Curso e Colégio Rumo São Paulo e Curso Gpi

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GRAMÁTICA E LITERATURA: DIÁLOGOS INTERTEXTUAIS
NOME: Abrahão Costa de Freitas
Instituição: Curso e Colégio Rumo São Paulo e Curso Gpi - SP
Introdução
Segundo Dominique Maingueneau (1996, p. 7), a língua “não deve ser
concebida somente como um léxico associado a regras fonéticas e morfossintáticas,
mas também como um sistema que permite aos locutores que ‘se apropriem’ dele de
alguma maneira a fim de produzir seus enunciados particulares”.
Sob essa perspectiva, a interpretação de qualquer discurso deve considerá-lo
não apenas como um aglomerado de conceitos gramaticais, mas também como um
conjunto de enunciados que se apóia em um dado sistema de formação e
informação.
A esse respeito, Michel Foucault (2006, p. 67) é extremamente elucidativo
quando afirma que “os discursos não são conjuntos de signos (elementos que
remetem a conteúdos e representações), mas práticas que formam
sistematicamente os objetos de que falam”.
Portanto, a ênfase dada ao discurso não deve repousar apenas em seus
aspectos gramaticais. É necessário que se tenha claro quais as intenções do
enunciador ao formulá-lo, bem como as múltiplas possibilidades de sentido que o
enunciatário poderá dar a ele.
É preciso que não nos esqueçamos da lição de Goulemot (1996, p. 108) ler é
“constituir e não reconstituir um sentido”. Em outras palavras, a leitura é uma prática
criadora, uma atividade produtora de sentidos.
Assim, os códigos, modalidades e formas que orientam a prática da leitura em
qualquer comunidade, seja ela escolar ou não, deverão favorecer a compreensão do
texto em toda a sua amplitude e abrangência, objetivando uma leitura se não
correta, ao menos, desafiadora. Uma leitura baseada na concepção de formas e
idéias capazes de despertar emoções e aguçar o sentimento estético do aluno,
levando ao seu enriquecimento cultural e pessoal. Isso contribuirá, não apenas para
o seu letramento, mas sobretudo para sua formação como leitor e sujeito.
O objetivo deste trabalho será, portanto, valorizar a relação desse sujeito com
a linguagem dos textos literários, permitindo, que a partir deles, ele possa construir
um sentido para as regras que regem o sistema da língua e para a enunciação como
um todo.
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1. O espaço do texto na sala de aula
“O mundo tem o tamanho da linguagem de cada um.”
WITTGENSTEIN
As intricadas redes envolvidas no processo de produção, circulação,
divulgação e recepção da produção impressa no Brasil apontam para um complexo
sistema de relações que envolvem aspectos econômicos, sociais, políticos e
culturais cuja diversidade exige uma análise séria e detalhada.
A complexidade do mercado editorial brasileiro é tamanha que em 2003, no
32º Encontro Nacional de Editores e Livreiros, discutiu-se a questão de maneira
exaustiva, visando à construção de estratégias para a ampliação e solidificação
desse mercado. A conclusão a que chegaram foi a de que, em um país no qual
escasseiam os leitores, os alfabetizados e as bibliotecas públicas, o principal
mercado a ser conquistado é a Escola. As políticas públicas de fomento à leitura
tornariam o negócio lucrativo e atraente.
Ferreira (2006, pp. 9/10) debate esse assunto em uma coletânea de artigos
cujo objetivo é justamente analisar como se dá a utilização de livros, catálogos,
revistas e sites no universo escolar. E de que maneira o mercado editorial encara
esse universo de consumidores.
O trabalho mostra de que maneira os impressos destinados à escola
mudaram, na medida em que mudaram os paradigmas teóricos que norteavam a
concepção de ensino/aprendizagem. É surpreendente a constatação de que, a
despeito das pretensas mudanças operadas nos métodos de ensino, a maneira
como o texto é utilizado nos manuais de leitura e interpretação ainda é a mesma que
existia em meados do século XX.
Se voltarmos à idéia foucoultiana (2006, pp. 67/68) de que os discursos são
feitos de signos cuja especificidade é designar coisas, perceberemos de que
maneira a linguagem desses manuais exprime, manifesta e traduz uma visão de
mundo bastante peculiar. Uma visão na qual o velho e o novo são reflexos um do
outro.
Na maioria das vezes, a presença do texto em sala de aula se dá apenas
como pretexto para a verificação de aspectos superficiais da estrutura textual e para
a aferição de conhecimentos lingüísticos que se atêm à gramática normativa. A
prática já está tão arraigada à nossa cultura, que se torna quase impossível imaginar
alternativas para a utilização do texto em situações de aula.
Concebidos com o objetivo único de facilitar o ensino e a aprendizagem da
língua no âmbito escolar, os manuais de leitura e interpretação de texto fazem pouco
caso de uma evidencia para qual Maingueneau (1996, p. 5) chama a nossa atenção
“Todo enunciado, antes de ser esse fragmento da língua natural que o lingüista
2
procura analisar, é o produto de um acontecimento único, sua enunciação, que
supõe um enunciador, um destinatário, um momento e um lugar particulares.” ∗
Transformar esse acontecimento único em um diálogo entre o maior número
possível de interlocutores é o grande desafio de quem se lança na aventura de fazer
do texto literário um instrumento de estudo, análise e fruição. Os intercâmbios
lingüísticos que a enunciação literária possibilita vão muito além da simples visão da
língua como um léxico associado a regras fonéticas e morfossintáticas. Exige a
concepção de um sistema que permita a seus locutores a produção de enunciados
particulares. O que significa que a apropriação da língua é um ato de capacitação
para a vida. É através da enunciação que o indivíduo se constitui como sujeito. É
através dela que ele legitima suas relações com o mundo e com o outro.
Portanto, o estudo da gramática associada ao texto deve levar em
consideração os contextos da enunciação: o espaço, o tempo e as circunstâncias
sob as quais foi produzido um determinado enunciado.
O poema Aula de português, de Carlos Drummond de Andrade (1999, p.86),
pode nos ajudar a compreender a importância do contexto nesse processo:
A linguagem
na ponta da língua
tão fácil de falar
e de entender.
A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.
Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, seqüestram-me.
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.
Percebe-se claramente, ao longo do texto, três estágios distintos do contato
do sujeito poético com a enunciação lingüística. Dois deles situados na infância e
marcados pela descoberta do poder transformador da linguagem.
∗
Grifos do autor.
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O primeiro momento é marcado pela oralidade, pela espontaneidade daquilo
que Oswald de Andrade (1987, p. 327) chama de a língua natural e neológica. É
um instante de descobertas e de valorização do que Ortega y Gasset (1994, p.69)
classifica como o saber a que se ater:
A linguagem
na ponta da língua
tão fácil de falar
e de entender.
Essa maneira de encarar a língua produz um efeito capaz de levar o sujeito a
uma ressignificação do mundo que o cerca, tirando daquela o que é essencial para
situá-lo neste. Possibilita a ele uma consciência de realidade que o habilita a fazer
da enunciação um processo de recriação dessa mesma realidade. Sem as amarras
de regras e convenções, ele transcende o próprio espaço da enunciação com as
ferramentas da fantasia e da imaginação.
No contexto dessa enunciação, o espaço da vida social e dos fenômenos
naturais constrói-se a partir de um determinado conhecimento lingüístico. “A
linguagem / na ponta da língua / tão fácil de falar / e de entender” é o ponto de
contato do indivíduo com a realidade exterior, a intersecção entre dois mundos: o
que traz dentro de si e aquele que o circunda.
O sentido que faz para ele o mundo, contudo, logo se desfaz, quando se
defronta com o artificialismo das convenções da gramática tradicional. As
associações por ela propostas oferecem uma imagem cujo artificialismo escapa às
suas habilidades cognitivas:
A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que quer dizer?
“A linguagem / na superfície estrelada de letras” afigura-se como o enigma a
ser decifrado. Uma linguagem criptografada para cuja decifração ele não possui as
cifras e códigos. Começa aqui uma nova aventura na qual ele necessitará,
certamente, da orientação de alguém capaz de abrir para ele as “portas do mistério”.
Os últimos versos da segunda estrofe são uma clara confissão dessa
dificuldade de transpor o intransponível. O “sabe-se lá o que quer dizer”, mais do
que uma constatação, é um pedido de socorro, para o qual a solução é paliativa e
não definitiva:
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.
4
Os segredos que o professor Carlos Góis traz consigo constituem um sistema
de comunicação secreto cuja sobrevivência depende da ocultação de seus
verdadeiros significados: a gramática convertida em estenografia**:
Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, seqüestram-me.
As “Figuras de gramática esquipáticas”, cuja excentricidade atropela, aturde e
seqüestra, recobrem a linguagem de uma casca porosa sob a qual se ocultam
extravagâncias cuja perpetuação é um desserviço à comunicação. “O amazonas da
ignorância” de cada um de nós nada mais é do que o reflexo da intransigência
daqueles que desconsideram as relações contextuais e espaço-temporais de
qualquer enunciação.
Os significados morais, estéticos, científicos e mágicos dos quais resultam os
processos de enunciação são desprezados em nome de uma normatização inócua,
que considera a gramática como um fim em si e não como um meio. Cria-se, assim,
uma concepção de sintaxe e língua, que passando ao largo da “questão de uso” de
Veríssimo (1985, p. 14), perpetuam “miudezas normativas” de insuportável “purismo
rançoso”.
São atitudes que em nada contribuem para a eficiência comunicativa e que
produzem no falante a sensação de que o estudo da língua é “uma grande
chateação”.
O terceiro estágio pelo qual passa o sujeito poético do texto com o qual
estamos trabalhando mostra, claramente, o caráter nocivo dessa abordagem:
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
Já na idade adulta, ele confessa ter esquecido a riqueza dos atos de
comunicação, que fizeram de sua infância e juventude um período de descobertas
no qual o uso das faladíssimas palavras oriundas da boca do povo era uma
verdadeira aventura. Ao esquecer a língua “... em que comia, / em que pedia para ir
lá fora, / em que levava e dava pontapé”, o sujeito poético deforma não apenas a
memória lingüística, mas sobretudo a afetiva.
“A [...] breve língua entrecortada / do namoro com a prima” deu-se a conhecer
não em um espaço abstrato e desmaterializado, ou em um tempo fictício, mas em
**
Do grego steganos (coberto) e graphein (escrever)
5
um mundo concreto no qual as práticas e costumes determinaram os mecanismos
de construção daquele tipo específico de enunciação.
A imposição de qualquer ortodoxia nesse processo de constituição do sujeito
como um ser produtor de linguagem gera um desconforto de tamanha amplitude,
que toda lógica da enunciação é subvertida.
Essa subversão da lógica é manifesta no último verso:
O português são dois; o outro, mistério.
Com extrema lucidez o sujeito poético percebe, como Ortega y Gasset (1994,
p. 69), que pensamento e conhecimento, nem sempre são a mesma coisa. O
português da gramática, embora seja conhecimento, não é ainda pensamento,
porque não atingiu aquele estágio de liberdade e singularidade necessário para a
variedade do pensamento.
Portanto, para que possamos fazer a ponte entre qualquer texto e a
gramática, é necessário considerar a diversidade de discursos com os quais cada
enunciador e enunciatário, envolvidos nesse processo, tem lidado. As relações e
saberes que fizeram desse sujeito um usuário competente de sua própria lingua.
O sujeito poético do texto de Drummond, ao classificar a ortodoxia como
mistério, nos mostra que o importante é descobrir o saber a que se deve ater. Deixa
claro que nem tudo o que ignoramos nos importa saber. É o que devemos
considerar, quando formos trabalhar com qualquer texto em sala de aula.
2. As pontes possíveis
“Não nos podem ensinar nada cuja idéia não tenhamos já em nossas mentes”
LEIBNIZ
Qualquer abordagem gramatical do texto deve levar em consideração muito
mais do que o caminho fácil das formas mecânicas de entendimento. O estudo da
gramática textual deve basear-se, sobretudo, nos fenômenos concernentes à
coerência textual. É a partir dela que se poderá aferir a competência textual dos
sujeitos envolvidos no processo de enunciação. Para tanto, será necessário
perceber, como Maingueneau (1996, p. 157), que “um texto não é uma simples
sucessão de frases”, que “ele constitui uma unidade lingüística especifica” e que
essa especificidade ultrapassa os limites da frase. Os fatores que determinam a
coerência de um enunciado são tão heterogêneos quanto conflitantes. Ao
estendermos o campo da análise lingüística para além dos limites do próprio texto
alargamos suas fronteiras, mudamos de universo.
Nesse momento, a diversidade de fenômenos a considerar constitui uma
armadilha da qual devemos procurar fugir. A compreensão dos mecanismos que
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regulamentam a organização textual são determinados por um conjunto de regras
que ultrapassam o âmbito da gramática.
Categorizar esses elementos no amplo espectro dos mais diversos gêneros e
tipos de discurso é o primeiro passo para a obtenção de uma abordagem gramatical
conseqüente. Tomemos como exemplo o poemeto Vicio na fala, de Oswald de
Andrade (1991, p.22):
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados
A análise dos aspectos fonético-gramaticais desse poema só se reveste de um
sentido, de uma certa coerência textual e lingüística se levarmos em conta não
apenas seus aspectos estruturais, mas também o contexto histórico e cultural no
qual está inserido.
A transformação da consoante oral constritiva, lateral, sonora, palatal –
presente no fonema representado pelo dígrafo lh – na semivogal /j/, criando um
ditongo com a vogal antecedente, como acontece na palavra “teia”, no contexto do
poema, não representa apenas um registro da fala popular, é também a
manifestação de um pressuposto ideológico defendido por Andrade (1987, pp. 326 a
334) e seus pares da Semana de Arte Moderna de 1922.
Portanto, a abordagem gramatical desse poema deve ser acompanha
também de uma análise da primeira fase do Modernismo brasileiro, uma época
marcada por uma postura iconoclasta que punha em xeque uma determinada noção
de gramática até hoje arraigada em nosso imaginário lingüístico.
De nada nos adiantará impingir ao aluno uma análise fonológica do texto,
massacrando-o com uma extensa classificação de vogais, orais, nasais, anteriores,
centrais e posteriores se não tivermos a consciência do saber a que se ater. Os
instrumentos conceituais dos quais lançaremos mãos nessa análise da gramática
textual devem respeitar a heterogeneidade do texto, considerando-o como uma
realidade multifacetada para a qual convergem elementos ideológicos, sociais,
semióticos e subjetivos.
A representação da realidade em qualquer texto baseia-se em uma
organização hierarquizada na qual todos os elementos têm uma função a
desempenhar numa seqüência à qual Maingueneau (1996, p. 164) se refere como
dimensão configuracional do texto. É ela que garante os encadeamentos lineares
que determinarão a coerência textual.
Em Vício na fala, essa coerência é determinada pela organização do texto em
uma seqüência na qual as anáforas e elipses são essências para a introdução dos
desvios fonéticos com os quais o poeta quer jogar. A repetição da preposição
“para” no início de cada verso, bem como a omissão do verbo “dizer” no verso três
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são recursos estilísticos que dinamizam o texto, harmonizando forma e conteúdo, e
preparando o leitor para o desfecho em tom de anticlímax:
E vão fazendo telhados
O último verso do poema desfaz os labirintos nos quais o poeta se
emaranhou e num ritmo de samba popular dá ao texto o desfecho inesperado no
qual valoriza-se o saber essencial de uma parcela da população, que mesmo não
dominando a norma padrão, constitui um grupo de usuários competentes da língua.
Dentro de uma concepção sociolingüística da gramática, essa abordagem do
texto revela pelo menos três seqüências que dão a ele um sentido global e permitem
uma compreensão de seus reais objetivos. Há uma situação inicial, expressa nos
dois primeiros versos, cuja complicação se estende do terceiro ao quinto verso, para
culminar na situação final expressa no último verso. Essa seqüência encerra uma
espécie de “moral da história” na qual a língua é apenas o pretexto para discussão
de uma questão mais ampla, de caráter ideológico, que passa pela concepção de
um novo conceito de língua e linguagem.
Na esteira dessa discussão, há uma progressão temática que extrapola os
próprios limites do texto e pode ser resumida na busca de uma expressão lingüística
da qual resulte uma língua nacional brasileira, como se verifica no poema
Pronominais, do mesmo Oswald de Andrade (1971, p.89):
Pronominais
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
Os versos “Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem
todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro” revelam claramente o
caminho a ser tomado pelo ensino da gramática textual: a ponte possível para levar
o aluno do concreto ao abstrato e vice-versa.
A referência feita ao modo de falar brasileiro, nos versos transcritos, constitui
uma excelente oportunidade para revelar aos alunos os sons, os ritmos e as formas
de que o poeta se apoderou na transposição para o texto literário de uma das muitas
variações lingüísticas com as quais entramos em contato em nosso dia-a-dia.
É importante não nos esquecermos de que a produção de um sentido para o
ensino da gramática, de certo, passa por uma abordagem textual ampla e
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abrangente na qual a imposição dê lugar às soluções compartilhadas, à troca de
experiências que extrapolem os limites dos livros didáticos.
3. As relações do saber
“Quem fala uma língua sabe muito mais do que aprendeu”
CHOMSKY
Se partirmos do pressuposto de que toda literatura, sobretudo a poesia, nasce
de uma coerência mágica entre a palavra e aquilo que ela nomeia chegaremos à
conclusão de que o estudo coerente da gramática textual só será possível se formos
capazes de traduzir na linguagem do cotidiano aquilo que é dito na linguagem
transcendente da literatura. Em outras palavras, é preciso restabelecer a unidade
primordial de nossos saberes lingüísticos e gramaticais.
Assim como faz Quintana (1980, p 112) em seu Dos rituais devemos nos
acautelar na busca da ponte entre o primitivo e o civilizado:
No primeiro contato como os selvagens, que medo nos dá de infringir os rituais, de
violar um tabu! É todo um meticuloso cerimonial, cuja infração eles não nos perdoam.
Eu estava falando nos selvagens? Mas com os civilizados é o mesmo. Ou pior até.
Quando você estiver metido entre grã-finos, é preciso ter muito, muito cuidado: eles
são tão primitivos.
A clareza e objetividade desse minúsculo conto podem servir de paralelo para
a nossa lide com a língua. Algumas das filigranas gramaticais com as quais nos
deparamos em nosso ofício de professores de português afiguram-se como
verdadeiras barbaridades, que em nada ficam a dever aos ditos barbarismos da
língua.
Esquecendo-nos de que, como afirma Luft (1985, p.30), “não há propriedade
privada no mundo das palavras. Elas são de todos, propriedade pública”, criamos
um conceito de língua e literatura que passa ao largo da intimidade com as palavras.
Reduzimos a linguagem aos escrúpulos dos gramáticos e dos lexicógrafos cujas
atenções se voltam para elaborações artificiais que em nada contribuem para a
evolução da língua e seu conhecimento.
Os que trabalhamos com a língua: estudiosos, professores, dicionaristas,
lingüistas etc devemos ter claro que nosso objeto de trabalho e estudo é a língua
viva e pulsante moldada pela massa popular da qual são oriundos aqueles que
sentam nos bancos escolares. Desprezar a originalidade do saber lingüístico desses
sujeitos é um verdadeiro desrespeito à língua.
Por isso, as aulas de linguagem na escola devem constituir-se em um esforço
para fugir ao acúmulo desnecessário de definições, regras e exceções que em nada
contribuem para o saber essencial do aluno.
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A ampla listagem de anomalias, irregularidades e conjugações inusitadas tão
ao gosto de muitos colegas, não é suficiente para fazer a ponte entre a gramática e
a língua viva.
O estudo da gramática textual deve privilegiar não uma relação opositiva
entre a gramática natural e a gramática artificial, mas uma aproximação entre
ambas, para que o aluno perceba que a natureza da língua não se distingue da
natureza humana.
Por traz de toda e qualquer enunciação há, a par da artificialidade das regras
e imposições, a gramática natural de cada falante. As variantes de gramática são
fruto do grau de cultura e do nível sócio-cultural de cada usuário da língua. Os
sistemas de regras constituem uma teoria da língua na qual não estão inseridas as
relações que extrapolam o âmbito da escola.
Os poemas de Oswald de Andrade apresentados neste trabalho atestam o
quanto de sabedoria intuitiva há na construção gramatical daqueles que vêem a
língua como um meio de comunicação e não como um código cifrado acessível
apenas a uns poucos iniciados.
O estudo da gramática textual é, antes de qualquer coisa, um esforço para
escapar de uma certa tendência à fixação e à imobilização da língua. O
conhecimento dos clássicos não deve se ater apenas às regras e ao vocabulário
típicos da academia – seu objetivo é construir a ponte possível entre relações e
saberes.
Voltando à idéia primeira que deu origem a esse texto, a concepção de língua
não como um léxico associado a regras fonéticas e morfossintáticas, mas como um
sistema de apropriação com vistas a um determinado fim, chegamos à conclusão de
que a associação entre gramática e linguagem baseia-se nos princípios da boa
comunicação verbal, que nada tem a ver com a memorização de regras, nem com
qualquer disciplina escolar que trate dessas regras.
A análise e interpretação de bons textos visa a construção de um sentido
para a linguagem concebida não apenas como um meio de comunicação, mas
também como um elemento através do qual se constituem identidades.
As afinidades construídas e constituidas a partir das relações do ser com a
linguagem só ganham sentido quando são utilizadas como um instrumento para a
interpretação do mundo que nos rodeia e abarca.
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11
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