TEMPO, MEMÓRIA E DESTINO Raquel Mieko Nakaza Aluna do Curso de Filosofia – Universidade Mackenzie Introdução O presente trabalho tem por objetivo, de forma sucinta, apresentar pontos de um período marcado por novas possibilidades dentro da filosofia que ficou conhecido como Idade Média. Nesse contexto aparecerão grandes nomes da filosofia, dentro e fora do campo da religião, que foram de grande destaque na época, sendo que muitas ideias serão formuladas ou serão repensadas com novas condições e possibilidades. Muitos nomes se destacarão dentro desta época, mas um dos grandes nomes será Santo Agostinho, no qual os conceitos desta dissertação serão baseados. Os assuntos abordados neste projeto são o tempo, a memória e o destino, que na filosofia agostiniana se entrelaçam e se conversam a todo o momento até, de certa forma, se tornar dependentes um do outro dando um exemplo claro da complexidade destas questões em sua filosofia. Iniciando pelo tema do destino, em que Agostinho irá abordar a idéia de Deus como um ser criador, e que o destino depende estritamente de sua intervenção, ele firmava a idéia de predestinação significando que o homem por si só não poderia escolher seu futuro, mas estava completamente dependente da vontade de Deus sendo ou não um de seus escolhidos. Dentro do conceito de Deus, a filosofia de Agostinho apresenta a felicidade como sendo uma característica encontrada apenas n’Ele, e sendo ela a finalidade da busca do homem. Tudo o que o ser humano fará, será sempre para encontrar essa felicidade na qual Agostinho especificará como algo único e intrínseco em Deus, que será perfeita e imutável. Percebe-se que, assim como na filosofia platônica que busca pelo mundo inteligível enquanto Revista Pandora Brasil - Nº 63 Fevereiro de 2015 - “Filosofia, Tempo e Memória” ISSN 2175-3318 - revistapandorabrasil.com pertencente ao mundo sensível, a característica do homem sendo finito e mutável é a busca constante por algo infinito e eterno. A ideia de eterno ganha forma distinta dentro do conceito do tempo, sendo Deus o único capaz de abarcá-la. A única remota idéia que se encontrará no ser humano é o vislumbre do instante no qual vivemos, mas não sendo capaz de percebê-lo, buscaremos centrá-la no eterno em Deus. O tempo existe apenas em nós no presente, sendo que o âmbito da memória mostrará a existência de um passado, o presente sendo o instante imperceptível, e o conceito de futuro uma forma de presente que ainda não aconteceu. Essas ideias distintas são ao mesmo tempo estritamente ligadas uma a outra, e formulam a idéia que Agostinho apresentará em sua obra. Contextualização e biografia A Idade Média - datada do século V ao século XIV - foi um período frutífero para dar margens a um repensar acerca da filosofia dos gregos, assim como abrindo espaço para novas discussões sobre as grandes questões do mundo e do ser. Marcada com a queda do império romano e dando início à forte doutrina religiosa que se instalou na época, surgiu uma tentativa muito intensa de sincretismo entre as vertentes filosóficas e cristãs, sendo colocados como primordiais pela primeira vez assuntos como a prova da existência de Deus e da alma, e não se limitando apenas a isso, também neste período foram criadas várias obras em que se abordam diversas temáticas que influenciaram essa época e as que estariam por vir. Dentro desse contexto, duas importantes correntes de pensamento surgiram, uma sendo a Escolástica baseada nos pensamentos de Aristóteles e a outra sendo a Patrística, que por sua vez detinha-se no pensamento Platônico. Entre diversos nomes que surgiram nesse novo momento da história, um dos que se destacaram dentro desta segunda corrente filosófica foi o de Santo Agostinho, porquanto "nenhum pensador na história da cultura cristã Revista Pandora Brasil - Nº 63 Fevereiro de 2015 - “Filosofia, Tempo e Memória” ISSN 2175-3318 - revistapandorabrasil.com ocidental alcançou uma importância e influência comparáveis à do bispo de Hipona"1. Aurélio Agostinho nasceu em 354 no município de Togaste na África romana, filho de Mônica, cristã devota, e de Patrício, um pagão convertido ao cristianismo no leito de morte. Agostinho estudou retórica em Cartago, onde conheceu uma amante com a qual teve um filho, que deu nome de Adeodatus. Até o momento de sua conversão, Santo Agostinho se voltou primeiramente ao maniqueismo2, devoção que manteve por aproximadamente dez anos, porém em Catargo se encontra com a leitura de Cícero, que o despertou para a filosofia lhe apresentando o interesse pelo ceticismo 3 por um curto espaço de tempo, logo se deparando com o pensamento neoplatônico, que formula boa parte de seu pensar filosófico. Sua conversão acontece, após tantas perguntas sem respostas, quando ele se encontra chorando desolado e, segundo ele mesmo descreve, "Eis que, de súbito, ouço uma voz vinda da casa próxima. Não sei se era de menino, se de menina. Cantava e repetia frequentes vezes: "Toma e lê; toma e lê." 4 Com isto Agostinho teria lido um trecho da Carta de São Paulo aos Romanos encontrada no capitulo 13, versículo 13 e 14 que, em suma, o chama para o abandono da vida mundana, que seria trocada pelo amor a Jesus Cristo. Passando por diversos contextos ao longo de sua jornada, pertencendo à vida impura e cristã, descobrindo também nesse período o pensamento filosófico, atravessando algumas doutrinas até se encontrar definitivamente com o cristianismo e buscar conciliá-lo com a filosofia disposta na época, Agostinho formula seus conceitos com base na sua vivência e estudo. Confissões é o seu livro mais conhecido, onde ele expõe tanto sua vida e os caminhos ao qual percorreu, quanto sua obra filosófica cheia de riquezas, 1 a LIMA VAZ, Henrique Claudio de. Escritos de Filosofia IV: Introduçâo à Ética Filosôfica /. 2 . éd. São Paulo: Loyola, 2002. p. 179. 2 O Maniqueísmo é uma mistura imaginosa de elementos gnósticos, cristãos e orientais, sobre as bases do dualismo da religião de Zoroastro. Admite dois princípios: um cio bem, ou principio da luz, e outro do mal, ou principio das trevas (ABBAGNANO, 2007, p. 641). 3 O ceticismo é um corrente de pensamento filosófico que defende a idéia da impossibilidade do conhecimento acerca de qualquer verdade. 4 AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. OLIVEIRA SANTOS, S.J., e A. AMBROSIO DE PINA, S.J. Sâo Paulo: Abril Cultura, 1980. Revista Pandora Brasil - Nº 63 Fevereiro de 2015 - “Filosofia, Tempo e Memória” ISSN 2175-3318 - revistapandorabrasil.com criando um enorme marco na filosofia medieval. Nas últimas décadas da sua vida, dedica-se quase inteiramente às obras de cunho pastoral, sendo deste período, pois, obras importantes, e acaba finalmente em 430 falecendo em Hipona. Dentre os diversos temas ao qual Agostinho irá discorrer, um dos quais se é discutido como temática filosófica até os nossos contemporâneos é o conceito de tempo, que em sua filosofia traz junto o conceito de memória e destino. Em Confissões, Agostinho poderá esmiuçar esses conceitos e demonstrar como se entrelaçam e conversam entre si, formulando seu pensar filosófico. A predestinação Agostinho formula a teoria da predestinação, ou seja, que já temos um destino pré-definido independente de nossa vontade. Para a salvação, o homem é diretamente dependente da chamada "graça divina", o favor imerecido de Deus, podendo assim dizer que já se é separado desde o nascimento os escolhidos por “Ele” para receber sua benevolência, não possuindo nenhum tipo de opção, mas sendo propensos a isso através do amor ou da dor. O ser humano não tendo assim a possibilidade de escolha sobre sua salvação, mas sendo escolhidos por Deus através de seu plano já definido. Assim como na ética de Aristóteles, na qual sempre conduzirá ao bem que tem como fim a felicidade que será encontrada nas virtudes5 pelo meio termo, em Agostinho, mesmo não se baseando nas escrituras aristotélicas, terá essa mesma ideia, onde para o homem a felicidade será seu fim, mas o que será sua definição especifica para este conceito? A felicidade em Agostinho terá o caráter imutável, nesse contexto, e mesmo que se tenha alegria nas coisas que se transformam, esta jamais será uma felicidade plena. Sendo assim para que encontremos tal felicidade será "(...) necessário que se procure um bem permanente, livre das variações da sorte 5 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheira da versão inglesa de W. D. Ross In: Os Pensadores. Sâo Paulo: Nova Culturel, 1973, v.4. Revista Pandora Brasil - Nº 63 Fevereiro de 2015 - “Filosofia, Tempo e Memória” ISSN 2175-3318 - revistapandorabrasil.com e das vicissitudes da vida"6. Como se encontrar essa felicidade então? Ao pensar nas coisas e no ser, tudo passa e se modifica no mundo, apenas Deus não sendo passível de mudança, a única coisa em que existirá dentro da idéia de eterno. Pensando que tudo o que se faz se volta à busca desta felicidade, e essa felicidade se encontrando em Deus, o homem é levado direta ou indiretamente ao seu encontro. Chega-se então a um momento em que as coisas terrenas não serão de vital importância (aderindo parte do neoplatônismo) e, assim como Platão também não se preocupara com as coisas do mundo sensível, mas apenas do inteligível, em sua busca Agostinho fará o mesmo, encontrando apenas em Deus o fim. Deus tendo criado o homem com um propósito próprio para si o mantém nessa constante busca que terminará na morte e, posteriormente, com o encontro ao Criador, caso este seja seu destino. Por fim, seu destino se descreve no âmbito da busca pelo eterno. Logo somos finitos em busca de algo infinito que possa nos contemplar, nos levar à única felicidade possível que todos buscaremos como fim. Desta maneira, a mudança nos impõe o fato de estarmos encaixados no tempo, considerando que o tempo será somente um momento da existência. O eterno e a questão do tempo As confissões, além de sua autobiografia, mantêm as características filosóficas de Santo Agostinho quando fala sobre a Criação, o Tempo e sobre a noção psicológica que temos deste. Já afirmava Agostino em suas Confissões: "O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei." (AGOSTINHO, 1980, p. 265), assim podemos verificar o quão difícil era - e ainda o é - conceituá-lo de forma clara. Ao longo da história, desde os antigos até os contemporâneos, essa questão foi ponto de dissertações em busca de compreensão e, antes e depois de Agostinho, essa ideia irá permear os filósofos. 6 AGOSTINHO. A Vida Feliz. II, 11. Trad. Nair Assis de Oliveira. Rev. H. Dalbosco. Sâo Paulo: Paulus, 1998. Revista Pandora Brasil - Nº 63 Fevereiro de 2015 - “Filosofia, Tempo e Memória” ISSN 2175-3318 - revistapandorabrasil.com Agostinho já definirá com o conceito da felicidade, a idéia de algo que deveria ser imutável e eterno, dando margem à questão de existir ou não para o homem esta noção. Ele afirmará que o tempo terá dois lados distintos, o eterno e o presente, sendo a eternidade encontrada apenas no caráter divino. [...] ao contrario, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente. Esse tal, verá que o passado é impelido pelo future e que todo o futuro esta precedido dum passado, e todo o passado e futuro são criados e dimanam d'Aquele que sempre é presente. (AGOSTINHO, 1980, p. 301) Todo o tempo será o tempo da alma e será o passado que se encontra na lembrança do homem, como o interesse não estava no presente, mas na expectativa do destino, ou seja, da eternidade como fim para uma alegria plena, o mundo passageiro e mutável não era primordial, mas sim um mundo além deste que era para onde naturalmente todos deveriam se voltar. Memória como possibilidade de se pensar o passado A eternidade se valerá do seu sentido atemporal, sendo a ausência dos conceitos de "antes" e "depois"; enquanto o tempo criação de Deus para conosco, nos faz simplesmente "presentes" (instantes) e este conceito em relação a nossa característica temporal é algo inato e intrínseco a nós como criaturas, jamais podendo ter consciência dos nossos instantes, mas somente dele como segundo que passou. Deus, como eterno, não possuirá memória, que é atributo do passado que se dá somente na temporalidade, e estaremos sempre sujeitos a ela de uma forma ou de outra. Assim sendo, as lembranças são o presente das coisas passadas, o presente será o presente das coisas presentes e as expectativas, como presente das coisas futuras. Quando Agostinho lida com a questão da temporalidade, se dá a extensão de duas coisas, o passado e o futuro, o instante que é um breve vislumbre Revista Pandora Brasil - Nº 63 Fevereiro de 2015 - “Filosofia, Tempo e Memória” ISSN 2175-3318 - revistapandorabrasil.com do eterno sendo imperceptível a nós, e a nossa capacidade da memória, que será o atributo que Deus vai ser isento, sendo o momento algo dentro da temporalidade, sempre sendo o passado que se encontra na lembrança. Conclusão Ao que se refere à filosofia medieval, Agostinho deu grandes passos em temas que ainda assolam os pensadores, como a questão aqui abordada acerca do tempo e com sua jornada, onde passou por altos e baixos em sua vida conturbada até encontrar paz de espírito no cristianismo. Consolidouse após se fundamentar nas teorias neoplatônicas, onde muitos consideraram que ele tentou "Cristianizar" a filosofia de Platão, trazendo o pensamento deste com pequenos movimentos que se transpuseram para dentro da sua religião. Ao longo do tempo outros irão discursar sobre o tempo, como Kant que negará peremptoriamente as opiniões de Agostinho ou Heidegger, filósofo contemporâneo que terá interesse nessa temática. Nas questões que aborda em seu livro Confissões, Agostinho buscará definições para conceitos complexos, e neles sempre um fundamento religioso no qual se baseia a distinção de tempo e seus respectivos aspectos, a forma que a memória influenciará essa distinção, e a base sempre passível de discussão sobre o nosso destino a qual ele dependerá de Deus, que já tem os seus escolhidos destinados à salvação. Por fim, Agostinho se valerá sempre do conceito abstrato de Deus e, mesmo tentando enquadrar a razão como forma de se pensar, para a opinião de muitos sem muito sucesso, suas teorias influenciaram muitos pensadores da sua época como as que estariam por vir. Bibliografia ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Martins Fontes, 1998. Revista Pandora Brasil - Nº 63 Fevereiro de 2015 - “Filosofia, Tempo e Memória” ISSN 2175-3318 - revistapandorabrasil.com AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. OLIVEIRA SANTOS, S.J., e A. AMBROSIO DE PINA, S.J. São Paulo: Abril Cultura, 1980. AGOSTINHO. A Vida Feliz. Il, H.Trad. Nair Assis de Oliveira. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1998. ARISTÓTELES. Etica a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1973. LIMA VAZ, Henrique Claudio de. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1. 2a. éd. Sâo Paulo: Loyola, 2002. http://revistapandorabrasil.com Revista Pandora Brasil - Nº 63 Fevereiro de 2015 - “Filosofia, Tempo e Memória” ISSN 2175-3318 - revistapandorabrasil.com