120 enunciação acontece – portanto, com valor dêitico -, parece ser incompatível com o uso de “ser”, numa frase como (12a): (12a) (?) A praia é boa hoje. No entanto, se for usado no sentido de ‘atualmente’ ou ‘hoje em dia’, “hoje” admite a co-ocorrência com “ser” ou “estar”: (12b) Hoje a praia é boa (em outros tempos, não era). (25) Hoje, a faculdade está/ é melhor. Note-se ainda o uso de “sempre”, nos enunciados abaixo: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA (26) O café neste bar é sempre quente. (27) O café neste bar está sempre quente. O advérbio suspende a oposição entre “ser” e “estar”, relativamente à atualização dos conteúdos de inerência e não-inerência. Por outro lado, o mesmo advérbio pode afetar a semântica de “estar”, de tal sorte que o adjetivo que se lhe segue torna-se uma qualidade constante da entidade representada pelo sujeito. (28) Eu estou cansado hoje. - Não, você está sempre cansado. A esta altura, convém insistir que dizer serem os verbos por nós considerados destituídos de significado lexical não redunda serem semanticamente esvaziados. Devemos ter em conta que tais verbos, se, por um lado, não instauram um estado-de-coisas, tal como sucede com verbos como “comer” e “beber”, cujo significado prevê uma estrutura relacional; por outro lado, constroem, na combinação com o predicador, o significado da oração. O verbo “estar”, por exemplo, veicula conteúdos pressupostos. Ademais, esses verbos entram a fazer parte de esquemas semântico-sintáticos exclusivos: o verbo “ser”, por exemplo, é usado em enunciados cujo predicado encerra uma definição do sujeito, de tal sorte que os dois SNs são co-referenciais (cf. O osso é o tecido 121 conjuntivo constituído por células; Paulo é o nosso professor de português). O verbo “estar” não figura em tal esquema. Quando empregado com adjetivos que podem ocorrer também com “ser”, indica que a qualidade designada por esses adjetivos é vista como circunstancial ou não-categorial (cf. O céu está azul; Este menino está esperto). Também o verbo “estar” implica pressupostos que não são depreendidos do uso de “ser”, como em “o carro está lento” em contraste com “o carro é lento”. No primeiro caso, pressupõe-se ‘mudança de estado’; no segundo, essa pressuposição está excluída. Por outro lado, com “ser”, a propriedade ‘lento’ define a natureza do carro ou, se preferirmos, é atribuída a ‘carro’ como uma propriedade inerente. Do ponto de vista discursivo, o enunciador que produz “o carro é lento” insere o “carro” a que se refere na classe dos carros que considera “lentos”, em virtude do uso do verbo “ser”. Cuidamos importante frisar que, ao falar em categorização mediante o uso de “ser” com adjetivos, buscamos situá-la PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA no nível discursivo, por entendermos que as categorizações não são estáveis, são dependentes da intenção dos usuários da língua, que as fazem no discurso, com vistas a atender seus propósitos comunicativos. É preciso, portanto, reconhecer que escolher entre “estar lento” e “ser lento” é orientar o discurso no sentido de conclusões diferentes, relativamente à qualidade do carro, tendo elas efeitos que podem desagradar ao dono e motorista. Por exemplo, se dizemos que “o carro é lento” podemos querer sugerir que o dono compre outro carro (mais do que simplesmente o conserte), ou podemos sugerir que valorizamos o poder aquisitivo, ou mesmo as pessoas que têm poder aquisitivo para comprar um carro melhor. Decerto, quem diz a alguém que seu carro é lento pode desagradar, justamente porque sugere que essa pessoa não pôde comprar um carro melhor e que o enunciador valoriza mais quem tem poder aquisitivo, etc. Numa palavra, o que queremos enfatizar é que, numa abordagem que considera a língua em uso, o tratamento dos usos de “ser” e “estar” deve ir além da oposição entre ‘qualidade (tomada como) definitiva’ e ‘qualidade (tomada como) não-definitiva’, em que se fundam, para compreender os efeitos argumentativos de suas escolhas no âmbito do discurso. Quando o predicador o permite, as escolhas entre “ser” e “estar” nem sempre são “conscientes” (e isso dá margem a toda sorte de tensões, conflitos, divergências). Ao usar a língua, não escapamos aos conflitos; usá-la é, de certo modo, instituir uma arena, em que vozes conflitam entre si e significados são 122 constantemente produzidos e negociados, tendo em vista um contrato comunicativo, tacitamente, estabelecido. Vale dizer também que, numa abordagem funcionalista, além dos efeitos argumentativos, envolvidos na escolha entre “ser” e “estar”, a atribuição de qualidades por intermédio do uso desses verbos deve ser pensada como decorrente da perspectiva pela qual o enunciador organiza sua experiência de mundo. Ao escolher entre “ser” e “estar”, no caso ilustrado, o enunciador escolhe entre duas formas de codificar sua experiência de mundo: numa, ‘lento’ é uma propriedade que se relaciona a “carro” de modo circunstancial (ele, enunciador, a percebe como indicativa de um estado do carro num dado momento); noutra, essa mesma propriedade é considerada definitiva do ‘carro’, uma propriedade que o define ou o tipifica. Na visão do enunciador, trata-se de um carro do tipo ‘lento’. Essas considerações nos levam a pensar os usos de “ser” e “estar” de um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA ponto de vista textual-discursivo: da mesma forma que os adjetivos selecionados revelam atitudes de valoração / avaliação ou pontos de vistas dos enunciadores, a escolha entre “ser” e “estar” junto a determinados adjetivos (que admitem a coocorrência com uma ou outra forma verbal) expressa o modo como o enunciador atribui a qualidade às entidades predicadas. Do ponto de vista argumentativo, um enunciado como “o carro é lento” serve melhor à desqualificação do veículo, caso fosse a intenção do enunciador advertir o motorista de que o veículo não satisfaz as necessidades de ambos numa dada ocasião, por exemplo. Finalmente, visto como um operador de identificação, o verbo “ser”, em contraste com “estar”, é a forma responsável por estabelecer uma relação de identidade ou co-referência entre dois sintagmas nominais precedidos de um artigo definido ou pronome demonstrativo (cf. O homem de que lhe falei é o meu pai). O verbo “ser” é a única forma usada nas orações formadas por dois SNs precedidos de determinantes cuja referência é definida. Entendido como um operador de identificação, o verbo “ser” estabelece uma relação de identidade referencial entre dois SNs, de modo que o falante é capaz de inferir que a entidade designada pelo segundo SN é a mesma descrita no primeiro SN (sujeito). 123 4.3. Transpositor e predicador Destituídos de significado lexical e não exibindo comportamento valencial70, os verbos “ser” e “estar”, nas ocorrências consideradas por nós, cumprem, no nível sintático, a função de transpositores, a saber, transpõem a função de predicador ao constituinte que se lhes segue imediatamente na estrutura sintática. Cremos ser necessário, porém, definir o fenômeno de transposição, bem como indicar os recursos linguísticos que a realizam. Em Iniciação à Sintaxe do Português (2000), Azeredo dá-nos a saber a seguinte definição de transposição: “a transposição é (...) um processo sintagmático de formação de sintagmas ou constituintes de distribuição distinta das entidades a partir das PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA quais se formam” (Azeredo, 2000, p. 44). Acrescenta ainda: A transposição é um meio de revelar relações associativas sistemáticas que o locutor/ receptor é capaz de estabelecer entre as unidades da língua, como entre a pergunta direta “Quem são vocês?” e a indireta “Quero saber quem são vocês?, ou entre as formas do gerúndio, do particípio e do infinitivo entendidas como realizações aspectuais de um mesmo lexema (p. 45). O autor nos chamará a atenção para a inconveniência de pensar a transposição como um processo de derivação (“dar origem a”), já que, do ponto de vista descritivo, o estabelecimento de tal relação derivacional é impossível. Assim é que a transposição “constitui um meio de relacionar estruturas sincrônicas entre si e atuantes na língua” (ib.id.). Em Fundamentos de gramática do português (2002, p. 211), o linguista esclarece-nos ainda a respeito da transposição: A transposição é um processo gramatical, e os transpositores são unidades pertencentes a uma lista finita, por meio das quais se obtém, todavia, um número infinito de construções a serviço da expressão dos conteúdos que o ser humano é capaz de comunicar e de compreender. Mais adiante, tendo observado a produtividade dos processos de formação de palavra, da qual é ilustrativo o sufixo “-dor”, para a formação de substantivos a partir de bases verbais, acrescenta, comparativamente: 70 Queremos com isso dizer que eles não estão habilitados a determinar um número de lugares vazios a serem preenchidos por argumentos. Portanto, não são eles predicadores. 124 A transposição tem essa mesma capacidade. O número de orações da língua a que podemos juntar quando ou embora para criar sintagmas adverbiais é infinito, assim como é infinito o número de orações aptas a receber um que (...). A transposição constitui, portanto, um mecanismo que permite expandir infinitamente os enunciados, mediante a utilização de um número limitado de meios – os transpositores – e de um número de relações semânticas fundamentais (ib.id., ênfase no original) (ib.id.). A lista dos meios sintáticos pelos quais a transposição se expressa é a seguinte: conjunções integrantes “que” e “se”; pronomes/advérbios interrogativos; pronomes indefinidos; determinantes; afixo “-r” de infinitivo. Tanto as conjunções referidas quanto os pronomes introduzem orações subordinadas: a transposição consiste, nesses casos, no processo pelo qual a oração, transposta ao nível de um SN, passa a cumprir a função sintática própria de um substantivo. Analogamente, com as orações introduzidas pelo pronome relativo “que” (e suas variantes), a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA transposição se dá, na medida em que a oração, transposta para o nível do sintagma, passa a cumprir a função de um adjetivo. Um determinante pode, pelo processo de transposição, habilitar qualquer item lexical a cumprir a função própria de um substantivo. Veja-se, por exemplo, o artigo que, uma vez anteposto a uma unidade linguística de valor adverbial, como “não”, torna-a não só um objeto de referência, como também passível de ter uma distribuição própria de um substantivo (cf. O não é um advérbio.). A desinência “-r” de infinitivo permite que essa forma do verbo possa funcionar como um substantivo ou adjetivo, caso em que preenche a posição de sujeito, complemento ou predicativo (cf. Viver é lutar/ Ela quer sair). É interessante notar que Azeredo oferece o exemplo “Comecem a pular” (v. p. 61) como um caso de transposição por “-r”. Parece-nos que ele considera “pular” um complemento de “começar”, contrariando a lição tradicional que vê aí uma locução verbal cujo verbo principal é o infinitivo. Nesse caso, faz sentido dizer que “pular” sofreu transposição, para que pudesse preencher a posição típica de um substantivo, haja vista à impossibilidade de dizermos “*Comecem a pulem” (mas podermos dizer “Comecem o jogo.). Para que um verbo possa preencher o ambiente que, de outro modo, poderia ser ocupado por um constituinte como “o jogo” (Comecem o jogo), é necessário anexar-lhe “-r”, transpondo-o à função própria de um substantivo; ou, dito doutro modo, tornandoo, por transposição, um SN (na função de complemento). 125 Não podemos deixar de mencionar as preposições como transpositores, por excelência, visto que elas servem para tornar possível que um substantivo exerça a função sintática de um adjetivo (cf. A casa de praia / o livro de filosofia). Azeredo considerará ainda como transpositores os verbos “ser”, “ter” e “haver”, em casos em que se prendem a SN e SAdj e infinitivo, respectivamente. Segundo o autor, “o único papel deles é servir de instrumento para que um constituinte não verbal possa funcionar como núcleo do predicado, isto é, como predicador” (p. 70). Os verbos “ter” e “haver”, enquanto transpositores, se articulam a particípios, tornando-os núcleo do predicado. Eles se flexionam para expressar as categorias de tempo, modo, número e pessoa (exceto nas formas de pretérito perfeito, sendo agramaticais construções como “*houve / tive comprado”). A justificativa dada pelo autor, para que “estar” não esteja entre os verbos transpositores aqui referidos, é que esse verbo é um verbo intransitivo, de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA tal modo que ele não o distingue sintaticamente de verbos como “ficar”, “andar” e “continuar” seguidos de SP ou de gerúndio. Atentemos para o que se segue: (...) cremos que mesmo estar é um verbo intransitivo, uma vez que não há motivos sintáticos para considerá-lo diferente de ficar, andar, continuar nas construções em que esses verbos são seguidos de SPep ou de gerúndio. Estar tem distribuição mais restrita que ser. Não há ocorrência sintática de estar que lhe seja exclusiva, propriedade que, justamente, caracteriza os verbos transpositores (Azeredo, 2002, p. 71). Como adotamos uma perspectiva teórica que toma a semântica como nível base de análise, não encontramos razões para destituir o verbo “estar” da função de transpositor. Note-se que o autor baseia-se em critérios sintáticos (“não há motivos sintáticos”, “tem distribuição mais restrita que ser”) para incluí-lo entre os verbos intransitivos. Para nós, o critério distribucional não é determinante para a inclusão do verbo “estar” em outra classe. Ademais, em Lima (2001, p. 252), encontramos outro tipo de complemento verbal, que o autor chama “complemento circunstancial”, a saber, “um complemento de natureza adverbial – tão indispensável à natureza do verbo quanto, em outros casos, os demais complementos verbais”. Entre os exemplos referidos, topa-se a construção “estar à janela”, na qual “à janela” é, para o autor, um complemento circunstancial de “estar”. Azeredo nos diz que em Lima (1937) o verbo “estar” era considerado um 126 verbo intransitivo, quando seguido de predicativo; não é essa, contudo, a lição do gramático, na edição de 2001 de sua obra. Claro está que, para considerar o verbo “estar” intransitivo, Azeredo não faz apelo ao aspecto semântico, visto que, se assim procedesse, contradiria o que nos ensina uma longa tradição gramatical a respeito dos verbos intransitivos, ou seja, verbos que, tendo sentido completo, dispensam complemento. Supomos que Azeredo não defenderia a ideia de que, numa oração como “estou em casa”, o verbo “estar” tem sentido completo. Claro nos parece que o seu sentido depende do constituinte que se lhe segue. Assim, o constituinte “em casa” é, considerada a perspectiva de Lima (2001), acima referida, um complemento circunstancial. O verbo “estar”, nesse caso, é um verbo transitivo circunstancial. Segue-se do exposto que o verbo “estar” intransitivo, para Azeredo, transitivo circunstancial, para Lima, não é o mesmo verbo “estar”, tradicionalmente chamado “de ligação”, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA em casos como “O café está quente”. De nossa parte, o verbo “estar” não é nem intransitivo (porque não é semanticamente pleno), nem transitivo circunstancial (porque não o consideramos capaz de exibir comportamento valencial). Estamos interessados na investigação dos fatores semânticos e pragmáticos (entenda-se “contextuais”) que determinam a escolha entre “ser” e “estar”. Nesse sentido, à semelhança de “ser”, o verbo “estar” não é responsável pela predicação, delegando essa função ao constituinte que se lhe segue à direita. A noção de “predicar”, a seu turno, encerra as ideias de ‘atribuição de propriedades’ e ‘estabelecimento de relações entre termos’. A predicação, portanto, é o resultado da aplicação de determinadas propriedades a certo número de termos (Neves, 2000). O predicador é o elemento fundamental responsável pela predicação. O predicador cumpre as seguintes funções: a) determina a classe gramatical do argumento; b) faz seleção de restrição quanto aos traços semânticos desse argumento; c) é responsável por determinar a ocorrência de “ser” ou “estar”. Comparem-se os casos a seguir: 127 (29) O ministro disse a verdade. (30) O ministro está doente. Em (29), o verbo “dizer”, encerrando uma estrutura relacional do tipo “X DIZER Y”, estabelece uma relação entre o sintagma nominal “o ministro” (sujeito) e o sintagma nominal “a verdade” (objeto). Esse verbo não só prevê, em sua semântica, os espaços correspondentes a X e Y (preenchidos pelas formas “ministro” e “verdade”), como também faz restrição quanto ao traço semântico que deve comportar o primeiro termo (argumento) X, ou seja, esse termo deve incluir a propriedade semântica [+ hum], por força da ocorrência de “dizer”. Em (30), a seu turno, embora possamos dizer, corretamente, que haja uma relação entre “o ministro” e “doente” mediante a ocorrência de “estar” (que, por isso, tradicionalmente, é entendido como “verbo de ligação”), não é lícito PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA entendê-lo como o responsável pela ocorrência do termo que se lhe segue, tampouco do termo que se lhe antepõe. Destituído de significado lexical, tal verbo se insere em estruturas sintático-semânticas bem variadas, donde se segue ser ele desabilitado para determinar a natureza semântica do seu argumento (sujeito). Vejam-se, nesse tocante, os exemplos abaixo: (31) *A pasta está doente (31a) A pasta está suja (32) O relógio está com defeito. (32a) * O ministro está com defeito. Os exemplos acima patenteiam o fato de que as ocorrências de “a pasta”, “o relógio” e “o ministro” são determinadas pelos elementos que se dispõem à direita do verbo “estar”. O verbo “estar” admite o uso de substantivos [+ /- anim], desde que satisfeitas as exigências semânticas dos elementos que lhe vêm pospostos. 4.4. O predicador como núcleo Em Iniciação à Sintaxe do Português (2000, pp. 68-69, grifo nosso), Azeredo esclarece-nos sobre a distinção entre predicadores e transpositores: “(...) os predicadores são núcleos do predicado; os transpositores introduzem outros 128 constituintes (SAdj, SPrep, SN, SAdv, Particípio), que assim podem funcionar como predicadores (...)”. Ao transpor à função de predicador os constituintes colocados à direita, os verbos ser e estar também lhes conferem a posição de núcleo do predicado. Assim é que os sintagmas nominal, adjetival e preposicional, destacados em (19), (20) e (21), respectivamente, são predicadores: (19) Ana Luiza é linguista. (20) O mar está calmo. (21) O vinho é da Itália. O núcleo não só comporta significado lexical, como também, na função de predicador, determina a estrutura sintático-semântica da oração. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA Cumpre dizer que o predicador pode ou selecionar um dos verbos, por exclusão do outro; ou pode admitir o uso de um ou outro, caso em que só o contexto sociocognitivo poderá explicar a escolha de um deles. 4.5. O artigo no sintagma nominal na função de predicador Antes de nos ocuparmos com a análise das amostras de nosso corpus que incluem construções em que se acha “ser” ou “estar” articulado a um sintagma nominal na função de predicador, mister se faz lançar olhares sobre a forma do sintagma nominal que desempenha essa função, com vistas a melhor compreender a distinção proposta por Halliday (1994) entre os modos ‘atributivo’ e ‘identificador’71 dos processos relacionais de “ser”. Cremos que a compreensão dessa distinção não pode escusar o reconhecimento de uma especificidade do português, no tocante à forma do sintagma nominal, qual seja, a possibilidade de, nessa língua, ocorrer um substantivo sem o acompanhamento de um artigo indefinido (cf. Ele é professor/ He is a teacher). Em linhas gerais, o artigo indefinido difere do artigo definido por sua natureza não-fórica (Neves, 2000, p. 513). Ele introduz um sintagma nominal que não faz referência a uma pessoa ou coisa, mas faz referência à classe particular a que essa pessoa ou coisa pertence. Com bastante frequência, o artigo indefinido 71 Tradução que nos parece mais adequada para a forma “identifying”, proposta pelo autor. 129 tem um uso não-referencial, visto que seu escopo abriga qualquer membro de uma classe. Isso, evidentemente, não significa que ele não tenha um uso referencial. Os exemplos que se seguem, criados por nós, ilustram os dois usos do artigo indefinido: (37) Não consigo acreditar em uma pessoa que não goste de cachorro. (38) Não consigo acreditar em uma pessoa que não gosta de cachorro. Em (37), a ocorrência dos verbos “acreditar” e “gostar” no modo subjuntivo sugere que, embora seja um fato possível a existência de pessoas que não gostam de cachorro, não se trata de uma pessoa específica. O uso do artigo “uma” não singulariza. Em (38), por outro lado, a própria existência da pessoa que não gosta de cachorro é pressuposta como fato, e o artigo “uma” singulariza. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA Cotejado ao uso do artigo definido, que figura em sintagmas nominais cujo domínio referencial inclui um referente conhecido dos interlocutores, o artigo indefinido se acha em sintagmas indeterminados, que podem ser de dois tipos: “indeterminado específico” e “indeterminado não-específico” (Neves, 2000, p. 516). No sintagma nominal indeterminado específico, o falante consegue identificar um referente, mas seu interlocutor não. No sintagma nominal indeterminado não-específico, nem um nem outro consegue identificar o referente. Seguem-se os exemplos abaixo72: (39) Hoje, encontrei um amigo de infância. (40) Preciso urgentemente comprar um vestido. Em (39), “um amigo de infância” encerra uma informação conhecida do falante, mas não do ouvinte. Em (40), nem o falante nem o ouvinte identificam o referente de “um vestido”. Consoante ensina Neves (p. 519), na função de predicativo (lê-se “predicador”), o artigo indefinido pode encetar um sintagma nominal que expressará um atributo do sujeito, caso em que seu uso é não-referencial. É o substantivo núcleo, precedido do artigo indefinido, que expressará o atributo. A 72 Exemplos citados aqui foram cunhados por nós. 130 função do substantivo assemelha-se à de um adjetivo, caso em que é um elemento classificador ou qualificador. Cite-se o seguinte exemplo: (41) Ele é um médico. Neste exemplo, importa ver que “um cavalheiro” indica a classe a que a pessoa referida pelo sujeito “ele” pertence. Como procuraremos demonstrar, a função classificadora é desempenhada pelo verbo “ser”, em contraste com “estar”. Note-se, de passagem, que o constituinte “um médico” encerra um atributo que constitui um traço da identidade da pessoa referida por “ele”. Também veremos que tanto sintagmas nominais quanto sintagmas adjetivais que designam atributos referentes à identidade selecionam, preferencialmente, “ser” (quase nunca “estar”)73. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA Ao exemplo (41), pode corresponder um exemplo como o de (42), caso em que o substantivo não aparece precedido de artigo. Segundo Neves (ib.id.), nesse caso, o substantivo expressa uma característica do sujeito. (42) Ele é #médico. No seu uso referencial, o artigo indefinido se aplica a um indivíduo que pertence a uma classe particular. O exemplo (43), a seguir, ilustra essa ocorrência: (43) Neymar é um jogador brasileiro de futebol. Observa Neves que, nesses casos, “estabelece-se uma predicação equitativa” (p. 520), de tal forma que se poderia substituir o verbo “ser” por um sinal de igualdade (=). Sem pretender esgotar o assunto, convém dizer algumas palavras sobre o emprego do artigo definido. Ele figura em sintagmas nominais que encerram uma informação conhecida dos interlocutores. Para a sua ocorrência, são determinantes a intenção do falante e o modo como ele pretende codificar sua experiência de mundo. Evidentemente, não se pode deixar de considerar aí a importância das 73 Isso parece ser verdade para a maioria esmagadora das ocorrências de atributos desse tipo. Casos como “ele está professor” não chegam a constituir um uso corrente no português brasileiro. 131 circunstâncias linguísticas ou não envolvidas na enunciação; delas depende também o uso desse tipo de artigo. O artigo definido pode fazer uma “referência direta”, caso em que o falante se refere a alguma coisa ou pessoa presente na situação de comunicação; e pode fazer uma “referência indireta”, caso em que a ocorrência do artigo é extremamente dependente do conhecimento de mundo partilhado entre os interlocutores. Nesse último caso, eles sabem a que entidade se faz referência, mesmo não estando ela presente na situação comunicativa. É consabido que, quando usado em referência endofórica ou textual, o artigo definido introduz sintagmas nominais que apontam para elementos presentes na superfície textual. Quando a expressão referencial remete a um elemento que a precede, diz-se da referência que é anafórica; quando o elemento a que a expressão referencial remete situa-se adiante, diz-se que a referência é catafórica. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA De maneira geral, o artigo definido, usado no singular, particulariza um indivíduo dentre os demais indivíduos de uma classe. O uso referencial genérico desse tipo de artigo é, contudo, possível. Nesse caso, não se aponta um indivíduo em particular, mas toda uma classe. Veja-se o exemplo seguinte: (44) A escola deve ser um espaço destinado ao exercício da autonomia intelectual. Com base no que foi exposto, consideraremos a lição de Halliday sobre os dois modos de processos relacionais, quais sejam o “atributivo” e o “identificador”. 4.6. Processos intensivos Os processos intensivos são um dos três tipos de processos relacionais apontados por Halliday (1994). Um processo relacional inclui uma relação entre uma coisa ou pessoa e um atributo. Orações relacionais servem para classificar ou identificar. São tipicamente realizadas pelos verbos “ser” e “estar” (ou equivalentes que figuram na classe dos tradicionalmente chamados ‘de ligação’). Nos processos intensivos, ocorre mais comumente o verbo “ser”, o qual relaciona 132 dois sintagmas nominais ou um sintagma nominal (sujeito) e um adjetivo. Importa sublinhar que a relação se diz intensiva, porquanto nela o segundo participante expressa algum atributo ou característica que serve à qualificação ou identificação do primeiro participante, o qual funciona como uma espécie de portador da qualidade ou da identidade. Halliday (p. 119) refere como exemplos de orações em que se verificam processos relacionais intensivos, respectivamente, “Tom é o líder” e “Sara é inteligente”. Para os nossos propósitos, vamo-nos cingir aos processos intensivos em que se nota a relação entre dois sintagmas nominais. É digno de nota, entretanto, o que nos diz o autor do significado de “Sara é inteligente”. Segundo ele, essa oração significa que Sara é “um membro da classe dos inteligentes” (p. 120). Sua interpretação corrobora nossa proposição segundo a qual o verbo “ser”, sendo um operador de categorização, serve à inserção da entidade designada pelo sujeito numa classe ou conjunto cujos membros são PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA caracterizados com base no atributo designado pelo adjetivo. Assim, dizer “Sara é inteligente” significa dizer que ela pertence à classe das pessoas que o falante considera inteligentes. Neste trabalho, serão contemplados os processos intensivos em que figura “ser”, articulando dois sintagmas nominais. Esses processos assumem dois modos de realização: o atributivo e o identificador. É a apresentação desses dois modos que vai nos ocupar doravante. 4.6.1 Processos intensivos: atributivo e identificador Já, de início, Halliday, ao se ocupar com a apresentação dos modos atributivo e identificador dos processos intensivos, dá-nos a saber uma importante diferença entre eles: no modo identificador, há reversibilidade entre os termos da relação; ao passo que, no modo atributivo, essa reversibilidade não é possível. Abaixo, seguem-se os exemplos oferecidos pelo autor (pp. 119-20): (45) Tom é o líder/ O líder é Tom. (46) Sara é inteligente/ * Inteligente é Sara Em (46), o asterisco marca o fato de essa construção não ser, segundo o autor, “sistematicamente relacionada a Sara é inteligente” (ib.id.). Essa não é a 133 única diferença existente entre os dois modos de processos intensivos referidos, conforme veremos. Considerando-se, em primeiro lugar, o modo atributivo, deve-se notar que, nele, há uma entidade a que se relaciona uma qualidade ou classe (p. 120). Halliday chama a essa qualidade ou classe de “Atributo” e à entidade que o comporta de “Portador”. Assim é que, em “Paulo é um professor”, “um professor” designa a classe à qual “Paulo” pertence ou da qual ele é um membro74. Tendo em conta o fato de que o verbo “ser” é representativo das orações no modo atributivo, convém destacar duas das quatro características desse modo apontadas por Halliday, que nos interessarão: a) o grupo nominal que cumpre o papel de Atributo é encetado por artigo indefinido; b) não é possível reversibilidade entre os termos envolvidos na relação atributiva. Acrescente-se que, em português, é possível que o sintagma nominal na posição de Atributo seja PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA desprovido de artigo. No tangente ao modo identificador das orações intensivas, há uma relação entre duas entidades, de tal modo que uma serve à identificação da outra. Segundo Halliday (1994, p. 122), nesse caso, “uma entidade está sendo usada para identificar outra”. Essa relação assume a fórmula: “x é identificado por y”. O autor chama ao elemento “x” Identificado; e ao elemento “y”, Identificador. Aqui, não há uma relação entre um membro e uma classe. A relação entre membro e classe não serve para identificação. Dentre as quatro características do modo identificador apontadas por Halliday (p. 123), destacaremos também duas, que atendem aos nossos propósitos: a) o grupo nominal que cumpre a função semântica de Identificador é tipicamente definido, ou seja, encetado por um artigo definido; b) as orações desse modo admitem a reversibilidade de seus termos. Sumariando o que foi exposto nesta subseção em nossos termos, deve-se ter em conta que, no modo atributivo, o que Halliday chama de Portador, é o argumento (sujeito) X1; e o que ele chama Atributo é desempenhado pelo sintagma nominal que cumpre a função de predicador, o qual é responsável não só por determinar a ocorrência dos verbos que constituem objeto deste estudo, como também por determinar a natureza do argumento X1 (sujeito). Mantemos, portanto, que, dada a ocorrência de um SN à direita que, assumindo o papel de um 74 Nesse caso, o atributo é expresso por um sintagma nominal cujo núcleo é o substantivo “professor”. O atributo também pode ser expresso, evidentemente, por sintagma adjetival. 134 participante representado como um indivíduo/entidade ou classe de indivíduos/entidades, eventos, atos ou coisas numa relação com outro SN à esquerda, participante suscetível de receber a mesma propriedade atribuível a indivíduos ou classes, eventos, atos e coisas, o uso do verbo “ser” é atestado sistematicamente. A descrição desse complexo estrutural de que toma parte o verbo “ser” pode-se representar, esquematicamente, como se segue: X1 ____ o meu grande opositor nesse projeto. SN1 sujeito Indivíduo = Paulo é SN2 predicador propriedade Além de descrever o ambiente sintático-semântico em que ocorre o verbo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA “ser” (e também o “estar”), se nos impõe a tarefa de determinar as funções cumuladas pelo “ser” nesse ambiente, com base na hipótese funcionalista da multifuncionalidade das expressões linguísticas. Tendo-nos debruçado sobre as amostras de nosso corpus que nos dão testemunho do uso de “ser” com SN predicador, foi possível determinar três funções cumuladas por esse verbo, quais sejam, a de transpositor (num nível estritamente sintático), a de operador de categorização e a de operador de identificação (funções estas desempenhadas no nível semântico-discursivo). Estas últimas se situam no nível discursivo, porque a elas subjaz a ideia de que nossas experiências são construídas no/pelo discurso por meio da produção interacional de significados que são, em última análise, sociais. Elas estão envolvidas nos processos de construção da realidade, para o qual concorrem o aparelho cognitivo-perceptual, a linguagem e a rede de estereótipos fornecidos pela cultura, enquanto sistema de produção de significados. O verbo “ser” será um operador de identificação sempre que servir de recurso para o estabelecimento de uma relação de identidade entre os sintagmas nominais envolvidos, na qual um deles assume o papel de Identificador. No entanto, o que propomos é que o Identificador não pode “identificar” por si mesmo; para fazê-lo, ele necessita de um recurso que torne possível a realização da identificação da entidade representada pelo SN que assume o papel de Identificado. 135 Conforme já mencionamos alhures75, o verbo “ser” funciona como um operador de categorização na medida em que permite a inserção da entidade designada pelo sujeito numa categoria definida com base numa qualidade predicada dele. Essa função se nos afigura prototípica do verbo “ser” e, não se limitando às ocorrências de predicadores adjetivos, se nos demonstra extensiva aos casos em que esse verbo se articula a um SN indefinido que representa a classe numa relação ‘x é membro de y’. É nos processos relacionais de “ser” que se pode apreender aquelas duas últimas funções, visto que, neles, nossas experiências de mundo são identificadas ou classificadas com base em atributos associados a elas. Vale insistir em que não somente coisas assumem a posição de participantes nesses processos, mas também, atos e eventos. Cabe acrescentar que toda expressão nominal é uma forma de categorização, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA isto é, uma forma de inserção do referente em uma determinada categoria cognitivamente construída (Neves, 2006, p. 100). A categorização da expressão nominal é, portanto, de ordem cognitiva. Muito embora não constitua a referenciação o objeto teórico deste estudo, é mister observar que, ao mencionarmos o termo ‘referente’, o entenderemos não como uma entidade do mundo, mas como uma entidade do discurso – portanto, como objeto-de-discurso (Mondada & Dubois, 1994[2003]). Objetos-de-discurso são produzidos pelo discurso, nele desenvolvidos, transformados, delimitados, etc., para o que concorrem operações cognitivas. Assim, a identificação de referentes não se reduz à mera identificação de objetos da realidade; na verdade, na atividade de referenciação, entendida como atividade discursiva, a questão proeminente não é saber se os referentes têm ou não existência no mundo real; importa, ao contrário, o modo como eles são construídos, negociados e delimitados no mundo discursivo. 4.7. Duas classes semânticas de adjetivos: qualificadores e classificadores 75 Ver item 4.2. 136 De início, cuidamos ser importante notar que, ao se ocupar das funções sintáticas dos adjetivos, Neves (2000, p. 180) reconhece que os adjetivos podem funcionar como predicativos, caso em que “o adjetivo é núcleo no sintagma verbal, e, é, portanto, núcleo do predicado” (grifo no original). À mesma página, acrescenta a autora que, com verbo de ligação, apenas o adjetivo será o núcleo do predicado e ele cumprirá a função de predicativo do sujeito. Neves não faz senão nos lembrar a perspectiva da gramática tradicional, nessa matéria. Lembremos que, neste trabalho, o que se chama, tradicionalmente, de predicativo do sujeito, é por nós considerado um predicador, cujo papel, diferentemente do que parece sugerir o termo tradicional, não se limita a tão-só “atribuir uma qualidade ao sujeito”; o predicador é o elemento responsável pela predicação, portanto, a função responsável pela estruturação sintático-semântica da oração. Ao contrário da visão tradicional, os verbos “ser” e “estar” não são considerados aqui meros PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA elementos de ligação, mas unidades linguísticas que tomam parte da construção do significado da oração. Eles desempenham a função de transpositores. 4.7.1. Adjetivos Qualificadores Consoante ensina Neves (p. 184), “esses adjetivos indicam, para o substantivo que acompanham, uma propriedade que não necessariamente compõe o feixe das propriedades que o definem”. Observa ainda a autora que esses adjetivos qualificam o substantivo de modo, que essa qualificação pode ser mais ou menos subjetiva. Ademais, a atribuição da qualidade constitui uma forma de predicação. Ainda segundo Neves, a classe dos qualificadores incluem76: a) adjetivos compostos de prefixos negativos: É desagradável pensar nele. Sou indiferente, a minha opinião não conta. b) adjetivos compostos de sufixos de nomes deverbais, tais como –do/-to e –nte: 76 Os exemplos selecionados para citação são os referidos pela própria autora. 137 Coitadas, como estão acabadas. É triste envelhecer. O paletó aberto mostrava-lhe o peito de negrura reluzente. c) adjetivos formados por sufixos que indicam a ideia de abundância de qualidade, tais como –oso e –udo. Lisa criou uma receita nova e deliciosa. Barriguda, arraia-miúda só ajuda. Os adjetivos qualificadores se caracterizam por serem graduáveis e intensificáveis. Nos exemplos a seguir, oferecidos por Neves, os adjetivos aparecem modificados por quantificador ou intensificador: Outras seriam mais bonitas, mais modernas, mais pimponas, mais PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA arrebatadas na cama, nenhuma contudo mais solicitada, pro nenhuma se lhe comparar no trato. Mostrou-se ele extraordinariamente vivo e alegre. A autora observa ainda que “os adjetivos formados com prefixos intensificadores são adjetivos qualificadores” (p. 187. grifo no original). Seguemse dois exemplos dentre os que refere a linguista: As aulas pareciam super-simplificadas. As crianças são hiper-reativas aos entorpecentes e hormônios. Outrossim, se deve incluir na classe dos qualificadores os adjetivos formados de sufixos superlativos ou diminutivos (com valor de intensificação): O leite C é fraquíssimo, uma água. Me lembro dela limpinha, jogando vôlei, de branco. 138 Embora possível com adjetivos classificadores77, nota Neves que o sufixo diminutivo não comporta o mesmo valor intensificador, “podendo, até, atenuar a qualificação” (p. 188). O exemplo referido pela autora é o seguinte: Assoma por entre as finas grades a cabecinha triangularzinha. São qualificadores também os adjetivos que servem à modalização. Nessa subclasse, se acham os que exprimem modalidade epistêmica (certeza ou asseveração, eventualidade), como se pode ver nos exemplos a seguir: É evidente que não tendes nenhuma pretensão à santidade. É possível que eu esteja sendo submetida a uma prova. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA Também são qualificadores os adjetivos que expressam modalidade deôntica (necessidade, obrigatoriedade): É necessário que o plano seja organizado tendo em vista o efetivo desenvolvimento nacional. Outra subclasse de adjetivos qualificadores é formada por adjetivos de avaliação (“adjetivos avaliativos”). Eles operam uma “avaliação psicológica” (Neves, p. 189). Para Neves, eles “exprimem propriedades que definem o substantivo na sua relação com o falante”. Nós os entendemos como “índices de avaliação ou valoração” (Koch, 2003, p. 53). Por meio deles, o falante expressa uma atitude subjetiva em face de fatos, estados ou qualidades atribuídas a um referente. Assim é que quem diz “Seu trabalho é excelente” faz uma valoração positiva do referido trabalho. São avaliativos também muitos adjetivos deverbais terminados em “-nte”, tais como “decepcionante”, “surpreendente” e “impressionante”. A classe dos avaliativos abriga ainda: 77 Trataremos dessa classe na seção seguinte 4.7.2. 139 d) adjetivos que expressam propriedades que descrevem o substantivo. As qualidades são intensionais, isto é, definitórias. Neves (p. 190) distingue entre os que definem em termos de qualidade e os que definem em termos de quantidade. Entre os primeiros, estão os adjetivos eufóricos, ou seja, que apontam para o positivo, para o que é considerado bom, e os disfóricos, que apontam para o nagativo ou mau. Há também os considerados neutros. Vejam-se alguns exemplos oferecidos pela autora: A noiva reparou naquele rapaz bonito. Estava tudo limpo. A verdade é que nossa vida poderia ter sido muito diferente. Entre os que definem em termos de quantidade, estão os neutros. Eles podem ser usados com substantivos concretos, caso em que “indicam dimensão ou PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA medida” (ib.id.), ou com substantivos abstratos, caso em que indicam intensificação. Tinha o cabelo comprido encobrindo-lhe o rosto. O negrão é grande, mas não é dois. Ia dar início a profundas modificações em suas pessoa.78 De passagem, convém notar a função de categorização desempenhada pelo verbo “ser” no segundo enunciado. Com o uso do verbo “ser”, o falante insere o referente “negrão” na classe dos ‘homens grandes’. A intensificação pode implicar uma avaliação pessoal, de sorte que também adjetivos de avaliação psicológica estão habilitados para a intensificação. Era um sucesso tremendo, e eu não via a cor do dinheiro há meses. Adjetivos avaliativos, quando usados com substantivos abstratos, ainda podem expressar atenuação. É verdade que o Banco Central interveio, mas a relativa estabilidade se deu mesmo devido ao fato de que não há prenúncios de uma crise maior. 78 A não concordância se verifica na amostra referida pela autora. 140 Podem ainda indicar uma definição do modo, ou qualidade, do estado-decoisas. A Alta Modiana paulista foi surpreendida com uma queda brusca de produção. Veja-se que o adjetivo “brusca” modifica o núcleo do estado-de-coisas naminalizado “queda de produção”. Também são avaliativos os adjetivos que servem para avaliar termos linguísticos. Eles se dizem “epilinguísticos” porque predicam o substantivo que acompanham. Eles expressam: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA e) autenticação: caso em que o substantivo modificado é considerado como legítimo em termos de uso. O Brasil conhece a cada minuto (e não exagero) um autêntico massacre silencioso, incapaz, porém, de gerar indignação. O clássico exemplo do que se poderia chamar de Referencial Excêntrico Peculiar, ou REP, é o de Garrincha quando lhe fizeram uma pergunta sobre Roma. f) relativização: nesse caso, a aplicabilidade do uso do substantivo é relativizada. O adjetivo indica que o uso do substantivo é relativamente apropriado para designar um determinado conteúdo. Contentou-se Pantaleão com o que a sorte lhe reservou e manifestou em voz baixa o relativo contentamento. É interessante notar que, nesse exemplo, o enunciador, pelo uso do adjetivo “relativo”, sinaliza que o substantivo escolhido – “contentamento” – não é o mais semanticamente preciso para descrever o estado de espírito ou emoção observada. 141 4.7.2. Adjetivos classificadores Em princípio, deve-se notar que os adjetivos classificadores selecionam preferencialmente o verbo “ser”. Em outras palavras, o uso do verbo “ser” é compatível com esse tipo de adjetivos. Segundo Neves (p. 186), “esses adjetivos colocam o substantivo que acompanham em uma subclasse, trazendo em si uma indicação objetiva sobre essa subclasse” (grifo no original). Acrescenta a autora que eles constituem “uma verdadeira denominação para a subclasse e, portanto, são denominativos, e não predicativos” (grifo no original).79 Os adjetivos classificadores podem equivaler-se, em geral, a sintagmas preposicionais formados da preposição “de” e substantivo. Eles possuem a mesma distribuição sintática das locuções e, frequentemente, podem coordenar-se com elas. Neves nos dá a saber o seguinte exemplo: “Entende-se, assim, o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA aparecimento dos sistemas digestivo, respiratório, de transporte, excretor” (p. 192, grifo no original). Os adjetivos classificadores podem constituir-se de prefixos que indicam valor numérico, tais como “unicelular”, “monocromático”, “ambivalente”, etc. Também se incluem na classe dos classificadores os adjetivos derivados de nomes próprios, tais como “machadiano”, “nietzscheano”, “shakesperiano”. São adjetivos classificadores os que expressam noções adverbiais: g) delimitação: nesse caso, o adjetivo restringe o domínio de referência do substantivo que modifica. Há adjetivos que restringem em termos de domínio de conhecimento, tais como “científico”, “literário”, “artístico”, etc. Há os que restringem indicando um ponto de vista individual, tais como “pessoal”, “particular”, “privado”, etc. h) localização no espaço: adjetivos há que localizam objetos, ações, estados e processos. A localização pode ser absoluta ou relativa. 79 Tendo em conta a própria definição de predicação dada por Neves (p. 25), como “resultado da aplicação de um certo número de termos (que designam entidades) a um predicado (que designa propriedades ou relações), não parece haver razão para destituir tais adjetivos do papel de predicadores. A natureza predicativa se verifica quando combinados com os verbos que constituem objeto deste estudo. 142 Leu a política nacional. O abrigo subterrâneo era inescrutável. Tratava-se, pelo jeito, de uma nave central, e duas naves laterais como convém a qualquer igreja que se preze. Tio Heitor nadava prudentemente, paralelo à praia. Os dois primeiros exemplos ilustram ocorrências de adjetivos que servem à expressão da localização absoluta; os dois últimos ilustram ocorrências de adjetivos que exprimem localização relativa. Com valor localizador, há adjetivos que indicam ordem ou posição numa série. Estão nesse grupo adjetivos como “último”, “final” e “derradeiro”. Deve-se notar que a posição não tem referência numérica. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA i) localização no tempo (em relação ao momento da enunciação): Pelas histórias que ouvi de minha tia no mês passado ainda existe muito a explorar na mansão. No próximo sábado a gente vai fazer um piquenique na chácara. Estive com meu pai e, até o presente momento, não tenho de que me arrepender. Como se pode depreender dos exemplos referidos, a localização no tempo pode-se dar por anterioridade, posterioridade ao momento de enunciação e por concomitância com ele. Ela pode-se dar também em relação ao momento de referência instalado no texto e pode ser anterior, posterior a esse momento ou concomitante com ele. Giulio trouxe pão e um salame caseiro, do inverno anterior. A redação é posterior a 1403. Com Nietzsche à frente, começa-se a pôr em voga, na Europa, o contemporâneo sentimento de niilismo diante dos valores morais. Adjetivos há que expressam quantidade de tempo transcorrido, relativamente a um passado. 143 j) Referência à quantidade definida De mãos dadas fazemos a volta completa no muro centenário. Nesse subtipo, podemos ter também adjetivos como “secular”, “milenar”, “sexagenário”, etc. l) Referência à quantidade indefinida Esse subtipo inclui adjetivos como “velho”, “idoso”, “jovem”, “novo” e “antigo”. Vejam-se alguns exemplos: Mauro me saudou com efusão, mostrando um velho código criminal que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA tinha trazido para Abelardo. O senhor idoso voltou a exaltar-se. Uma jovem mulher, casada, mas sem filhos, adoeceu por causa do excesso de humores fluindo para seu pescoço e ali causando grandes feridas. Neves (p. 198) nota que os adjetivos atinentes à idade podem-se tornar qualificadores, caso à noção de quantidade de tempo transcorrido se acrescente uma avaliação sobre a idade. Veja-se um exemplo, referido pela autora: Queria ter algum indício novo sobre Lutércio. Neves (p. 199) faz referência ainda à possibilidade de haver transposição de adjetivos classificadores para a classe dos qualificadores, quando aqueles são usados em sentido metafórico. Dentre os exemplos oferecidos pela autora, cite-se o seguinte: A mancha que lhe adviera com o parto da filha dava lugar ao júbilo celeste do chorinho da neta. Importa notar que, via de regra, apenas os adjetivos qualificadores são passíveis de gradação ou intensificação; no entanto, é possível que certos adjetivos classificadores recebam gradação ou intensificação, o que indicaria seu 144 caráter qualificador. Os exemplos oferecidos por Neves incluem adjetivos que designam um traço identitário. Adjetivos referentes a qualidades identitárias pertencem à classe dos adjetivos classificadores. A gradação serve à produção de efeitos de sentido. Cite-se o exemplo abaixo: Marisaura, de sapato baixo, grosseiro, num vestido claro, simples e não muito feminino, olha concentradamente através da janela. Finalmente, vale referir outro subtipo de adjetivos que atualizam aspecto. Esses adjetivos atribuem uma noção aspectual à ação, processo ou estado designado pelo substantivo a que se referem. Constituem exemplos desse subtipo os adjetivos “momentâneo”, “habitual”, “costumeiro”, “mensal”, “anual”, “diário”, “semanal”, etc. Citem-se dois exemplos, tomados a Neves: no primeiro PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA dos quais há uma implicação numérica; no segundo, não há essa implicação. Quando comecei essa viagem mensal, mandei um bilhete pra minha noiva. Foi despertado de seu momentâneo desequilíbrio pelo salto do menino. 4.8. Implicações para a análise Cremos imperioso tornar patente a pertinência à nossa análise da exposição sobre a classificação semântica dos adjetivos desenvolvida por Neves. Em primeiro lugar, a categorização dos adjetivos em dois grandes grupos, quais sejam, o dos qualificadores e o dos classificadores ajudou-nos na construção de duas hipóteses correlatas: a primeira sugere que os adjetivos classificadores favorecem o uso do verbo “ser”; a segundo sugere que os adjetivos qualificadores selecionam tanto “ser” quanto “estar”. Dois exemplos tomados a Neves (p. 200), a seguir, são suficientes para validar, a princípio, a primeira hipótese: Todos os pugilistas aprendem da mesma maneira que a esquerda vem na frente, quando o cara é destro, e a direita à frente, quando o cara é canhoto. A representação é legal, social, protocolar e simbólica.80 80 Acerca deste exemplo, observa a autora “Na posição de predicativo, a característica denominativa do adjetivo classificador facilmente se afrouxa”. (Neves, ib.id., grifos no original). 145 No primeiro enunciado, os adjetivos “destro” e “canhoto”, classificadores, selecionam “ser” e desautorizam o uso de “estar”. A restrição ao uso de “ser”, que constitui a forma apropriada à inserção do referente do sujeito numa classe ou categoria com base na qualidade dele predicada, parece dever-se ao fato de os adjetivos designarem propriedades definidoras da entidade designada pelo sujeito. Decerto, trata-se de qualidades das quais poderíamos dizer são “inerentes”, no sentido de que, com base em nosso conhecimento de mundo, sabemos que os seres humanos ou são destros, ou canhotos (ou ainda ambidestros). É preciso, contudo, estar atento para o fato de que a ideia de inerência não pode ser inferida por força do uso do verbo “ser”, consoante sugere certa visão tradicional da questão. A inerência, nesse caso, é uma ideia depreendida da própria natureza semântica dos adjetivos. Essa ideia, se estendida a casos como “O vestido é lindo” e “o vestido está lindo” mais complica do que elucida a questão. Só por força de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA preconceitos culturais e/ou subjetivos podemos sustentar que, no primeiro caso, “lindo” designa, por força do uso de “ser”, uma qualidade inerente ao “vestido”. Um olhar mais apurado e cuidadoso sobre a questão nos conduzirá à conclusão de que “lindo” é um adjetivo do tipo avaliativo eufórico e de que, ao selecionar “ser”, o falante seleciona um recurso que ativa sistemas de ‘escaninhos’, com os quais classifica o mundo. O verbo “ser”, articulados a adjetivos, participa de enunciados que constituem amostras de nossos sistemas classificatórios de mundo. Como os modelos classificatórios são influenciados quer por fatores de ordem subjetiva, quer por fatores de ordem sociocultural, eles são flutuantes, instáveis, adaptáveis. Em segundo lugar, não descuramos do fato de que há adjetivos classificadores que admitem o uso de “estar”, tais como os referentes à quantidade definida, como “jovem” e “velho”. Disso se segue que será necessário considerar, além da classificação geral dos adjetivos em classificadores e qualificadores, os subtipos que cada uma dessas duas grandes classes compreende. À proposta de Neves por nós adotada também devemos esse reconhecimento. O nosso objetivo precípuo é, ao cabo deste capítulo, oferecer um quadro sinótico da sistematização dos usos dos verbos “ser” e “estar” com os adjetivos que figuram em nosso corpus – tarefa esta para cuja realização a proposta de classificação dos adjetivos em Neves (2000) se nos demonstra apropriada. Isso, contudo, não invalida nossa proposição segundo a qual tais adjetivos tendem a selecionar “ser”. De passagem, note-se que o uso de “estar”, nesse caso, não é possível. 146 4.9. Papéis semânticos e tipologia dos predicadores Como estejamos interessados em fornecer uma tipologia dos predicadores que congregue, em cada tipo, as condições semânticas que permitem prever o uso dos verbos “ser” e “estar” com sintagmas preposicionais (SPs), adotaremos o conceito de papel semântico, relativamente ao argumento X1 (sujeito), como uma ferramenta descritiva, com base na qual determinaremos as propriedades semânticas da estrutura oracional. Essas propriedades semânticas produzem as condições quer para o uso de apenas um desses verbos, quer para o uso flutuante deles, não sem algum efeito semântico-funcional distintivo. Com efeito, tão logo concluímos pela pertinência da adoção desse conceito, não nos escaparam os problemas, comumente verificados na literatura especializada, das diferentes propostas de sistematização de papéis semânticos81, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA Esses problemas podem ser sumariados, segundo Cançado (2003), no que se segue: 1) definições informais e vagas, que tornam difícil um tratamento teórico; 2) proliferação de papéis semânticos, com o fornecimento de listas extensas; 3) critérios de distinção insatisfatórios. A autora assinala o desinteresse consequente por conferir estatuto teórico aos papéis semânticos. Como pretenda contribuir para que o interesse teórico pelos papéis semânticos seja reavivado, a autora assevera sua posição, não sem respaldá-la numa observação de ordem empírica: (...) assumo (...) a relevância de se atribuir um estatuto teórico aos papéis temáticos, realçando que insistir em um modelo em que o conteúdo semântico dos papéis temáticos é levado em consideração não é uma simples questão de gosto. Isso se deve à existência de alguns dados das línguas que corroboram a necessidade para uma teoria gramatical distinguir semanticamente esses papéis (Cançado, 2003, p. 98, ênfase nossa). Segundo Cançado, há questões atinentes aos papéis semânticos que restringem a forma estrutural da oração, do que resulta a importância de considerá-los. Cumpre notar a definição de papel semântico82 apresentada pela autora: “(...) o grupo de propriedades atribuídas a um determinado argumento a partir dos acarretamentos estabelecidos por toda a proposição em que esse 81 CANÇADO, Márcia. Um estatuto teórico para os papéis temáticos. In: Müller, A. L.; Negrão, E. V.; Foltran, M. J. (Orgs.). Semântica Formal. São Paulo: Contexto, 2003. 82 A autora adota a designação papel temático. 147 argumento se encontra” (p. 95). Com base nessa definição, Cançado (p. 99) propõe os seguintes critérios para determinar um papel semântico: a) as propriedades semânticas do argumento; b) o conjunto de acarretamentos estabelecidos por toda a proposição em que se acha esse argumento. No tocante às propriedades semânticas do argumento, a autora aponta quatro que lhe parecem fundamentais, quais sejam: 1) desempenhar o papel de desencadeador de um processo; b) ser afetado por esse processo; 3) ser um objeto estativo; 4) ter controle sobre um desencadeamento. Ficam, pois, estabelecidas as seguintes propriedades, segundo Cançado: desencadeador, afetado, estativo e controle. O desencadeador relaciona-se a ações; o afetado, a processos; e o estativo, a estados. O controle, por seu turno, é uma propriedade compatível com essas três propriedades, muito embora ele não ocorra isoladamente, mas esteja sempre ligado à propriedade semântica [animação]. O afetado também é compatível com PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA o controle. A associação de ‘afetado’ com ‘controle’ produz o significado ‘capacidade de interromper o processo’. Assim, numa frase como “João recebeu uma herança”, o argumento “João” desempenha o papel de afetado, porque seu estado se modifica num dado intervalo de tempo (num tempo A, ele não tinha uma herança; mas num tempo B, ele passou a ser portador dela); no entanto, embora ‘afetado’, ele controla o estado-de-coisas, já que pode tomar a resolução de interrompê-lo. Para os nossos propósitos, cumpre-nos notar que, para Cançado, as quatro propriedades, acima referidas, são propriedades semânticas relevantes para a organização da estrutura sintática no português brasileiro. Ela acrescenta que essa relevância foi corroborada por estudos empíricos que se destinavam à investigação da correlação entre estrutura sintática e estrutura semântica em muitas sentenças do português brasileiro (p. 106). Definir os papéis semânticos, segundo os acarretamentos que se depreendem da própria estrutura proposicional (prefiramos “do próprio estado-de-coisas designado”), significa assumir que esses papéis resultam de operações de inferenciação que o falante nativo é capaz de realizar com base no próprio estadode-coisas representado na oração. Assim, quando comparamos “João recebeu um tapa” com “João leu um livro”, inferimos, com base na própria estrutura semântico-sintática das orações, que, no primeiro caso, “João” é a entidade afetada e destituída de controle (obviamente, ele não pode decidir não receber o 148 tapa); no segundo caso, ele o desencadeador (nem “João” nem “o livro” são afetados no processo de leitura). Se, ainda, dizemos “João tem uma casa”, concluímos, sem muito custo, que João é o possuidor. Assim, se é verdade que ‘João tem uma casa’, é igualmente verdade que ‘João é o possuidor dessa casa’. Cançado (p. 105) atribui a propriedade estativo ao argumento cujas propriedades não se modificam durante um intervalo t. O estativo também é uma propriedade compatível controle. Em alguns casos, pode-se interromper o estado em que alguém se encontra, mesmo que não se verifique o controle sobre o começo ou sobre o desenrolar dessa situação83 (cf. João não vai mais bajular Maria). Vale notar que a proposta de definição dos papéis semânticos com base na noção de acarretamento encontra apoio em Ilari (2003). O autor define o acarretamento como uma relação de implicação entre o valor de verdade de um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA enunciado e o de outro. Em outras palavras, há acarretamento sempre que a verdade de um enunciado implica a verdade de outro. Essa relação de implicação se dá apenas com base no significado das palavras de que se compõem os enunciados. O fenômeno de hiponímia desempenha aí um papel de grande monta. Destarte, se é verdade que “João comprou o novo Voyage”, é verdade também que “João comprou um novo carro”. Para Ilari, é possível estabelecer o papel semântico de “João” dando outro torneio à oração (cf. O que João fez foi comprar o carro (João é o causador)). A essa altura, convém retomar a noção de [controle], a fim de precisá-la, visto que ela será tomada como uma propriedade importante na proposta de tipologia de predicadores que apresentaremos no capítulo oito. Esse traço caracteriza a entidade que exerce influência sobre o estado-de-coisas ou que o controla de modo a determiná-lo. Não é propriamente um traço sêmico dessa entidade, um componente de seu significado, mas é uma propriedade do estadode-coisas que se associa a ela. 83 O termo situação será empregado para descrever tanto ‘a posição de um objeto, a maneira como ele está colocado’ quanto ‘estado ou condição’. 149 4.9.1. A noção de traços semânticos e os tipos de predicadores Em Iniciação à Semântica (2003), Marques destina dois capítulos para tratar dos componentes do significado (semas), dos tipos de predicações e dos papéis argumentais. A autora chama semas aos componentes mínimos de significado dos itens lexicais. Esses componentes mínimos podem ser específicos, genéricos ou virtuais. Os específicos e genéricos definem o significado denotativo; os virtuais, que podem ou não se atualizar num dado contexto, definem valores conotativos. Acrescente-se que, no domínio dos semas genéricos, deve-se distinguir as propriedades animado e não-animado, bem como suas subcategorias humano/ não humano (que incluem o traço [animação) e concreto/ não-concreto. Marques (p. 71) admite a possibilidade de postular tantas subcategorias quantas necessárias. Ao se debruçar sobre os tipos de predicadores, nota a autora que os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA componentes semânticos deles são traços componenciais que selecionam por restrição os papéis semânticos compatíveis com as propriedades combinatórias de uma predicação (p. 121). Não menos importante é atentar para o que escreve a autora, ao considerar a Gramática de Casos de Filmore. No excerto que se segue, convém ter em conta o fato de que uma visão de oração como uma estrutura semântico-relacional permite investigar os modos como a língua organiza a experiência humana: A essa concepção abstrata de estruturas de casos, associa-se claramente a apresentação e organização semântica da experiência humana, através da língua, em enunciados ou estruturas de predicação, que criam, descrevem, estruturam acontecimentos, num dado universo de referência, indicando o papel que desempenham determinados argumentos, como participantes ou circunstâncias, nessas estruturas de predicação (p. 118). Logo adiante, a autora acrescenta que a estrutura de casos “corresponderia a julgamentos que os seres humanos são capazes de fazer sobre os acontecimentos que os cercam” (ib.id.). Os casos são, segundo Marques, conceitos de caráter universal, supostamente inatos. 150 4.9.2. Predicações estativas84 A oposição entre as propriedades semânticas [- dinâmico] e [+ dinâmico] constitui a base da distinção entre predicações estativas e não-estativas. As predicações estativas, portanto, se caracterizam pela ausência de ‘dinamicidade’, ou seja, se caracterizam por comportar a propriedade [- dinâmico]. Os predicadores estativos relacionam-se, segundo a autora, com nominais a que se atribuem propriedades não-dinâmicas ou com nominais que se situam em posição ou estado passivo na predicação. O papel semântico desses nominais é, por isso, o de paciente ou entidade afetada pela predicação. Se esses nominais afetados pela predicação comportarem o traço [+ animado], assumem o papel de experienciador (Marques, 2003, p. 124). Ainda, segundo Marques, os predicadores estativos são divididos em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA existenciais e relacionais. Nas predicações existenciais, define-se, para a posição de X1, o papel de paciente. São predicadores estativos existenciais os verbos “ser” e “existir”. Nas predicações estativas relacionais, por seu turno, são estabelecidas relações identificacionais, experienciais, transferenciais ou locativas. No que toca às predicações estativas identificacionais85, o X1 desempenha o papel de paciente, que, nesse caso, não é afetado, mas identificado. Esse papel, no entanto, está presente também nas predicações experienciais e transferenciais. Nas primeiras, o paciente é a entidade que se relaciona com a entidade que tem uma experiência passiva de percepção ou sensação de estados psicológicos, à qual Marques chama experienciador (cf. Maria percebeu as rachaduras na parede); nas segundas, a entidade paciente se relaciona com uma entidade que a possui ou para a qual se destina como objeto possuído ou como domínio. Um dos exemplos aduzidos por Marques é “Pedro tem um livro”. É interessante notar que a ‘transferência’, em todos os exemplos referidos pela autora, não é uma noção decorrente da própria natureza semântica dos predicadores86. O papel semântico do sujeito é o de 84 Marques (2003, p. 122) distingue entre predicadores de estado ou estativos, dos quais são exemplos (embora não só) os verbos “ser” e “estar”, predicadores de evento e predicadores de processo. Não seguimos Marques ao considerar os verbos “ser” e “estar” como predicadores; por isso, preferirmos considerar as predicações estativas. 85 Marques (ib.id.) dá-nos como exemplo desse tipo de predicação uma frase como “São Paulo é uma palavra”, que, para nós, atualiza uma relação do tipo atributivo, por meio da qual o X 1 é incluído numa classe. 86 Os demais exemplos são: A casa tem dois andares; Maria/ A biblioteca possui muitos livros/ Eles são donos de uma loja (ib.id, p. 125). 151 recipiente ou beneficiário, o qual representa a entidade para a qual é destinado o paciente. Nas predicações estativas relacionais locativas, o paciente é localizado em relação a outra entidade, que cumpre o papel de locativo situacional. Dentre os exemplos fornecidos pela autora, interessam-nos os seguintes: “O embarque é no portão A”, “Maria está em casa” e “O poste é/está na esquina da rua” (p. 126). Cabe ainda assinalar que os traços [+ controle] e [- controle]87 implicam as propriedades ‘animação’ e ‘intencionalidade’ relativamente ao argumento. Além dos traços ‘dinamicidade’ e ‘controle’, importa, para efeito de classificação das predicações, o traço ‘duração’. Assim, as propriedades [+ durativo] e [- durativo] servem para distinguir as predicações de evento, nas quais há mudança de estado num intervalo de tempo dado, das predicações de processos, nas quais não há mudança de estado. Nos processos, o acontecimento representado tem certa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA duração num dado intervalo de tempo. Por conseguinte, os eventos se caracterizam pela propriedade [- durativo]; e os processos, pela propriedade [+ durativo]. Os estados podem ou não comportar a propriedade [duração]. Em “Maria permanece em casa”, há duração no estado representado. Esquematicamente, ESTADO, EVENTO e PROCESSO podem ser caracterizados como se segue: ESTADO PROCESSO EVENTO [- dinâmico] [+ dinâmico] [+ dinâmico] [-/+ durativo] [+ durativo] [- durativo] [-/+ controlado] [+/- controlado] [+/- controlado] Em “Maria permanece em casa”, temos um exemplo de ESTADO; em “A porta rangeu”, de EVENTO; e em “As batatas estão cozinhando”, de PROCESSO. 87 A autora adota os termos ‘+ controlado’ e ‘-controlado’ (p. 122). 152 4.9.3. Relevância para a análise Ao nos alinharmos com uma perspectiva que se preocupe em descrever a estrutura semântica da oração, procurando estabelecer, para o X1, um papel semântico e procurando determinar as propriedades semânticas do X1, do substantivo que preenche a posição de SN encaixado no SP predicador e do próprio SP como totalidade estrutural, pretendemos satisfazer dois objetivos: a) determinar as condições semânticas que tornam possível o uso dos verbos “ser” e “estar”; b) estabelecer uma tipologia semântica de predicadores preposicionais. Tanto a determinação do papel semântico do X1 quanto à especificação dos traços semânticos que ele e o predicador como um todo comportam constituem condição necessária para a compreensão dos fatores internos à língua que estão na base da seleção entre uma e outra forma, em orações constituídas de SP (predicador). Ao PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA propormos uma tipologia de predicadores, procuramos evitar que os sintagmas preposicionais sejam tratados a partir de uma perspectiva reducionista, a qual nos levaria a postular para uma mesma estrutura ‘de__SN’, por exemplo, diferentes realizações, como em “Paulo é de Manaus”, “O relógio é de ouro” e “Ana está de camisola”. Na medida em que os substantivos que integram o SN no interior do SP (predicador) são semanticamente diferentes e na medida em que o próprio significado das orações é diferente, segue-se daí que essas orações incluem tipos diferentes de ‘de__SN’. Da caracterização desses tipos, entram a fazer parte o papel semântico estabelecido pelo predicador para o X188, os componentes semânticos (semas) desse X1, bem como as propriedades semânticas do predicador. Além disso, é necessário reconhecer que o predicador constrói, na relação com o verbo selecionado, um significado-base, o qual não se identifica, necessariamente, com o significado proposicional. O significado-base é sempre virtual e se atualiza na própria estrutura relacional da oração. Esse significado pode ser encapsulado numa única palavra. Assim, o conjunto “é de__SN’ prevê os significados-base ‘procedência’ e ‘constituído de (algum material)’ (cf. O vinho é de Portugal/ O anel é de ouro). A diferença entre esses significados marca a diferença entre os tipos de predicadores também. 88 Os papéis semânticos serão apresentados e definidos no capítulo oito, durante nossa análise. Eles estarão reunidos às demais propriedades semânticas da oração num quadro sinótico, disposto no final do capítulo. Nesse quadro, também se acharão as definições desses papéis. 153 Adotaremos, na análise das ocorrências de “ser” e “estar” com predicadores preposicionais, que será levada a efeito no capítulo oito, os traços semânticos [+/animado], [+ humano] e [+/- controle], que serão associados ao X1. O componente [controle] caracteriza o X1 tendo em conta sua influência ou não no estado-decoisas designado. Assim, o X1 será dotado da propriedade [+ controle], sempre que controle o estado representado na oração. Por exemplo, em “Maria está na academia”, o X1 “Maria” exerce influência sobre o estado posicional em que se encontra, isto é, Maria controla a própria situação representada. Por outro lado, em “Maria está com dor de cabeça”, o X1 não controla o estado representado. 4.10. A metáfora à luz da Linguística Cognitiva: breves considerações PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA Uma seção destinada ao enfoque sobre a metáfora, tal como vista à luz da Linguística Cognitiva, na esteira de Lakoff (2003 [1980]), se justifica pelo fato de nos permitir explicar muitos usos de “ser” e “estar” com sintagmas preposicionais (SPs). Nosso corpus encerra vários exemplos em que o SP é concebido como um domínio metaforizado. Ao compreendermos a natureza da metáfora com base no aparato teórico da Linguística Cognitiva, conseguimos não só refinar a descrição, como também estabelecer generalizações que, de outro modo, não encontrariam lugar em nossa proposta teórica. Assim, por exemplo, dadas as frases “Rui está em casa” e “Rui está em depressão”, é possível estender o princípio segundo o qual o verbo “estar” é preferencialmente usado com estruturas ‘em__SN’ de valor locativo, ambiente sintático em que “estar” conserva seu significado ‘posicional’, aos casos em que essas estruturas assumem a noção de ‘estado’. O modelo teórico proposto por Lakoff prevê que “estados são locais” na metáfora, isto é, que o estado pode ser concebido como uma região delimitada no espaço. Intentamos, nesta seção, tão-só traçar diretrizes para a análise que será empreendida no capítulo oito. Não nos interessa descer a pormenores sobre a forma como a metáfora é abordada na Linguística Cognitiva, tampouco exploraremos, em profundidade, a proposta teórica de Lakoff. Tal tarefa excederia os limites deste trabalho. Comecemos, pois, notando que a Linguística Cognitiva atribui uma grande importância aos processos metafóricos. Vista, tradicionalmente, como uma figura 154 de linguagem no domínio do discurso literário, a metáfora passa a ser tratada, nessa área de estudos da linguagem, como um processo fundamental no uso ordinário da língua. Ademais, a metáfora também não é mais encarada como um mero fenômeno de linguagem, mas como um fenômeno que, embora dotado de uma materialidade linguística, evidentemente, encontra seu locus no pensamento e no raciocínio. Na perspectiva da Linguística Cognitiva, a metáfora se situa numa dimensão conceitual ou cognitiva, de modo que passa a ser vista como um processo mediante o qual experiências são cognitivamente elaboradas com base em outras já existentes no nível conceptual. Sucede, portanto, uma superposição de uma experiência já linguisticamente determinada a uma outra experiência mapeada tanto pelo pensamento quanto pela linguagem. Ao deslocar a metáfora do domínio da linguagem literária, no qual servia apenas para efeitos estéticos, para o domínio da linguagem do cotidiano, Lakoff & PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA Johnson (2003, p. 4) puderam reconhecê-la como uma dimensão de nosso sistema conceitual, por meio do qual pensamos e agimos. Esses autores sustentam ser a metáfora um fenômeno da vida cotidiana, o que significa dizer não só da linguagem cotidiana, mas também do pensamento e da ação cotidianos. Consoante notam e propõem os autores: Metaphor is for most people a device of the poetic imagination and the rhetorical flourish – a matter of extraordinary rather than ordinary language. Moreover, metaphor is typicalally viewed as characteristic of language alone, a matter of words rather than thought or action. For this reason, most people think they can get along perfectly whithout metaphor. We have found, on the contrary, that metaphor is pervasive in everyday life, not just in language but in thought and action. Our ordinary conceptual system, in terms of wich we both think and act, is fundamentally metaphorical in nature (LAKOFF & JOHNSON, 2003, p. 4).89 Na base dos processos metafóricos, reside a noção de ‘perspectiva’, a qual supõe a correspondência entre modos diferentes de conceber fenômenos particulares e diferentes metáforas. Em outras palavras, segundo essa noção, diferentes modos de conceber fenômenos estão relacionados a diferentes 89 A metáfora, para a maior parte das pessoas, é um mecanismo da imaginação poética e do requinte teórico: uma questão de linguagem “extraordinária” em vez de linguagem comum. Além disso, a metáfora é tipicamente vista como uma característica da linguagem: uma questão de palavras e não de pensamentos e ações. Por essa razão, a maioria das pessoas pensa que pode viver perfeitamente bem sem a metáfora. Nós acreditamos, no entanto, que a metáfora faz parte da vida cotidiana, não somente na linguagem, como também no pensamento e na ação. Nosso sistema conceitual, a partir do qual pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza (LAKOFF & JOHNSON, 2003, p. 4). 155 metáforas. Assim, podemos nos referir ao conceito de ‘afeto’ tanto como ‘temperatura’ quanto como ‘distância espacial’ (Ferrari, 2011, p. 91). Nas frases “A minha recepção foi muito calorosa” e “Luísa é bastante acessível”, concebemos o afeto em termos de ‘temperatura’ e ‘distância espacial’, respectivamente. Esses exemplos ilustram uma característica essencial da metáfora, qual seja, o fato de ela implicar a conceptualização de um domínio da experiência tomando-se por base outro domínio. Na metáfora, um domínio de experiência é ressignificado (ou mesmo traduzido) na base conceitual de outro domínio. Destarte, toda metáfora encerra um domínio-fonte e um domínio-alvo. No modelo teórico proposto por Lakoff & Johnson, conhecido como Teoria da Metáfora Conceptual, há correspondência entre o domínio-fonte e o domínioalvo, e essa correspondência é unidirecional, de tal modo que o processo metafórico toma como ponto de partida um domínio-fonte e se atualiza num PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA domínio-alvo, não podendo assumir direção contrário. Por isso, podemos conceptualizar o tempo como espaço, mas não o contrário (cf. O aniversário do Rui está chegando). Importa-nos fazer ver que o domínio-fonte compreende propriedades físicas ou concretas de nossas experiências; o domínio-alvo, por outro lado, assume uma forma mais abstrata. Assim é que em “Paulo tem um alto prestígio na empresa”, o domínio-fonte é a dimensão vertical do espaço físico, e o domínio-alvo é o status social. Ao usarmos a linguagem, no cotidiano, para nos referir a conceitos abstratos, tais como ‘tempo’, por exemplo, tendemos a concebê-los como projeções de domínios relativamente concretos de nossa experiência física, em cuja base se acha nossa atividade sensório-motora. A importância das experiências sensório-mortoras na formação das metáforas será enfocada na subseção abaixo. Da compreensão do papel que desempenham essas experiências na formação das metáforas depende parte do desenvolvimento de nossa análise no capítulo oito. 4.10.1. Metáforas e Esquemas imagéticos Convém assinalar que, no cerne da metáfora, se encontra o processo pelo qual um dado elemento ou aspecto da realidade é experienciado nos termos de outro. Ademais, mostramos, com base em Lakoff & Johnson (2003), que a metáfora não é um fenômeno cingido às palavras. Ao contrário, a materialidade 156 linguística das metáforas só é possível na suposição de que o sistema conceptual humano encerra projeções metafóricas. Para aqueles autores, as metáforas devem ser compreendidas como relações estáveis e sistemáticas entre dois domínios conceptuais, quais sejam, o domínio-fonte e o domínio-alvo. Tanto a estrutura conceptual quanto o domínio-fonte são utilizados para representar uma situação no domínio-alvo. Tendo em vista esta síntese, convém notar que a Teoria da Metáfora Conceptual de Lakoff & Johnson também explorou a hipótese de que determinados conceitos são resultantes de esquemas imagéticos.90 Lakoff argumenta que tais esquemas podem servir de domínio-fonte para a formação de metáforas. Os esquemas imagéticos “são estruturas de conhecimentos que emergem diretamente da experiência corpórea pré-conceptual” (Ferrari, 2011, p. 99). A PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA importância dessas estruturas no domínio cognitivo decorre justamente do fato de elas derivarem dessa experiência corpórea. Assim, no exemplo já referido “Rui está em depressão”, o esquema imagético região delimitada no espaço dá forma ao conceito abstrato de ‘estado’. Subjacente à proposta de pensar a conceptualização da realidade na base de esquemas imagéticos, está a compreensão de que a nossa percepção da realidade é construída com base na constituição de nosso corpo, pela maneira como ele se movimenta, pela forma como nós interagimos com o mundo; enfim, pelo modo como nossos sentidos percebem a realidade. São elucidativas, nesse tocante, as palavras de Abreu, a seguir: É a partir de nosso corpo que criamos conceitos como frente, trás, esquerda, direita, alto e baixo. Como somos seres bípedes, temos de nos manter em equilíbrio constante e, como somos seres móveis, podemos deslocar-nos continuamente. Nos tempos primitivos, dirigíamo-nos para onde havia frutos que podíamos coletar ou animais que podíamos caçar e, modernamente, em direção ao nosso trabalho ou a locais de lazer. Durante nossos trajetos ou interação com seres e objetos, enfrentamos muitas vezes obstáculos que temos de remover, quando temos capacidade física para isso, ou dos quais temos de desviar, em caso contrário. Em tempos remotos, morávamos dentro de cavernas; hoje, em casas ou apartamentos (Abreu, 2011, p. 30). 90 LAKOFF, G. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind. Chicago: University of Chicago Press, 1987; The invariance hypothesis: is abstract reason based on image schemas? In: Cognitive Linguistics, v. 1, n. 1, pp. 39-74, 1990. 157 O excerto de Abreu, acima referido, ilustra o fato de que nossos conceitos são calcados sobre nossas experiências corpóreas com o mundo; ademais, patenteia que tais conceitos variam segundo as condições em que se dão as interações entre o corpo e o mundo. É com base nessa interação entre o nosso corpo e ambiente em que vivemos que devemos entender os esquemas imagéticos como “padrões estruturais recorrentes em nossa experiência sensório-motora” (ibid. p. 31). Os esquemas imagéticos são concebidos como representações de experiências baseadas no corpo. Tais experiências são de natureza sensórioperceptual e supõem sempre a nossa interação com o mundo. Cumpre notar que os esquemas imagéticos representam, de um modo geral, domínios como ‘container’, ‘trajetória’, ‘força’ e ‘equilíbrio’, os quais são responsáveis por estruturar nossas experiências calcadas no corpo (Ferrari, 2011, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1012041/CA p. 86). O esquema região delimitada está na base dos domínios container e “superfície”; no entanto, eles se diferenciam pelo número de dimensões que abrigam. O container encerra três dimensões: fora, dentro e uma fronteira a ser ultrapassada. Pode-se representar esse domínio com o seguinte gráfico: fronteira fora dentro fora É notável o fato de que o domínio container envolve a noção de profundidade, que falta ao domínio de superfície. Assim, se uma “piscina” pode ser tomada como exemplo prototípico de container (cf. Ele está na piscina), “mesa”, por seu turno, exemplifica o domínio “superfície” (cf. O jarro está na mesa).