O outro lado da vitrine - CRM-PR

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vitrine
O outro lado
da vitrine
Recebendo formação consolidada no conceito
Não tenho mais medicamentos. Tomei todos analgé-
de soberania na clínica médica para um bom diagnósti-
sicos que tinha na carteira. Não é infarto, senão já te-
co, ouvi de conceituado professor um conselho simples
ria morrido; úlcera perfurada também não. Não tenho
e prático: “Acadêmico, se tiveres suspeita de TB pulmo-
hematêmese. Pancreatite? Que dor. Será que consigo
nar, após boa anamnese e exame físico bem-feito, com
chegar a São Paulo? Estou indo para congresso e visi-
senso crítico e observação perspicaz, inicie o tratamento
tar parente operado de câncer de esôfago. Visitar? Eu
mesmo que os exames de escarro tenham sido negati-
estou doente.
vos em várias amostras e, em exames de imagem, não
consiga visualizar cavernas. Os exames positivos serão
a confirmação diagnóstica que surgirão na sequência.”
4h01: Não aguento mais ficar em pé. Sinto sono,
mas tenho a impressão que em pé sinto menos dor.
7h05: O ônibus está chegando na rodoviária. Graças
Em encontro ocasional em corredores de enferma-
a Deus cheguei. No Pronto-Socorro consulto um gastro.
rias do Hospital de Caridade, em outra oportunidade,
Minha esposa ao lado. Ela está angustiada por me ver
o mesmo professor repetiu para mim o tão conhecido
gemendo de dor.
– Você não vai para con-
dito: “Quando um paciente
procura o médico, espera
dele quatro acontecimentos:
que realize um milagre, que
resolva seu problema, que
receba carinho e que receba
atenção e seja ouvido. Esta
"Se deres carinho,
atenção e ouvires o
paciente, já estarás
cumprindo com 50%
de tua missão."
gresso nenhum, e nem para
apartamento. Vai para a UTI.
É pancreatite! – foi o veredicto do médico.
18h30: Estou num leito
de UTI. Minha privacidade já
somatória representa 100% da Medicina. Entretanto,
era. Deram-me “banho” com um pano molhado. Colo-
rea­lizar milagres somente Deus. Resolver o problema, às
caram fraldão em mim. Sinto dor, mesmo com morfi-
vezes é possível e outras não. Assim, se deres carinho,
na. Tenho sorte. Estou bem em frente ao posto médico.
atenção e ouvires o paciente, já estarás cumprindo com
Qualquer problema é só chamar...
50% de tua missão.
22h30: Quanta dor. Duas camas à minha direita tem
Nunca esqueci estes conselhos. Assim tenho ten-
um paciente que não para de gritar, chamando a polícia.
tado exercer a Medicina em meus quase 40 anos de
Peço ao médico intensivista para fazer sedativo para o
profissão.
coitado dormir. O médico nem olha para mim. O pacien-
Dezoito de junho de 2012, 22h50: estou dentro de
te continua gritando.
um ônibus; o ar está ligado, mas estou com muito ca-
No posto médico em frente meu leito, no balcão, tem
lor e iniciou dor epigástrica. A dor está aumentando. É
três computadores. Faz mais de duas horas que o médi-
muito intensa. Mais dor. Náuseas. Fico em pé em frente
co de plantão está num dos computadores.
ao WC. Não tenho mais o que vomitar. A dor não passa.
– Doutor, doutor...
São Paulo ainda está muito longe.
Não escuta ou não quer ouvir.
2h17: A dor persiste e está cada vez mais forte.
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– Doutor, doutor...
vitrine
O médico plantonista que estava de costas se vira e
armado. Esposa e filha querem falar com o médico chefe
da gastro. E o chefe explica para elas: “Foi apenas um
pergunta.
– Tudo bem?
engano. Deve ter sido a tomografia de outro paciente
– Estou com muita dor.
que o médico viu”.
– Já vai passar. E se volta para o computador.
Não tinha nome na tomo? Tinha que ter lido o nome.
5h30:Chega a fisioterapeuta.
Esta sonda me incomoda. A dor não quer ceder. Troca plantonista. Fica no computador. Tudo de novo.
– Está tudo bem com o senhor?
– Como pode estar tudo bem se estou aqui, despido
de roupas e vaidade, num leito de UTI? Sinto muita dor.
– Já vai passar. Vamos fazer exercícios. Levante os
braços, dobre as pernas e respire fundo. Outra vez...
– Doutor, doutor... Sinto muita dor!
Já vai passar, diz, e volta a virar-se para o computador.
Troca de plantão. O recém-chegado vai para o com-
– Estou com muita dor.
putador. Às vezes passa em frente a cada leito, pergun-
– O senhor está indo muito bem. A dor já vai passar.
tando: está tudo bem?
– Sinto dor.
O senhor está muito nervoso. Procure relaxar.
– Sou médico. Sei quando é dor ou nervosismo.
– Já vai passar ‑ repete.
– Então o senhor sabe que já vai passar.
Volta e fica mais duas horas no computador. Os do-
Que vontade de chorar de tanta dor. Será que vou
entes são os corpos de delito menos importantes neste
enorme salão?
resistir? Eis que surge outro profissional.
– Sou da endoscopia. Vamos passar uma sonda na-
Lembro do professor: “ Dê atenção, carinho e ouça o
paciente. É 50% da Medicina. Também lembro da reda-
sogástrica no senhor.
– Por quê?
ção no vestibular de 1970: “Em tempos de cibernética”.
– Porque é necessário. O chefe da gastrocirúrgica
Eu não acreditava. Mas ela chegou pra ficar.
Passa um filme em minha cabeça. Quanta saudade
mandou.
de tudo.
É ruim esta sonda. Parece que estou asfixiando.
– Sou médico da equipe de gastrocirúrgica. O senhor
vai ter que operar da vesícula.
Troca de plantão. Trocam os robôs. Sai um da
frente do computador e senta outro. Sinto vontade
– Operar da vesícula, por quê? Minha vesícula não
tem nada.
de falar. Com quem? Falar com Deus. É mesmo. É
bom. Alivia um pouco minha dor. Sinto-me uma pes-
– Tem cálculos na vesícula.
soa boa pensando em Deus. Mas, definitivamente
– Isto não é possível. Vi minha tomografia e a vesí-
odiei tirar temporada em UTI, principalmente sem
cula não tem nada. Quero falar com o chefe da gastrocirúrgica...
calor humano.
23 de junho, 14h. Saio da UTI. Ajude-me Senhor, que
Hora de visitas. Falo à minha esposa e filha que que-
não precise mais retornar a este mundo robotizado.
rem me operar da vesícula sem necessidade. Barraco
Dr. Luiz Geraldi Sobrinho (PR).
PALAVRAS DE MESTRE
“O mítico crê num Deus desconhecido. O pensador e o cientista creem numa ordem desconhecida. É difícil dizer qual deles sobrepuja o outro em sua devoção não-racional”.
L.L.Whyte.
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