A vivência intencional da consciência pura em Husserl The intentional experience of pure consciousness in Husserl Carine Santos Nascimento1 Resumo: Este artigo analisa a importância do conceito de intencionalidade compreendida como intencionalidade da consciência em Husserl enquanto ponto de partida para o estudo da Fenomenologia. Em um primeiro momento, o texto aborda em que medida a consciência pura é condição de possibilidade da vivência intencional e, para isso, é necessário destacar o caráter da atitude fenomenológica em detrimento da atitude natural, a saber, com a epoché fenomenológica. Em seguida, destaca as influências e divergências na Fenomenologia husserliana em relação à filosofia cartesiana, apresentando de forma sintética o trajeto percorrido por Descartes, e em que medida a diferenciação entre o cogito cartesiano e o eu-puro husserliano é relevante para a compreensão da análise fenomenológica do conhecimento. Palavras-chave: Intencionalidade. Consciência. Fenomenologia. Redução Fenomenológica. Résumé: Cet article analyse l'importance de la notion d'intentionnalité comprise comme l'intentionnalité de la conscience chez Husserl tandis que point de départ pour l'étude de la Phénoménologie. Dans un premier temps, le texte aborde dans quelle mesure la conscience pure est condition de possibilité de la vécu intentionnelle et, pour ce, il est nécessaire détacher le caractère de l'attitude phénoménologique au détriment de l'attitude naturelle, à savoir, avec l'epoché phénoménologique. Souligne ensuite les influences et les différences dans la Phénoménologie de Husserl au regard de la philosophie cartésienne, présentant synthétiquement le trajet parcouru par Descartes, et dans quelle mesure la différence entre le cogito cartésien et le je-pur husserlien est important pour la compréhension de l'analyse phénoménologique de la connaissance. Mots-clé: Intencionnalité. Conscience. Phénoménologie. Réduction phénoménologique. 1. Considerações iniciais Ao percorrer o conceito fenomenológico da consciência intencional de Edmund Husserl, buscaremos uma contextualização histórica das influências recebidas por ele e das tentativas de refutação de algumas ideias epistemológicas da época. Consideraremos sua intenção em devolver à filosofia o status científico, ao opor-se à forte influência do positivismo, do psicologismo e do naturalismo da época, estabelecendo a filosofia como ciência rigorosa. Analisaremos também em que medida Husserl reconhece o ego cartesiano como verdade apodítica, embora examine os equívocos no modo como Graduanda em Filosofia pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Artigo desenvolvido durante Projeto de Iniciação Científica (PIBIC). Orientador: Prof. Dr. José Fábio da Silva Albuquerque. E-mail: [email protected] 1 A Vivência Intencional da Consciência Pura em Husserl Descartes o representou, visto que a intencionalidade husserliana acrescenta ao ego cogito o cogitatum, ou seja, se pensamos, pensamos em algo, a nossa consciência sempre tem um direcionamento para algum objeto. E como percebemos esta relação? Por nossas intuições originárias; no modo como os fenômenos aparecem à nossa consciência, daí a necessidade de um retorno às coisas mesmas. 2. O desenvolvimento do conceito de intencionalidade em Husserl a partir da influência de Brentano Husserl começa a desenvolver sua filosofia em uma época de crise do pensamento filosófico2 então desvinculado do conceito de ciência3; para essa, aquele já não se apresenta mais como meio capaz de interpretar sistematicamente a realidade. O método científico da época aponta que a filosofia sempre estivera perdida em especulações no domínio das ideias, irrelevantes ao natural. O projeto husserliano, por sua vez, está comprometido com o intento de formular uma filosofia científica rigorosa, alcançando um fundamento inquestionável do conhecimento através de um âmbito de investigação que denominou de fenomenologia – no sentido de um retorno às coisas mesmas, já que o fenômeno se revela como possibilidade interna e imediata na construção do conhecimento. A fenomenologia4 de Edmund Husserl, portanto, se apresenta como um modo de pensar o problema do conhecimento, agitando toda uma tradição filosófica metafísica, que em sua época se encontrava em crise. A gênese do pensamento de Husserl, no que aludi à fenomenologia da intencionalidade, fora influenciada por pensadores contemporâneos a ele, destaque para Franz Brentano, um opositor da experiência como fundamento para o conhecimento 2 Sobre a crise mencionada ver Filosofía em Alemania de Schnädelbach (1991); o autor destaca a crise de identidade da filosofia alemã posterior a Hegel e o desenvolvimento das ciências. 3 Husserl viveu em uma época pós-Hegel em que a filosofia perdeu o papel de modelo das Ciências, à medida que estas passaram a se desenvolver com autonomia (ibidem, p. 87). O filósofo comprometido com sua determinação em dar a filosofia uma fundamentação rigorosa e consequentemente as demais ciências, explana uma crítica que aponta a fragilidade da fundamentação destas, tal aspecto é apontado em suas obras e conferências como a crise das ciências. 4 Segundo Dartigues (2005, p. 09-10) “[...] o primeiro texto que figura esse termo é o Novo Órganon (1764) de Lambert [...] que entende por fenomenologia a teoria da ilusão. É talvez sob influência de Lambert que Kant retoma esse termo, em 1770 designa a fenomenologia como uma disciplina propedêutica que deve preceder à metafísica. Com a Fenomenologia do Espírito deHegel em 1807 o termo entra definitivamente na tradição filosófica, designando a fenomenologia como filosofia do absoluto do espírito”. Husserl por sua vez deu um significado novo a uma palavra já antiga, estabelecendo a fenomenologia “pura”, “transcendental” como possibilidade através da redução eidética. Em Heiddegger “significa um conceito de método, não determinando nenhum objeto particular, é um ‘como’ não um quid: como se manifesta a coisa investigada e como é necessário abordá-la segundo seu modo de observação” (DUBOIS, 2004, p. 23). Volume 9, 2016. www.marilia.unesp.br/filogenese 105 A Vivência Intencional da Consciência Pura em Husserl cientifico. Conforme Dartigues (2005, p. 15), ao propor um novo método de conhecimento do psiquismo, Brentano destaca fundamentalmente os fenômenos psíquicos, os quais comportam uma intencionalidade, a visada de um objeto. Para ele esses fenômenos psíquicos podem ser percebidos e o modo de percepção original que deles temos constitui o seu conhecimento fundamental. A intencionalidade em Brentano a princípio se destaca por seu aspecto psíquico, que se caracteriza pela in-existência ontológica do objeto intencional. Tal aspecto não se refere a não existência do objeto, mas em existência dentro da intenção – o objeto existe enquanto representação dentro do sujeito e não fora dele, e é direcionado intencionalmente para o fenômeno psíquico. Todo e qualquer fenômeno psíquico, é caracterizado pelo que os escolásticos da Idade Média denominavam como inexistência intencional (ou também mental) de um objeto e que nós [...] poderíamos denominar como a referência a um conteúdo, a direção para um objeto (pelo qual não se deve entender uma realidade) ou para objetividade imanente. Todo e qualquer fenômeno psíquico contém em si qualquer coisa como objeto, se bem que cada um a seu modo.” (BRENTANO apud HUSSERL, 2012, p. 315)5 A ideia a priori de objeto intencional imanente à consciência, defendida por Brentano (e a princípio anuída por Husserl), fora alvo de críticas ao ser relacionada ao psicologismo6,embora o próprio Brentano se defenda de tal afirmativa no texto “O psicologismo: Ou o porquê não sou um psicologista”. Contudo, assim como no psicologismo, a sua investigação se voltava meramente ao ato psíquico no qual não atribuía diferença entre o objeto do conhecimento (noema) e o ato mesmo de conhecer (noesis). Conforme Carlos Alberto Ribeiro de Moura (2006, p. 38) o psicologismo Os escolásticos da Idade Média caracterizavam o objeto intencional da consciência como “imagens” como objeto mental, a intencionalidade era um fenômeno psicológico no interior do sujeito. Em Brentano os objetos intencionais eram imanentes à consciência (não necessariamente um objeto real). Conforme Mccormick (1981, p. 228ss) a intencionalidade em Brentano fora influenciada pelos escolásticos, em especial Tomas de Aquino, à medida que é no Aquinate que Brentano retira a primeira das duas noções que formam seu conceito de Intencionalidade, a noção de inexistência intencional. A noção de referência a um conteúdo, visada de um objeto - assim objetividade imanente - se figura como a sua segunda noção de intencionalidade (ibid), que também segundo Mccormick está sob influência escolástica. Posteriormente, novas descrições dos atos psíquicos levaram Brentano ao abandono dessa tese ontológica que se caracterizava pelo objeto in-existente ou imanente, à medida que reconhecerá nessa um meio ineficaz para distinguir entre o psíquico e o físico. 6 Termo provindo da psicologia e que surgiu no século XIX. Husserl vai de encontro ao Psicologismo, pois em sua fenomenologia da Intencionalidade da consciência, devemos levar em consideração atos da consciência, os conteúdos do pensamento e não unicamente uma investigação do ato psíquico do pensar que provém de eventos empíricos. Segundo Abbagnano (2005, p. 811) “no seu uso polêmico, o termo é constantemente empregado para designar a confusão entre a gênese psicológica do conhecimento e sua validade; ou a tendência a julgar justificada a validade de um conhecimento, quando na verdade só se explicou seu acontecimento na consciência.” 5 Volume 9, 2016. www.marilia.unesp.br/filogenese 106 A Vivência Intencional da Consciência Pura em Husserl enquanto psicologia empírica (consciência individualizada) exerce a epoché da validade em relação ao mundo, uma subjetividade que é parte do mundo. Em 1901, nas Investigações Lógicas, Husserl parte dessa consciência psicologicamente decifrada (fenômenos psíquicos) para empreender a “purificação” que levará à subjetividade fenomenológica. Essa se distingui daquela encontrada na psicologia empírica (consciência individualizada) por ser uma consciência eideticamente purificada e desligada de todo e qualquer indivíduo mundano. Na psicologia o eu espiritual-consciência é definido como “a unidade real (reell) dos vividos de um eu, onde esses vividos são acontecimentos reais (realen)” (MOURA, 2006, p 42). Sem embargo, a partir de 1906 Husserl reconhece contra o psicologismo7 que “a consciência não é nenhum vivido psíquico, nenhum entrelaçamento de vividos psíquicos, nenhuma coisa, nenhum anexo (estado, atividade) em um objeto natural” (ibidem, p 45). Deste modo, como antipsicologista, Husserl reconhece os vividos analisados pela fenomenologia como sendo “irrealidades” (irrealitäten). 3. A consciência intencional em Husserl Na tentativa de embate ao psicologismo, Husserl desenvolve o seu próprio caminho para um conceito fenomenológico de consciência, embora não deixasse de caminhar segundo o postulado básico explicitado por Brentano - consciência como consciência de algo, referente a algum objeto, esse direcionamento é possível pela intencionalidade. Na Quinta Investigação de Investigações Lógicas, Husserl (2012, p. 295ss) apresenta três possíveis significados para definir a consciência: 1) relação das vivências psíquicas verificáveis no fluxo das vivências;2) percepção interna das próprias experiências;3) vivência intencional. Será nesse terceiro sentido que ele direcionará a 7 Embora o artigo não tenha como foco o percurso que levou Husserl a ser contrário ao psicologismo, mas sim, apresentar as características do que Husserl chama consciência as quais distanciam sua perspectiva do psicologismo, indica-se ver Investigações Lógicas (2014) - primeiro volume, em especial os § 21 e 22 (exemplo da calculadora) e o § 51 (diferenciação entre o real e o ideal), com a finalidade de compreender seu posicionamento. Segundo Tourinho (2014) as críticas de Husserl apontam que o erro da pretensão psicologista é a tentativa de fundamentação das leis da lógica na psicologia, tomando as puras leis do pensamento em termos de leis causais da natureza. O erro psicologista é a confusão entre os domínios do real e do ideal no que tange ao pensamento, pois ao restringir a legalidade a ele aplicada, aos termos de leis psicofísicas ignora-se a dimensão ideal que sustenta a possibilidade de fundamentação do conhecimento. A intenção psicologista de fundamentar o conhecimento a partir do viés empírico, interpretando a consciência como domínio factual natural, que faz com que o movimento caia na confusão acima mencionada teria por consequência, segundo Husserl, o encobrimento da dimensão intencional da consciência enquanto doadora de sentido e, ainda, o fado da condenação do pensamento a um relativismo cético - sobre a última ver Tourinho (2011). Volume 9, 2016. www.marilia.unesp.br/filogenese 107 A Vivência Intencional da Consciência Pura em Husserl sua pesquisa fenomenológica da intencionalidade. Em outras palavras, Husserl define consciência como unidade de vivências - totalidade de atos intencionais de significâncias. A intencionalidade enquanto característica fundamental da consciência abrirá portas significativas no desenvolvimento do pensamento husserliano. Para o filósofo, toda consciência é intencional por efetivamente se direcionar para algo, de tal modo, toda consciência é consciência de um objeto intencional de uma visada, “todos os vividos que têm em comum essas propriedades eidéticas também se chamam ‘vividos intencionais’, uma vez que são consciência de algo, eles são ditos ‘intencionalmente referidos’ a esse algo” (HUSSERL, 2006, p. 89). Contudo, rejeitando a ideia de inexistentia intentionalis, consciência intencional não será mais analisada como um conceito de intencionalidade psíquica, mas em seu aspecto transcendental, a partir do a priori da correlação. Indubitavelmente, a ideia de Intencionalidade ocupou um papel central nas investigações fenomenológicas de Edmund Husserl, ponderando a correlação entre a consciência e o mundo dos vividos. Na sua espontaneidade, a consciência acolhe o mundo exterior (enquanto conteúdo objetivo do pensamento – noema) e a ela mesma (ato psíquico de conhecer – noesis) como existentes independentes, caracterizando a atitude natural. Porém, Husserl inferi a necessidade de superação da visada de um objeto na atitude natural, pré-filosófica. Segundo ele, porque essa visada não direciona ao conhecimento verdadeiro, apenas continua atestando que existe realidade independente da consciência – por exemplo, diante de um objeto, apenas diz que ele existe em algum lugar e é representado na consciência. Tal aspecto não nos direciona à intuição originária. Será na correlação transcendental da consciência com o mundo que Husserl propõe um retorno às coisas mesmas, “à vivência original do objeto”, conforme Silva (2009, p. 48). A proposta de Husserl, portanto, é a vivência desses objetos na consciência pura, ou seja, na subjetividade transcendental. A experiência transcendental, por sua vez, só pode ser pensada a partir do aspecto intencional dessa consciência, quando destituída da sua atitude natural. Entrementes, como se dá a superação da atitude natural e, por conseguinte, a consciência pura entrelaçada ao fluxo de vivência visando conhecimentos válidos? A saber, através da epoché fenomenológica e da decorrente Redução Transcendental. Com a suspensão fenomenológica transcendental, o que se estabelece “aparece” (não como referência a algo existente no mundo) à consciência pura destituída do conteúdo natural, é o fenômeno. Volume 9, 2016. www.marilia.unesp.br/filogenese 108 A Vivência Intencional da Consciência Pura em Husserl Assim, a forma de ir às coisas mesmas, às intuições mais originárias, exige dirigir o olhar ao modo de doação imediata de sentido para a consciência pura (que se mostra como fundamento absoluto da realidade, depois de colocarmos o mundo transcendente em suspensão), de onde emerge todo conhecimento válido. O retorno às coisas mesmas, portanto, indica como as coisas se apresentam à consciência purificada e como as experimentamos, sentimos, vivenciamos, conhecemos. Conforme Bernet (2013, p. 118) o sentido último da redução fenomenológica imbrica que “os fenômenos verdadeiramente fenomenológicos só aparecem quando eu decido investigar todos os objetos, possíveis e reais, no seu modo de doação em relação a mim”. Perceber fenomenologicamente a forma como o objeto se doa, se apresenta à consciência, representa a condição para a análise do fundamento do conhecimento. Partindo das coisas mesmas, claras à luz da evidência, alcançamos o rigor da ciência e a filosofia enquanto ciência rigorosa, por isso, Husserl propõe suspensão da atitude natural (epoché de conhecimentos que antecedem a evidência apodítica), na qual está imbricada nossa concepção de mundo, para então decorrer o critério de evidência fenomenológica. Como Descartes, ele reivindica a suspensão da “atitude natural”, da crença no mundo externo [...] e a concentração em nosso próprio ego. Esta suspensão da crença é a Epoché [...]. Há duas razões para a epoché e a decorrente “redução transcendental”: 1.unicamente o ego e seus estados podem fornecer as “fundações” certas e seguras para as ciências; 2.o ego e seus estados constituem um rico campo de investigação por mérito próprio – um campo que Descartes descobriu, mas rapidamente deixou vago [...] (INWOOD, 2002, p. 67) A epoché fenomenológica se caracteriza por um distanciamento contínuo da atitude natural por meio da atitude inquiridora. O termo grego ἐποχή, segundo Löwit (1957, p. 400) deriva da atitude cética dos pirrônicos que se caracterizava por um estado contínuo de dúvidas relativas aos dogmas, às verdades inquestionáveis. Nessa atitude, ao suspender o juízo, não é permitido negar nem nada afirmar, não se aceita nem se rejeita, mas apenas se mantém a postura cética. Apesar dessa influência relacionada ao termo, a epoché em Husserl ganha novas significações, à medida que não será uma abordagem puramente cética, mas, antes, uma atitude imprescindível que retira a consciência de uma postura ingênua do mundo natural. Por sua vez, a redução fenomenológica que sucede a epoché apresenta-se como um aspecto relevante para compreensão da fenomenologia intencional husserliana, pois Volume 9, 2016. www.marilia.unesp.br/filogenese 109 A Vivência Intencional da Consciência Pura em Husserl é através dela que se torna possível captar a realidade do objeto intencional em relação à consciência pura. Para Husserl, a Redução Fenomenológica [...] é o método de recondução do olhar fenomenológico da atitude natural do homem que vive imerso no mundo das coisas e das pessoas para a vida transcendental da consciência e suas vivências noético-noemática, vivências nas quais os objetos se constituem como correlatos de consciência. (HEIDEGGER, 2012, p. 36-37) E onde se constitui os objetos intencionais? Nas vivências da consciência pura. É relevante ressaltar aqui um aspecto da filosofia fenomenológica de Edmund Husserl: não é subjetividade que produz “mundo”, mas compõe unidades de vivências objetivas que possibilitam conhecimento de mundo. Conforme Fontana (2009, p. 4), “não é possível fundar uma ciência absoluta da consciência separada de seus vividos”, pois há uma correlação necessária entre a subjetividade pura (consciência) e a objetividade (mundo), nessa relação se constitui o campo transcendental. Sem consciência o objeto seria indistinto, trazê-lo à luz através da consciência pura enquanto possibilidade de conhecimento é o que propõe a fenomenologia husserliana8. Conforme Bernet (2013) o fenômeno - algo que aparece - testemunha o caminho de formação de sentido Assim, na sua acepção mais simples a constituição transcendental enfatiza o entrelaçamento ou a correlação da experiência subjetiva, por um lado, e a determinação do sentido do objeto e modo de ser, por outro. (BERNET, 2013, p. 120). A redução fenomenológica, portanto, é um meio metodológico pelo qual o “eu” se capta puramente como vida de consciência e o mundo objetivo no seu conjunto é tal como precisamente para o ego é. O eu puro apresenta-se como doador de significados em relação ao eu empírico mundano, “Todo e qualquer ser mundano, espaço-temporal, é para mim porquanto o experiencio, percepciono [...] nele penso de algum modo [...]. 8 Há vertentes opostas ao pensamento fenomenológico husserliano. P.ex., Heidegger se destaca ao criticar a ideia da fenomenologia intencional, necessária a partir da consciência pura. Ou seja, Heidegger se opõe à ideia de vivencia intencional possível a partir da consciência pura. Ao problematizar a questão da consciência pura, Heidegger critica a tentativa husserliana de “purificar” a consciência - enquanto fluxo contínuo de vivências -, para depois analisar de forma minuciosa os atos específicos da consciência; destacando que “pureza” não é necessidade para a investigação da Intencionalidade, pois o caráter da intencionalidade da consciência já se encontra na atitude natural, assim Heidegger também rechaça a necessidade de superação da atitude natural (isso não significa que ele desconsidere a importância da redução transcendental), ao perceber a relevância de uma relação cotidiana com os entes que se apresentam no mundo, destarte Heidegger insere um elemento hermenêutico ontológico na origem da ideia fenomenológica. Volume 9, 2016. www.marilia.unesp.br/filogenese 110 A Vivência Intencional da Consciência Pura em Husserl Como é bem sabido, Descartes designou tudo isso pela palavra cogitatio” (HUSSERL, 2013, p.6). 4. Aspectos que diferem a dúvida cartesiana da epoché fenomenológica husserliana Se percorrermos o idealismo filosófico cartesiano, perceberemos aspectos similares à filosofia de Husserl, à medida que este também trilha o caminho cartesiano, embora o submetendo a reformulações e questionamentos. Como é sabido, Descartes, no intuito de se livrar dos prejuízos da infância e opiniões preconcebidas, estabelece o sentido da dúvida metódica, ou seja, a reconstrução do saber. Era preciso, portanto, que, uma vez na vida, fossem postas abaixo todas as coisas, todas as opiniões em que até então confiara, recomeçando dos primeiros fundamentos, se desejasse estabelecer em algum momento algo firme e permanente nas ciências. (DESCARTES, 2004, p. 21). Duvida a fim de determinar o indubitável, com uma metodologia, segundo ele, confiável para sua nova ciência. No processo da dúvida metódica, suspende o juízo temporariamente e, ao suspender as suas crenças, descarta conhecimentos construídos sob aspectos sensíveis. Encaminha-se rumo às ideias inatas, às verdades dispostas à luz da razão. Assim, a partir da dúvida Descartes se depara com a constatação do eu pensante - a certeza do cogito-, ou seja, por mais que duvidasse de tudo não poderia duvidar de que estava pensando. “Eu sou, eu existo”; se sou, se existo, o que sou? Sou algo que pensa, coisa pensante” (DESCARTES, 2004, p 27). “Que é isto? A saber, coisa que duvida, que entende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente” (ibidem, p. 28). O “eu” pensante torna-se o núcleo fundamental da investigação filosófica, e a referência para se alcançar o conhecimento. A diferenciação entre o cogito cartesiano e o eupuro husserliano é relevante para se entender a análise fenomenológica do conhecimento. Para Descartes, a natureza do eu consiste apenas no pensamento e independe da existência dos corpos; a evidência da existência do cogito é a revelação do ser do pensamento. Para o filósofo, o eu é concebido como uma coisa completa - e como substância pensante subsiste independente de outra coisa (corpo). Descartes tem no conhecimento da própria existência um firme alicerce para o conhecimento das demais coisas. Para ele, conhecer significa conceber a verdade, por isso a relevância do conhecimento sobre Deus. O Volume 9, 2016. www.marilia.unesp.br/filogenese 111 A Vivência Intencional da Consciência Pura em Husserl filósofo recorre ao ente Absoluto como aquele que garante nossas percepções claras e distintas, nossas verdades. Para Löwit (1957, p. 406) recorrer à verdade divina tem seu sentido em Descartes, à medida que Deus é a garantia que temos da existência das coisas exteriores e das ideias e representações que possuímos dessas coisas. Mas como problema prévio a isso, é preciso assegurar também a verdade da existência divina, para assim garantir a correspondência do meu conhecimento e determinar o seu valor objetivo. A primeira tentativa de provar a existência de Deus parte da análise da ideia em sentido próprio, parte dos efeitos para a causa - princípio de causalidade. Para Descartes, Deus é causa de si mesmo e se apresenta a partir da sua ideia impressa no entendimento da substância pensante (ideias inatas) sem recurso à experiência. Assim, Deus é a causa e quem mantém a existência, Deus é a causa que movimenta e nos conserva no ser. “O movimento do mundo posto em dúvida para a certeza do eu e para a de Deus é o movimento de regresso ao ser, que é toda a metafísica” (ALQUIÉ, 1969, p. 11). Conforme Onate (2006, p. 109), Husserl ao questionar a filosofia cartesiana detecta duas omissões no tratamento do cogito, a primeira refere-se à falta de exploração minuciosa do caráter metódico da dúvida, que impediu a abertura ao âmbito da epoché (exigindo a necessidade de um ente transcendente, Deus, como necessidade para clareza e distinção do cogito). O que consequentemente leva a uma segunda omissão: a relevância do caráter intencional da consciência pura. Já para Löwit (1957, p.399ss), há três principais características que diferem a epoché Husserliana da cartesiana: primeiro, a epoché em Husserl não implica elemento de negação, “suspender a posição do mundo, se abster da crença na sua existência, não significa, em Husserl, parar de crer para duvidar, [nem] negá-la, ou ficar na indecisão, mas, por assim dizer, retirar-se desta crença, não mais participar [dela]”9. O segundo ponto consiste em que a epoché em Husserl, totalmente ao contrário da dúvida em Descartes, não é provisória, mas definitiva, ele permanece na epoché, pois ela é um método eficaz para estabelecer do mundo uma ciência verdadeira. O terceiro aspecto se refere à universalidade da epoché, pois em Descartes a posição do eu pensante aparece como uma limitação à epoché, já que tudo no mundo (e o próprio mundo) está sujeito a epoché, exceto minha alma. Em Husserl, porém, o eu enquanto alma está sujeito a epoché. 9 Todas as citações traduzidas do francês são de responsabilidade da autora. Volume 9, 2016. www.marilia.unesp.br/filogenese 112 A Vivência Intencional da Consciência Pura em Husserl Como podemos suspender a crença sem a transformar em outra coisa, em uma dúvida, uma indecisão, ou uma negação? [...] o eu que continua a crer no mundo, e aquele que suspende essa crença, não são o mesmo eu: a epoché implica, com efeito, um desdobramento do eu. Pela epoché se estabelece, acima do eu ingênuo, um eu filosófico ou fenomenológico, um eu que não afirma, não duvida, nem nega, mas que é um espectador desinteressado (LÖWIT, 1957, p. 400) A consciência em Descartes não vai além de si mesma, mas mantém a sua condição subjetiva; ou seja, quando estamos conscientes estamos conscientes de nós mesmos. O caráter imanente é formado por cogitationes (pensamentos) que constituem a vida consciente, consciência psicológica essa que está imbricada na atitude natural à medida que é direcionada por um fenômeno real – res. Descartes ao suspender o juízo, e através da dúvida metódica apenas nega a realidade, mas não caminha em direção oposta à atitude natural e acaba por fim a ela retornando. De forma análoga Löwit (1957) destaca que Descartes nos direcionou à terra prometida da filosofia. Com seu princípio de suspensão do juízo, obteve um método capaz de levar enfim a filosofia ao seu fundamento último. Mas, por que Descartes apesar de ter construído fundamentos sólidos, não alcançou um método rigoroso para a fundamentação de uma ciência absoluta? Embora o cogito e seus cogitationes impliquem relações intencionais, o sujeito em sua atitude natural não compreende o objeto como intencional. Descartes apenas duvidou da existência das coisas fora do eu pensante, contudo não problematizou uma questão fundamental: como a consciência imanente atinge a transcendência que define o objeto. O sujeito em Descartes percebe, pensa, sente, entende ‘algo’, contudo, nossa consciência não é direcionada às coisas fora do eu pensante, mas às deduções que fazemos das coisas. Esses aspectos apresentam-se como vestígios da filosofia cartesiana a respeito do mundo, à medida que Descartes apenas duvida da existência do mundo (não apresentando como problema o sentido dessa existência) – ao contrário de Husserl, que não duvida, mas, questiona a compreensão que dele temos. A ocupação com esse sentido suscita a necessidade de suspender a posição a respeito do ser do mundo. Eis o entendimento da epoché husserliana: compreender o sentido do conhecimento de mundo e seus conteúdos e assegurar a correspondência entre o conhecimento do mundo e o mundo em si mesmo. Portanto, ao rechaçar a subjetividade psicológica enquanto interioridade do sujeito empírico como validade do conhecimento Husserl defende a noção do “eu puro”. Volume 9, 2016. www.marilia.unesp.br/filogenese 113 A Vivência Intencional da Consciência Pura em Husserl Não é o “eu penso” cartesiano como a origem de todo conhecimento, entrementes, quando penso, me direciono para um algo pensado. Não há pensamento desligado de uma realidade objetiva, daí resulta a proposta fenomenológica de Husserl, voltar às coisas mesmas onde reside o conhecimento. O “eu puro” rechaça a filosofia tradicional à medida que estabelece por meio da intencionalidade relação necessária entre subjetividade e objetividade, possibilitando a constituição de significado relacional das conexões eidéticas. Husserl reconhece a importância do cogito cartesiano e a valorização do sujeito como meio para o conhecimento, mas além de reconhecer as deficiências supracitadas, problematiza também a substancialização - ares cogitans. Para Husserl, Descartes se aproximou do conhecimento fenomenológico ao valorizar o cogito, contudo ao substancializar a subjetividade a transforma em um ente da metafísica envolto em um princípio de causalidade e, embora com uma intuição originária, não fizera fenomenologia ao desconsiderar a relação transcendental do eu com os objetos. Husserl, por sua vez, reformula o ego cogito, acrescentando-lhe o cogitatum enquanto correlato de vividos intencionais. Nesse sentido, afirma Dartigues (2008, p.25) que com a epoché fenomenológica há uma superação da dúvida e do solipsismo cartesiano, pois o mundo permanece tal como era, com seus valores e significações, e ao ego cogito resta a correlação entre o eu penso e o seu objeto de pensamento, cogitatum. O aspecto transcendental da fenomenologia é o que difere o idealismo husserliano do idealismo cartesiano, a saber, com a fenomenologia da consciência pura em Husserl superamos a atitude natural. 5. Considerações finais Ao refletirmos fenomenologicamente, deixamos de vivenciar os objetos como coisas no mundo– presentes à vista, que nos direciona ao conhecimento natural –, e passamos a vivenciar as estruturas formadoras de significados desses objetos - ao retornarmos para a vivência temática dos próprios atos das experiências vividas. Em Husserl só é possível encontrar um fundamento para formação de uma ciência rigorosa nas experiências vividas puras, ou seja, a partir das análises dos atos da consciência. A fenomenologia é uma filosofia do fluxo de vivência pura e anuncia que não há objeto em si, como defendia os realistas, pois objeto é sempre para um sujeito que lhe dá significados (para os realistas a representação que fazemos das coisas estão nos Volume 9, 2016. www.marilia.unesp.br/filogenese 114 A Vivência Intencional da Consciência Pura em Husserl objetos em si mesmos, que são pontos de partida para o conhecimento, assim que apreendidos pelos sentidos e interpretados pelo intelecto); e que não há possibilidade de um conhecimento despojado de subjetividade como apregoava os positivistas. Com a fenomenologia transcendental Husserl contrapõe ainda o empirismo (p. ex. Locke) – a experiência como meio de adquirir a validade de conhecimento –, o idealismo, que aderi à mente do sujeito como único meio de conhecimento, e o racionalismo – pois não há conhecimento separado de mundo –, à medida que consciência é sempre consciência de alguma coisa. A fenomenologia husserliana com o eu puro transcendental também se diferencia do caráter da consciência psicológica intencional do cogito cartesiano, pois esta não é purificada e doadora de sentidos que se manifesta por meio da intencionalidade e não está em correlação com os vividos puros, mantendo-se na atitude natural na facticidade do mundo. Para Husserl, como apresentado no decorrer do texto, é o fenômeno por si, na consciência pura, que se mostra como meio eficaz para construção do conhecimento absoluto. Mostramos que a análise fenomenológica husserliana não é meramente um exame da vivência factual que correlaciona os objetos com a consciência, ou ainda, um caminho para se alcançar uma “consciência pura” – tão importante para o processo do conhecimento do fenômeno. Alcançar o “eu puro” em si mesmo não é proposta fundamental em sua fenomenologia analítica intencional, mas a análise dos próprios atos da consciência pura, as vivências que dão significados, o vivido e suas relações. O que importa é o ato intencional, a vivência do significar. A estrutura intencional indicada por ele relata a maneira como a consciência pura se direciona para os objetos na essência das experiências vividas. Conforme Albuquerque (2015), só na experiência do vivido é possível encontrar-se com a ciência, pois no projeto fenomenológico husserliano a intencionalidade se dá a partir das análises das estruturas a priori dos comportamentos da consciência, no fluxo das experiências vividas que nos direcionam a conhecimentos válidos. Daqui a importância da proposta da redução transcendental, enquanto o processo necessário para alcançar o comportamento da consciência pura e o modo como seus objetos são apresentados. Verdades apodíticas não se detêm no mundo dado nas atitudes naturais, mas através da Redução que “reduz-me ao meu eu puro transcendental (HUSSERL 2013, p. 10) “[...] reduzo o meu eu natural humano, e a minha vida anímica” (Ibid. p. 63), o que possibilita a correlação entre subjetividade e mundo colocando em manifesto a intencionalidade. Esta enquanto resultado da redução Volume 9, 2016. www.marilia.unesp.br/filogenese 115 A Vivência Intencional da Consciência Pura em Husserl fenomenológica mostra o fundamento transcendental – como condição de possibilidade de todo significar. Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ALBUQUERQUE, J. F. S. A Ciência Moderna no Primeiro Heidegger:A Interpretação heideggeriana ao comportamento científico. Vitória da Conquista, BA: Edições UESB, 2015. ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes. Lisboa: Editorial Presença. 1993 BERNET, R. Fenomenologia Transcendental?Kairos. Revista de Filosofia & Ciência 8: 115-139, 2013, Tradução da versão inglesa deTranscendental Phenomenology? de Nuno Melim. DARTIGUES, A. O que é a Fenomenologia? São Paulo, SP: Centauro, 2008. DESCARTES, R. Meditações Sobre Filosofia primeira. Tradução: Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2004. DUBOIS, C. Heidegger: Introdução a uma leitura.Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2004. HEIDEGGER, M. Os Problemas Fundamentais da Fenomenologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. HUSSERL, E. Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica.São Paulo: Ideias & Letras. 2006. ______. Investigações Lógicas.Primero volume: prolegômenos à Lógica Pura. Rio de Janeiro: Forense Universitária 2014. ______.Investigações Lógicas.Segundo volume, parte l: investigações para uma fenomenologia e a teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Forense Universitária 2012. ______.Meditações Cartesianas e Conferências de Paris.Rio de Janeiro: Forense Universitária 2013. FONTANA, V. F. A Intencionalidade no Idealismo Transcendental de Husserl.Tempo da Ciência (16) 31: 185-198, 1º semestre 2009. INWOOD, M. Dicionário Heidegger.Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed., 2002. LÖWIT, A. L' «épochè» de Husserl etledoute de Descartes. Revue de Métaphysique et de Morale, 62e Année, No. 4 (Octobre-Décembre 1957), pp. 399-415 MCCORMICK, P. Sur le développement Du concept de l’intentionnalité chez Brentano et Husserl. Philosophiques, vol. 8, n° 2, 1981, p. 227-237. MOURA, C. A. R. Husserl:significação e fenômeno. Curitiba, São Carlos: Dois pontos, vol.3, n.1, p.37-61, abril, 2006. ONATE, A. M. A noção husserliana de subjetividade transcendental.Porto Alegre: VERITAS, v. 51, n. 2, Junho 2006p. 109-116. SCHNÄDELBACH, H. Filosofía en Alemanha, 1831-1933.Madrid: Ediciones Cátedra, 1991. SILVA, M. L. A Intencionalidade da Consciência em Husserl. Argumentos, Ano 1, N°.1 – 2009. TOURINHO, C. D. C. Lições fundamentais de Husserl em Prolegômenos:distinção e relação entre o real e o ideal / o normativo e o puramente teorético.Problemata: R. Intern. Fil. v. 5. n. 1 (2014), p. 130-148. ______. A filosofia como ciência rigorosa, a crítica ao psicologismo e a autoreflexão da consciência transcendental.Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v.3, n.2, p.1-144, out.2010/mar.2011. Volume 9, 2016. www.marilia.unesp.br/filogenese 116