PDF - Acervo Digital do violão brasileiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: PRÁTICAS INTERPRETATIVAS
A Composição e a Performance Violonística de Egberto Gismonti
Juliano Camara Santos
Rio de Janeiro
2016
2 Juliano Camara Santos
A Composição e a Performance Violonística de Egberto Gismonti
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Música da
Escola de Música da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de mestre.
Orientadora: Marcia Ermelindo Taborda
Rio de Janeiro
2016
3 Juliano Camara Santos
A Composição e a Performance Violonística de Egberto Gismonti
Rio de Janeiro, 4 de julho de 2016
BANCA EXAMINADORA
Profa. Marcia Ermelindo Taborda (orientadora)
Prof. Fábio Adour da Camara (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Prof. Flávio Terrigno Barbeitas (Universidade Federal de Minas Gerais)
4 Ao meu pai Joaquim Santos,
por me mostrar os caminhos da
“música de sobrevivência”.
5 AGRADECIMENTOS
A minha família, por ter me ensinado que qualquer forma de utopia vale a
pena. Agradeço especialmente a minha mãe, Isabel Camara, pelo companheirismo e
ao meu pai, Joaquim Santos, por ter me mostrado a força da música e a beleza de
nossa profissão.
A minha orientadora Marcia Taborda, pela confiança depositada nesse
projeto e pelos enriquecedores debates ao longo da pesquisa. Agradeço, sobretudo,
pela amizade que desfrutamos ao longo desses últimos anos.
A toda banca examinadora – Paula da Matta, Flávio Barbeitas e Fábio
Adour – pela atenciosa disponibilidade em colaborar com essa pesquisa. Em especial
à Fábio Adour pelas referências e pela ajuda nas questões relativas à estrutura
métrica.
A secretaria do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e à CAPES pelo suporte financeiro ao longo do último ano do curso.
Ao compositor Egberto Gismonti, pela disponibilidade em me receber em
sua residência para uma longa entrevista.
A Alexandre Gismonti, pela recente amizade e parceria. Pelas longas
conversas que forneceram inestimáveis subsídios para essa pesquisa e pelo
empréstimo do violão de 8 cordas, indispensável para a realização das transcrições
das gravações.
A Nicolas de Souza Barros, pelo empréstimo do violão de 10 cordas, sem
ele não teria sido possível realizar esse trabalho com a profundidade que eu gostaria.
A professora Sara Cohen pelas enriquecedoras aulas sobre ritmo, que
forneceram os subsídios teóricos necessários para o desenvolvimento de uma parte
importante da pesquisa.
Aos amigos do projeto Violões de Tiradentes: Eduardo Pinheiro, Bernardo
Marcondes, Luã Belik e Gabriel Pitta, que sempre estiveram presentes na minha vida
e que, por razões inexplicáveis do destino, tornaram-se parceiros de profissão.
Agradeço por crescermos juntos e por vocês terem topado realizar a 6º edição do
nosso projeto com o tema da minha pesquisa.
A Sara Marinho, pela ajuda nas transcrições da entrevista.
6 RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo definir quais são os elementos que caracterizam as
obras para violão e a performance violonística de Egberto Gismonti. Devido a
ausência de partituras relativas à esse repertório e ao fato de que esse intérpretecompositor reconstrói as suas obras a cada nova performance, foi necessário uma
profunda investigação sobre a dialética entre interpretação e composição na obra
musical desse autor. Para esse fim, utilizamos como referencial teórico os conceitos
de processo e produto concebidos por Nicholas Cook. Após estabelecermos os
parâmetros gerais que caracterizam o relacionamento entre o ato de compor e o ato de
interpretar, pesquisamos os elementos particulares que compõem a linguagem
violonística de Gismonti e o estilo interpretativo inerente à ela. A partir do referencial
teórico fornecido por Daniel Wilkinson, sobre o uso das gravações como uma
ferramenta na compreensão do estilo interpretativo, utilizamos a discografia de
Gismonti para identificarmos as recorrências dos maneirismos violonísticos próprios
deste compositor.
Palavras-chave: Egberto Gismonti; violão de 10 cordas; afinação reentrante.
7 ABSTRACT
This research aims to define what are the elements that characterize the works for
guitar and guitaristic performances of Egberto Gismonti. Due to the absence of scores
related to this repertoire and the fact that the performer/composer reconstructs his
works with each new performance, it was necessary to investigate the dialectics
between interpretation and composition in the musical works of this author. For this
purpose, we use as a theoretical reference the process and product concepts designed
by Nicholas Cook. After we set the general parameters that characterize the
relationship between the act of writing and the act of interpreting in Gismonti, we
research the particular elements that make up the guitaristic language of Gismonti and
it’s inherent interpretive style. From the theoretical framework provided by Daniel
Wilkinson, on the use of recordings as a tool in understanding the interpretive style,
we use the Gismont’s discography to identify recurrences of guitaristic mannerisms
specific to this composer.
Keywords: Egberto Gismonti; 10 string guitar; reentrant tuning.
8 LISTAS DE FIGURAS
Figura 1 – Posição dos dedos da mão direita para realizar os harmônicos...........104
Figura 2 – Posição das mãos para realizar a percussão nas cordas.......................122
Figura 3 – Fôrma da mão esquerda na posição aberta...........................................140
Figura 4 – Fôrma da mão esquerda na posição fechada.........................................143
9 LISTAS DE EXEMPLOS MUSICAIS
Exemplo. 1 – Afinação do violão de 10 cordas (Dança das Cabeças e
Em Família)..........................................................................................87
Exemplo. 2 – Afinação do violão de 10 cordas (Salvador).........................................89
Exemplo. 3 – Afinação do violão de 10 cordas (Lundu e Danças dos Escravos).......89
Exemplo. 4 – Afinação do violão de 14 cordas (Dança dos Escravos).......................90
Exemplo. 5 – Afinação do violão de 12 cordas (Selva Amazônica)............................90
Exemplo. 6 – Afinação do violão de 12 cordas (De Repente e Cego Aderaldo).........91
Exemplo. 7 – Afinação do violão de 6 cordas com scordatura (Encontro no Bar).....92
Exemplo. 8 – Dança das Cabeças (Performance II); Minutagem: 0’09’’;
Andamento: 86 BPM; 10 cordas............................................................93
Exemplo. 9 – Bianca (Duas Vozes); Minutagem: 1’02’’; Andamento: 74 BPM;
10 cordas...............................................................................................94
Exemplo. 10 – Lendas (Orfeo Novo); Minutagem: 0’20’’; Andamento: 85 BPM;
6 cordas.................................................................................................95
Exemplo. 11 – 2º mov. de Três retratos para Flauta e Violão (Orfeo Novo);
Minutagem: 1’26’’; Andamento: 96 BPM; 6 cordas...........................96
Exemplo. 12 – Cego Aderaldo (Folk Songs); Minutagem: 0’50’’; Andamento:
85 BPM; 12 cordas...............................................................................97
Exemplo. 13 – Em Família (todas as gravações); Andamento: 152 BPM;
10 cordas...............................................................................................97
Exemplo. 14 – Dança das Cabeças (Performance II); Minutagem: 0’54’’;
Andamento: 175 BPM; 10 cordas........................................................98
Exemplo. 15 – Salvador (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’43’’;
Andamento: 171 BPM; 10 cordas........................................................98
Exemplo. 16 – Dança das Cabeças (Performance II); Minutagem: 1’16’’;
Andamento: 174 BPM; 10 cordas.....................................................100
Exemplo. 17 – Selva Amazônica (Solo); Minutagem: 2’04’’; Andamento:
87 BPM; 12 cordas.............................................................................101
Exemplo. 18 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 0’; Andamento:
121 BPM; 6 cordas.............................................................................102
Exemplo. 19 – Cego Aderaldo (Folk Songs); Minutagem: 7’32’’; Andamento:
10 65 BPM; 12 cordas............................................................................104
Exemplo. 20 – Cego Aderaldo (resultado sonoro do ex. 19).....................................105
Exemplo. 21 – Dança das Cabeças (Performance I); Minutagem: 3’02’’;
Andamento: 107 BPM; 10 cordas......................................................106
Exemplo. 22 – Selva Amazônica (Nó Caipira); Minutagem: 0’17’’;
Andamento: 89 BPM; 12 cordas........................................................108
Exemplo. 23 – Selva Amazônica (Performance IV); Início e fim da performance;
12 cordas.............................................................................................109
Exemplo. 24 – Dança das Cabeças (Performance I); Final da performance;
10 cordas.............................................................................................110
Exemplo. 25 – Em Família (Performance V); Minutagem: 3’20’’;
Andamento: 145 BPM; 10 cordas.....................................................111
Exemplo. 26 – Dança dos Escravos (Performance VII); Minutagem: 1’10’’;
Andamento: 140 BPM; 10 cordas......................................................111
Exemplo. 27 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 1’13’’;
Andamento: 121 BPM; 6 cordas........................................................112
Exemplo. 28 – Consolação/Berimbau (Orfeo Novo); Minutagem: 0’;
Andamento: 137 BPM; 6 cordas........................................................113
Exemplo. 29 – Em Família (Todas as gravações); 152 BPM; 10 cordas...................116
Exemplo. 30 – Em Família (Performance V); Minutagem: 4’19’’;
Andamento: 123 BPM; 10 cordas......................................................116
Exemplo. 31 – Dança das Cabeças (Performance I); Minutagem: 2’12’’;
Andamento: 101 BPM; 10 cordas......................................................117
Exemplo. 32 – Selva Amazônica (Solo); Minutagem: 7’17’’; Andamento:
87 BPM; 12 cordas.............................................................................118
Exemplo. 33 – De Repente (Sanfona); Minutagem: 3’52’’; Andamento:
134 BPM; 12 cordas...........................................................................119
Exemplo. 34 – Dança dos Escravos (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’56’’;
Andamento: 137 BPM; 14 cordas......................................................120
Exemplo. 35 – Dança dos Escravos (Performance VI); Minutagem: 0’26’’;
Andamento: 147 BPM; 10 cordas......................................................121
Exemplo. 36 – Cego Aderaldo (Circense); Minutagem: 1’49’’;
Andamento: 100 BPM; 12 cordas......................................................123
Exemplo. 37 – Em Família (Sanfona e Em Família); Minutagem: 0’;
11 Andamento: 152 BPM; 10 cordas......................................................123
Exemplo. 38 – Dançando (Duas Vozes); Minutagem: 3’24’’; Andamento:
111 BPM; 10 cordas..........................................................................124
Exemplo. 39 – Dança dos Escravos (Dança dos Escravos); Minutagem: 8’19’’;
Andamento: 146 BPM; 14 cordas......................................................124
Exemplo. 40 – Em Família (Performance V); Minutagem: 5’04’’; Andamento:
117 BPM; 10 cordas...........................................................................126
Exemplo. 41 – Selva Amazônica (Solo); Minutagem: 7’34’’; Andamento:
91 BPM; 12 cordas............................................................................129
Exemplo. 42 – Prelúdio Nº 2 (Villa-Lobos).............................................................130
Exemplo. 43 – Consolação/Berimbau (Orfeo Novo); Minutagem: 1’37’’;
Andamento: 137 BPM; 6 cordas.......................................................131
Exemplo. 44 – Jardim de Prazeres (Academia de Danças); Minutagem: 0’29’’;
Andamento: 160 BPM; 6 cordas........................................................131
Exemplo. 45 – Retrato Nº 2 para Flauta e Violão (Orfeo Novo); Minutagem: 0’55’’;
Andamento: 100 BPM; 6 cordas........................................................132
Exemplo. 46 – Cego Aderaldo (Circense); Minutagem: 2’; Andamento: 100 BPM;
12 cordas............................................................................................132
Exemplo. 47 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 0’9’’; Andamento: 121 BPM;
6 cordas..............................................................................................132
Exemplo. 48 – Salvador (Orfeo Novo); Minutagem: 4’21’’; Andamento: 158 BPM;
6 cordas..............................................................................................133
Exemplo. 49 – Estudo Nº 4 (Villa-Lobos)................................................................134
Exemplo. 50 – Salvador (Dança dos Escravos); Minutagem: 3’13’’;
Andamento: 152; 10 cordas................................................................135
Exemplo. 51 – De Repente (Sanfona); Minutagem: 7’09’’; Andamento: 93 BPM;
12 cordas............................................................................................135
Exemplo. 52 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 2’09’’; Andamento:
121 BPM; 6 cordas.............................................................................136
Exemplo. 53 – Lundu (Música de Sobrevivência); Minutagem: 0’; Andamento:
82 BPM; 10 cordas............................................................................137
Exemplo. 54 – Estudo Nº 10 (Villa-Lobos)...............................................................138
Exemplo. 55 – Jardim de Prazeres (Academia de Danças); Minutagem: 0’10’’;
Andamento: 160 BPM; 6 cordas........................................................138
12 Exemplo. 56 – Dança dos Escravos (Acompanhamento do segundo violão)...........139
Exemplo. 57 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’; Andamento:
78 BPM; 10 cordas.............................................................................140
Exemplo. 58 – material temático de Lundu extraído.................................................141
Exemplo. 59 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 1’33’’;
Andamento: 78 BPM; 10 cordas........................................................142
Exemplo. 60 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’51’’;
Andamento: 78 BPM; 10 cordas........................................................144
Exemplo. 61 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 2’01’’; Andamento:
78 BPM; 10 cordas.............................................................................144
Exemplo. 62 – Lundu (Música da Sobrevivência); Minutagem: 2’25”;
Andamento: 80 BPM; 10 cordas.......................................................147
Exemplo. 63 – Ciranda/Cego Aderaldo (Performance III); Minutagem: 5’11”;
Andamento: 81 BPM; 12 cordas.......................................................148
Exemplo. 64 – Salvador (Solo); Minutagem: 0’50’’; Andamento: 76 BPM;
8 cordas...............................................................................................151
Exemplo. 65 – Salvador (Solo); Minutagem: 0’14’’; Andamento: 76 BPM;
8 cordas...............................................................................................152
Exemplo. 66 – Salvador (Solo); Minutagem: 0’32’’; Andamento: 76 BPM;
8 cordas...............................................................................................153
Exemplo. 67 Quebra do ritmo harmônico com escrita multimétrica.........................153
Exemplo. 68 – Salvador (Solo); Minutagem: 1’16’’; Andamento: 76 BPM;
8 cordas...............................................................................................154
13 LISTAS DE QUADROS
Quadro 1 – Linguagem violonística e estilo interpretativo...................................77
Quadro 2 – Obras analisadas.................................................................................80
Quadro 3 – A presença do violão na discografia de Egberto Gismonti...............213
14 SUMÁRIO
Página
INTRODUÇÃO...........................................................................................................16
CAPÍTULO 1 – ENTRE TEXTOS E CONTEXTOS..................................................19
1.1 O contexto histórico em que Egberto Gismonti inicia sua carreira...............21
1.2 Egberto Gismonti e Mário de Andrade..........................................................24
1.3 A relação obra/compositor/intérprete.............................................................26
1.4 Aspectos da interpretação pianística..............................................................28
1.5 O popular e o erudito.....................................................................................29
1.6 A Improvisação..............................................................................................31
1.7 Corporalidade e a relação entre Egberto Gismonti e Baden Powell..............32
CAPITULO 2 – INTERPRETAÇÃO E COMPOSIÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE
PROCESSO E PRODUTO NA OBRA MUSICAL DE EGBERTO GISMONTI.......37
2.1 Significados extramusicais............................................................................40
2.2 Intertextualidades e ritornelos......................................................................42
2.3 Regravações..................................................................................................44
2.4 A gravação enquanto processo......................................................................46
2.5 Interpretar é compor......................................................................................49
CAPÍTULO 3 – LEVANTAMENTO DA PRESENÇA DO VIOLÃO NA OBRA DE
EGBERTO GISMONTI...............................................................................................54
3.1 Egberto Gismonti, o Multi-instrumentista.....................................................55
3.2 O violão solista...............................................................................................57
3.3 O violão camerista.........................................................................................64
3.4 O violão acompanhador.................................................................................69
3.5 Arranjo de Egberto Gismonti para violão......................................................71
CAPÍTULO 4 – A LINGUAGEM VIOLONÍSTICA DA OBRA DE EGBERTO
GISMONTI E O SEU ESTILO INTERPRETATIVO.................................................73
4.1 Estilo interpretativo.......................................................................................75
4.2 Linguagem violonística.................................................................................77
4.3 Os elementos recorrentes na linguagem violonística e no estilo interpretativo
de Egberto Gismonti.....................................................................................................78
4.3.1 A transcrição de gravações e a seleção de obras analisadas.................80
15 4.3.2 As hipóteses de pesquisa......................................................................83
4.3.3 Scordaturas, afinação reentrante e uma proposta de escrita musical..84
4.3.4 A nota pedal e a atuação do polegar.....................................................92
4.3.5 Harmônicos.........................................................................................103
4.3.6 O Tapping e a independência das mãos..............................................114
4.3.7 Percussão.............................................................................................121
4.3.8 Acordes paralelos................................................................................128
4.3.9 Ostinato melódico com ligados e nota pedal......................................136
4.3.10 Melodias nas cordas reentrantes e as fôrmas de mão esquerda.......139
4.3.11 Irregularidade métrica.......................................................................149
CONCLUSÃO ..........................................................................................................155
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................158
REFERÊNCIAS FONOGRÁFICAS E AUDIOVISUAIS........................................162
ANEXO A: ENTREVISTA COM EGBERTO GISMONTI.....................................165
ANEXO B: TRANSCIÇÃO DA OBRA SALVADOR (VIOLÃO DE 8 CORDAS).187
ANEXO C: TRANSCRIÇÃO DA OBRA LUNDU (VIOLÃO DE 10 CORDAS....203
ANEXO D: QUADRO DA PRESENÇA DO VIOLÃO NA DISCOGRAFIA DE
EGBERTO GISMONTI.............................................................................................213
16 INTRODUÇÃO
O compositor e multinstrumentista Egberto Gismonti1 é uma das figuras
mais respeitadas da música brasileira no mundo. É dono de uma discografia
gigantesca que em 2016 chegará a marca de 70 discos, ao longo de 50 anos de
carreira. Desde a década de 1970, é integrante do seleto catálogo de artistas da
gravadora alemã ECM, que oferece suporte para que qualquer música seja gravada,
independente de grandes expectativas comerciais. No pequeno cast da ECM, estão
nomes como Keith Jarrett, Chick Corea, Pat Metheny e Ralph Towner. Um dos
maiores sucessos dessa companhia foi o antológico disco Dança das Cabeças,
gravado por Egberto Gismonti em duo com o percussionista Naná Vasconcelos. Tido
por críticos do mundo todo como o melhor lançamento do ano, Dança das Cabeças
conseguiu um feito espetacular para um disco de música instrumental: atingiu a marca
de 1 milhão de cópias vendidas.
A obra de Gismonti tem sido reverenciada nos quatro cantos do planeta.
Foi gravada por artistas como Sarah Vaughan, Herbie Hancock, Yo Yo Ma, Martha
Argerich, Wayne Shorter, Henry Mancini, Elis Regina, Duo Assad, Paco de Lucia,
dentre outros.
Criador de uma linguagem violonística particular, Gismonti ficou
notabilizado pelo uso de violões de 8, 10, 12 e 14 cordas. Embora as obras criadas
especificamente para esses instrumentos não sejam interpretadas por outros
violonistas com frequência, é evidente o interesse de grandes intérpretes de violão
pela sua obra musical como um todo. Em uma pesquisa não aprofundada,
constatamos gravações de obras de Gismonti feitas por violonistas como Marco
Pereira (Frevo rasgado), Odair Assad (Memória e Fado, arranjo de Egberto
Gismonti), Badi Assad (Palhaço, arranjo de Sérgio Assad), Paulo Martelli (Lôro;
Água e Vinho, arranjo de Daniel Wolff), Ulisses Rocha (Infância), Aliéksey Vianna
(Ritmos e Danças), Paco de Lucia, John Mclaughlin e Al Di Meola (Frevo rasgado);
e conjuntos como Brasil Guitar Duo (7 Anéis), Duo Assad (Frevo, Infância, Baião
Malandro, Contos de Cordel) e Los Angeles Guitar Quartet (Forrobodó, arranjo de
Egberto Gismonti).
1 Nasceu em 5 de dezembro de 1947, na cidade do Carmo (RJ). Seu tio e seu avô eram compositores e
seu pai, além de coletor federal, vendia pianos. Gismonti é filho de imigrantes: o pai nasceu no Líbano
e a mãe na Itália. Aprendeu a tocar piano muito cedo, tendo cursado o Conservatório Brasileiro de
Nova Friburgo. Já o violão apareceu na sua vida na adolescência. 17 Além dos intérpretes, a linguagem da obra de Gismonti tem servido de
inspiração para diversos compositores violonistas, dos quais destacamos o célebre
Leo Brouwer (Gismontiana), Daniel Murray (disco Autoral) e Chrystian Dozza
(Sobre um Tema de Gismonti).
Embora a música de Egberto Gismonti tenha bastante ressonância no
meio musical violonístico, no âmbito acadêmico brasileiro – até o presente momento
– não encontramos nenhuma tese ou dissertação que tenha se debruçado sobre a obra
para violão desse compositor2. Por outro lado, é relativamente fácil encontrarmos
estudos sobre a sua obra para piano. Por esta razão, a presente pesquisa tem como
finalidade suprir uma lacuna na bibliografia sobre o compositor, ao propor as
primeiras reflexões em torno da sua obra violonística.
No capítulo 1 realizamos a revisão da bibliografia acadêmica sobre
Egberto Gismonti. Nessa etapa, observamos diversos aspectos, que vão desde os
estudos sobre a sua obra para piano, até questões mais gerais de sua música, como o
debate sobre a dicotomia popular x erudito e a relação com a crítica de Mário de
Andrade. Também fizemos um levantamento de artigos de jornais do final da década
de 1960, para compreender o contexto político, social e artístico no qual Gismonti
surge para o público.
Dois desafios precisam ser considerados ao estudarmos a obra de
Gismonti. O primeiro deles é a escassez de partituras; o segundo é o fato de Egberto
ser essencialmente um intérprete-compositor. Quais seriam as consequências desse
binômio na sua obra musical? Como a pesquisa contribuirá para o campo da
interpretação musical diante da ausência de partituras? O fato é que, além de não
existir a sacralização da partitura na música de Gismonti, na qualidade de intérpretecompositor ele toma a liberdade de mudar suas obras a cada nova gravação ou
performance ao vivo. Para suprir esses desafios, o Capítulo 2 traz o estudo de
Nicholas Cook sobre processo e produto na obra musical, que discute justamente a
relação entre interpretação e composição. Nessa etapa, veremos como a música de
Gismonti é beneficiada pela confluência dessas duas esferas, criando uma dinâmica
particular, que superdimensiona, na obra musical, aspectos como o transitório, o
flutuante e o reiterativo. Devido a ausência de partituras, a pesquisa sugere que a
discografia de Egberto seja uma fonte fundamental para a compreensão dos processos
2 Após a defesa dessa pesquisa, tomamos conhecimento de dois artigos que foram disponibilizados
recentemente. Um deles aborda a obra Cego Aderaldo e o outro Dança das Cabeças. 18 inerentes à sua obra musical, servindo de matéria-prima para os intérpretes
interessados nesse repertório.
No Capítulo 3, dimensionamos a presença desse instrumento na obra
musical de Gismonti como um todo. Para isso, tomamos a iniciativa de elaborar um
catálogo no qual as composições para violão foram divididas em três categorias:
violão solista, violão camerista e violão acompanhador.
Após adquirir uma consciência da dimensão do violão na obra musical de
Gismonti, tanto do ponto de vista qualitativo quanto quantitativo, a pesquisa imerge
na sua etapa mais prática. O Capítulo 4 teve como finalidade promover, de maneira
objetiva, a compreensão dos elementos que constituem o binômio composição e
interpretação na obra para violão de Gismonti. Para nos limitarmos somente ao
universo desse instrumento, optamos por utilizar terminologias mais oportunas, que
seriam correlatas à essas duas esferas: linguagem violonística e estilo interpretativo.
Utilizando os estudos de Daniel Wilkinson, acerca da importância das
gravações na compreensão do estilo interpretativo, recorremos à discografia e à
gravações ao vivo como fontes de pesquisa. Procuramos identificar nas gravações de
Gismonti, em distintas épocas, as recorrências de elementos musicais que fossem
particulares à sua linguagem violonística e ao estilo interpretativo. Para esse intuito,
foram transcritos 56 fragmentos musicais retirados de 15 obras. Para cada obra,
utilizamos mais de uma gravação como referência, totalizando 30 gravações, as quais
foram realizadas entre os anos de 1971 a 2008. Pela ausência de partituras, a
transcrição tornou-se um imperativo, impondo a necessidade de propormos uma
forma de escrita musical compatível com os violões de 8, 10, 12 e 14 cordas
arquitetados por Gismonti. Sobre a singularidade da estrutura desses violões, foram
investigados os possíveis ganhos na linguagem violonística com a ampliação das
cordas e, consequentemente, os aperfeiçoamentos de aspectos interpretativos. Por
outro lado, também examinamos se determinados elementos inerentes à linguagem
violonística e o estilo interpretativo de Gismonti já estavam presentes na sua obra para
violão antes das experiências com violões diferenciados do tradicional de 6 cordas.
Outra fonte de pesquisa utilizada foi a entrevista com o compositor. Nela
constatamos a intrigante relação entre o piano e o violão no pensamento musical de
Gismonti. Analisamos quais são os elementos da linguagem pianística que se
manifestam na sua obra para violão e verificamos como esta circularidade acabou
gerando uma linguagem violonística singular.
19 CAPÍTULO 1 – ENTRE TEXTOS E CONTEXTOS
Os estudos acerca da obra de Egberto Gismonti são relativamente
recentes. O primeiro trabalho acadêmico de que temos referência foi a dissertação de
mestrado intitulada Dança das Cabeças – A Trajetória Musical de Egberto Gismonti
(VILELA, 1998). Apesar disso, cada vez mais autores demonstram interesse em
pesquisar esta obra e este artista. Durante a revisão da bibliografia, observamos que a
maior parte dos estudos, na área de práticas interpretativas, são voltados para a obra
pianística. Embora algumas pesquisas citem obras de Egberto para violão,
identificamos apenas uma tese de doutorado, na área da educação musical3, que tem a
obra para violão como objeto de estudo e dois artigos4. Outros trabalhos discutem
aspectos gerais da composição de Gismonti, como a influência da literatura de Mário
de Andrade5 ou a inserção de Egberto no contexto musical da década de 19606.
Existe, ainda, um ensaio produzido pelo filósofo Rúrion Soares Melo sobre o estatuto
do popular em Egberto Gismonti7.
O catálogo da produção acadêmica sobre Egberto até onde pudemos
constatar configura-se da seguinte maneira: 7 dissertações de mestrado (práticas
interpretativas); 10 artigos (práticas interpretativas, filosofia e musicologia); 2
monografias (musicologia); 2 teses de doutorado (educação musical) 8. Diante desta
produção diversificada, iremos apresentar os pontos mais relevantes que estes textos
trouxeram para o campo de estudo em torno da obra de Egberto Gismonti.
3 SCHROEDER, Jorge Luiz. Corporalidade Musical: as marcas do corpo na música, no músico e no
instrumento. Tese de doutorado. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2006.
4 SCHROEDER, Jorge Luiz. Corporalidade musical na música popular: uma visão da performance
violonística de Baden Powell e Egberto Gismonti. Per Musi, Belo Horizonte, n. 22, 2010, p. 167-180; e
TINÉ & JUNIOR, Paulo e Mario. Procedimentos modais presentes no violão da peça Cego Aderaldo
de Egberto Gismonti. In: XXV CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E
PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, Vitória, 2015. 5 GILIOLI, Renato de Souza. Influências da literatura musical de Mário de Andrade em Egberto
Gismonti: um ensaio exploratório. Monografia. USP, 2004.
6 MOREIRA, Maria Beatriz. Egberto Gismonti e sua inserção no campo da música popular brasileira
da década de 1960. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 2., Rio de
Janeiro, 2012.
7 MELO, Rúrion Soares. O “popular” em Egberto Gismonti. Novos Estudos, São Paulo, 78, p. 191-200,
jul. 2007.
8 Encontramos o registro de três pesquisas realizadas na Unicamp sobre a obra de Gismonti: uma
monografia que trata do modalismo presente na sua obra violonística (JUNIOR, Adimir); uma
dissertação de mestrado sobre o disco Alma (GOMES, Vinicius) e uma tese de doutorado sobre o disco
Água e Vinho (MOREIRA, Maria). Infelizmente esses trabalhos ainda não estão disponíveis. Eles
foram contabilizados no catálogo, porém não tivemos acesso ao conteúdo dos textos. 20 Complementarmente, buscaremos compreender o pensamento de Gismonti no
contexto histórico da 1960 a partir de um levantamento de artigos de jornais.
Talvez pela dificuldade em estudar um repertório que é raramente
publicado em partituras, poucas foram as obras de Egberto Gismonti analisadas em
trabalhos acadêmicos. Até o momento encontramos, na área de práticas
interpretativas, pesquisas dedicadas à peças para piano, tais como Maracatu, Frevo,
Sonhos de Recife, Água e Vinho e 7 Anéis e somente um artigo, recentemente
publicado, sobre uma peça violonística (Cego Aderaldo).
Alguns desses trabalhos utilizaram processos de transcrição e análises de
gravações, ou buscaram referencial nas partituras publicadas no encarte do disco
Alma (ODEON, 1986). É notório que Egberto Gismonti possui um forte vínculo com
a música escrita: além de ter se formado no Conservatório Nacional de Música de
Nova Friburgo, teve aulas particulares de orquestração e análise musical com Nádia
Boulanger 9 e música dodecafônica com Jean Barraqué 10 . Apesar disso, embora
escreva com frequência para orquestras e diversas formações instrumentais, é raro
encontrarmos partituras da música que o próprio Gismonti executa em suas
performances ao vivo. O trabalho de Borges (2005), sobre a obra Sonhos de Recife,
revela que a partitura da mesma é um caso excepcional:
Gismonti só escreveu essa partitura porque uma amiga russa queria tocar a
peça. Essa partitura não pode ser entendida como uma partitura da prática
erudita, pois foi escrita para uma determinada pessoa tocar, por isso é
necessário ter um olhar dinâmico e flexível sobre essa referência.
(BORGES, 2005, p. 27)
Esta necessidade, de ter um olhar dinâmico e flexível sobre a partitura,
confirma a importância de se considerar a improvisação como uma das características
fundamentais da obra de Egberto. Por esta razão, Borges (2005) amplia sua fonte de
análise, utilizando também, como referência, a gravação de uma performance ao vivo
de Gismonti no Teatro Colón (Bueno Aires, Argentina/Maio de 2003).
9Nádia Boulanger (1887-1979): Compositora, regente e educadora musical francesa. Tornou-se uma das
maiores referências no ensino da composição no século XX. Foram seus alunos: Aaron Copland, Astor
Piazzolla, Almeida Prado, Daniel Barenboim, Elliot Carter, Leonard Bernstein, Camargo Guarnieri,
Claudio Santoro, Philip Glass, dentre outros.
10 Jean Barraqué (1928-1973): Compositor francês discípulo de Olivier Messiaen. Criou uma
identidade própria de compor usando a técnica serial. Muitas de suas obras foram destruídas por sua
própria ação. 21 Uma outra fonte de pesquisa utilizada nos trabalhos sobre Egberto,
bastante usual quando o compositor analisado é contemporâneo do pesquisador, é a
entrevista. Ela traz, para os trabalhos acadêmicos, aspectos curiosos da personalidade
do artista, revelando concepções filosóficas que ajudam na compreensão das questões
levantadas pela pesquisa. Na entrevista para o projeto Oncotô, de Jorge Mautner11,
Gismonti revela porque realiza inúmeras regravações de uma mesma obra. Para ele,
este processo faz parte de um ciclo de aprendizagem, no qual a composição
configura-se como um pensamento, que está sujeito a redescobertas e reformulações.
Na entrevista realizada por este pesquisador, Egberto afirma que regravou
determinadas músicas porque acreditava que elas haviam sido gravadas de forma
inadequada. As regravações seriam, portanto, um processo de aperfeiçoamento da
obra. Essa característica, de poder reelaborar a composição a cada performance, nos
fornece subsídios para pensarmos a sua música como uma construção constante, que
valoriza o caráter do processo acima do produto em si. Essa ideia será discutida no
capítulo 2.
Discutiremos, adiante, os pontos mais importantes sobre a obra de
Egberto Gismonti levantados pelas pesquisas acadêmicas. Alguns desses aspectos são
recorrentes, como a relação com o folclore, a dualidade popular x erudito e a
improvisação. Antes de chegarmos à revisão desta bibliografia, achamos oportuno
fazer um pequeno levantamento de artigos de jornais da década de 1960 para
compreender o contexto histórico no qual Gismonti surge para o público.
1.1 O contexto histórico em que Egberto Gismonti inicia sua carreira
A carreira de Egberto Gismonti teve impulso no ano de 1968, na ocasião
de sua participação no III Festival Internacional da Canção (FIC), com a música O
Sonho, interpretada pelo grupo Os Três Morais, acompanhados por uma orquestra de
cerca de 100 músicos, sob a batuta de Radamés Gnattali. Embora não tenha ganho
prêmio, Egberto saiu como a grande revelação do festival. A repercussão foi tamanha
que em apenas 2 anos O Sonho já havia sido gravada mais de 20 vezes, no Brasil e no
exterior, por músicos como Maísa, Elis Regina, Henry Mancini e Paul Mauriat. A
música trazia novidades estéticas para a MPB da época, principalmente em relação ao
11 Disponível no link: http://www.panfletosdanovaera.com.br/detalhe/4310 22 arranjo12. Já a letra e a melodia, espelhavam, de certa forma, as angústias inerentes
àquela época (tempos de “chumbo”), trazendo o universo onírico como uma válvula
de escape da realidade. Ao despertar do sonho, o eu-lírico vê a cama, o seu amor, e
chora. Ambos os ingredientes, poesia e estética, foram bem aceitos pelo público.
Egberto ocupou um bom espaço nas páginas dos jornais de 1968 e 1969
que se dedicavam à crônica dos festivais. Em junho de 69, o Jornal do Brasil destaca a
importância deste artista, no artigo Egberto Gismonti: Um músico para os Músicos.
Nele, propõe-se a necessidade de quebrar a “barreira imaginária entre a música
popular e erudita”, ressaltando a coexistência de signos entre elas e a necessidade de
erigir a estética como finalidade básica. O artigo ainda destaca a questão do
contraditório na música de Gismonti, trazendo um diálogo indireto com a proposta
tropicalista. Anti-conservador, anti-sambista, anti-regiolanista, Egberto seria antes de
tudo o indivíduo. A sua negação, na realidade, diz respeito aos radicalismos estéticos.
Como se num dia ele pudesse ser o maracatu (regional) e, no outro, Webern
(universal, ou seria alemão?), de acordo com as suas vontades:
O fundamental aqui é o artista comunicar o que o caracteriza, ser subjetivo.
Há que impor a sua individualidade, eis por que sou contra os movimentos,
que acabam por converter-se em prisões estilísticas. Por uma questão de
cultura vivencial acompanho os movimentos contemporâneo, se bem que
pelo prisma crítico. Não quer dizer que o artista deve se alienar do mundo
objetivo, marijuanizar-se. Mas não creio, também, que a sua função seja
reproduzir prosaicamente a primeira página do JB, por exemplo. (VALLE,
1969, p. 2)
A crítica de Egberto aos movimento da época se dava tanto à MPB
nacionalista tradicional, marcada pelas orientações cepecistas 13 , quanto aos
tropicalistas, no que tange o espírito da modernidade.
12 Podemos citar um exemplo: a utilização de uma nota pedal, em Sib no agudo, realizada pelas cordas
durante quase toda a música. A harmonia vai se desenvolvendo e a nota permanece contínua. De
acordo com Egberto, era um efeito imagético que representava o foguete percorrendo o espaço sideral.
Uma curiosidade é que os músicos da orquestra, responsáveis pela execução desta nota, não gostaram
muito da novidade, embora o efeito seja essencial para o discurso poético da canção. 13 Relativo ao Centro Popular de Cultura da UNE de 1962, organizado por jovens intelectuais de
esquerda. O CPC, alinhado com as ideias do PCB, tinha como proposta política/cultural a defesa do
nacional popular pela busca da expressão simbólica da nacionalidade e da brasilidade. O conceito de
cultura do CPC se caracteriza como arte popular revolucionária, ao invés de “arte popular” ou “arte do
povo”; passar o poder ao povo; a arte como tomada de poder; recusa da problemática individual: “fora
da arte política não há arte popular”. O CPC surgiu de um movimento da Dramaturgia brasileira (teatro
e cinema), que colocava a visão do operário como plano principal (Rio 40 graus, Eles não usam Black
Tie). O manifesto ficou mais como uma proposta de postura do que propriamente de estética
(NAPOLITANO, 2014).
23 Do ponto de vista estético, para os tropicalistas poderiam coexistir o
nordeste, a bossa nova, o pop, o rock, a música e a poesia concretas: como uma
Geléia Geral, termo concebido por Toquarto Neto. Porém, enquanto os tropicalistas
aceitam o dado concreto do homem industrial, Egberto tenta reverter o jogo e
humanizar a máquina. Esta sua proposta é exemplificada pela busca tanto pela cultura
oriental14, marcante nesse período, quanto pela posterior aproximação com a cultura
indígena, em meados da década de 197015. O indivíduo em Egberto é, portanto, a
busca pela essência do homem:
O Oriental busca a essência do homem. É esse todo o objetivo de sua
cultura. É a maneira que encontrei de subverter a civilização industrial, ou
talvez de humanizá-la. Soluções orientais para problemas ocidentais. (...) O
caminho da música é racional. A maneira mais elevada de comunicação é a
mente-a-mente que pode reter o que não sensibiliza os sentidos. O nosso
país é culturalmente ainda muito atrasado, razão pela qual procuro mais
um diálogo com os músicos do que com o povo. Importante é saber que
aquela forma de comunicação não exclui a intuição. Cito como exemplo
Milton Nascimento. Milton é uma pantera. Instinto puro, talvez o estudo o
destruísse. No entanto estabeleceu uma comunicação racional com toda a
plateia do II FIC, cujos sentidos estavam entregues à Gutenberg
Guarabyra: É isto que eu quero, atingir a sensibilidade racional do ouvinte
(VALLE, 1969, p. 2).
Podemos observar que Egberto, em seus primeiros discos, apresentava
concordâncias com a proposta tropicalista (mesmo do ponto de vista estético), como,
por exemplo, a inserção da música erudita de vanguarda e certas proposições plásticas
do arranjo, que buscam o contraditório: a sobreposição do moderno e do arcaico, do
regional e do cosmopolita. Porém, a sua proposta de atingir a sensibilidade racional
do ouvinte se contrapõe a elementos presentes na performance dos tropicalistas, como
a provocação, a violência simbólica, a não linearidade do discurso poético e,
fundamentalmente, o comportamento. Na performance de Egberto, há um respeito ao
ritual do palco, algo semelhante ao respeito do monge diante do seu templo.
Apensar de Gismonti definir a sua música como “uma crítica estética ao
que não se parece com ela”, a sua relação com os movimentos, embora crítica, se
dava de forma amistosa, receptiva àquilo que o interessava. Seu olhar catalizador
14 Egberto fez viagens ao oriente, sobretudo à Índia. 15 Existe um livro chamado Música Transpessoal (1989), escrito pelo musicoterapeuta Carlos
Fregtman em colaboração com Egberto, que investiga as vivências do compositor com as culturas
indígenas e orientais sob com uma abordagem holística da psicoterapia e do misticismo. 24 soube colher a importância estética e poética de cada movimento, como demonstra o
artigo A Revelação, Egberto, de 1968, no Diário da Noite:
Esse negócio de achar que só o sambão pode identificar a música brasileira
vai acabar. Acho muito certo a procura de uma música universal por parte
dos tropicalistas. É isso que todos os compositores de vanguarda estão
querendo achar, mas isso não quer dizer que a música de todo mundo vai
ficar igual (DUARTE, 1968, p. 6).
Embora discorde esteticamente dos “excessos” na proposta estética e
comportamental tropicalistas, Egberto se entusiasma com a poética das letras: “são
como uma viagem a toda velocidade por caminhos diversos”. É esta viagem onírica
que definiria a proposta poética da sua música O Sonho, uma busca por uma nova
realidade: “este mundo está horrível. Então vamos buscar outro”.
No artigo Egberto Gismonti e sua Inserção no Campo da Música Popular
Brasileira em Fins da Década de 1960, Moreira (2012) reflete sobre o disco de estreia
do compositor, intitulado Egberto Gismonti (1969). A autora aponta a presença
simultânea dos dualismos modernidade x tradição16, erudito x popular, engajado x
alienado, demonstrando um ecletismo nas faixas do disco. Moreira demonstra como
Egberto se permitia um livre trânsito pelos distintos movimentos de sua época, sem
ter o comprometimento de fixar-se em uma proposta estética ou poética.
1.2 Egberto Gismonti e Mário de Andrade
O nacionalismo musical na obra de Egberto foi um tema pontuado por
alguns pesquisadores. Porém, seria possível observarmos a gramática musical de
Mario de Andrade na obra de Egberto Gismonti? Na monografia Influências da
Literatura Musical de Mário de Andrade em Egberto Gismonti: Um Ensaio
Exploratório, Gilioli (2004) busca esta resposta, trazendo alguns dados concretos que
confirmam esta hipótese. No encarte do disco Meeting Point (ECM, 1997), de
Egberto Gismonti, há uma narrativa que conta, justamente, uma visão sobre o mito da
origem do povo brasileiro, baseado nas três raças. Em Mário de Andrade este mito
derivaria na estética da miscigenação. A faixa Música de Sobrevivência de Meeting
16 Para Moreira, a busca da MPB por um parâmetro mediador entre o moderno e o tradicional de certa
forma é consequência dos acontecimentos recentes da sociedade: a consolidação da indústria
fonográfica, a ampliação de um público consumidor de bens culturais e a crescente mídia de massa:
rádio e TV (MOREIRA, 2012, p. 844). 25 Point, é baseada na melodia “Pagode”, coletada por Mário de Andrade em Minas
Gerais, assim como a melodia da faixa “A Pedrinha Cai” é baseada em cantos dos
pedreiros. Ambas pertencem ao 1º Volume de Melodias Registradas por Meios NãoMecânicos17. Em entrevista à Gilioli, Egberto afirma que, na ocasião da gravação
deste disco, estivera lendo constantemente Mário de Andrade. Egberto diz ainda que
“o folclore é uma grande ideia”, porque “reflete a conclusão de uma grande maioria”.
Destacam-se, principalmente, as notas rebatidas 18 na descendente, a
utilização das sincopas, a influência da modinha, a utilização de intervalos
de terça, a preocupação com uma orquestração brasileira, dentre outros.
Estes são alguns dos elementos que configuram as aplicações práticas que
Egberto Gismonti faz do que chamamos de estética da miscigenação de
Mário de Andrade (GILIOLI, 2004, p. 41).
Embora seja evidente a admiração de Egberto pela produção crítica,
literária e de pesquisa de Mário de Andrade, existem diversas questões que os
diferenciam. No ensaio O Popular em Egberto Gismonti, Melo (2007) demonstra
quais seriam as principais diferenças no estatuto do popular em Egberto e em Mário
de Andrade. Esta diferença reside na liberdade com que Egberto se coloca diante do
dualismo nacional x estrangeiro, presente no debate nacionalista. A forma receptiva
com a qual Egberto enxerga as culturas do mundo, permite que ele expanda o seu
material musical e, consequentemente, a sua linguagem. De acordo com Melo, em
Egberto não há uma vitória do popular, em termos de recursos composicionais, nem
da música “desinteressada”19, o que permite tirarmos a conclusão de que existe uma
resposta ao dualismo diferente da forma como o trata Mario de Andrade, uma vez que
suas obras não podem mais ser compreendidas através dos elementos “brasileiros” do
“nacional-popular”. Melo acredita que existe uma tensão no popular em Egberto que
por vezes parece querer negá-lo, utilizando-se da sutileza, da sugestão, da insinuação
ou do implícito. O autor defende que nas músicas Maracatu e Frevo, para piano solo,
17 ALVARENGA, Oneyda (org). Melodias Registradas por Meios Não-Mecânicos. São Paulo: PMSP/
Departamento de Cultura, 1946. 18 Ver item 1.7 19 Nos trabalhos críticos de Mário de Andrade, a música interessada corresponde às manifestações de
arte primitivas e tradicionais, como o folclore. Para ele, estas seriam manifestações de arte “utilitária”,
visto que teriam um forte vínculo com uma função social. Já a arte desinteressada corresponde a
“música artística”, desvinculada de uma função social, pois tem um perfil intrinsecamente
individualista. Para Mário, uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo e os compositores,
para alcançarem à “música artística”, tem só que dar aos elementos populares uma transposição erudita.
(ANDRADE, Mário. Ensaio sobre a música Brasileira. São Paulo: Martins, 1962.).
26 e Lundu e Danças dos Escravos, para violão solo, existiria uma “sugestão” do
material correspondente à esse gêneros. A negação é apenas no sentido do folclore
com a sua “roupagem” tradicional. Ao invés da literalidade, ele aparece transmutado
ou sugerido.
Diante das fontes primárias, Melo afirma que, no nacionalismo tradicional
bartokiano, o folclore é visto como uma rica fonte de material, uma matriz técnica
(melódico-harmônica). Já em Egberto, a música popular é uma matriz à qual a técnica
deverá se ajustar. A partir da tese de Melo, podemos supor que o disco Sol do Meio
Dia (1978)20 realizado após sua vivência com os índios Iwoalapity, no alto Xingu,
representaria este pensamento: aprender os instrumentos indígenas e sua música, para
posteriormente tentar adequar suas próprias referências ocidentais às propostas
discursiva, poética e até mesmo estética da música dos indígenas, trazendo o índio
como principal ator e não apenas como uma mera matriz técnica.
1.3 A relação obra/compositor/intérprete.
Em sua dissertação de mestrado, Uma Abordagem Semiológica da Peça
Maracatú, de Egberto Gismonti, Silva (2014) utiliza-se do modelo de análise tripartite
desenvolvido por Nattiez para atingir uma compreensão ampla da interpretação
musical. De acordo com a autora, a interpretação é um processo que conjuga forças
expressivas inerentes à obra, ao intérprete e ao compositor.
Primeiramente, Silva faz um estudo acerca dos elementos contidos na
partitura, a partir de uma análise paradigmática que segmenta a obra Maracatu,
partindo do micro para o macro. Os primeiros motivos são identificados e logo
percebe-se a íntima relação destes, com as fórmulas rítmicas do gênero maracatu,
escolhido como fonte primária da composição. Posteriormente, a autora formula
hipóteses e interpretações acerca dos padrões deixados pelo compositor como
material simbólico. Para Silva, no caso de Maracatu, estes padrões seriam o
folclórico, o rítmico e o improvisatório. Silva identifica a melodia da composição
como um padrão folclórico; já o acompanhamento da mão esquerda do piano denota,
20 Uma curiosidade: neste período Gismonti criou um pequeno jornal que acompanhava seus discos,
chamado Jornal Caipira. Na ocasião do Sol do Meio Dia, o jornal apresentou uma série de
diversidades sobre a cultura indígena, contando com a participação de diversos artistas, como Ferreira
Gullar, Gonzaguinha, Marlui Miranda, Zezé Mota, Tarik de Souza e Geraldo Carneiro. 27 em algumas situações, padrões improvisatórios. O padrão rítmico foi observado por
um motivo que representaria o gonguê21, instrumento musical típico do maracatu e
que tem a função de manter a métrica da orquestra. No Maracatu de Gismonti, este
material ocorre durante a peça inteira: é um elemento ostinato que dita o andamento
da peça. Outro exemplo do material rítmico é o acompanhamento da mão esquerda no
grave, que faz um ritmo semelhante à alfaia22 do maracatu, que, por sua vez, também
é um instrumento grave. Posteriormente veremos que esses elementos rítmicos
também foram transplantados para a linguagem violonística de Gismonti. O ritmo do
maracatu, por exemplo, se manifesta na sua obra Em Família.
Por fim, Silva formula hipóteses sobre a maneira que a obra foi percebida
pelo intérprete, na posição de receptor. A autora, a partir de sua vivencia ativa com a
manifestação popular do maracatu, percebe que a partitura não define as acentuações,
que devem ser realizadas pelo intérprete, o qual precisa ter consciência do gênero
musical a que a música remete para fazer uma interpretação coerente. Silva chama a
atenção para o ritmo resultante de todos os motivos da peça, que é composto
basicamente de semicolcheias, que, segundo Silva, são a essência do ritmo do
maracatu.
O filósofo e semiólogo Umberto Eco, em seu livro Interpretação e
Superinterpretação (1993), afirma que no campo da semiologia, entre a intenção do
autor (intentio auctoris) e a intenção do intérprete (intentio lectoris), existe uma
terceira possibilidade, que é a intenção do texto (intentio operis). Esses três pilares
correspondem, funcionalmente, ao modelo tripartite utilizado por Silva em sua
pesquisa. Nesse sentido, duas observações apontadas por Eco são relevantes: a
primeira delas é que as intenções do autor são dificilmente descobertas e,
frequentemente, irrelevantes para a interpretação de um texto (no nosso caso, obra
musical). Ao abordar uma obra de um compositor como Egberto Gismonti, que recria
suas músicas a cada nova gravação ou performance, fica evidente que as especulações
acerca da visão do autor devem levar em consideração o caráter processual de sua
obra, pois as intenções podem ser transitórias 23 . Nesse sentido, as hipóteses
21 Instrumento semelhante à um sino achatado feito de ferro. Este instrumento, pela sua composição
material, é relacionado ao orixá Ogum, que é o orixá do ferro.
22 Instrumento musical da família dos membranofones. É constituído por: corpo, membrana, aro e
cordas de afinação. É um tambor grave tocado por duas baquetas.
23 Ver capítulo 2. 28 formuladas pelo intérprete podem dizer mais sobre ele próprio do que sobre as
intenções poéticas do compositor em si. A segunda observação de Eco é que a
intenção de uma obra não é revelada pela superfície textual. Só é possível falar da
intenção de um texto em decorrência de uma leitura por parte do intérprete. Portanto,
por mais pragmática que seja uma análise musical, ainda sim ela representa uma
interpretação subjetiva do analista. A relação entre compositor, obra musical e
intérprete é um assunto indispensável em uma pesquisa que envolve um compositorintérprete. Por isso reservamos o capítulo 2 dessa dissertação para uma abordagem
mais extensiva a esse respeito.
1.4 Aspectos da interpretação pianística
Na dissertação de mestrado A Interpretação e o Pianismo de Egberto
Gismonti em sua Obra “Sonhos de Recife”, Borges (2005) define pianismo como um
conjunto
de
particularidades
do
interprete
que
são
desenvolvidas,
não
necessariamente, a partir de dogmas e paradigmas tradicionais da interpretação
pianística e estão intimamente ligadas à personalidade do artista e a forma como ele
entende e assimila o texto musical24. A metodologia de Borges é direcionada para
reflexões sobre a interpretação musical; os procedimentos analíticos tradicionais que
tratam, por exemplo, da harmonia, da forma, da fraseologia, não são o foco de sua
pesquisa. Quando Borges propõe uma análise da obra, esta é baseada em parâmetros
estruturais somente com a finalidade de auxiliar no processo de construção da
interpretação musical.
Para Borges, a maior dificuldade na elaboração de uma interpretação para
as obras de Gismonti é a ausência de parâmetros estilísticos, devido à singularidade
de sua obra. Por exemplo, ao estudarmos uma peça para piano do período romântico,
encontramos diversos estudos dedicados à interpretação pianística deste período nos
quais poderemos amparar nossa interpretação, assim como existem diversas
gravações ao nosso alcance, para uso comparativo ou referencial. No caso da obra de
Gismonti, ainda não se produziu um volume significativo de estudos que possam
24 No caso do pianismo de Egberto, um exemplo máximo é a sua técnica de mão direita, na qual a
angulação da mão é adaptada devido às unhas grandes, importantes para a técnica violonística. 29 identificar parâmetros interpretativos singulares à ela. No caso de Sonhos de Recife,
uma das maiores especificidades está no ritmo: no “balanço” e gingado do frevo. Com
o amparo da gravação da obra, executada ao vivo pelo compositor, Borges faz
sugestões de interpretação como: articulações, dinâmicas, andamentos, pedalizações,
dentre outras. Há também sugestões de como estudar trechos da obra que trazem
dificuldades técnicas, principalmente relacionadas à independência das mãos em
situações de polirritmias. Esta é uma das principais características do pianismo de
Egberto que foi transplantada para o violão, como veremos no capítulo 4.
O apuro técnico de independência das mãos, em Egberto, foi
desenvolvido ao longo dos anos, com estudos específico criados pelo próprio
compositor25.
O desenvolvimento pianístico de Gismonti é fortemente marcado pelo seu
desenvolvimento composicional. Sua concepção de música, em busca de
uma linguagem própria, o impulsionou a procurar recursos técnicos e
interpretativos cada vez maiores.” (BORGES, 2005, p. 55)
Gismonti é um grande defensor do estudo de técnica aplicada ao
repertório, ao invés da técnica pura. Em muitas ocasiões, a manipulação criativa de
um exercício técnico pode levar à gênese de uma composição. Este processo é
identificado em diversas composições de Egberto. No caso do violão, poderíamos
citar a série de 12 estudos26.
1.5 O popular e o erudito
Os trabalhos acadêmicos direcionados à obra de Gismonti são unânimes
em afirmar que existe um equilíbrio entre a música erudita e a música popular em sua
obra. Na dissertação de mestrado Frevo para Piano de Egberto Gismonti: Uma
Análise de Procedimentos Populares e Eruditos na Composição e Performance
(PINTO) e no artigo O Caos Organizado de Egberto Gismonti em Frevo:
Improvisação e Desenvolvimento Temático (PINTO e BORÉM), os autores
25 Existe um artigo dedicado à exercícios de polirritmias sobre temas pianísticos de Gismonti, feito por
Daniel Grajew (2015). 26 A série de 12 estudos para violão nunca foi publicada. Porém, alguns desses estudos estão presentes
na discografia de Egberto, como o Estudo nº 5, do disco Egberto Gismonti (1969); ou Celebração de
Núpcias, do disco Academia de Danças.
30 realizaram uma transcrição da gravação, seguida de uma análise dos procedimentos
temáticos na composição de Egberto. A definição de caos organizado viria da
liberdade improvisatória com que ele reorganiza seus materiais temáticos, revelando
uma estrutura altamente coerente em torno de pequenos motivos. Segundo os autores,
este recurso de liberdade improvisatória se alinharia ao conceito que Schoenberg
denomina variação progressiva.
Na transcrição, os autores identificam elementos do gênero musical
pernambucano, o frevo, e processos estilísticos comuns ao pianismo de F. Chopin e
J.S.Bach. A partir disso, eles argumentam que existiria um estilo de fronteira – ou
estilo crossover – na linguagem de Gismonti, devido a junção de arquétipos da
música erudita e da música popular. Porém, os conceitos de popular e erudito
demarcam territórios tão amplos que estabelecer uma “zona de fronteira” seria algo
demasiadamente abstrato. Na própria tradição dita erudita é trivial a busca pela
incorporação de gêneros populares, tornando inconsistente a ideia de uma terceira
categoria denominada “zona de fronteira”.
Na dissertação de mestrado Egberto Gismonti e a Poética da SemiErudição, Pinto (2015) propõe outra nomenclatura generalista sobre a obra de
Gismonti:
A prática musical se cinde, não apenas distinguindo músicos ligados à
tradição oral daqueles iniciados nos meandros da linguagem escrita, mas
também abrindo espaço à atuação de tipos híbridos, compromissados tanto
com os procedimentos eruditos quanto com as práticas tradicionais. Se
podemos definir a música erudita como aquela que se fundamenta em
processos concernentes à escrita musical, a produção que se vale
parcialmente de processos de escrita, agregados em obra fundamentada na
tradição popular, será por nós referida como semi-erudita (PINTO, 2015,
p. 120).
O autor cunha o termo semi-eruditção para enquadrar compositores que
utilizam-se de processos da música popular, fundamentada na tradição oral, e
processos da música erudita, fundamentada na escrita. Entretanto, como lidar com
esse modelo visto que cada vez mais os músicos do campo dito popular dominam a
linguagem escrita e suas ferramentas técnicas e reflexivas? Se seguirmos essa linha de
raciocínio a tendência global seria todos os músicos se tornarem semi-eruditos. O fato
é que a categorização de erudito e popular também é generalista, pois contextos
sociais, históricos, territoriais e estéticos distintos são colocados dentro de uma
mesma “caixa”. Para evitarmos um campo teórico controverso acreditamos que a
31 terminologia mais adequada e isenta, para o Frevo de Gismonti, seria música
instrumental brasileira. Essa é uma nomenclatura que comporta a diversidade de
gêneros musicais e de estéticas em Gismonti – seja europeia, seja folclórica – e supera
a dicotomia popular x erudito e sua “fronteira”.
1.6 A improvisação
A improvisação é uma das marcas da performance musical de Egberto
Gismonti. Praticamente todos os autores que estudaram a sua obra e performance
descreveram momentos em que a improvisação é determinante na sua linguagem.
Correntino (2013), ao analisar a peça 7 Anéis, discute o contexto da música
instrumental no período pós bossa nova, buscando investigar a inserção de Egberto
neste meio musical. Para este autor, conteúdos experimentais pertencentes às
correntes de vanguarda das décadas de 60 e 70, como o jazz avant-gard, podem ser
identificados na produção de Egberto:
Pode-se afirmar que Gismonti absorveu elementos musicais referentes a
diversas culturas e os organizou de uma forma jazzística, ou seja, orientou
sua música para uma prática de estratégias e conteúdos bastante pertinentes
aos universos da improvisação (CORRENTINO, 2013, p. 20)
Porém, o próprio Egberto não se considera um jazzista, sendo possível
notar diferenças entre a sua linguagem de improvisação e a do no jazz. Em Sonhos de
Recife, por exemplo, Borges (2005) afirma que a improvisação não se baseia em
estruturas de variações da própria obra, como ocorre no jazz, mas sim em novos
elementos, completamente distintos e estruturados, onde pode haver, inclusive, a
inserção de um trecho de outra composição27. Para Pinto e Borém, na obra Frevo a
improvisação se revela mais próxima do choro do que do jazz, pois baseia-se em
alterações
rítmicas
(por
antecipação,
retardos,
diminuição,
aumentação,
fragmentação), variações melódicas, espacialização das alturas, etc.; ornamentos que
sustentam uma coerência temática do início ao fim da peça.
Para além de tentarmos categorizar a linguagem de improvisação de
Egberto, o mais importante é constatarmos que esta habilidade musical é recorrente
27 Sobre esse aspecto, ver no capítulo 2 o conceito de intertextualidade na obra musical de Gismonti. 32 em sua obra. Na partitura de Frevo, há a indicação “improvisar quantas vezes queira”,
o que releva, novamente, a particular relação de Gismonti com a escrita musical de
suas obras:
Percebe-se que a partitura, para ele, não é um registro acabado de uma
obra. Ela permite adaptações e contribuições interpretativas de cada
músico para que a música soe da melhor forma possível. Na sua opinião,
os intérpretes são considerados compositores, pois podem tocar explorando
as habilidades e recursos que possuem, no que diz respeito à formação
instrumental, forma, textura e à improvisação (SILVA, 2014, p. 36)28.
Gismonti afirma, em depoimento colhido por Borges, que a sua
performance/obra varia de acordo com o público e o ambiente. É um diálogo entre a
sala de concerto, as expectativas do público e a performance do artista.
1.7 Corporalidade e a relação entre Egberto Gismonti e Baden Powell
Em diversos depoimentos, Egberto Gismonti afirma ser Baden Powell a
sua principal referência no violão. A relação íntima entre a musicalidade desses dois
artistas foi descrita por Schroeder (2010) no artigo Corporalidade musical na música
popular: uma visão da performance violonística de Baden Powell e Egberto
Gismonti. O autor utiliza-se da noção de corporalidade musical, conceito discutido em
sua tese de doutorado Corporalidade Musical – As marcas do corpo na música, no
músico e no instrumento, para erigir semelhanças entre a performance desses dois
músicos. Orientada no âmbito da educação musical, a tese de Schroeder (2006) busca,
por meio desse conceito, conjugar diversas variáveis presentes na performance
musical, que vão desde às facilidades e limitações de cada músico até os rastros de
diversos outros corpos que marcaram historicamente este instrumento. A
corporalidade musical configura-se, portanto, como o modo de tocar um instrumento
em que pode ser visível a presença de forças motoras, cognitivas, contextuais,
históricas e culturais:
Só posso concordar com a afirmação de que tocar é colocar em ação um
conhecimento que está nas mãos, nos ouvidos, nas imagens sonoras, nas
imagens representativas que cada um faz do próprio instrumento, na
28 No capítulo 2 discutiremos a ideia de que interpretar é compor. 33 memória e na confluência de todas essas instâncias na direção da
realização musical. É a essa convergência de determinantes, todas elas
marcadas por qualidades corporais, que denomino corporalidade musical.
(SCHROEDER, 2006, p. 43)
Para Schroeder, a corporalidade musical é sustentada pelo tripé música,
músico, instrumento. Fazer música é uma construção coletiva, na qual há a presença
de indivíduos, que, ao longo dos anos, foram estabelecendo regras, valores e
hierarquias. O instrumento musical, enquanto corpo físico, também traz as marcas
daqueles músicos que definiram quais seriam as possibilidades mecânicas e
expressivas desse instrumento. Por fim, o músico, se expressando dentro de um
gênero específico, reflete suas idiossincrasias, com suas limitações e facilidades. A
atuação do músico também espelha outros corpos, que marcaram o gênero musical em
que ele se insere e o seu próprio instrumento.
A corporalidade, portanto, é um princípio gerador da realização musical,
indo além da presença do corpo físico; ela é também uma noção de corpo ampliado,
com suas marcas deixadas nos objetos e nas produções simbólicas:
No ato da execução o músico revela não apenas o seu “mundo percebido”
musicalmente falando, mas especialmente o modo como percebe, e isso,
pela indubitável idiossincrasia de cada músico em cada momento em que
se expõe, não poderia ser ignorado (SCHROEDER, 2006, p. 39).
Essa maneira idiossincrática como o músico percebe e expõe o “seu
mundo” encontra uma conceitualização semelhante em Camara (2008), na sua tese de
doutorado Sobre harmonia: uma proposta de perfil conceitual. Nela, o autor propõe a
noção de zona auditiva-instrumental, que seria uma parte do conhecimento musical
que é adquirido pelo músico inconscientemente e é condicionado pelo contexto social.
Desse modo, Camara identifica a mesma relação apontada por Schroeder – entre
corpo, instrumento e música – salientando dois mediadores: a audição e o instrumento
musical.
A audição só pode ser um mediador na medida em que o indivíduo trava
contato com toda uma cultura sonora e assim adquire uma rede de módulos
musicais de referência; cada instrumento musical, da mesma maneira, trás
consigo um sem número de dados culturais, que vão desde as razões que
orientam as ornamentações de sua construção, passando pela sua estrutura
antropomórfica, até a linguagem musical implícita ou explícita em graus
variados, mas de alguma forma guardada e registrada na afinação do
instrumento, no montante de notas ou alturas disponíveis, etc. E é por essa
via que o acesso ao corpo de conhecimento dessa zona conceitual se torna
34 possível. As elaborações harmônicas, por exemplo, de um Guinga são
claramente associáveis 1) ao seu instrumento – o violão – e/ou 2) ao
universo sonoro que o nutriu – o do Choro, do Samba, da Bossa-Nova, do
Jazz, etc... (CAMARA, 2008, p. 84)
Camara afirma que o conhecimento adquirido através dessa zona auditivainstrumental consiste em “uma forma de pensar não necessariamente verbal e,
principalmente, não codificada pelas teorizações instituídas e consagradas”. Ela é um
processo individualizado no qual os músicos desenvolvem habilidades estritamente
ligadas à aspectos físicos e sensoriais de seu corpo. Nesse sentido, toda performance
musical espelha um conhecimento sui generis, que reflete, não meramente a trajetória
formal do músico, mas, acima de tudo, uma trajetória mais profunda e íntima que une
corpo, ouvido e instrumento musical.
Ao aplicar o conceito de corporalidade à análise da prática musical,
Schroeder propõe a noção de “carnavalização”29 para entender as performances de
Egberto e Baden. Para o autor, esta noção surge dos momentos em que a performance
desses artistas chegam à extremos, deformando a regularidade, tanto do ponto de vista
da métrica quando do andamento. Há, também, momentos em que ocorre uma quebra
no padrão idealmente estabelecido de “limpeza” e “clareza” sonora: os violonistas
tocam com tal peso dinâmico, que seus violões chegam a trastejar. Este discurso é
análogo à “inversão da ordem” estabelecida na “carnavalização”, identificada por
Bakhtin na idade média:
Bakhtin se refere a um momento específico, o das festas populares, onde a
ordem do poder se altera, pelo menos temporariamente. O grotesco se
sobrepõe ao belo, o provisório ao perene, a instabilidade se instala e o torto
supera o reto. As partes baixas, sujas, íntimas do corpo aparecem; a alma
desce ao submundo do material e os tronchos tornam-se reis
(SHROEDER, 2010, p. 172).
No caso de Baden, o autor cita a interpretação de Berimbau no disco Ao
Vivo no Teatro Santa Rosa como exemplo dessa carnavalização, que é espelhada pelo
andamento acelerado, que gera uma instabilidade rítmica. No caso de Egberto,
Schroeder afirma que os elementos de rebeldia e excesso não se mostram em conflito
29 “Este é um termo utilizado por Bakhtin na sua obra sobre a cultura popular da Idade Média e do
Renascimento, que envolve, principalmente nas manifestações populares desse período, uma maneira
indisciplinada e “antioficial” de comportamento, que ocorria principalmente nas festas populares e ritos
cômicos. “ (SCHROEDER, 2006, p. 70) 35 como em Baden; na realidade eles fazem parte da sua linguagem e da estrutura de sua
obra.
Sua exasperação temporal, por exemplo, que ele utiliza com frequência no
violão, não estremece uma organização musical preestabelecida, não borra
seus limites bem delineados, mas habita um mundo já praticamente
beneficiado pela existência dos borrões, pelas hachuras e pelas linhas
fragmentadas e indefinidas. Em outra palavras, Egberto toma a liberdade
de construir um universo musical, uma proposta estética, que contém, ou
pelo menos pressupõe, a possibilidade do excesso (na verdade, exige)
(SCHRODER, 2010, p. 175).
Em relação à carnavalização em Egberto Gismonti, a reflexão de
Schroeder expõe uma contradição: se o conceito de Bakhtin originalmente pressupõe
uma quebra da ordem estabelecida, a carnavalização em Gismonti não existiria, pois a
“ordem” em Egberto, como o próprio Schroeder constatou, já seria um universo
particularmente “às avessas”. Assim como a música dodecafônica estabeleceu para si
um novo status quo, Gismonti estabeleceu uma linguagem na qual o “carnaval” é a
regra. Se nos propusermos a compreender a carnavalização como uma inversão do
status quo, em Gismonti ela só poderia existir se o mesmo interpretasse, por exemplo,
a peça Miudinho30, de H. Villa Lobos, seguindo os preceitos clássicos da interpretação
pianística, respeitando – nota a nota – a partitura e o arranjo original.
Voltando à corporalidade, Schroeder afirma que este conceito está
atrelado à maneira como o intérprete compreende suas possibilidades técnicas, sua
agilidade digital e suas limitações, e identifica semelhanças na performance de Baden
e Egberto, ou seja, em suas corporalidades musicais. É o caso da liberdade com que
ambos os músicos manipulam o texto musical em suas performances, podendo alterar
quaisquer aspectos da composição, como forma, ritmo, melodia, harmonia,
andamento e caráter:
Esta liberdade, que ambos demonstraram em várias outras oportunidades,
executando outras peças, é algo que remete à liberdade do orador, do
contador de histórias, do narrador. Os dois músicos conhecem
profundamente o discurso musical que irão pronunciar, sabem de sua
organização pois, não por coincidência, são os compositores dessas peças.
Executaram essas mesmas peças (executa ainda, no caso de Egberto)
inúmeras vezes, tornando-as conhecidas das audiências, entretanto,
concedem a elas a possibilidade de alterações radicais, a depender das
30 4º movimento da Bachianas Nº 4. Egberto gravou esta obra no disco Trem Caipira, reelaborando o
arranjo e utilizando sintetizadores. 36 situações especiais onde esse discurso determinado vai ser pronunciado, ou
publicado (no sentido de tornado público) (SCHROEDER, 2010, p. 178).
Alguns outros aspectos técnicos também são levantados por Schroeder,
como o recurso da corda solta, que possibilita uma maior ressonância do instrumento,
ou o uso de notas rebatidas31, semelhantes à maneira como opera o ponteado de viola
e o baixo pedal:
Egberto utiliza abundantemente não só dos ostinatos e bordões em cordas
soltas, acrescentados de acordes que vão se movimentando e alterando as
relações dissonantes com esses bordões utilizados, mas também das
mudanças de acordes em paralelo, onde se fixa uma fôrma de mão e faz
com que ela passeie pelo braço do violão livremente (estratégia que utiliza
acordes paralelos na forma de frases melódicas e que, se acrescentados de
cordas soltas, causam efeitos inusitados de dissonâncias) (SCHROEDER,
2010, p. 176).
Esta estratégia de deslizar uma mesma fôrma pelo braço do violão na
tentativa de não apenas criar tensões harmônicas, mas também gerar um melodia de
acorde, encontra paralelo nas obras de Villa-Lobos, como por exemplo na série de 12
estudos.32
31 A terminologia de notas rebatidas merece uma atenção especial, pois há registros divergentes do seu
uso. Encontramos esse termo em Mário de Andrade, que considerava este recurso uma espécie de moto
perpétuo (ANDRADE, 1989, p. 200). Antonio Madureira as define como “notas ligadas de duas em
duas em grupos de semicolcheias, tendo sempre uma que se repete para ligar a seguinte” (NOBREGA,
2000, p. 63). Já Schroeder entende que: “são repiques de notas que se interpõem às notas da linha
melódica, como acontece num outro exemplo conhecido desse procedimento que são os ponteados da
viola caipira, que podem ser tocados apenas sobre uma corda, alternando notas da corda presa com
notas da corda solta, intercaladas geralmente uma a uma” (SCHROEDER, 2010, p. 175). Para este
último, a nota rebatida é uma nota pedal em corda solta que se intercalada à melodia. Em nossa
pesquisa optamos por utilizar apenas a terminologia nota pedal, pois não identificamos um consenso
entre os autores.
32 Estes aspectos da linguagem violonística de Gismonti serão abordados no capítulo 4 dessa
dissertação. 37 CAPÌTULO 2 – INTERPRETAÇÃO E COMPOSIÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE
PROCESSO E PRODUTO NA OBRA MUSICAL DE EGBERTO GISMONTI
Algumas das questões levantadas ao longo desta pesquisa, como a
improvisação, sustentam o argumento de que ao pesquisarmos a obra de Egberto
Gismonti, não podemos desvincular a interpretação da composição. Sua performance
ao vivo constitui-se como um processo composicional, no qual não existe a soberania
da partitura. Isto permite que a obra seja um objeto em constante construção e
reconstrução, nas mais diversas esferas, tais como forma, melodia, harmonia, ritmo,
ethos, poética, nome da obra, dentre outras.
A
partir
do
referencial
teórico
proposto
por
Nicholas
Cook,
investigaremos a relação entre processo e produto na composição e performance de
Egberto Gismonti, visando compreender as dimensões ontológicas de sua obra, para,
em seguida, apontar caminhos àqueles que tenham interesse em interpretar essa
música.
O conceito de obra musical, idealizado pela tradição da música erudita
ocidental – no âmbito da musicologia histórica –, perpetuou a visão da música
enquanto uma construção estática, ou seja, um produto. Tal conceito abrange tanto a
obra enquanto uma produção da sociedade capitalista (exemplo: o fonograma, o disco,
o DVD, etc.), quanto a obra idealizada pelo compositor, seja na partitura, seja em seu
imaginário. Esta corrente de pensamento, em um contexto mais radical, espera que a
performance musical seja um diálogo direto entre compositor e plateia. Neste caso, o
intérprete seria apenas um “reprodutor” das ideias e vontades do compositor e a obra
musical um produto que expressaria todas as verdades contidas na partitura.
Nicholas Cook lança a hipótese de que o próprio vocábulo que utilizamos
para nos referir à performance musical diminui o potencial de compreensão da música
enquanto processo.
A ideia de que a performance é essencialmente reprodução e,
consequentemente, uma atividade subordinada, senão redundante, está
inserida na nossa própria linguagem. Você pode “simplesmente tocar”,
mas é estranho falar sobre “simplesmente interpretar (ou executar)”: a
gramática básica da performance é que você interpreta alguma coisa, você
apresenta uma performance “de” alguma coisa. Em outras palavras, a
linguagem nos leva a construir o processo de performance como
suplementar ao produto que a ocasiona, ou no qual resulta; é isto que nos
leva a falar naturalmente sobre a música “e” sua performance, da mesma
forma que os teóricos do cinema falam do filme “e” sua música, como se a
38 performance não fosse parte integral da música (e a música do filme). A
linguagem, em suma, marginaliza a performance (COOK, 2006, p. 6).
Existiria, portanto, uma noção de que a obra musical idealizada estaria em
um plano distinto da música na prática (GOEHR, 1992). Essa visão, similar à maneira
como os gregos conceitualizavam a música, faz emergir a figura do compositor como
um ser dotado de um patrimônio intelectual soberano, e é consequência direta da
forma como a música erudita ocidental se impôs diante das outras culturas do mundo.
Representa a vitória de uma cultura mais elevada, que se estabeleceu a partir de
grandes obras, arquitetadas por grandes mentes. Nesse sentido, a ideia da música
como produto é também um juízo que atende muito bem às prerrogativas do
capitalismo.
Havia também uma noção, derivada em parte da etnomusicologia, de que
a tendência da musicologia de abordar todas as músicas como produto,
ao invés de processo, representava um tipo de hegemonia colonizadora,
uma afirmação dos valores de uma arte superior sobre uma arte inferior
(COOK, 2006, p. 6).
A etnomusicologia, ao se debruçar sobre culturas de tradição oral, nas
quais outra estrutura social se impõe, entende a música inevitavelmente enquanto
processo, pois nesses contextos a música é uma ação participativa de todos os
membros da comunidade, na qual não existe o conceito individualista de autor e obra.
Voltando à analogia da música enquanto produto e os arquétipos da
ideologia capitalista, Cook salienta algumas proposições relevantes de outros autores:
Matthew HEAD (2000, p.200) observa que as obras musicais funcionam
como investimentos, gerando uma renda regular. Jacques ATTALI (1985,
p.32) aponta que, por meio de partituras ou gravações, a experiência
musical pode ser interminavelmente adiada e estocada. A música se torna
parte de uma economia estética definida pelo consumo passivo e cada vez
mais privado de produtos industrializados, ao invés de definida pelos
processos sociais ativos da performance participativa (CHANAN, 1994).
Em suma, parece que nos esquecemos que a música é uma arte de
performance e, mais do que isto, parece que não poderíamos pensar nela
como tal, mesmo se quiséssemos, haja vista a forma como a conceituamos
(COOK, 2006, p. 7).
39 Christopher Small propõe uma inversão do paradigma da performance
subordinada à obra. De acordo com ele, em uma sociedade mais criativa e inclusiva
não haveria a obra musical, mas, sim, a atividade de fazer música, de dançar ou de
escutar. “A música erudita representa um tipo de sociedade que não permite a
participação mútua de todos os indivíduos porque é baseada em obras e não em
interações” (1998, p.11 apud Cook, 2006, p. 8). A proposta de Small compreende a
música não como objeto, mas, sim, como ação, ou seja, não como produto, mas como
processo. Apenas do terreno conquistado, Cook abre mão dessa visão que
superdimensiona o processo em detrimento do produto. Para ele, na realidade, a obra
musical caracteriza-se pela confluência desses dois fatores. Por mais que uma
performance ao vivo tenha um caráter dinâmico, sujeita à múltiplas variáveis ao longo
da execução, as escolhas interpretativas do músico ou o próprio concerto podem ser
vistos como um produto a ser ofertado ao público.
A partir desses primeiros apontamentos a respeito da relação entre
produto e processo, voltamos nossa atenção para a obra musical de Egberto Gismonti.
Como verificaremos adiante, a sua discografia, embora constitua-se como um produto
de mercado, espelha um longo processo de transmutações, reiterações e
aperfeiçoamentos. Também veremos que, devido à ausência de partituras, é
importante uma participação mais ativa dos intérpretes que queiram executar essas
obras, se envolvendo em práticas como a transcrição de gravações e o arranjo. Tais
práticas, aproximam a atividade do intérprete da atividade do compositor. Sobre a
junção desses dois ofícios, Cook nos fornece uma informação importante que, em
certa medida, territorializa (ainda que de forma anacrônica) Egberto Gismonti em
uma tradição. No âmbito da música erudita ocidental existiram dois tipos de tradições.
Uma seria a tradição do “opus”, iniciada no século XIX e associada a Beethoven, e a
outra, bastante distinta e baseada no performer, seria a de pianistas-compositores
como Chopin e Liszt.
Se o paradigma da tradição do “opus” é a sinfonia de Beethoven, o da
tradição do virtuoso é o tema com variações, geralmente baseado em
melodias de óperas da moda, mas concebido como um veículo para a
exibição artística; se a primeira tradição está associada a um texto único,
de autoridade, reproduzido durante a performance, a segunda invoca a
multiplicidade de textos que é a regra do rock, por exemplo, mas que causa
problemas aos musicólogos treinados na tradição filológica. Muitas das
obras de Chopin e Liszt sobrevivem em diversas, mas igualmente
autenticas, versões notadas (faz sentido aqui uma relação com a utilização
jamaicana deste termo), versões estas que são traços de diferentes
40 performances, igualmente autênticas. Se, para repetir as palavras de Small,
musicando significa que “obras musicais existem para dar aos performers
algo para interpretar”, então o musicando residiria no próprio âmago da
obra musical. (COOK, 2006, p. 9)
A tradição de pianistas-compositores, minguada ao longo do século XX
na música erudita ocidental, reflete inteiramente a posição de Gismonti em relação às
suas obras. A performance deste compositor é sempre norteada por processos que
lembram um tema com variações, porém em Egberto iremos substituir as melodias de
óperas oitocentistas pelos próprios temas do compositor, que são amplamente
reutilizados e reconstruídos 33. Este é um ponto nevrálgico da obra musical de Egberto
Gismonti: as reiterações de materiais temáticos ou intertextualidades. Qualquer
pesquisa que pretende debruçar-se sobre sua música, e mesmo qualquer intérprete que
pretenda executá-la, precisa levar em consideração a dinâmica de suas composições.
A ideia de ação, proposta por Small como sendo o âmago de qualquer
obra musical, é expandida por Egberto nas mais diversas instâncias, desde
significados extramusicais até os elementos constituintes da estrutura da composição
em si: forma, melodia, caráter, andamento, harmonia, dentre outros.
2.1 Significados extramusicais
“Eu gravei isso [o disco Dança das Cabeças] com o maluco do meu amigo
Naná Vasconcelos e não tinha uma partitura pronta. Tinha uma ideia: dois
curumins andando numa floresta... pronto!” (GISMONTI, 2016)
Existem muitos críticos que condenam a compreensão da música como
guardiã de um significado extramusical. Não seria oportuno de nossa parte entrar em
uma discussão epistemológica nesse campo, nem criar uma reflexão crítica em torno
das significações poéticas da obra de Gismonti a partir do olhar do ouvinte ou do
compositor. Esta seria uma pesquisa que mereceria uma atenção exclusiva. A nossa
intenção é apenas constatar que o seu discurso poético é um dado importante da sua
33 Há uma outra diferença entre Gismonti e a tradição dos pianistas compositores oitocentistas.
Egberto raramente executa uma obra que não é sua, enquanto que compositores como Chopin e Listz
frequentemente executavam obras de outros autores. 41 personalidade criativa, que interfere diretamente na elaboração da estrutura de sua
composição musical. A poética de sua música sofre as mesmas oscilações ao longo do
tempo, demonstrando que é também um processo em constante movimento.
O significado extramusical de uma obra pode mudar de acordo com a
história que se pretende narrar naquele momento específico. Ao tomarmos a música
Palácio de Pinturas como exemplo, podemos perceber uma mudança de sentido
poético na comparação de algumas gravações. Em entrevista, Egberto afirma que no
primeiro registro (Academia de Danças, 1974) havia um livro de As Mil e Uma Noites
no estúdio, que os músicos ficavam folheando nos intervalos. Os títulos das músicas
do disco foram tirados de frases deste livro, com o propósito de dar um certo sentido
ao encadeamento das faixas. Já na gravação de Palácio de Pinturas, do disco Nó
Caipira (1977), colhemos um outro depoimento de Gismonti:
Palácio das Pinturas, que é uma espécie de som que surgiu um dia em que
eu ia numa canoa com os índios pelo Amazonas, e chegamos a um lugar
onde as árvores cobriam o céu. Eu a transformei na história de alguém que
vai em uma canoa vendo as formas e as situações da selva. Tem um
momento em que as cordas sobem a notas muito rápidas e agudas, como os
raios do sol que se colam entre as árvores da selva.
E assim é o disco, o campo do norte do Brasil visto através dos sentidos e
das emoções.34
Na gravação de Palácio de Pinturas, do disco Nó Caipira, houve uma
mudança radical no arranjo e no caráter da música. Percebemos que um novo sentido
extramusical surgiu para aquela composição, exigindo que uma nova arquitetura fosse
concebida. Nesse caso, poderíamos fazer uma analogia com a literatura, na qual uma
mesma estória pode ser contada, sob diversas óticas, pelo mesmo narrador. Ela não
deixa de ser a mesma, porém o seu percurso (ou o processo) é cambiável.
Sobre o conceito de música pela música, Egberto declara.
“Eu considero que cada composição, tem pequenas aberturas que
possibilitam que se saia um pouco para direita ou para esquerda, mas que
na realidade são bem estruturadas, no sentido de história que está sendo
contada. (...) Não gosto de música pela música e aprendi isso com grandes
musicólogas. Na Argentina foi Fedora, no Brasil a Ester Scliar e a terceira,
a Nádia Boulanger.” (GISMONTI, 2016)
34 LERNOUD. Pipo. "Gismonti conta tudo e algumas coisas mais". Revista Express. Argentina. 1981.
p. 18/19. 42 A partir da constatação de que uma narrativa poética pode determinar a
composição de Egberto Gismonti, aprofundaremos nossa investigação destacando
outro aspecto processual da obra musical de Gismonti: o diálogo entre textos,
sobretudo quando estes são um retorno a materiais já utilizados em outras
composições.
2.2 Intertextualidades e Ritornelos
No contexto de nossa pesquisa, não pretendemos fazer uma investigação
exaustiva quanto ao grau e à dimensão da intertextualidade na obra de Egberto
Gismonti. Poderíamos citar inúmeros exemplos explícitos de processos intertextuais,
como as antologias poéticas35 ou as músicas para teatro, cinema, ballet e televisão.
Porém, preferimos nos concentrar exclusivamente na composição e performance.
Assim, buscaremos um sentido mais restritivo para o termo intertextualidade,
compreendendo esta como o processo de citação de materiais temáticos.36
Ao travarmos um contato extensivo com o todo da obra musical de
Egberto, percebemos uma enorme recorrência de intertextualidades. Godoy (1998), ao
tentar compreender o processo criativo deste compositor, busca na filosofia de
Deleuze e Guattari, o conceito de ritornelo. O sentido etimológico deste termo é
aproveitado para resignificar a reincidência de um comportamento que busca a
territorialização:
Os autores [Deleuze e Guattari] apresentam o ritornelo falando de Etologia
(estudo do comportamento dos animais); como 'os pássaros criam seus
territórios, além do seu canto, pela criação de cenários, mudanças de
desenhos das suas penas, danças, gestos, posturas e como esse mesmo
operador de pensamento, funciona na organização social humana,
Etnologia (estudo dos comportamentos humanos), até chegar nas teorias da
arte e no comportamento dos artistas (GODOY. 1998, p.17).
A partir dessa analogia com o comportamento dos animais, que retornam
sempre ao mesmo território, repetindo sempre as mesmas ações para resguardar a sua
sobrevivência, compreendemos a ideia de ritornelo como o território da personalidade
35 Egberto compôs e gravou: Antologia Poética de João Cabral de Melo Neto (SOM LIVRE, 1979);
Antologia Poética de Ferreira Gullar (SOM LIVRE, 1979); Antologia Poética de Jorge Amado (SOM
LIVRE, 1980). 36 Restringiremos somente às auto-citações de Egberto. 43 do artista, sustentada pelo seu comportamento expressivo. Nesse sentido, como sugere
Godoy, as forças criativas em Egberto Gismonti parecem a todo o instante querer
retornar à sua essência enquanto indivíduo (retornar/encontrar o seu terreno). Essa
constatação pode ser comprovada pela importância que as relações afetivas tem em
suas obras. Como exemplo, podemos citar a onipresença da sua cidade natal, o
Carmo, em sua vida e obra; a lembrança e reverência pelo tio Edgar, clarinetista e
compositor; o nascimento de seus filhos37.
O comportamento expressivo reflete memórias e afetividades, formando
um conjunto de elementos que determinam a personalidade do artista. O ritornelo é a
busca por esta expressividade através do retorno do artista à sua própria essência. Em
um sentido objetivista, podemos destacar o processo de retorno a textos já utilizados
anteriormente como uma das marcas do ritornelo em Gismonti. Em uma análise
ligeira da obra para violão deste compositor, detectamos diversas reutilizações de
materiais temáticos. Para citar alguns exemplos, a peça de concerto Deux Danças
Pour Deux Guitares deu origem à Dança Nº 2 e também à música A Porta
Encantada; as músicas Celebração de Núpcias e A Porta Encantada transformaramse na obra Água e Dança para dois violões, no disco Saudações (2009); Raga
transformou-se em Para John e Paco e o segundo movimento da suíte Três Retratos
Para Flauta e Violão deu origem a obra Zig Zag38; em Dança dos Escravos há uma
citação de Luzes da Ribalta. Estes são alguns exemplos de ritornelos de materiais
temáticos reutilizados de forma estrita; há também um outro processo, que é a citação
indireta de motivos já utilizados em outras composições. Neste caso, Egberto constrói
uma composição cujo tema possui semelhanças mais sutis com outras obras. Um
exemplo é a peça Dois Violões, cujo material temático remete à peça Karatê. Outro
caso que poderíamos citar é a performance de Gismonti na composição De Repente.
Em suas performances ao vivo, percebemos que ela fundiu-se à outra música, Cego
Aderaldo. Egberto uniu os elementos das duas composições, criando um mix que não
existia nas gravações originais. Em Cego Aderaldo, também há outra citação
37 Egberto Gismonti, além de ter uma gravadora com o nome de Carmo, gravou um disco com este
mesmo nome. A última faixa é o próprio hino da cidade (que aliás foi composta pelo seu tio Edgar).
Gismonti também lançou um disco intitulado Em Família. Este LP é marcado pelo nascimento de seus
dois filhos: Bianca e Alexandre. Algumas obras foram compostas dedicadas à eles e em muitas delas é
possível ouvir choros, gemidos, brincadeiras e até os primeiros batimentos cardíacos dos filhos.
Posteriormente Bianca e Alexandre se juntaram ao pai na profissão, dividindo palcos e gravações. 38 Todos os exemplos aqui elencados foram extraidos, exclusivamente, de obras cuja presença do
violão é determinante. 44 recorrente, que surgiu após a gravação original (Circense, 1980): no disco Folk Songs,
Egberto insere, nessa composição, o tema da música Ciranda, também originária do
disco Circense. Esta citação passou a ser uma parte integrante da obra, sendo
reafirmada nas performances ao vivo do compositor.
A presença do ritornelo, em Gismonti, não é um processo inerente
somente à composição. A sua performance também está repleta de déjà vu, como na
ocasião da execução de Salvador em duo com Charlie Haden, ao vivo em Montreal
(200139): em um momento de liberdade improvisatória, após a exposição dos temas,
Egberto passa a tocar – para a improvisação do contrabaixo – o acompanhamento
característico de seu violão em uma outra composição de sua autoria, chamada Café.40
Ainda tomando como exemplo a obra Salvador, ao ouvir Egberto
interpretar esta música, percebemos que sua performance sintetiza a trajetória da
composição ao longo de sua carreira, expondo de forma improvisada, recursos
tímbricos, gestos, texturas e materiais motívicos que foram sendo acrescentados ao
longo dos anos. Este processo é observado, por exemplo, no disco Orfeo Novo (1971),
no qual Gismonti acrescenta um terceiro tema à obra. Este novo material temático
torna-se parte do corpus da obra, sendo reutilizado nas demais gravações e
performances.41
2.3 Regravações
As constantes regravações podem ser compreendidas como um longo
processo de aperfeiçoamento da obra. Em cada nova gravação, Egberto reformula
completamente sua música, o que faz emergir uma questão relacionada à
originalidade. Qual dessas gravações representaria a essência da composição? Qual
seria o produto original? A resposta a essa questão pode ser facilmente encontrada,
visto que todas as gravações, por mais distintas que sejam umas das outras – em
diversas instâncias –, representam uma verdade daquela obra; e por mais que estejam
materializadas em um produto (o disco), a essência de qualquer registro fonográfico
está contida no processo de composição e performance que o concebe. Enquanto
39 Este disco foi lançado em 2001, porém a gravação foi feita em 1989. 40 Há um detalhe: o tema de Café não chega a ser executado, embora a citação (harmônica) seja
bastante explícita na parte do violão. 41 Da mesma forma que esses materiais podem ser acrescentados à música, o processo inverso
também ocorre. Na gravação do disco Solo, de 1979, o terceiro e o segundo tema são suprimidos. 45 produto, a gravação seria um processo congelado e armazenado, mas que não deixaria
de representar uma verdade da obra, ainda que seja uma verdade circunstancial.
Portanto, a performance executada em um registro transmite a verdade do intérprete –
e no caso de Egberto, do compositor também – naquele determinado momento.
Em entrevista a este pesquisador, Egberto afirma que as constantes
regravações servem para melhorar aquilo que não tinha sido feito “corretamente”. Na
realidade, o “correto” é uma visão temporária e relativa. A relação de Gismonti com
determinadas obras muda com o tempo, e por isso ele vê a necessidade de regravá-las.
“Eu fiz 69 discos (e o número 70 vai sair agora) não é a toa. Porque todas
as regravações que eu fiz (...), nos primeiros oito ou nove discos tem umas
quatro músicas que se repetiram... dois anos depois, repetiram de outra
maneira. Como eu nunca fui do ramo da música e muito menos do métier
da música, (...) eu refazia para consertar o que eu tinha considerado errado,
um, dois, três disco atrás. Não é muito comum. O sujeito grava a música x
e dois anos depois regrava a música x diferente, porque declara (e eu
sempre declarei isso, não é de hoje não)... eu tô fazendo porque estava
errado. ‘Mas como errado?’ É porque eu acertei na época, eu estava feliz
na época; eu achei que estava uma beleza... depois eu achei que estava
horrível e fui refazendo. Tem até disco meu (...), o mais marcante chama
Corações Futuristas, que o disco saiu... seis meses depois saiu a segunda
versão do disco.... com capa, de outra cor inclusive, escrito: segunda
mixagem. Eu sempre tive tanta liberdade na decisão da música, que eu
sempre quis que ela tivesse mais atualizada possível. Não tem nada a ver
com modernidade.... é atualizada. Depois eu parei de fazer isso porque a
chance que me apareceu pra fazer uma quantidade imensa de discos... não
dava pra ficar corrigindo todos os outros discos, se não ia ter uma confusão
danada” (GISMONTI, 2016).
As regravações de Gismonti, como um todo, são vistas por ele como
ciclos de aprendizado. A ideia de ciclo não só reafirma a noção da música enquanto
processo, como também expõe a possibilidade de compreendermos a sua discografia
como um grande e duradouro processo. Os ciclos de aprendizados são congelados em
produtos (discos, filmes e etc) e espelham, em si, a trajetória de longos processos.
Sobre este aspecto, Egberto afirma:
Sempre me dei ao “luxo” familiar de mudar o rumo da prosa da música
que eu venho tocando, sempre fazendo a mesma [música] com variações.
Por que se já fiz uma vez, duas três... eu tenho que fazer outra coisa, que
isto eu já cansei, agora eu quero isto... claro que passado o primeiro ciclo
de aprendizado, minha vida meio que se divide em números de discos, de
filmes... a liberdade que me foi dada no Carmo com essa história da
segurança.42
42
GISMONTI.
Oncotô
entrevista
Egberto
Gismonti.
Disponível
<http://www.panfletosdanovaera.com.br/detalhe/4310> Acessado em 18/11/2015.
em:
46 Esta fala traz alguns dados relevantes: a) a constatação da tradição do
tema com variações verificada por Cook em intérpretes-compositores como Liszt e
Chopin; b) a consciência da liberdade para “mudar o rumo da prosa”, remetendo ao
modus operandi do orador ao contar uma história, que por mais que seja exposta com
diferenças, não deixa de ser “a mesma”; eis, portanto, que cada gravação é “a/uma”
original; c) a verificação do conceito do ritornelo nas recordações do Carmo, o que
representa a consciência de si mesmo, o retorno à origem, a busca pela própria
essência.
A segurança a que Egberto se refere no texto é algo que o compositor
acredita ser comum a todos que vivem em uma cidade pequena e interiorana.
Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, Gismonti diz que só quem nasceu no
interior não sabe o que é ser anônimo. Em uma cidade pequena, todos se conhecem e
o fato de não ser um anônimo proporciona, de acordo com Gismonti, a segurança de
ser livre para criar o que bem entender, sem a angústia de não ser aceito ou notado. O
Carmo forneceu à Egberto a coragem de ser um experimentador; de desenvolver a sua
personalidade criativa sem medo de fazer algo que não proporcionasse notoriedade.
2.4 A gravação enquanto processo
Como vimos, a dinâmica da música de Egberto Gismonti reforça o caráter
de processual em sua obra, no entanto, podemos compreender a música tanto como
processo quanto como produto, porém é a relação entre estes dois que define o que é
a performance musical (COOK, 2001). Mesmo a execução ao vivo de uma obra –
embora seja um evento temporal, portanto, processual – constitui-se em um produto a
ser consumido pelo ouvinte, desde a compra do ingresso até o consumo/fruição
musical em si. Além disso, a execução da obra, Da Capo ao Fine, é um produto
resultante das escolhas interpretativas do performer.
Já na gravação, o produto é derivado de vários processos (incluindo a pósprodução), que pode chegar ao ponto de reproduzir uma performance fictícia.
A gravação (um produto comercial) afigura-se como um traço de uma
performance (um processo), mas, na realidade, consiste geralmente de um
produto composto de vários takes, e do processamento do som, em
47 diferentes graus de elaboração – em outras palavras, não é propriamente
um traço, mas sim a representação de uma performance que, na realidade,
nunca existiu (COOK, 2006, p. 14).
Apropriando-se da tecnologia dos estúdios de gravação, os intérpretes
criam performances que na realidade nunca existiram. No caso de Egberto Gismonti,
a utilização deste recurso tecnológico se expande para a construção da própria obra,
visto a sua posição de intérprete e compositor. Dentro da discografia de Gismonti,
podemos constatar que, na maioria significativa de suas gravações, ele executa mais
de um instrumento. Mesmo em discos eminentemente solo, como Dança dos
Escravos (1988) e Alma (1986), em algum momento há a sobreposição de algum
outro instrumento (nem que seja um sino!). Em Dança das Cabeças (1977), disco em
duo com o percussionista Naná Vasconcelos, podemos identificar alguns momentos
em que o violão de Gismonti foi complementado, a posteriori, por outro violão.
Apesar disso, é expressivamente notável a concepção de “gravação ao vivo”, proposta
pelo duo.
Também há casos extremos, como no disco Fantasia (1982), em que
Egberto grava todos os instrumentos sozinho, em seu estúdio caseiro; ou no disco
Bandeira do Brasil (1984), no qual o processo de gravar tudo sozinho só não foi
consumado por que há uma pequena participação do saxofonista Nivaldo Ornelas e da
cantora Maryz Bravo em duas faixas do álbum.
Notamos, nesses processos de gravação, como a composição e a
interpretação são campos que caminham juntos em Egberto Gismonti. A própria
compreensão de qual é a dimensão de sua obra – o que é criação do compositor, o que
é do intérprete – em uma performance compartilhada com outros músicos, demonstra
o quanto Gismonti valoriza o papel do intérprete na obra musical. Para ele, músicos
como Robertinho Silva, Mauro Senise, Nando Carneiro, Zeca Assumpção, Naná
Vasconcelos, Jaques Morenlenbaum e Nivaldo Ornelas são “aqueles que tornam esta
música possível”.
A ideia da música como uma criação coletiva fica bastante evidente em
alguns discos de Gismonti43. Nesse sentido, sua composição é somente um script –
43 Talvez o melhor exemplo seja Dança das Cabeças, em parceria com Naná Vasconcelos. O disco é
um ritual interativo regado a muita improvisação. Observamos que no catálogo, o direito autoral ficou
exclusivo à Egberto. Em entrevista a esse pesquisador, Gismonti afirma que foi uma gentiliza do Naná,
48 para utilizar o conceito de Cook – que organiza o papel de cada personagem/músico
durante a performance:
Paul Valéry comparou a peça musical a uma receita (GOEHR 1996, p.11),
R.G. Collingwood viu a partitura como um “esquema precário” de
instruções para a performance (KIVY 1995, p.264), ao passo que
GODLOVITCH (1998, p.82) se refere às obras grafadas como “modelos,
rascunhos, esquemas ou guias que, quando consultados dentro dos limites
da aprovação convencional, dão chance à música de acontecer ou de
funcionar” (COOK, 2006, p. 12).
A quebra da visão da música engessada no texto musical pode ser notada
em Egberto não só na maneira como ele se relaciona com a sua obra e com os
músicos que o acompanham, mas também no caminho aberto por ele em relação a
reelaborar textos vinculados à tradição erudita44. O maior exemplo disso é o disco
Trem Caipira (1985). Nele, Egberto resolveu gravar Heitor Villa-Lobos à sua
maneira, arranjando obras até então nunca reelaboradas e interpretadas no âmbito da
música popular. Foi necessário um trabalho árduo para convencer os editores da obra
de Villa-Lobos, pois jamais algo semelhante havia sido realizado. Em entrevista,
Egberto relata:
Eu quis fazer uma música que fosse Villa-Lobos, mas tivesse também a
minha cara. Além disso, o tempo todo fiquei preocupado com o que ele
pensaria da música que eu estava fazendo. Por isso, recomecei o disco
várias vezes. Na verdade, não me preocupei em analisar teoricamente a
música de Villa-Lobos, mas em transmitir a emoção com que ele criou
cada composição.45
Sobre o disco Trem Caipira, Luiz Antonio Giron, redator da Folha de São
Paulo, em reportagem do ano de 1985, comenta:
O resultado desse ofício de leitura livre, em que Gismonti adaptou músicas
do compositor segundo seus pontos de vista, é bastante polêmico. Os
músicos eruditos certamente não engolirão em seco as alterações
interpretativas que Gismonti imprimiu às composições através do uso e
que abriu mão da autoria do disco em retribuição ao convite inesperado para gravar. Vasconcelos
sempre foi grato a Gismonti, por ter aberto várias portas à ele, sobretudo na ECM. 44 Este processo é verificado sobretudo em obras de concerto (eruditas) do próprio Egberto Gismonti.
A peça Deux Danças Pour Deux Guitares, citada anteriormente, possui este caráter concertístico
erudito e foi realocada em um âmbito bastante popular (rock progressivo) na música A Porta
Encantada, no disco Academia de Danças. 45 SILVA, Beatriz Coelho. "Gismonti & Villa, coluna do meio". O Globo. 1985
49 abuso de sintetizadores. Porém mesmo raivosos, sentirão ímpeto de
consultar partituras e gravações mais "fiéis". Só esse fato, o de provocar
uma volta à obra original de Villa-Lobos, já dá a medida da importância de
"Trem Caipira".46
A liberdade criativa de Egberto Gismonti o leva a transcender normas
estabelecidas em qualquer escala, mesmo ao interpretar outro autor, sem limites
impostos ou “padrões de conduta” preestabelecidos. Outro exemplo é o seu arranjo
intitulado Variações Sobre um Tema de Leo Brouwer (Árvore, 1973). Nele, Egberto
compõe uma variação para o Estudo Nº4 do compositor cubano Leo Brouwer e
acrescenta ao arranjo flautas, piano, percussão, saxofone e coro. Em determinado
momento, a música entra na segunda parte da composição Cravo e Canela de Milton
Nascimento e retorna ao tema sem passar pela primeira parte da referida canção de
Milton. Essa liberdade é um traço marcante da personalidade musical de Gismonti,
que se reflete na maneira como ele atua no estúdio de gravação.
Como vimos neste tópico, os processos envolvidos na concepção de uma
gravação, feita por Egberto, possuem algumas características: a possibilidade de criar
o arranjo da obra gravando vários instrumentos, a valorização da participação dos
intérpretes na obra musical e a compreensão da “partitura” como um script. Estes três
aspectos nos fazem refletir sobre a hipótese de que o intérprete também é um
compositor.
2.5 Interpretar é compor
A concepção de interpretação pode ser expandida para um sentido mais
amplo. Podemos entender que o performer, dentro da tradição da música erudita
ocidental, compõe a sua interpretação baseando-se no texto musical. A composição de
uma interpretação demanda a compreensão dos processos sociais, estilísticos e
estruturais inerentes à obra. Em se tratando de músicas não notadas em partituras, o
desenvolvimento de uma interpretação também demanda a assimilação destes
mesmos processos, porém alguns aspectos são acrescentados, como a transcrição de
gravações e, possivelmente, a recriação envolvendo o arranjo. É recomendável ao
intérprete, que pretende executar uma peça de Egberto Gismonti de uma maneira
46 GIRON. Luís Antônio. "O Villa-Lobos que Gismonti reinventou". Folha de São Paulo. 27/11/1985
50 Gismontiana, compreender os processos inerentes à essa obra a ponto de ter a
liberdade de manejar as estruturas do arranjo, o que caracterizaria, deste modo, uma
esfera mais ampla do ato de compor a interpretação. Sobre o processo de transcrição
de sua obra, Gismonti declara:
Quando o Sérgio, do Duo Assad, me pediu uma partitura, eu disse ‘Pra
quê? Vocês estão escrevendo a música que eu faço. Quando você pega a
minha música, harmoniza, faz variações em cima dos improvisos e aquilo
tudo vira minha partitura, vocês estão fazendo a minha música’. Isso é uma
coisa tão contemporânea! É uma forma que não cabe dentro do tradicional!
(BORGES, 2005, p. 30).
O Duo Assad, antes de perguntar a respeito da existência de partituras,
já estava tocando as obras de Gismonti de uma maneira coerente em relação à
essência de seus processos. Para interpretá-las é importante entender que se tratam de
obras com muitas aberturas. Nesta dissertação de mestrado, realizamos diversas
transcrições de trechos de obras para violão com o intuito de investigar a linguagem
violonística de Gismonti e o estilo interpretativo inerente à ela. Acredito que a
composição de uma interpretação de uma obra de Gismonti deveria passar por um
estudo aprofundado, que levasse em consideração o desenvolvimento da obra
interpretada ao longo da discografia do autor. Um exemplo é a interpretação da obra
Salvador, feita pelo violonista Lucas Telles47, que ampara-se em 3 gravações. A
elaboração da interpretação, baseada na trajetória da obra, ou seja, em seus diversos
processos, é um modo possível de construção interpretativa que dialoga com a
linguagem da composição e o estilo interpretativo do autor48.
A construção da interpretação de Gismonti é, portanto, uma fusão de
horizontes que se materializa em um produto provisório. Somando a isso, a
perspectiva de uma interpretação Gismontiana também pode ser encarada como a
possibilidade de subversão completa do caráter de obra musical. Um exemplo,
novamente, seria o disco Trem Caipira, que se apresenta como uma espécie de
mensagem para que os intérpretes deixem aflorar sua personalidade criativa, sem
limites impostos pela partitura.
47 A referida gravação pode ser encontrada no sítio eletrônico:
https://www.youtube.com/watch?v=oUeGu_KGL0Q 48 O capítulo 4 tem como finalidade investigar a linguagem violonística de Gismonti por meio de suas
gravações. A partir desse exame, acreditamos que seja possível estabelecer alguns parâmetros
interpretativos pertinentes ao músico que pretende executar obras para violão de Gismonti. 51 Até o momento, desenvolvemos a ideia de que a interpretação é um ato de
composição em um sentido mais amplo, que pressupõe a recriação no nível do
arranjo. Por outro lado, também podemos compreender a composição como um ato de
interpretação. A pesquisadora Marília Laboissière nos fornece o seguinte subsídio:
Nesse processo temos então, do ponto de vista metafórico, o conceito de
primeira interpretação, interpretação do compositor em torno de suas
próprias ideias criadoras, adquirindo tônus em razão de que só ele, como
um ser integral, é capaz dessa empreitada especulativa, já que o fenômeno
da música não é simplesmente inspiração, mas um fenômeno especulativo
(LABOISSIÈRE, 2007, p.117).
Posteriormente ela complementa:
A CRIAÇÃO DE UMA OBRA: Para o compositor, criar é assim
“interpretar” o seu imaginário, ainda que de forma metafórica, é dar
sentido à sua fantasia sonora, sensível, interna, codificando na partitura
uma construção de sentido que será marcada por particularidades que
podem ser lidas como ausência e presença de um estilo, de um tempo, de
uma época (LABOISSIÈRE, 2007, p. 118).
A composição, de acordo com Laboissière, é o primeiro movimento
interpretativo; o segundo partiria do intérprete e o terceiro do ouvinte. Dito isto,
podemos imaginar que, do ponto de vista do performer, há uma inversão dos
acontecimentos: o primeiro movimento interpretativo é a escuta da gravação; o
segundo é a transcrição e assimilação do texto musical; e o terceiro, a composição da
interpretação. Este esquema serve à obras sem partituras e disponíveis apenas em
gravações, como o repertório para violão estudado nessa pesquisa.
Enquanto ouvinte, o músico tem a possibilidade de interpretar, através da
escuta, a linguagem que pretende executar. Nesse processo, a obra é incorporada a ele
próprio:
INTERPRETAR/OUVIR UMA OBRA é viver um sentido expresso como
sensação, provocado pelas reações entre indivíduo e fluxo sonoro,
evocando estados emotivos. Recriando os afectos e perceptos existentes na
música, forma-se o incorporal homem-música, produzindo agregados
sensíveis marcados por uma particularidade: sem significação a priori,
música e intérprete se tornam um só corpo, um estado de ser, um momento
vivificante num movimento incessante e irreversível. O resultado desse
processo interpretativo percebido como sentimento numa leitura poética,
ou numa leitura racionalista, é sempre induzido pela capacidade que a
música tem de suscitar diferentes tipos e intensidades de sensação: o
“sermúsica” (LABOISSIÈRE, 2007, p. 131).
52 A incorporação da música ao ouvinte/intérprete significa que os elementos
estruturais da obra e da performance estão sendo assimilados e decodificados. Os
elementos estruturais da composição, no caso desta pesquisa, é a própria linguagem
violonística de Gismonti49. Para o performer que pretende tocar a obra de Gismonti, é
importante a incorporação de aspectos processuais envolvidos na composição: das
intertextualidades até o estilo interpretativo e a técnica propriamente dita.
Um exemplo que podemos trazer para ilustrar esta absorção da obra
musical de Gismonti, feita por outro intérprete, é o do violonista sul africano Derek
Gripper. Em seu site, podemos encontrar diversas transcrições de obras de Gismonti
realizadas por ele50: elas tentam refletir o estilo interpretativo de Egberto, porém o
arranjo não é executado literalmente como foi gravado pelo compositor. Na
transcrição da obra Salvador, do disco Solo (1979), constatamos que Gripper parece
incorporar os elementos de improvisação modal utilizados por Gismonti. Esta
observação demonstra que o intérprete não faz uma execução conservadora da obra,
transcrevendo literalmente o texto musical. Além disso, sua performance revela uma
compreensão verdadeira das possibilidades processuais do objeto interpretado51. Para
isto ocorrer, é necessário a absorção da linguagem Gismontiana, a qual começa a ser
decodificada no momento da escuta.
Após ouvir e transcrever a obra, o intérprete de Gismonti parte para a
composição de sua performance. Em um movimento duplo, que conjuga a ação de
compor e interpretar, ele busca aliar o imaginário do compositor ao seu próprio, na
tentativa de transformar-se a si mesmo na música que executa:
INTERPRETAR/EXECUTAR UMA OBRA é dar sentido à leitura,
construindo um fluxo sonoro intermediado pelo silêncio significante,
que, marcado por particularidades, dá um sentido pessoal aos indicativos
formais da obra. Sugerindo uma ideia de completude, apresenta-se como
forma viva, única e original, uma recriação que leva à beleza do
estranhamento. É territorializar um espaço no qual, segundo Ferraz
(1998, p. 153), não existe mais nem objeto, nem intérprete, mas devir
indivíduo-música, no qual o intérprete se “torna parte do tecido sonoro,
se transformando passo a passo em som, para praticamente percorrer os
entremeios desse som” (LABOISSIÈRE, 2007, p. 124).
49 Ver
capítulo 4. O sítio eletrônico ao qual me refiro é: http://www.derekgripper.com/contemporary-guitar/egbertogismonti/
51 Outro dado é que o intérprete adapta a sua transcrição ao violão de 6 cordas. A gravação original é
para violão de 8 cordas com afinação reentrante. 50
53 Este movimento de completude entre intérprete e obra é intrínseco na
performance de Gismonti. Neste caso, ele estabelece um diálogo direto entre
compositor e plateia, de uma forma muito mais aprofundada do que pretendia o
paradigma interpretativo tradicional da musicologia histórica52. Mas, visto que a
interpretação também é um ato de compor, a performance das obras de Gismonti,
realizada por outros intérpretes, também pode refletir um diálogo direto entre aquele
que compõe e aquele que escuta, pois, ao manipular o arranjo da obra, o intérprete
passa a ter domínio sobre a esfera composicional da música. Para obter sucesso nesta
empreitada, é primordial a compreensão dos processos composicionais e
interpretativos inerentes à obra, como, por exemplo, os ritornelos e as
intertextualidades demonstrados anteriormente.
Até o momento, discutimos aspectos gerais da relação entre processo e
produto na obra de Gismonti. A partir do próximo capítulo, iremos nos delimitar
apenas ao violão. Começaremos realizando um catálogo inicial das composições para
violão de Gismonti e, finalmente, no capítulo 4, nos aprofundaremos nas questões
específicas de sua linguagem violonística e estilo interpretativo.
52 Este paradigma é calcado na idealização da partitura e da verdade do compositor. Personalidades
como Schoenberg e Stravinsky contribuíram para fomentar esta visão sobre a obra musical. Para eles o
performer não deveria “interpretar” e, sim, “executar” o que está escrito na partitura. 54 CAPÍTULO 3 – A PRESENÇA DO VIOLÃO NA OBRA DE EGBERTO
GISMONTI
Existe uma dificuldade em estabelecer a extensão da obra para violão de
Egberto Gismonti. Ter uma dimensão precisa, tanto do ponto de vista quantitativo
quanto qualitativo, é um dos maiores desafios, pois a escassez de partituras e a
ausência de um catálogo dificultam esse trabalho. A singularidade e a dinâmica de sua
obra, sistematicamente recriada em gravações e performances, com uma liberdade
criativa despreocupada das amarras de gêneros e formas musicais pré concebidas, são
fatores que dificultam qualquer trabalho que vise entendê-la e mensurá-la. Como
solução para dimensionar a sua obra para violão, tão vasta e dinâmica, e criar um
catálogo, foram estabelecidos três parâmetros de análise qualitativa: 1) violão solista;
2) violão em contexto camerístico; 3) violão acompanhador.
A metodologia utilizada nesse levantamento foi a seguinte: como as obras
de Gismonti aparecem em múltiplas roupagens, resolvemos coloca-las na qualidade
de solista somente quando foram concebidas para violão solo; quando foram gravadas
ou executadas em algum momento por Egberto, em caráter solista; e quando possuem
uma estrutura autônoma, que não demanda acompanhamento. Identificamos como
violão acompanhador somente as obras que caracterizam-se como canção. Desse
modo evitamos entrar em contradições, pois seria inviável estabelecer a diferença
entre um violão acompanhador e um violão em contexto de câmara. Quaisquer obras
que contenham violão, mas que não sejam canção e não tenham um caráter solista,
foram alocadas no contexto camerístico 53 . Como não há partituras, baseamos a
catalogação das obras nos registros fonográficos, seguindo a cronologia das
gravações.
É importante salientar o desafio de se estabelecer uma metodologia que
defina as características do violão nas obras de Egberto. Sua força criativa traz uma
infinidade de possibilidades que podem nos contradizer. Um exemplo curioso talvez
seja o disco de Paul Horne (A Altura do Sol, 1976), no qual Egberto atuou como
produtor, arranjador, compositor e intérprete. As músicas Dança das Cabeças e
53 As composição que possuem apenas vocalizes, entram no contexto de música de câmara.
55 Salvador, que sempre foram arquitetadas por Egberto com o violão em primeiro
plano, são apresentadas – por escolhas na mixagem da gravação – com o instrumento
em segundo plano. Um ouvinte que não tenha tido contato com as versões clássicas
dessas duas composições, poderia facilmente identificar o violão como um
instrumento acompanhador, embora Egberto toque o arranjo de violão com o mesmo
conteúdo da versão solista.
Nesse caso, as duas obras gravadas no disco de Paul Horne poderiam ser
colocadas tanto no contexto solista, quanto no contexto de música de câmara. Obras
que foram regravadas de diversas formas, mas que possuem características de violão
solista, foram colocadas nesse contexto por se tratar do objeto desta pesquisa.
3.1 Egberto Gismonti, o multi-instrumentista
Antes de começarmos a avaliar a presença do violão na obra de Egberto
Gismonti, é importante levantarmos algumas questões a respeito do intérpretecompositor Egberto. Em uma escuta aprofundada de sua discografia, percebemos que
existe uma equidade na presença do violão e do piano54. Além do volume de obras
exclusivamente dedicadas aos dois instrumentos serem semelhantes, Egberto é quase
sempre fiel ao instrumento para o qual uma obra foi concebida. Uma música
composta para violão solista pode ter outros instrumentos agregados dentro do arranjo
– inclusive o piano –, porém o piano raramente assumirá a função de solista em uma
obra concebida para violão e vice versa55. Isso não significa que Egberto se prende a
instrumentações; pelo contrário, esse dado só é válido quando analisamos a
transposição de obras entre o piano e o violão. Na realidade, a liberdade criativa em
combinar os mais diversos instrumentos é uma marca na discografia de Gismonti. É o
caso da música Palácio de Pinturas, que foi gravada originalmente no disco
54 Este fato é observado em toda a produção de Gismonti, inclusice na sua música para cinema, teatro,
televisão ou ballet. Na sua discografia há um disco integralmente dedicado ao violão (Dança dos
Escravos, 1988) e um disco integralmente dedicado ao piano (Alma, 1986). São poucos os discos que o
violão não está presente. Em uma investigação não exaustiva, pude constatar alguns desses discos:
Janela de Ouro (1970); Trem Caipira (1985); Feixe de Luz (1988); Casa das Andorinha (1992);
Meeting Point (1997).
55 Há um caso que poderia ser entendido como uma excessão à essa regra. No disco Alma (1986),
Egberto grava a música Karatê ao piano, e no disco Circense (1988) grava essa música na viola, com o
piano fazendo acompanhamento. Em performances ao vivo, Egberto executa a música Karatê tanto no
piano quanto no violão. 56 Academia de Danças (1976). Nela há a presença de violão, cordas, piano,
sintetizadores, baixo, bateria e voz. Posteriormente ela foi gravada em duo de violão –
com Ralph Towner – no disco Sol do Meio Dia (1978) e logo depois com um arranjo
integralmente para orquestra, no disco Nó Caipira (1978).
Outro dado importante é o interesse de Gismonti por timbres e texturas
dos mais diversos instrumentos. Egberto executou em seus discos instrumentos como
kalimba, viola, cítara, órgão, sintetizadores, flautas indígenas, baixo elétrico, bateria,
flautas de madeira, garrafas, sanfona, cavaquinho, violoncelo, zabumba, bambuzal,
pífano, dilruba56, entre outros. Muitas de suas composições foram concebidas para
instrumentos específicos, tornando-se obras pouco ou nunca executadas em suas
performances posteriores à gravação original. Um exemplo é o disco Bandeira do
Brasil (1984), no qual Egberto troca o violão pela cítara. Este instrumento assume
papel de solista em Carta Marítma e Força Lascada57. Neste álbum, Egberto também
executa cavaquinho, dilruba, flautas de bambu e sintetizadores. Outro caso de
composições menos ortodoxas, que possuem um elo indissociável com a
instrumentação concebida em sua origem, encontra-se no disco Sol do Meio Dia
(1978). Egberto grava com o percussionista Naná Vasconcelos músicas como
Kalimba (Kalimba, voz, flautas de madeira, berimbau e percussão) e Sapain (garrafa,
voz, flauta de madeira e corpo).
A busca por novos timbres vai além dos instrumentos acústicos. Egberto
gravou diversos discos com uma forte presença de sintetizadores e teclados
eletrônicos. No disco Fantasia (1982), registrado integralmente por Egberto em seu
estúdio, o teclado eletrônico Obx-a está presente em todas as faixas, inclusive nas
músicas Dois Violões e Para John e Paco, que são obras feitas para violão. Feixe de
Luz (1988), Trem Caipira (1985) e Casa das Andorinhas (1992) são outros exemplos
de discos marcados pela presença de sintetizadores, teclados eletrônicos e samplers.
Em se tratando de violão, podemos dizer que Egberto Gismonti é um
multi violonista. Os primeiros discos de Egberto foram gravados com o violão de 6
cordas. Algumas obras importantes como Central Guitar (1973), Variation Pour
Guitare (1970) e Deux Danças Pour Deux Guitares (1974) foram compostas para o 6
cordas. No decorrer da década de 1970, Egberto migrou para violões de 8 e 12 cordas.
56 Instrumento de cordas friccionadas, similar a cítara, oriundo do norte da Índia. 57 Essa música é praticamente uma fantasia sobre Asa Branca e Mulher Rendeira. 57 Com esses violões, Gismonti gravou alguns de seus discos antológicos da segunda
metade da década de 1970, como Dança das Cabeças (1977), Sol do Meio Dia
(1978), Nó Caipira (1978) e Solo (1979). Na década seguinte, Egberto passou para os
violões de 10 e 14 cordas58, usados em suas performances até os dias de hoje. A partir
dessa migração, a maioria de seus discos seguintes foram gravados com esses violões,
como, por exemplo, Em Família (1981), Duas Vozes (1984) e Dança do Escravos
(1988).
3.2 O violão solista
Para obtermos uma dimensão quantitativa do violão na obra de Egberto
Gismonti, baseamos nossa pesquisa na discografia do autor, em entrevistas de
jornais/revistas e em depoimentos do compositor e de seu filho Alexandre Gismonti.
São raras as obras de Egberto Gismonti que foram editadas e publicadas
em partituras; a maioria de suas composições editadas são para música de câmara e
orquestra sinfônica. Devido à falta de dados, seguiremos a ordem cronológica dos
discos como forma de estabelecer o ano da composição. Obras que não foram
gravadas em discos, nem publicadas, serão colocadas ao final.
Salvador (1969): Esta é uma das obras mais regravadas e tocadas por Egberto até a
atualidade. É, portanto, um dos principais objetos de análise desta pesquisa. Salvador
consta no primeiro disco de Egberto (1969), com acompanhamento de bateria e
contrabaixo. Em um levantamento não exaustivo, foi possível constatar 7 discos com
a presença dessa composição. No disco Orfeu Novo (1971), em um determinado
momento, o violão divide a função de solista com a flauta, expondo uma interpretação
de caráter camerista. Nesta gravação Egberto insere uma terceira parte na música, que
é reafirmada nas gravações seguintes. No disco Solo (1979), a obra transforma-se
completamente, tanto no caráter quanto nos recursos técnicos. Neste disco Egberto
utiliza um violão de 8 cordas com afinação reentrante59. Atualmente Salvador é
executada em concertos solo com o violão de 10 cordas. Ao ouvi-lo tocar percebemos
que sua performance sintetiza a trajetória desta música que integra, de forma
58 Ver capítulo 4 59 Idem. 58 improvisada, recursos tímbricos, gestos, texturas e materiais motívicos que foram
sendo acrescentados e reciclados ao longo dos anos.
Variation Pour Guitare (1970): Obra para violão solo, provavelmente composta no
período de estudos na França, editada pela Max Eschig. É uma peça pouco conhecida.
Há uma gravação feita pelo violonista Betho Davezac (Variations Sur La Guitare,
1976). Variation Pour Guitare faz parte de um conjunto de obras que Egberto cria,
mas não executa como intérprete.
Central Guitar (1973): Esta peça também faz parte desse conjunto que Egberto não
executa. Editada também pela Max Eschig, Central Guitar é uma obra bastante
conhecida no meio do violão de concerto. Existem gravações de diversos intérpretes,
como Álvaro Pierre (1990), Udo Janoske (1994) e Walter Abt (1995).
Memória e Fado (1973): Esta é uma canção na qual o violão faz acompanhamento e
foi gravada pela primeira vez no disco Árvore (1973). Como colocado anteriormente,
ao tratarmos de Gismonti, nenhum critério pode ser estanque. No disco Dança dos
Escravos (1988), Egberto a regrava com dois violões. Portanto a composição poderia
ser classificada no contexto camerista, porém, em 2010, o violonista Odair Assad
lançou o disco El Caminante, de violão solo, no qual uma das faixas é Memória e
Fado, com uma versão arranjada pelo próprio Egberto. Memória e Fado possui uma
partitura para violão solo que não foi publicada oficialmente.
Dança das Cabeças (1976): Esta composição é um divisor de águas no
desenvolvimento da performance violonística de Egberto. A primeira gravação foi
feita em Corações Futuristas (1976), registro no qual ela apresenta caráter
camerístico. O violão, por vezes, fica em segundo plano devido a densidade do
arranjo, composto por instrumentos diversos, como flauta, baixo, sax, bateria,
percussão e sintetizadores. Porém um fato ocorrido no ano de 1977 talvez tenha
motivado Egberto a lançar Dança das Cabeças e outras obras para violão em um
contexto mais intimista. Gismonti gravaria um novo disco pela ECM, em Oslo, na
Noruega, porém os músicos de seu grupo (Academia de Danças) não conseguiram
embarcar por razões alfandegárias. O percussionista Naná Vasconcelos, que nunca
havia tocado com Gismonti, estava na Europa e aceitou o convite para gravar. Por
59 este acaso, nasceu o disco Dança das Cabeças (1977), um dos maiores sucessos
comerciais da carreira de Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos. Gravado com o
violão de 8 cordas com a afinação reentrante, este trabalho inicia a jornada de
Gismonti pela junção de diversos procedimentos técnicos e composicionais, como o
uso de harmônicos, pedais, percussões, acordes paralelos, entre outros. Dança das
Cabeças é uma obra que o compositor frequentemente executa em suas performances
solo.
Celebração de Núpcias (1976): Esta música, assim como Dança das Cabeças,
também foi gravada no disco Corações Futuristas (1976) e regravada com Naná
Vasconcelos em Oslo.
A Porta Encantada (1976): Composição que segue a mesma trajetória de
Celebração de Núpcias. É interessante observar que as duas músicas foram gravadas
em sequência, sem cortes definidos de uma faixa para a outra60. Um outro dado
interessante é que A Porta Encantada utiliza os mesmos materiais motívicos da obra
Deux Danças pour Deux Guitares (1974). É também notável a presença de um
segundo violão (gravado também por Egberto), nesta música no disco Dança das
Cabeças.
Raga (1977): Esta peça traz um dado curioso: foi gravada originalmente no disco
Carmo (1977), com um arranjo composto por orquestra e diversos instrumentos:
percussão, baixo, piano elétrico, kalimba e sintetizadores. Não identificamos, na ficha
técnica, a presença do violão, pairando a dúvida de que o uso de sintetizadores
poderia copiar o timbre do violão de aço ou da viola. Já no disco Sol do Meio Dia
(1978), Gismonti regrava essa composição utilizando o violão de 8 cordas com
afinação reentrante.
Saudações (1978): Esta obra é uma canção feita em parceria com Paulo César
Pinheiro e gravada pela primeira vez no disco Nó Caipira (1978), com arranjo de voz
e violão. Posteriormente, Gismonti a grava no formato de violão solo (10 cordas) no
disco Saudações (2009). Por isso classificamos no contexto de violão solista.
60 Este mecanismo, de gravar um disco ininterrupto, foi uma opção que Egberto desenvolveu na
década de 70. 60 Dança Solitária Nº2 (1978): É uma música para violão solo que aparece no disco Sol
do Meio Dia (1978)61. No disco anterior (Dança da Cabeças), há a Dança Solitária
para piano, singularidade que nos remete novamente a equidade com que Egberto
trata estes dois instrumentos em sua discografia. Ambas são peças de caráter
introspectivo e improvisatório.
Selva Amazônica (1978): É uma composição para violão de 12 cordas, dedicada a
Villa-Lobos e gravada pela primeira vez no disco Nó Caipira (1978). Este primeiro
registro tem um caráter camerístico, com a presença de contrabaixo, percussões,
kalimba e viola. Já no disco Solo (1979), Egberto a grava sozinho, usando vocalizes
eventualmente. Nesta peça, recursos técnicos, como harmônicos e pedais são
amplamente explorados. No meio da gravação do disco Solo, identificamos um trecho
de acordes paralelos que remetem à linguagem violonística de Villa-Lobos, como na
segunda parte do seu prelúdio Nº2. Já no primeiro registro, há uma alusão direta à
Mulher Rendeira (Zé do Norte).
Cego Aderaldo (1979): Obra gravada no disco Folk Songs (1980), com o trio
formado por Egberto Gismonti (violão de 12 cordas), Charlie Haden (contrabaixo) e
Jan Garbarek (Sax Soprano). Cego Aderaldo também está presente no disco Circense
(1980) com participação do violinista L. Shankar, e no disco Mágico (201262). É uma
composição que Egberto toca em seus concertos solo.
Karatê (1980): Esta é uma das raras composições que Egberto executa tanto no
violão quanto no piano. Foi gravada pela primeira vez no disco Circense (1980),
aparentemente na viola 63 . A versão para piano aparece no disco Alma (1986).
Constatamos regravações desta obra por artistas como Hamilton de Hollanda (Música
das Nuvens e do Chão, 2004), Duo Assad (Live in Brussels, 2004) e o Grupo D’alma
(D’alma, 1981).
61 Esta é a primeira gravação, na discografia de Gismonti, que o violão aparece integralmente solo. 62 Este disco foi lançado em 2012, porém a gravação foi feita ao vivo em 1981. 63 É difícil de identificar se Egberto gravou com viola caipira ou com seu violão de 12 cordas, que
possui ordens duplas de aço nas primeiras cordas e tem, portanto, com um timbre bastante semelhante à
viola. 61 Em Família (1981): Composição que marca a fase na qual Egberto migra dos violões
de 8 e 12 cordas para os violões de 10 e 14 cordas. Em Família é uma obra que
integra suas performances solo no violão de 10 cordas até a atualidade. Exemplifica
diversos recursos técnicos recorrentes na linguagem violonística de Egberto, como a
independência entre as duas mãos, percussões, tappings 64 , ostinatos, harmônicos
naturais usados como pedais rítmicos, entre outros. Foi gravada no disco Sanfona
(1981) e Em Família (1981) com a participação de outros instrumentos, como baixo,
bateria, sax, flauta e piano. Também aparece no álbum gravado em duo com Charlie
Haden ao vivo, em Montreal (2001).
Dança dos Pés (1981): Composição de caráter improvisatório que aparece no potpourri
do
disco
Sanfona
(1981),
em
uma
sequência
que
reúne
Em
Família/Sanfona/Dança dos Pés/Eterna.
De Repente (1981): Música gravada com o violão de 12 cordas no disco Sanfona
(1981) que passou a ser executada em conjunto com a composição Cego Aderaldo.
Cavaquinho (1981): Esta é uma composição para violão de 10 cordas, também
presente no disco Sanfona (1981).
12 de Fevereiro (1981): Outra obra para violão de 10 cordas do disco Sanfona
(1981). Nesta gravação se destaca a presença da voz de Egberto, fazendo vocalises,
recurso recorrente em diversas gravações solo.
Choro (1981): Obra registrada no disco Em Família (1981), na qual Gismonti
executa violão e piano. Poderia ser classificada como música de câmera, porém há um
fato interessante sobre ela. O violonista Alexandre Gismonti, filho de Egberto, fez um
arranjo para violão solo da peça e apresentou em seu recital de formatura. Ao ouvi-lo
tocar, Egberto resolveu fazer a sua versão da obra, pois achou que “estavam faltando
algumas vozes”. Tais vozes são parte integrante do primeiro arranjo, do disco Em
Família, o que demostra sua consciência sobre o que é essencial na composição. A
64 Ver capítulo 4. 62 obra, possui, portanto, uma partitura para violão solo que não foi publicada
oficialmente.
Rio de Janeiro (1985): Esta música, assim como Para John e Paco, é uma variação
sobre outra composição: é possível identificar claramente a semelhança com a obra
Em Família; todos os elementos motívicos estão presentes. Ela foi gravada no disco
Duas Vozes (1985), com o percussionista Naná Vasconcelos.
Dançando (1985): Obra para violão de 10 cordas do Duas Vozes (1985). Na
gravação, além da percussão de Naná Vasconcelos, ouve-se a voz de Egberto.
Fogueira (1985): Obra para violão de 14 cordas (ou 12 cordas) também gravada no
disco Duas Vozes (1985).
Bianca (1985): Obra dedica à filha Bianca Gismonti, registrada pela primeira vez no
disco Duas Vozes (1985), com a utilização de efeitos eletrônicos no violão, como o
chorus 65 . Egberto a gravou em formação camerística no disco Música de
Sobrevivência (1993): Gismonti ao violão de 10 cordas, Jaques Morelenbaum no
violoncelo e Zeca Assumpção no contrabaixo. Bianca é uma das composições mais
executadas por Egberto em seus concertos de violão solo.
Lundu (1988): Obra para violão de 10 cordas registrada pela primeira vez de forma
solista no disco Dança dos Escravos (1988). Posteriormente, Egberto a regravou no
disco Música de Sobrevivência (1993) com o nome de Lundu #2, com violoncelo e
contrabaixo no arranjo. Recentemente, Lundu foi regravada em duo de violões por
Egberto Gismonti e seu filho Alexandre Gismonti, no disco Saudações (2009). Lundu
é um bom exemplo das múltiplas faces que uma mesma obra assume na discografia
de Gismonti: vai desde o simples violão solo, passa para violão e conjunto de câmara
e chega até o violão com orquestra.66
65 O chorus é um efeito que tem a finalidade de produzir a sensação de aumento na quantidade de
fontes sonoras, frequentemente chamado de dobra. (fonte Wikipédia) 66 Uma versão de Lundu em formato de violão e orquestra foi verificada no concerto realizado por
Egberto, em 1992, com a Orquestra Experimental de Repertório, pelo projeto Memória Brasileira, no
Teatro Cultura Artística. 63 Alegrinho (1988): Obra dedicada ao filho Alexandre Gismonti que foi gravada pela
primeira vez com um violão requinto 67 no disco Dança dos Escravos (1988).
Seguindo a mesma trajetória que Lundu, ela é regravada no disco Música de
Sobrevivência (1993) com o nome de Alegrinho #2. Nesta ocasião há o acréscimo de
dois violões, contrabaixo e violoncelo. Alegrinho é uma das composições para violão
que foram passadas para o papel, mas sem uma publicação formal. Egberto escreveu a
pedidos de seu filho Alexandre, que manifestou interesse em tocá-la.68
Dança dos Escravos (1988): Composição para violão de 14 cordas registrada no
disco Dança dos Escravos (1988). É uma das músicas que melhor exemplifica a
polirritmia e independência entre mão direita e esquerda de Gismonti. Enquanto a
mão direita realiza arpejos ininterruptos, a esquerda executa melodias e ritmos com a
técnica do tapping. Esta obra também é um bom exemplo das diversas reciclagens
que Egberto faz de suas composições, há citações de trechos da obra Luzes da Ribalta
(ARVORE, 1973). Dança dos Escravos também reaparece no disco Infância (1991),
com acréscimo de contrabaixo e violoncelo, e no disco Saudações (2009), em duo de
violões. Um dado interessante, nas gravações de Egberto Gismonti, é que nem sempre
uma música, inicialmente solo, permanecerá até o fim nesta configuração. No
primeiro registro de Dança dos Escravos, a partir de certo ponto, Gismonti insere
outro violão para complementar seu arranjo. Assim como Lundu, essa composição
ganhou uma versão para violão e orquestra, executada em Tokyo em 2008.
Mutação (1989): Peça para violão solo composta para o filme Kuarup, que
posteriormente foi gravada no disco Kuarup (1989).
12 Estudos para violão (nunca publicado): Este é um conjunto de obras que
Egberto compôs pensando no seu próprio estudo. Não foram publicados, porém tomei
conhecimento de sua existência pelo depoimento do compositor. O Estudo Nº5 foi
gravado por Egberto no seu primeiro disco (1969). Na ocasião, Gismonti acrescentou
ao arranjo flauta, quarteto de cordas e metrônomo. A obra Celebração de Núpcias é
um desses estudos, com alguns elementos acrescidos.
67 Violão com uma tessitura mais aguda, geralmente uma quarta acima da afinação tradicional. 68 Em ocasião semelhante, Gismonti passou para o papel a sua composição Sonhos de Recife, a pedido
de uma amiga russa. 64 3.3 O violão camerista
É evidente, ao observarmos a trajetória de Egberto Gismonti, que sua
vocação como camerista sempre esteve presente. Em diversos depoimentos, Egberto
afirma que o convívio e a troca com os músicos o mantiveram motivado a compor e
gravar. Músicos como Robertinho Silva, Mauro Senise, Nando Carneiro, Zeca
Assumpção, Naná Vasconcelos, Jaques Morenlenbaum, Nivaldo Ornelas, entre
outros, acompanharam Gismonti no decorrer de sua discografia.
Atualmente, Egberto tem se apresentado com mais frequência em
situações solista, porém, no passado, a música de câmara era parte constante da sua
rotina. Em 1973, apresentou-se na Sala Cecília Meirelles (RJ) com um quarteto
formado por Odette Ernest Dias (flauta), Geza Kiszely (viola), Gerhard Peter
Dauelsberg (violoncelo) e Gismonti (violão). No programa havia músicas como
Distribuição de Flores, para flauta e violão, e Assobio a Jato, para flauta e violoncelo,
ambas de Villa-Lobos, e um quarteto de Schubert para violão, flauta, viola e
violoncelo, além de músicas de Gismonti, como Retratos, para violão e flauta e
Variações in Memoriam a Anton Webern, para flauta, viola e violoncelo.
Nesse momento, elencaremos composições de Egberto Gismonti que
possuem caráter camerístico. Como critério, selecionamos obras concebidas para
violão e outros instrumentos, com exceção das canções.
Computador (1969): Esta música foi registrada no primeiro disco de Gismonti. O
violão é um dos instrumentos que executam a melodia da música.
Parque Laje (1970): Obra gravada pela primeira vez no disco Sonho 70 (1970) e
posteriormente no disco Orfeo Novo (1971), com arranjo para flauta, violão,
contrabaixo e vocalise.
Pêndulo (1970): Nesta peça o violão tem uma participação bastante discreta; foi
gravada no disco Sonho 70 (1970).
Três Retratos Para Violão e Flauta (1971): É uma suíte em três movimentos que
Egberto gravou no disco Orfeo Novo (1971), com o flautista Bernard Wystraete. Três
65 Retratos Para Violão e Flauta, se aproxima, esteticamente, da música erudita
contemporânea.
Eterna (1972): Obra gravada no disco Água e Vinho (1972) e composta para um
quarteto constituído de violão, clarinete, sax soprano e violoncelo.
Palácio de Pinturas (1974): Obra gravada pela primeira vez no disco Academia de
Danças (1974). Neste arranjo, o violão desempenha um importante papel textural. Já
na gravação para orquestra, do disco Nó Caipira (1978), não há presença do violão no
arranjo. Outro registro de Palácio de Pinturas, no qual o violão tem papel central, é
do disco Sol do Meio Dia (1978): foi gravado em duo com o violonista Ralph
Towner, ambos usando violões de 12 cordas.
Scheherazade (1974): Esta peça na realidade é uma reexposição presente no disco
Academia de Danças (1974): é exatamente a mesma música que Jardim de Prazeres,
porém sem voz.
Continuidade dos Parques (1974): É uma obra gravada no disco Academia de
Danças (1974): a melodia é cantada em vocalise e o violão desempenha função de
acompanhamento harmônico.
Deux Danças Pour Deux Guitares (1974): Peça para dois violões editada pela
Henry Lemoine. Identificamos recursos violonísticos semelhantes à escrita de VillaLobos, como ostinatos melódicos que intercalam corda presa e corda solta.69
Café (1976): Obra registrada pela primeira vez no disco Corações Futuristas (1976) e
posteriormente gravada com letra no disco Carmo (1977). Nesta composição o violão
tem uma atuação discreta, realizando acompanhamento harmônico. Café também
aparece no disco Sol do Meio Dia (1978).
69 Existe um trecho bastante semelhante à abertura do Concerto Para Violão e Orquestra de VillaLobos. 66 Carmo (1976): Esta obra tem uma trajetória similar a anterior: foi gravada pela
primeira vez no disco Corações Futuristas (1976) e posteriormente com letra no
álbum Carmo (1977), porém, desta vez, sem violão.
Cristiana (1977): Nesta peça, gravada no disco Carmo (1977), Egberto executa viola.
Nó Caipira (1978): Esta obra abre o disco Nó Caipira (1978). Além do violão, há
instrumentos como bateria, percussão, pandeiro, cavaquinho, viola, sax, flautas,
zabumba e contrabaixo. Aqui Egberto usa diversos recursos característicos de sua
performance ao violão, como harmônicos naturais executando ritmos como o
maracatu. É interessante observar que existem algumas citações da música Dança
das Cabeças.
Mágico (1979): Composição gravada no disco homônimo, Mágico (1979), e no disco
Circense (1980).
Ciranda (1980): Obra gravada no disco Circense (1980). Além do violão, o arranjo
conta com naipe de cordas friccionadas, piano, cítara, contrabaixo, saxofone,
percussão, voz e coro infantil.
Carta de Amor (1981): Esta obra aparece originalmente no disco Sanfona (1981),
em uma configuração de violão de 10 cordas e vocalise. Posteriormente regravada
com Jan Garbarek (sax) e Charlie Haden (contrabaixo) em trio, ao vivo, no disco
Mágico (2012), e com Nando Carneiro (violão) e Zeca Assumpção (contrabaixo) no
disco Zig-Zag (1996). Carta de Amor também aparece no disco Cidade Coração
(1983), desta vez com um instrumental mais denso: violão, piano, sintetizadores,
saxofone, percussão e bateria.
Branquinho (1981): Canção registrada no disco Em Família (1981) e posteriormente
gravadacno disco Mágico (1981), com Charlie Haden (contrabaixo), Egberto
Gismonti (Violão de 14 cordas) e Jan Garbarek (Sax).
Dois Violões (1982): Peça gravada pela primeira vez no disco Fantasia (1982) e
dedicada à Baden Powell. Como o nome sugere, Egberto sempre utiliza dois violões.
67 No primeiro registro há outros instrumentos, como flauta, surdo e teclado Obx-a
(todos executados pelo compositor). Já no disco Dança dos Escravos (1989), aparece
em dois violões, ambos tocados por Egberto. Em Saudações (2009)70, foi gravada
com seu filho Alexandre Gismonti. Nesta composição há autocitação, uma referência
clara à música Karatê.
Para John e Paco (1982): Gravada no disco Fantasia (1982), é uma homenagem aos
músicos Paco de Lucia e John Mclaughlin, como o nome sugere. Para John e Paco é
uma composição que exemplifica bem a liberdade criativa de Egberto, pois sentimos
como se a música fosse variações sobre Raga (1977). Nessa gravação, ele utiliza
instrumentos, como surdo, violoncelo e o teclado obx-a.
Forrobodó (1988): Composição que pertence ao conjunto de obras pianísticas de
Egberto. Em 2002, o quarteto de violões Los Angeles Guitar Quartet lançou um disco
com um arranjo feito pelo próprio Gismonti. Uma das características marcantes da
obra é a polirritmia.
Valsa de Francisca I (1989): Composição feita para violão solista com
acompanhamento de orquestra. Esta obra foi gravada para o filme Kuarup e
posteriormente inserida no disco homônimo à ele (1989).
Dança Nº1 (1991): É uma peça para violões, violoncelo e contrabaixo, gravada no
disco Infância (1991). Nesta composição fica nítida a influência da música
contemporânea europeia, sobretudo do compositor Igor Stravinsky.71
Dança Nº2 (1991): Obra que segue a mesma lógica de Rio de Janeiro, Para John e
Paco e Porta Encantada, pois há uma outra composição que se assemelha a ela. A
semelhança é tamanha, que poderíamos dizer que se trata da mesma peça cujo nome
fora trocado. Dança Nº2 utiliza os mesmos elementos composicionais das peças Deux
Danças Pour Deux Guitares (1974) e A Porta Encantada (1976). Em Dança Nº2,
70 Este é outro disco de Egberto Gismonti integralmente dedicado ao violão. Todas as faixas são
gravadas por ele e seu filho Alexandre Gismonti. 71 Além de ser facilmente constatada (em entrevistas) a devoção que Egberto Gismonti tem por este
compostior, algumas músicas como Strawa no Sertão (Meeting Point, 1996) e Sagração (Fantasia,
1982) foram dedicadas à Stravinsky. 68 Egberto utiliza a mesma formação da Dança Nº1, talvez com o intuito de inserir uma
pequena suíte no disco.
Forró Na Beira Da Mata (1991): Obra para violão de 12 cordas, violoncelo e
orquestra. Foi gravada no disco Amazônia (1991).
Ciranda no Céu (1991): Obra para dois violões e orquestra, gravada no disco
Amazônia (1991).
Ao Redor Da Fogueira (1991): Obra para dois violões, contrabaixo e violoncelo,
gravada no disco Amazônia (1991).
Carmem (1993): Obra gravada com dois violões no disco Música de Sobrevivência
(1993) e, posteriormente, no disco Saudações (2009).
Zig Zag (1995): Obra gravada originalmente pelo Egberto Gismonti Trio (grupo
formado por Egberto e Nando Carneiro nos violões e Zeca Assumpção no
contrabaixo) no disco Zig Zag (1995). Posteriormente Egberto regrava no disco
Saudações (2009) com seu filho Alexandre Gismonti. O tema desta obra é análogo ao
segundo movimento da suíte Três Retratos Para Flauta e Violão, gravado no disco
Orfeo Novo (1971).
Mestiço e Caboclo (1995): Obra que segue a mesma trajetória da anterior, foi
gravada originalmente no disco Zig Zag (1995) e posteriormente no disco Saudações
(2009).
Orixás (1995): Uma obra percussiva para 2 violões e contrabaixo, também gravada
no disco Zig Zag (1995).
Águas e Danças (2009): Composta para dois violões, foi gravada no disco Saudações
(2009). Novamente Egberto lança mão de materiais temáticos utilizados por ele em
outras composições. Esta composição se assemelha a sequência das obras Celebração
de Núpcias e A Porta Encantada, presentes no disco Academia de Danças (1974).
69 Consequentemente ela também utiliza materiais da obra Deux Danças Pour Deux
Guitares (1974).
Contos de Cordel (2015): Obra para dois violões em 6 movimentos, composta para o
Duo Assad, e gravada no disco O Clássico Violão Popular Brasileiro (2015), lançado
pela gravadora Tratore.
Retratos (sem data): Peça composta para violão e flauta e estreada em 1973 na Sala
Cecília Meirelles. Não foi detectado nenhum registro desta obra além da matéria do
jornal Última Hora, feita pelo jornalista Eurico Nogueira França. Sobre esta peça o
jornalista escreveu: “Tem feições rapsódicas e é muito bem escrita”.
Ritmos e Danças (sem data): Editada pela Max Eschig, é uma peça para violão e
orquestra. Há uma gravação feita pelo violonista Aliéksey Vianna, no disco Ritmos e
Danças (2010).
3.4 O violão acompanhador
No final da década de 1960, Egberto Gismonti decide dedicar-se à música
popular. Após completar o curso de piano no Conservatório Brasileiro de Música-RJ,
Gismonti se entrega de vez à composição e resolve enveredar pelo campo da canção
popular brasileira. A discografia de
Egberto Gismonti é bastante marcada pela
canção, sobretudo nos seus primeiros discos, e o idiomatísmo do seu violão impõe um
caráter singular à essas obras. Muitos recursos, que posteriormente Egberto
sistematiza em sua interpretação com os violões de 10 e 14 cordas, já haviam sido
explorados no violão de 6 cordas. O uso de ostinatos melódicos, pedais, harmônicos
naturais e paralelismos sempre estiveram presentes em suas performances ao violão.
Seguindo com o nosso critério de identificar a presença do violão na obra musical de
Egberto, elencaremos as canções gravadas com este instrumento.
Clama-Claro (1969): Canção em parceria com Arnaldo Medeiros, gravada no
primeiro disco de Egberto (1969). O violão executa acompanhamento harmônico. Há
um interlúdio em que o violão faz um improviso dobrando a melodia com a voz.
70 Pr’um Samba (1969): Música registrada no primeiro disco de Egberto (1969), com o
violão sendo tocado por Durval Ferreira. Ele executa o acompanhamento harmônico e
contrapõe melodias. Também contém um interlúdio em que o violão faz um
improviso dobrando a melodia com a voz.
Indi (1970): Canção em parceria com Arnaldo Medeiros, gravada pela primeira vez
no disco Sonho 70 (1970) e posteriormente em Orfeo Novo (1971). Neste último, o
violão de Egberto aparece com mais evidência.
O mercador de Serpentes (1970): Gravada pela primeira vez no disco Sonho 70
(1970), é uma das composições que Egberto inscreveu nos Festivais da Canção do
final da década de 1960. O violão aparece mais destacadamente no arranjo no final da
gravação.
Lendas (1970): Parceria com Paulinho Tapajós, foi registrada primeiro no disco
Sonho 70 (1970) e posteriormente no Orfeo Novo (1971). A presença do violão em
ambas as gravações é bastante evidente, realizando contrapontos dissonantes e
ostinatos.
Federico (1972): Em parceria com João Carlos Pádua, foi gravada no disco Água e
Vinho (1972). O violão aparece com bastante evidência.
Luzes da Ribalta (1973): Em parceria com Geraldo Carneiro, foi gravada no disco
Árvore (1973): o violão executa acompanhamento harmônico e contrapontos
melódicos.
Encontro no Bar (1973): Canção em parceria com Geraldo Carneiro, gravada no
disco Árvore (1973). Observa-se a utilização de recursos como ostinatos em cordas
soltas e em harmônicos naturais. Nessa obra há uma scordatura interessante: as três
primeiras cordas são afinadas em graus conjuntos (C-B-A) 72.
72 Ver capítulo 4. 71 Jardim de Prazeres (1974): Parceria com Geraldo Carneiro, foi registrada no disco
Academia de Danças (1974). O violão tece diversos comentários no arranjo, com
muitos efeitos percussivos e ostinatos melódicos com ligados e nota pedal.
Observamos a presença de chorus no violão.
As Primaveras (1977): Parceria com Geraldo Carneiro, foi gravada no disco Carmo
(1977). O violão executa acompanhamento harmônico.
Apesar de Tudo (1977): Parceria com Geraldo Carneiro, foi gravada no disco Carmo
(1977). O violão executa acompanhamento harmônico.
Feliz Ano Novo (1977): Em parceria com Geraldo Carneiro, foi gravada no disco
Carmo (1977). O violão executa acompanhamento harmônico.
As Primaveras (1977): Parceria com Geraldo Carneiro, foi registrada no disco
Carmo (1977). O violão executa acompanhamento harmônico.
Auto-Retrato (1981): Em parceria com Geraldo Carneiro, foi gravada no disco Em
Família (1981). O violão executa acompanhamento harmônico e contrapontos
melódicos.
Branquinho – Passarinho (1981): Canção gravada no disco Em Família (1981). O
violão executa acompanhamento harmônico.
11-06-81 (Feito em Casa) (1981): Canção gravada no disco Em Família (1981). O
violão executa acompanhamento harmônico.
3.5 Arranjos de Egberto Gismonti para violão
Em toda a trajetória discográfica de Egberto Gismonti, é rara a presença
de obras de outros autores. O único disco integralmente dedicado a obra de outro
compositor é Trem Caipira (1985). Embora sejam poucos os exemplos de
interpretações de obras de outros autores, estas tornam-se bastante significativas para
72 o entendimento de sua personalidade musical. Selecionamos exemplos de obras
arranjadas para violão que possuem algumas das características da performance
violonística de Egberto.
Berimbau/ Consolação (Baden Powell e Vinicius de Moraes): A presença de
Baden Powell no violão de Egberto é evidente; em diversos depoimentos podemos
constatar essa afirmação. A sua obra Salvador (1969) é inspirada nos afro-sambas de
Baden e Vinícius de Morais. O pot-pourri Berimbau/Consolação foi gravado no disco
Orfeo Novo (1971). Embora neste período Egberto ainda utilizasse o violão de 6
cordas, as suas escolhas interpretativas já demonstravam bastante personalidade:
Egberto grava as duas músicas em Mi menor e não em Ré menor, como é
tradicionalmente executada pelos violonistas, assim ele pode explorar a melodia em
harmônicos naturais. Podemos identificar também a presença de Villa-Lobos em sua
interpretação, sobretudo nos acordes da segunda parte do Prelúdio Nº2 deste
compositor.
Fé cega Faca Amolada (Milton Nascimento): Gravada no disco Dança das Cabeças
(1977), também com o percussionista Naná Vasconcellos, foi arranjada para violão de
8 cordas.
Aquarela do Brasil (Ary Barroso): Gravado no disco Duas Vozes (1984), com o
percussionista Naná Vasconcellos, esse arranjo para violão de 10 cordas é um bom
exemplo dos paralelismos harmônicos característicos do violão de Gismonti. A
melodia é praticamente toda executada em chord melody.73
Trenzinho do Caipira (Villa-Lobos): Arranjo gravado no disco Dança dos Escravos
(1988) com o violão de 10 cordas. Nesta gravação, percebemos escolhas harmônicas
bastante características do violão de Gismonti: acordes dissonantes em bloco com a
melodia, uso de pedais, uso de harmônicos, percussões, dentre outros recursos.
73 Também conhecida como harmonia em bloco. Este tipo de técnica de arranjo consiste em usar vozes
paralelas à melodia, com a mesma divisão rítmica. Para cada nota da melodia há um acorde
correspondente. 73 CAPÍTULO 4 – A LINGUAGEM VIOLONÍSTICA DA OBRA DE EGBERTO
GISMONTI E O SEU ESTILO INTERPRETATIVO.
A história de Egberto Gismonti com o violão começa por influência de
sua mãe. Na adolescência, ela dizia que Egberto deveria tocar violão, enquanto o pai
preferia que o filho tocasse piano, pois, de acordo com ele, tratava-se de um
instrumento aristocrático. Egberto teve uma educação pianística tradicional e formouse no Conservatório Brasileiro de Música, que tinha uma filial em Nova Friburgo,
cidade onde morava. No caso do violão, não haviam professores, obrigando-o a ter
uma formação violonística autodidata.
Ao conhecer os discos de Baden Powell, Gismonti ficou encantado e,
valendo-se do bom ouvido adquirido nas aulas de solfejo, começou a transcrever tudo
aquilo que estivesse ao seu alcance:
Eu tinha que tocar no violão alguma coisa que fosse mais “preciosa” do
que os discos que meu pai trazia. Dilermando Reis, que tocava valsa, eu
achava tudo muito bonito, mas eu dizia: ‘não é isso que eu quero tocar’. E
o meu pai, que vinha ao Rio volte e meia, (...) me trazia discos. (...) E um
dia ele trouxe um disco do Baden Powell chamado O Mundo Musical de
Baden Powell. Um disco gravado em Paris e tal... e eu fiquei fascinado por
aquilo e eu falei: ‘que diabo de violão é esse? Esse é um violão só? Que
maravilha! E como que faz essa coisa rítmica?’ Porque aquilo ali virou
uma seção de trezentos ritmistas tocando junto. (...) Eu disse: “só tem uma
maneira de saber o que é isso, eu vou transcrever”. Então eu colocava o
disco e transcrevia. Tanto que até eu vir para o Rio de Janeiro, eu achava
que violão escrevia em dois pentagramas e na oitava que estava soando. Eu
não sabia que era um instrumento transpositor. (...) E transcrevi o disco
inteiro (GISMONTI, 2016).
É curioso observar que a transcrição de gravações é uma ferramenta que,
frequentemente, faz parte da formação do músico popular 74 . Nesse sentido,
verificamos que, embora Gismonti tenha tido uma educação de conservatório bastante
rígida, notadamente em um modelo francês, que privilegia o repertório clássico
europeu, o violão aproximou seus estudos de práticas correntes da música popular:
E transcrevi o disco do Baden. (...) Depois fiz um outro disco não sei de
quem... e aí caiu na minha mão um disco de um norte americano (...), um
74 No caso do músico popular, a transcrição não significa, necessariamente, passar para o papel a
música aprendida. Em muitos casos, o músico nem sabe ler partitura, ele simplesmente “aprende de
ouvido” ou “tira de ouvido”. 74 violonista gitano, que tocava uma coisa misteriosíssima, que não era jazz,
era outro negócio. E depois apareceu o Garoto (...). E comecei a
transcrever todo mundo. E então o violão passou a ser um instrumento (...)
e foi nascendo como um instrumento de valia (GISMONTI, 2016).
Aos poucos, o violão, que era um instrumento secundário, passou a ter um
peso diferenciado na sua rotina musical. Da mesma forma que a música popular e a
música de concerto tornaram-se uma coisa só, o violão uniu-se ao piano como
instrumentos condutores da sua música:
O violão é parte da estrutura que me sustenta
violino, nem cello, nem viola, nem trompete,
minha vida. Violão é igual ao piano. E esses
que eu penso, (...) não dá pra falar de um sem
2016).
como músico. Violão não é
nem flauta, oboé, fagote na
dois juntos fazem a música
falar do outro (GISMONTI,
Além de Baden Powell e Garoto, outro violonista foi fundamental para a
trajetória de Gismonti com o violão: Turíbio Santos. Foi através dele, que Egberto
praticamente conheceu a música de Villa-Lobos:
Custou muito tempo e eu tomei um susto danado sobre o negócio do VillaLobos. E pouco a pouco, morando em Paris, eu descobri alguém que tinha
um ponto de vista sobre o Brasil muito valioso e para violão, que é o
senhor Turíbio Santos. Sentamos (...) e o Turíbio disse: “ahh eu queria que
você escrevesse umas peças para mim. Eu gostaria de fazer um
repertório...” (...) E escrevi umas músicas como Central Guitar, por
exemplo que é dedicada à ele, depois Variações para Guitarra. E o
Turíbio foi de uma franqueza, que na época eu não entendi. Com vinte
anos... não vai entender com facilidade um “não”, né? Não é tão fácil. Mas
ele me disse: “olhe, essa sua música...eu vou fazer de tudo para que ela
seja bem executada por um monte de gente. Vou querer que ela esteja na
minha coleção da Max Eschig e vou querer que você assine um contrato
com a Max Eschig como compositor, para ter coisas editadas. Porque eu
sinto que a sua música é maravilhosa. Mas eu não tenho preparo para
tocar. Não é técnica, eu não tenho a crença de que essa música possa me
representar.” Isso é de uma beleza!! Pouca gente que não convive com
Turíbio sabe que ele é um sujeito que tem essa dimensão e conhece os
próprios limites, que não são poucos e pequenos, são muito largos. Quer
dizer, um sujeito que espalha Villa-Lobos nos quatro cantos da França a
ponto de invadir a Europa inteira, não é brincadeira. (...) No que conheci o
Turíbio (...) ele começou a me mostrar [a obra de Villa-Lobos] e no
primeiro dia (...) ele me mostrou todos os prelúdios e uma coisa atrás da
outra. Mas que compositor! Espera aí, deixa eu conhecer esse compositor!
Eu sabia, claro, que tinha as Bachianas e tal, que eu já tinha ouvido
(GISMONTI, 2016).
75 Por influência de Turíbio Santos, Egberto escreveu duas peças para violão
solo, de caráter contemporâneo, e passou a estudar a obra para violão de Villa-Lobos,
que viria interferir diretamente na sua linguagem violonística.
Aos poucos, Egberto desenvolveu um apuro técnico com o violão,
transformando este instrumento, junto com o piano, na espinha dorsal da sua obra.
Como ele próprio declara, não seria possível compreender sua música isolando o
violão do piano. Nesse capítulo, iremos investigar a linguagem violonística de
Egberto Gismonti de uma maneira ampla: discutiremos a relação dela com a
linguagem pianística e o estilo interpretativo de Egberto de uma forma em geral.
4.1 Estilo Interpretativo
O musicólogo Daniel Leech Wilkinson, em seu livro Recorded Music,
investiga a importância do estudo de gravações como uma ferramenta para a
compreensão de um estilo de performance. De acordo com ele, este mecanismo era
feito somente por críticos e colecionadores mais aficionados, ao invés de
musicólogos. Robert Philip e Timothy Day foram pioneiros no estudo do estilo de
performance baseado em gravações. Como afirma Wilkinson, as gravações permitem
que os pesquisadores investiguem a maneira como os estilos mudam ao longo do
tempo:
As evidencias de mudanças no estilo de performance, providas pelas
gravações, tem profundas implicações no estudo de performance histórica.
Se queremos compreender a prática da performance em eras anteriores ao
início da gravação, como o período barroco e o clássico, nós iremos
somente escrever através de evidencias (WILKINSON, 2009, p. 247).
Para o autor, a audição de gravações do início do século passado são
evidencias vivas do estilo interpretativo corrente no século XIX, a partir delas,
tornou-se palpável a observação da forma como determinadas recorrências
interpretativas variam ao longo do tempo. Portanto, é amparado nas gravações que
investigaremos a obra de Gismonti.
Porém, o que é exatamente estilo de performance? Como poderíamos
defini-lo? O pianista Marcelo Verzoni investiga a origem etimológica do conceito de
76 estilo, em música. O autor cita duas referências à palavra estilo no filósofo Órris
Soares (1968, p. 84 apud VERZONI, 2000, p. 9-10). “Determinada forma que se torna
sinal distintivo de uma época, quer em relação à literatura e às artes em geral, quer em
relação aos costumes (à moda, como à prática de certos hábitos)”. E em um sentido
mais restrito: “modo de um escritor, que se torna a expressão de sua maneira de sentir
e praticar a arte ou as letras. A forma pessoal de um escritor: estilo de Voltaire, estilo
de Stendhal, estilo de Nietzsche.”
Segundo a enciclopédia Die Musik in Geschichte und Gegenwart:
Na música, o conceito de estilo refere-se não apenas a compositores
isolados, períodos determinados ou lugares, mas também a gênero,
formação e até mesmo à prática de execução. (...) O conceito de estilo
pressupõe que as mesmas características apareçam repetidas vezes. (...)
Assim sendo, o estilo reside na constância dos traços característicos
próprios de um todo musical empírico (1965, p. 1301 apud VERZONI,
2000, p. 13).
Em música, o estilo é um conjunto de formas expressivas recorrentes, que
carregam tanto características próprias do sujeito quanto do objeto ao qual o sujeito se
debruça:
Conceitualmente, estilo de performance é muito parecido com estilo de
composição. Compositores a medida que se desenvolvem criam
recorrências em suas obras que se refletem no tratamento de melodias, de
harmonias, de texturas e da forma. São características tanto pessoais
quanto de sua geração (WILKINSON, 2009, p. 248).
De acordo com Wilkinson, algumas dessas recorrências são herdadas de
seus predecessores, algumas são emprestadas de seus contemporâneos e outras
aparecem como novidades. Nesse sentido, performers criativos, que possuem um
controle técnico satisfatório, desenvolvem maneiras individualizadas de tirar sons de
seus instrumentos. A relação entre estes sons subjacentes à sua performance é que o
identifica, colocando-o em comparação com seus predecessores e contemporâneos.
O estilo interpretativo é composto, enfim, pelos maneirismos expressivos
recorrentes nos intérpretes, que se manifestam de forma tanto individualizada quanto
coletiva. Nesse sentido, podemos identificar um estilo interpretativo em vários níveis,
inerentes à obra, ao intérprete, à uma nacionalidade ou a um grupo social. Em nossa
pesquisa iremos investigar o estilo interpretativo de Egberto Gismonti ao mesmo
77 tempo em que elencaremos aspectos que definam a linguagem violonística – ou o
idiomatísmo violonístico – de sua obra.
4.2 Linguagem violonística
Segundo Wilkinson, além do estilo interpretativo, existiria o estilo de
composição. Optamos, nesta pesquisa, por empregar linguagem violonística da
composição, ao invés de estilo de composição, já que iremos delimitar nossas análises
apenas às obras para violão.
Como argumentado no capítulo 2, a obra musical deve ser compreendida
de maneira integral, de modo que composição e interpretação se fundem. Desse
modo, o estilo interpretativo é inerente à linguagem violonística da obra. Apesar de
ser possível separá-los conceitualmente, na pesquisa estes dois aspectos devem ser
abordados simultaneamente.
Apesar disso, elaboramos um quadro, com propósito didático, para
visualizarmos a distinção conceitual desses dois campo na obra para violão de
Egberto Gismonti.
Quadro 1 – Linguagem violonística e estilo interpretativo
LINGUAGEM VIOLONÍSTICA
ESTILO INTERPRETATIVO
-
Scordaturas
-
Liberdade formal
-
Afinação reentrante75
-
Liberdade rítmica
-
Pedais
-
Sonoridade
-
Harmônicos
-
Agógica
-
Tapping
-
Andamentos
-
Percussão
-
Improvisação
-
Acordes paralelos
-
Técnica do escovado
-
Ostinato melódico com ligados
-
Acentuação
-
Melodias nas cordas reentrantes
-
Articulação
75 Segundo o dicionário Grove: afinação Reentrante é o termo usado para descrever a afinação de
instrumentos de cordas cujas ordens de alturas não ocorrem em sentido ascendente, mas sim em um
padrão de intervalos que ascende e descende. A afinação reentrante é encontrada, por exemplo, na
guitarra renascentista de quatro ordens (g’/g’ - d’/d’- f#’/f#’ - b’), na guitarra barroca de cinco ordens
(a/a – d’/d’- g/g – b/b – e’/e’), no ukelele (g’- c’- e’- a’), na cythara de cinco ordens (d – a - g – d’- e’),
no charango sul- americano (g’/g’- c’/c’- e’/e’- a’/a’- e’/e’). (GROVE ON LINE) 78 -
Fôrmas de mão esquerda
-
Digitação
-
Simultaneidade de eventos musicais
-
Virtuosismo
contrastantes
-
Irregularidade métrica
-
Independência das mãos
A primeira constatação que fazemos, ao elaborar esse modelo, é que todos
os aspectos elencados no estilo interpretativo também fazem parte da linguagem
violonística. Por outro lado, os elementos da linguagem violonística são
caracterizados, a priori, como princípios da estrutura composicional para violão. A
grosso modo, temos uma distinção conceitual do que são “elementos inerentes à
composição” e o que são “elementos inerentes ao intérprete”. Nesse âmbito, o estilo
interpretativo estaria subjugado à linguagem violonística, como se esta fosse
provedora daquele. Fazendo uma analogia “fria” com a linguística, somente através
da linguagem é que nos expressamos. Nesse sentido, o estilo interpretativo
representaria os aspectos expressivos da execução musical e a linguagem violonística
as estruturas da composição. Apesar dessa divisão conceitual, como havíamos
argumentado anteriormente, estes princípios se retroalimentam e, na prática,
precisamos discuti-los de maneira simultânea.
4.3 Os elementos recorrentes na linguagem violonística e no estilo interpretativo
de Egberto Gismonti.
Para Wilkinson, todos os instrumentistas e compositores tem diferentes
coleções de hábitos, que podemos chamar de estilo pessoal, mesmo que muitos desses
maneirismos sejam, inevitavelmente, atributos de seu tempo. As características do
estilo de performance estão ligadas à interação entre as possibilidades do instrumento
e do corpo que o manipula. O que o corpo pode fazer depende da prática e o que é
praticado depende do som que se objetiva alcançar. No caso de Egberto Gismonti, a
busca pelo som caracteriza-se não apenas pela busca por aspectos interpretativos
tradicionais, mas, sobretudo, por um processo composicional amplo, que experimenta
ao máximo as possibilidades geradas pelo instrumento que se tem como matéria
prima. No caso da sua obra violonística, a configuração particular de seus violões
amplia sua linguagem e permite, consequentemente, o desenvolvimento de um estilo
79 de interpretação peculiar.
Para encontrarmos os elementos recorrentes na obra para violão de
Gismonti e discutirmos a sua linguagem e estilo interpretativo, percorremos diversas
gravações, tanto discográficas, como em vídeo de suas performances ao vivo.
A metodologia utilizada nessa etapa foi a seguinte:
1)
Fizemos uma seleção de obras representativas do repertório
de Gismonti. A maior parte das obras analisadas possuem,
essencialmente, um caráter de violão solista 76 , porém,
alguns
exemplos
acompanhador
de
serão
violão
camerista
e
violão
utilizados
para
reforçar
os
argumentos.
2)
Para cada obra escolhida, procuramos analisar mais de uma
gravação, de estúdio ou vídeo. O intuito, ao buscar máximo
de gravações de uma mesma obra, foi o de auxiliar a
compreensão e assimilação dos processos discutidos na
pesquisa. Nem sempre a execução do trecho analisado se
apresenta
com
nitidez
numa
gravação.
De
forma
complementar, os vídeos são cruciais para tirar dúvidas,
sobretudo em relação à questões sobre digitação.
3)
Ao ouvir o conjunto dessas obras, identificamos os
elementos recorrentes na linguagem violonística e no estilo
interpretativo de Gismonti.77
4)
Selecionamos os trechos de maior interesse para a pesquisa
e os transcrevemos em notação musical. Foi necessário
elaborarmos uma proposta de escrita musical, tendo em
vista as peculiaridades estruturais dos violões de Egberto
Gismonti.
5)
Terminado o processo de transcrição, elencamos e
discutimos os elementos encontrados na linguagem
violonística, salientando os aspectos inerentes ao estilo
interpretativo.
76 Ver capítulo 3. 77 Ver quadro 1. 80 4.3.1 A transcrição de gravações e a seleção das obras analisadas.
Uma das práticas musicais mais recorrentes dos violonistas é a
transcrição, seja aquela que muda a instrumentação original de uma composição, seja
aquela que pretende notar na partitura obras gravadas em discos, não necessariamente
mudando o instrumento para o qual foi destinada a composição. Ribeiro (2014), em
sua dissertação de mestrado, aponta as diversas classificações terminológicas para as
práticas de reelaboração musical, sendo a transcrição uma delas. Porém, na
transcrição de gravações, cujo objetivo é grafar na partitura a obra musical ou
simplesmente aprendê-la a tocar78, encontramos uma outra categoria de transcrição,
que não configura-se como uma prática de reelaboração musical. Apesar de não ser,
necessariamente, uma atividade de criação, a transcrição de gravações é uma
importante ferramenta de estudo e traz benefícios como o desenvolvimento da
percepção auditiva, a assimilação de aspectos interpretativos e a compreensão do
texto musical; além de ser o melhor meio para acessar repertórios que não estão
disponíveis em partituras, como é o caso da maior parte das obras de violão
compostas e gravadas por Egberto Gismonti.
Para o aprofundamento da compreensão da linguagem violonística de
Egberto Gismonti, elegemos 15 obras para transcrever. Dentre elas, onze
composições79 possuem caráter solista. Três obras são canções, nas quais a função do
violão é de acompanhador, e uma obra tem caráter essencialmente camerista.
No quadro a seguir, listamos as obras analisadas, com as suas respectivas
gravações e características:
Quadro 2 – Obras analisadas
OBRAS
Salvador
GRAVAÇÕES
VIOLÕES
CARÁTER
- Disco Dança dos Escravos (1989)
- 10 cordas
- Solista
- Disco Orfeo Novo (1971)
- 6 cordas
- Camerista
- Disco Solo (1979)
- 8 cordas
- Solista
78 Popularmente conhecido como “tirar de ouvido”. 79 Uma das obras é o arranjo de Gismonti de uma composição de outro autor: trata-se do pot-pourri
Consolação/Berimbau de Baden Powell. Este é um exemplo oportuno, pois demonstra a faceta
puramente intérprete de Gismonti. 81 Dança das
Cabeças
- Disco Dança das Cabeças (1977)
- 8 cordas
- Camerista
- Performance ao vivo I80
- 10 cordas
- Solista
- 10 cordas
- Camerista
- Disco Circense (1980)
- 12 cordas
- Camerista
- Disco Folk Songs (1980)
- 12 cordas
- Camerista
- Performance ao vivo III82
- 12 cordas
- Solista
- Disco Sanfona (1981)
- 12 cordas
- Solista
- Disco Solo (1979)
- 12 cordas
- Solista
- Performance ao vivo II
Cego
Aderaldo
De Repente
Selva
Amazônica
81
- Disco Nó Caipira (1978)
- 12 cordas
- Solista
83
- 12 cordas
- Solista
- Disco Em Família (1981)
- 10 cordas
- Camerista
- Disco Sanfona (1981)
- 10 cordas
- Camerista
- 10 cordas
- Solista
- Disco Duas Vozes (1984)
- 10 cordas
- Solista
Dança dos
- Disco Dança dos Escravos (1989)
- 14 cordas
- Solista
Escravos
- Performance ao vivo VI85
- 10 cordas
- Camerista
- Performance ao vivo VII86
- 10 cordas
- Violão e
- Performance ao vivo IV
Em Família
- Performance ao vivo V
Bianca
84
Orquestra
Dançando
Lundu
- Disco Duas Vozes (1984)
- 10 cordas
- Camerista
- Disco Solo (1979)
- 10 cordas
- Solista
- Disco Saudações (2009)
- 10 cordas
- Camerista
- Disco Música de Sobrevivência
- 10 cordas
- Camerista
- 10 cordas
- Violão e
(1993)
- Performance ao vivo VIII
Encontro no
- Disco Árvore (1973)
87
Orquestra
- 6 cordas
- acompanhador
Bar
80
Performance I. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=RI4uZ9J402U> acessado em
8/6/2016.
81
Performance II. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=K1EwZPvdmvw> acessado em
8/6/2016.
82
Performance III. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=4TIkp7N0CX8> acessado em
8/6/2016.
83
Performance IV. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ReHB2RGjfrY> acessado em
8/6/2016.
84
Performance V. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=1B7NT1MCD2c> acessado em
8/6/2016.
85
Performance VI. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=8pKq52OFvuU> acessado em
8/6/2016.
86
Performance VII. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ZUFMHi7r57Q> acessado
em 8/6/2016.
87
Performance VIII. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Cjhw4V1wPqw> acessado 82 Jardim de
- Disco Academia de Danças (1974)
- 6 cordas
- acompanhador
Lendas
- Disco Orfeo Novo (1971)
- 6 cordas
- acompanhador
Retrato 2 para
- Disco Orfeo Novo (1971)
- 6 cordas
- Camerista
Consolação/B
- Disco Orfeo Novo (1971)
- 6 cordas
- Camerista
erimbau
- Performance ao vivo IX88
Prazeres
flauta e violão
- Solista
Acreditamos que as composições de caráter solista são as mais
representativas da linguagem violonística de Gismonti. Na realidade, algumas dessas
obras foram arquitetadas de distintas formas ao longo do tempo: da configuração
solista, passando pelo caráter camerista e em alguns casos transformando-se em uma
peça para violão e orquestra. Porém, o arranjo do violão isoladamente não varia muito
e independe da quantidade de instrumentos que entram na arquitetura geral da música,
por isso o caráter solista se impõe nessas composições. Com as transcrições dessas obras, alcançamos uma ampla compreensão
sobre os maneirismos na música para violão de Gismonti. Optamos por passar para o
papel apenas os trechos que julgamos significativos para o entendimento da sua
linguagem violonística e do seu estilo interpretativo. Como vimos no capítulo 2, para
alinhar a interpretação aos processos ontológicos da linguagem Gismontiana, é
recomendável ao intérprete ter mais de uma gravação como referência, buscando uma
perspectiva que considere, por exemplo, a trajetória das intertextualidades na obra
interpretada89. Enquanto intérprete de violão, tenho interesse em executar tais obras e,
para tal fim, vejo a necessidade de passar por este processo. No âmbito das práticas
interpretativas, buscamos a interação entre a atividade do intérprete e a atividade de
analista: são funções que devem caminhar juntas. Nesse sentido, a partitura é apenas
uma ferramenta auxiliar na ilustração das questões levantadas pela pesquisa.
88
Performance XI. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=NSXgs5fIT54> acessado em
8/6/2016.
89
Ver capítulo 2 83 4.3.2 As hipóteses de pesquisa.
Após termos um contato extensivo com as obras para violão de Egberto
Gismonti, percebemos que algumas particularidades da sua linguagem violonística
foram influenciadas diretamente por uma conjuntura pessoal, estabelecida pela
ausência de uma educação musical formal como violonista em contraponto com uma
sólida formação pianística. A busca por aumentar o número de cordas no violão e a
utilização de afinações reentrantes são alguns dos elementos possivelmente
desenvolvidos por Gismonti em decorrência dessa falta de formalismos acadêmicos
no aprendizado do violão. Ao constatarmos que essa conjuntura foi determinante no
processo criativo de suas obras para violão, formulamos 3 hipóteses a serem
verificadas ao longo de nossa pesquisa:
1. Procedimentos técnicos, como a independência da mão esquerda e da mão
direita, são utilizados por Egberto Gismonti – no violão – de maneira análoga
ao piano. Embora ele acredite que a busca pela afinação reentrante tivesse a
intenção de aproximar o violão do piano (no resultado sonoro), este recurso
aprofundou ainda mais a sua linguagem violonística, projetando aspectos
idiomáticos deste instrumento.
2. Com a utilização de afinações reentrantes em seus violões, Egberto Gismonti
criou, em sua obra violonística, uma expressão musical própria, que não pode
ser reproduzida no instrumento tradicional, o violão de seis cordas.
3. Embora Egberto Gismonti tenha ampliado as possibilidades sonoras de seus
violões, com o uso da afinação reentrante, alguns elementos determinantes de
sua linguagem violonística e estilo interpretativo já estavam presentes em suas
gravações mais remotas, ainda com o violão tradicional de seis cordas.
Tendo em vista estas colocações, iniciaremos nossa investigação
utilizando as obras elencadas no Quadro 2. Cada tópico a seguir representa um
elemento recorrente na linguagem violonística ou estilo interpretativo de Gismonti.
Dessa forma, nossa análise conseguirá abranger o binômio intérprete-compositor, de
modo que tenhamos uma compreensão de sua obra musical como um todo.
84 4.3.3 Scordaturas, afinação reentrante e uma proposta de escrita musical
A estrutura dos violões de Egberto Gismonti é um fator determinante de
sua linguagem violonística e estilo interpretativo. Ao longo de sua trajetória, Gismonti
manteve uma postura experimentalista, que abrange todos os aspectos de sua música.
Sempre buscou vivenciar diferentes gêneros e culturas musicais – da música indígena
à música atonal –, e sempre investigou a sonoridade de variados instrumentos, indo da
kalimba ao sintetizador.
A postura experimental de Gismonti começou, sobretudo, com o violão:
Eu comecei a achar que estava faltando extensão. Porque eu venho de
piano, eu não venho de violão. Então faltava coisa: “esse Mi aqui está alto
de mais, eu quero uma coisa mais grave, não é possível!” E agudo... tá
bom, mas se a escala tivesse mais três, quatro ou cinco trastes ajudaria
também o raciocínio musical. Tudo começa quando eu estou em Nova
Friburgo, estudando violão de forma autodidata absoluta, porque o que eu
podia era transferir os conhecimentos teóricos de piano, os estudos, os
Beringers (...). Eu fiz todos eles no violão. Eu não tinha o que fazer porque
eu não sabia como que estudava violão. Mas eu tinha uma audição muito
boa e um solfejo muito bom, porque eu tive um professor que não foi
brincadeira. Dulce Vaz Siqueira e Aurélio Silveira, são os dois professores
de piano. (...) E o violão foi evoluindo, até que eu cheguei e esbarrei: “mas
cadê a nota grave? Cadê não sei o que?”. Isso nos anos sessenta e seis ou
sete. Eu tinha seis ou sete anos de violão... caseiro! (...) A escolha das
cordas é puramente musical. E por que mais cordas? É porque eu ficava
muito aborrecido por causa da extensão que não andava. Não andava em
relação ao que eu normalmente estudava e tocava [no piano] (GISMONTI,
2016).
A busca por mais cordas no violão, aos poucos o levou à configuração de
violões com afinação reentrante.
Sobre esta novidade, declarou:
Esse número de cordas (...) é pra ter um tipo de extensão que tem os
pianistas, não qualifica a música, não a torna melhor. Mas torna pro
Egberto, pianista, a possibilidade de tocar violão (GISMONTI. Ensaio. São
Paulo: TV Cultura 1992. Programa de TV)
Nesta entrevista ao programa Ensaio da TV Cultura, percebemos a cautela
de Egberto ao se declarar um violonista experimental, ou um pianista que toca violão.
Mas sua discografia nos mostra que o violão e o piano são a espinha dorsal de sua
música: não existe uma hierarquização entre os dois instrumentos.
85 O uso da afinação reentrante nos cordofones da família dos alaúdes foi
bastante explorado ao longo da trajetória histórica desses instrumentos, notadamente
durante o período barroco. Há muitas implicações decorrentes deste procedimento,
especialmente relacionadas aos recursos técnicos e sonoros que proporcionam.90
Em entrevista, Egberto afirma não ter tido conhecimento do que era a
afinação reentrante antes de começar a usá-la. Não houve nenhum cordofone ou
instrumentista que o inspirou a experimentar tal recurso. Sua descoberta foi ocasional
e baseada em um processo empírico de tentativa e erro.
E aí cheguei às afinações por experimentação. Como não existia outro
violão além de 7 cordas, porque eu descobri o choro. Eu saí à caça de um
sujeito que chamava não sei o que Romão não sei de quê. Que era um
luthier com um violão ruim, precário! (...) Eu disse: “eu quero um violão
que tenha um traste e uma escala gorda, maior assim”. (...) “Quantas
cordas?”, “Bota oito”. Então pensei que aumentar duas em seis já seria
uma imensidão. “Então que largura?”, “Mais ou menos igual lá o de seis...
aí você imagina e pega mais duas e aumenta”. Um negócio feito assim,
uma “galega” danada. O violão desafinava que era uma beleza! Não tinha
demarcação de traste certo. (...) Aí chegou o violão de oito e eu pensei:
“bom, eu já toco um pouco do seis cordas, não vou mudar muito essas seis
cordas aí porque se não eu vou ficar maluco”. Então eu esticava uma corda
e alguém dizia: “não, usa uma corda de cello!”. Aí eu usava e não dava
certo. Tudo isso sozinho porque não tinha a quem recorrer. Um belo dia,
alguém me dá uma corda de marca máxima (alemã), que são cordas feitas
sob medida. E eu ponho ela na mais grave e começo a afinar... afinar... e
por uma decisão sem nenhum critério técnico eu disse “essa corda tá com
uma tensão proporcional às outras e ela está afinada um quinta abaixo da
sexta... era um lá”. E afinava bem de mais, era uma beleza de corda. Aí
comecei a tocar, com o espaço vazio da sétima. E alguém disse: “vamos
arranjar uma de sete cordas e você coloca um Dó e fica Mi, Dó e Lá”.
Pensei: “Ah boa ideia!”. Aí experimentei e percebi: “mas não faz o menor
sentido isso, quero outra corda aqui, não quero essa não”. Eu não sabia
porque. (...) Um belo dia eu disse: “eu tenho que tentar alguma coisa aqui,
eu não sei o que eu vou fazer”. E então tinha uma corda de nylon dessas.
(...) Aí botei e sai afinando (...), eu não sabia direito onde é que eu ia
afinar. E era uma corda três, era uma terceira corda. Eu fui afinando... e
parei no lá. E pensei: “ah que engraçado, tem duas oitavas de extensão,
interessante isso”. E levei um tempo, viu? Eu não tinha certeza, mas levei
um tempo. E tudo o que eu fiz no início, usando o violão de 8 cordas com
essa afinação normal, deu um resultado profissional excepcional. (...) O
primeiro disco que eu gravei com isso, eu não explorava ainda como parte
do violão a ser tocável. Eu tocava muito pouco, apesar de ter traste e tudo.
Então eu usava muitas cordas soltas, soltas, soltas. E gravei um disco, que
aliás é o único na minha vida que chegou a um número que nenhum
carmense, por mais bêbado que estivesse, imaginaria que ia vender 1
milhão de discos, que é o Dança das Cabeças. Eu gravei isso com o
maluco do meu amigo Naná Vasconcelos e não tinha uma partitura pronta.
Tinha uma ideia: dois curumins andando numa floresta, pronto! E o troço
90 Uma menção ao uso da afinação reentrante na música popular contemporânea merece constar nesta
pesquisa. Trata-se do violonista sul africano Lionel Loueke. Com uma linguagem jazzística apurada
que combina efeitos vocais e violão preparado, Loueke utiliza um violão de 6 cordas com a 5º corda
reentrante. 86 começou a resultar e eu pensei: “mas essa corda aqui é excepcional...
porém isso aqui eu vou ter que mudar, as vezes eu quero uma coisa de Sol
também, porque só esse lá está muito chato”. E comecei a achar que estava
muito chato. E nessas andanças, aí eu já estou em meados dos anos 70.
Andanças europeias, eu sempre saía para ir em lojas de instrumentos... e
loja de violão era o que mais tinha na época. (...) Um dia eu entro em uma
loja em Córdoba e falo “eu estou procurando um instrumento de mas
cuerdas”. (...) “Ah, tem um que toca o Narcise Yepes. O Yepes toca em
um violão e 10 cordas muito bonito”. (...) “Quanto custa?”. E paguei e
levei o instrumento. Tirei as quatro cordas graves e pensei: “aqui eu tenho
um violão e aqui eu tenho espaço suficiente para procurar”. E ai foi um
processo que não está fundamentado em método nenhum, (....) porque
quando você não tem onde se basear. O meu conceito era todo piano, eu
queria um piano com cara de violão (GISMONTI, 2016).
O resultado desse processo de experimentação foi o fato de que Egberto
Gismonti criou uma linguagem violonística particular, tendo, como veículo,
instrumentos de oito, dez, doze e quatorze cordas que utilizam afinações reentrantes.
Porém, contraditoriamente, observamos que sua postura experimental, pelo menos no
que tange à mudanças estruturais no instrumento, não ocorre com o piano:
Piano não é isso. Você não pode modificar o instrumento. Ou seja, na
minha cabeça não tem isso de jogar um monte de bola de gude, pedaço de
ferro e tocar em cima... que deixa de ser piano. Isso eu não quero. Eu sou
muito tradicional com negócio de instrumento (GISMONTI, 2016).
Esse comentário de Egberto reforça o argumento que o violão ajudou sua
música a tornar-se mais inovadora. Fora as afinações reentrantes, Gismonti fez
investigações singulares por meio de diversas scordaturas 91, inclusive no violão
tradicional de 6 cordas.
É certo que a grande maioria das scordaturas não apresenta a versatilidade
da afinação padrão. Em contrapartida, elas trazem a tona diferentes
perspectivas sonoras e musicais, novas maneiras de compreender o
instrumento e de pensar a própria música. Tudo que temos a fazer é girar
algumas tarraxas e um novo universo de excitantes descobertas surgirá. É
como se nós, violonistas, tivéssemos nas mãos um instrumento
inteiramente novo, desconhecido, do qual já dominássemos toda a
mecânica de movimentos necessária à sua execução. Com este novo
instrumento, podemos realizar uma música que não seria possível com o
violão comum, ou então que lhe soaria difícil, estranha e sem brilho.
(VASCONCELOS, 2002 p. 92)
91 Scordaturas são mudanças de afinação das cordas do violão, que alteram a configuração tradicional:
E-A-D-G-B-E. 87 Esta possibilidade de transformar o violão em “outro instrumento” abre
novos caminhos para a composição. O recurso da scordatura é um convite para o
compositor explorar outras possibilidades mecânicas do instrumento. Este também é
um ponto no qual fica evidente a dinâmica entre o intérprete e o compositor, visto que
a
criação
torna-se
fruto
de
experimentações
empíricas
que
só
um
instrumentista/compositor seria capaz de realizar.
A exploração de novos recursos é uma constante na obra violonística de
Gismonti e certamente deixará um enorme legado para as novas gerações de
violonistas-compositores brasileiros.92 Neste âmbito, um dos substratos da presente
pesquisa é deixar uma proposta de escrita, da obra para violão de Gismonti, que
facilite a leitura da partitura musical, acolhendo a configuração peculiar das afinações
reentrantes de seus instrumentos.
A seguir, demonstraremos 7 diferentes scordaturas encontradas ao longo
da discografia de Egberto Gismonti. O exemplo Nº1 refere-se a configuração do
violão de 10 cordas de Egberto, nas músicas Em Família e Dança das cabeças.
Ex. 1 – Afinação do violão de 10 cordas (Dança das Cabeças e Em Família).
Observamos, no ex.1, que a afinação tradicional do violão de 6 cordas (EA-D-G-B-E) está contida dentro dessa afinação. As seis primeiras cordas permanecem
inalteradas e acima delas são acrescidas uma 7º corda aguda (A); uma oitava corda
grave (A); uma 9º corda aguda (G); e uma décima corda grave (F).
Sobre a escrita musical: optamos pelo uso de dois pentagramas, ambos em
clave de Sol. Existem diversos fatores que justificam essa opção: 1) dessa forma é
possível distinguir visualmente, no pentagrama, as notas que são relativas ao violão
92 Sobre este legado, talvez um dos melhores exemplos que encontramos na atualidade é no violonista
e compositor Daniel Murray. Em 2014 ele lançou o disco Autoral com peças para violão de 11 cordas
com afinação reentrante, dispostas da mesma maneira como o violão de Egberto Gismonti, porém com
uma corda grave a mais. Murray dedica algumas músicas à exploração de diversos recursos técnicos
abertos pela linguagem Gismontiana. 88 tradicional (nas seis primeiras cordas) e as notas que são relativas às quatro cordas
acrescidas com a afinação reentrante. Seria inviável utilizar um único pentagrama,
pois deixaria a partitura com muitos sinais de digitação relativos às indicações de
cordas93. 2) A questão topográfica da escrita orienta o violonista na leitura musical;
primeiro porque na maior parte do tempo as notas do pentagrama inferior são tocadas
com o polegar e segundo porque as notas do pentagrama inferior frequentemente são
mais agudas do que as notas da pauta superior. Nesse sentido, pelo fato de estarem no
pentagrama de baixo, servem de auxílio à leitura, visto que no corpo do instrumento
estas notas estarão topograficamente em uma região relativa às notas graves. 3) A
escolha pela clave de Sol no pentagrama inferior parte de dois princípios: os
violonistas habitualmente estão mais familiarizados com esta clave e, não menos
importante, como há notas no pentagrama inferior uníssonas à notas do pentagrama
superior (Exemplo: a 9º corda solta é uníssona com a 3º corda solta), seria um
equívoco escrevê-las em claves diferentes. Outro argumento é que na clave de fá
algumas notas das cordas agudas, da afinação reentrante, necessitariam de linhas
suplementares superiores inviáveis94. 4) Como a opção pela clave de sol é a mais
coerente, a indicação de oitava abaixo torna-se necessária para as notas graves do
pentagrama inferior. Seria inviável escrever as linhas suplementares necessárias para
notar essas alturas.
A composição Em Família foi concebida quando Gismonti passou a
utilizar o violão de 10 cordas. Já a obra Dança das Cabeças surgiu quando Egberto
usava o violão de 8 cordas, que possui a mesma afinação, porém não tem a 9º e a 10º
corda. Discos como Danças das Cabeças (1976) e Sol do Meio Dia (1978), foram
gravados com este último instrumento.
Assim como Dança das Cabeças, Salvador foi gravada em diferentes
instrumentos. Originou-se no violão de 6 cordas, passou pelo violão de 8 cordas e
consolidou-se no violão de 10. Nesta composição observamos a scordatura da 6º
corda afinada em Ré.
93 A pedido desse pesquisador, Egberto nos enviou a grade de Lundu e Dança dos Escravos para
violão e orquestra. Percebemos que o próprio compositor utiliza-se apenas de um pentagrama. Por essa
razão, cada nota da partitura necessita ter uma indicação relativa à corda. Essa “poluição visual”
poderia ser evitada com a nossa proposta de escrita. Também observamos que em um determinado
trecho de Dança dos Escravos, quando há percussões, o compositor é obrigado a abrir um outro
pentagrama no violão. 94 Um exemplo é o compasso 10 da transcrição completa de Lundu, encontrada no anexo C desse
trabalho. 89 Ex. 2 – Afinação do violão de 10 cordas (Salvador).
A configuração é basicamente a mesma da anterior, exceto pela 6º corda.
Já nas obras Dança dos Escravos e Lundu, o violão de 10 cordas possui outras duas
scordaturas95, como demonstra o ex.3.
Ex. 3 – Afinação do violão de 10 cordas (Lundu e Danças dos Escravos).
Como podemos perceber, a primeira e a segunda cordas estão meio tom
acima. O objetivo desta scordatura é manter os intervalos de 4º justa entre uma corda
e outra.96 Dança dos Escravos foi gravada tanto no violão de 10 quanto no violão de
14 cordas. Porém, há um detalhe importante a ser colocado: os violões de 10 cordas e
os violões de 14 são bastante semelhantes, pois o número de ordens97 é o mesmo. A
diferença básica entre eles é que no violão de 14 cordas, as quatro primeiras ordens
são duplas. Um outro detalhe é que essas cordas são de aço, gerando um timbre
semelhante à viola caipira.
95 Em entrevista, Egberto ainda relatou algumas scordaturas do violão de 10 cordas, com a 9º em F# e
a 10º em E. Porém, a obra em questão não foi recordada no momento da entrevista. Em Memória e
Fado, a 8º corda está em B. 96 A justificativa para esta configuração será vista posteriormente em nossa pesquisa. No momento só
estamos expondo o universo de afinações dos violões de Gismonti.
97 Os instrumentos de cordas são compostos por ordens de cordas que podem ser simples, duplas ou
triplas. O violão tradicional é estruturado em 6 ordens simples. Já a viola caipira é composta por 5
ordens duplas. 90 Em termos práticos, a execução de Dança dos Escravos no violão de 10 e
no violão de 14 cordas não traz grandes diferenças, pois é possível manter a mesma
digitação. Para o ouvinte, entretanto, a diferença é bastante consistente, não só porque
os violões possuem ordens duplas de aço, mas também por que Gismonti afina todas
as cordas meio tom acima, como demonstra o ex. 4.
Ex. 4 – Afinação do violão de 14 cordas (Dança dos Escravos).
As cordas extras estão assinaladas em vermelho, mas é evidente que, para
uma leitura fluente, não existe a necessidade de colocarmos as cordas duplas: a figura
é um mero exemplo ilustrativo. No caso do violão de 14 cordas, uma outra proposta
facilitadora da leitura musical, é a utilização do recurso da transposição. É mais
intuitivo notar na partitura as notas meio tom abaixo, embora soem um semitom
acima. Neste caso, faz-se necessário colocar uma indicação de instrumento transposto
no início da partitura.
Assim como o violão de 14 cordas se assemelha ao violão de 10, o violão
de 12 cordas tem o mesmo número de ordens que o de 8. Novamente, as quatro
primeiras ordens são duplas e de aço, porém a terceira e a quarta são afinadas com um
intervalo de oitava.
Ex. 5 – Afinação do violão de 12 cordas (Selva Amazônica).
91 Aqui também fizemos um mero exemplo ilustrativo, nas transcrições
optamos por não escrever as ordens duplas oitavadas. Em entrevista, Egberto afirma
que de vez em quando oitava a primeira e a segunda ordem também, desde que tenha
um encordoamento de diâmetro 0.08, por conta da tensão.
Gismonti conta que seu violão de 12 cordas foi inspirado no do seu amigo
Ralph Towner. Percebemos que essa afinação também mantém a relação intervalar do
violão tradicional de seis cordas, porém está transposta um tom abaixo.98
Sobre as scordaturas e a transposição um tom abaixo, Egberto declara.
E hoje em dia, eu uso mais de uma afinação, mas não são tantas. Tem uma
afinação que expandiu o violão para um lado que eu nunca tinha
imaginado, que aí possibilitou entrar a percussão pra valer, que é [uma
afinação] praticamente em quartas. (...) E como eu tenho uma audição boa
e adquiri mais técnica do violão que eu toco, eu pude me dar ao luxo de
desafinar algumas cordas. Pensar em uma outra afinação. Desafina e ele
passa a ser transpositor não mais do instrumento que se escreve oitava
acima e, sim, de notas outras que estão transpostas em relação à posições
que eu tenho. (GISMONTI, 2016)
O violão transposto, além de possibilitar a manutenção das mesmas
relações de digitação no braço do instrumento, traz um benefício mais pragmático:
Egberto afirma que o violão de 12 cordas de aço é naturalmente muito tenso; assim,
afinando um tom abaixo, se estabelece maior conforto para o violonista e longevidade
para o próprio instrumento.
No ex. 6, observamos, no violão de 12 cordas, que o mesmo
procedimento de afinar a 6º corda um tom abaixo (como em Salvador) está presente
nas obras De Repente e Cego Aderaldo.
Ex. 6 – Afinação do violão de 12 cordas (De Repente e Cego Aderaldo).
98 Nesse caso optamos por notar na partitura a altura real das notas, ao invés de transposta, visto que a
maioria das transcrições realizadas ao longo da pesquisa têm caráter apenas didático. Caso seja
realizada uma transcrição completa dessas obras para violão de 12 cordas, acredito que seria bastante
oportuno a utilização da escrita transposta. 92 A utilização de scordaturas não tradicionais também podem ser
observadas em obras para o violão de 6 cordas, como na canção Encontro no Bar, de
1973. Nela, Egberto afina a primeira corda em Dó e a terceira corda em Lá.
Ex. 7 – Afinação do violão de 6 cordas com scordatura (Encontro no Bar).
O objetivo dessa scordatura é criar uma escala em graus conjuntos (Lá-SiDo) nas três primeiras cordas soltas do violão. As implicações da utilização desse
recurso, nessa obra, serão abordadas posteriormente. O fato é que as scordaturas e a
afinação reentrante são recorrências que marcam a linguagem violonística de Egberto
Gismonti. Sobre este aspecto, Egberto declara:
Eu tenho um ponto de vista sobre o violão, que eu experimentei varias
soluções, uma delas foi expandir o número de cordas. Modificar a posição
das cordas, que é muito condicionante ao ponto de vista de criação, de
escrita e de vícios. Eu conheço razoavelmente orquestra hoje em dia,
porque eu faço isso há vinte anos sem parar. Acho que o violão é o
instrumento mais viciado que existe sobre o ponto de vista da execução, do
ater, do comportamento e etc. Isso não é uma crítica negativa, é uma crítica
que pretende ser positiva. (GISMONTI, 2016)
Os vícios, que Egberto salienta, se referem às idiossincrasias que o violão
possui. As composições para este instrumento, de uma maneira geral, se beneficiam
de diversos maneirismos próprios do violão. Nesse aspecto, mudanças estruturais na
afinação, potencializam determinadas características que o violão tradicional não
possui. Tais procedimentos acabam por fortalecer a especificidade da linguagem
violonística de Egberto Gismonti.
4.3.4 A nota pedal e a atuação do polegar.
A música Maracatu, de Egberto Gismonti, contém um dos maiores
exemplos de nota pedal na obra pianística desse autor. Como analisou Silva (2014), a
93 nota Fa# representa o ostinato do gonguê, que se mantém do início ao fim na
composição. Porém, apesar desse exemplo notório, diferentemente das obras
pianísticas, a nota pedal na linguagem violonística de Gismonti é quase sempre um
elemento condutor. O uso de distintas scordaturas, sobretudo com o acréscimo das
afinações reentrantes, contribuiu para a supervalorização deste recurso, que, por sua
vez, foi determinante no desenvolvimento de uma técnica violonística própria.
Na música para violão de Gismonti, frequentemente observamos
melodias intercaladas por nota pedal, como demonstra o ex. 8.
Ex. 8 – Dança das Cabeças (Performance II); Minutagem: 0’09’’; Andamento: 86 BPM;
10 cordas.
Nesse fragmento de Dança das Cabeças, temos a nota pedal (Lá) sendo
executada pelo polegar na 7º corda (reentrante) solta, enquanto que a melodia
transcorre em cordas presas. Um aspecto idiomático do violão – e dos instrumentos de
cordas dedilhadas e friccionadas – aparece no terceiro compasso. Nele, vemos a
possibilidade de termos a mesma nota – na mesma altura – sendo executada em um
“local” diferente do instrumento. É notório que o timbre de uma nota em corda solta
ressoa completamente diferente dessa nota executada em uma corda presa. Por mais
que o performer queira, e estude para nivelar os timbres, o próprio violão ressoa de
maneira distinta, pois a arquitetura de cada corda é diferente, trazendo, em si, uma
94 sonoridade particular99. Além da questão do timbre, há a funcionalidade textural. No
ex. 8 a nota lá na última semicolcheia do terceiro compasso tem função melódica,
enquanto que essa mesma nota, em corda solta, tem uma função de
“acompanhamento”.
Gismonti explora esse recurso sistematicamente em suas obras para
violão. Na exposição do tema da peça Bianca, temos um exemplo notório desse
procedimento.
Ex. 9 – Bianca (Duas Vozes); Minutagem: 1’02’’; Andamento: 74 BPM; 10 cordas.
No ex. 9, a nota pedal Sol (solta) é executada na 9º corda reentrante do
violão de 10 cordas, enquanto que a melodia transcorre na nota Sol (presa). Aqui
salientamos um aspecto importante do ponto de vista da interpretação violonística,
que é a acentuação. Devido à funcionalidade dessa nota pedal, Egberto Gismonti
desenvolveu uma maneira particular de executar o polegar. Tradicionalmente, este
dedo tem a função de executar os baixos, que, por sua vez, possuem um “peso” ou
acentuação melódica imponente100. No estilo interpretativo de Gismonti, o polegar
executa uma nota aguda, que, funcionalmente, opera como uma “cama de
ressonância”. Para se produzir o efeito de acompanhamento, é necessário que o
polegar atue com pouco peso dinâmico. Nesse sentido, acreditamos que o estilo
99 Por exemplo: a terceira corda solta (G) do violão tradicional é fabricada com nylon. Na 5º casa da
quarta corda temos a mesma nota, na mesma altura, que é fabricada com nylon revestido de aço. 100 Para exemplificar, poderíamos evocar o violão de baixarias da linguagem do choro, que precisa ser
articulado pelo polegar com proeminência.
95 interpretativo de Gismonti cria uma inversão de papéis na maneira como o polegar
atua. A sutileza da nota pedal é fundamental para não tornar a execução enfadonha.
Por outro lado, ela também é crucial para que a melodia da música seja projetada. No
tema de Bianca, a nota Sol recebe dois tipos de tratamento, que precisam ser
enfatizados para que as funcionalidades não se confundam. Por exemplo, no primeiro
compasso, há uma síncope na nota sol presa que precisa ser ouvida. É indispensável
que as 4 semicolcheias da nota pedal de acompanhamento não obscureçam a audição
da síncope, por isso optamos por tocar toda a melodia explorando ao máximo as notas
em corda presa.
No ex. 9 temos uma amostra de linguagem violonística que o piano seria
incapaz de reproduzir101. Embora Egberto afirme, na entrevista ao programa ensaio da
TV cultura, que a utilização da afinação reentrante foi uma busca por reproduzir
elementos da linguagem pianística no violão, este procedimento acabou por
aprofundar em sua música uma linguagem absolutamente própria do violão.
Na realidade, o recurso discutido nos exemplos 8 e 9 já estava presente na
linguagem violonística de Egberto Gismonti antes mesmo do uso da afinação
reentrante, com o violão de 6 cordas.102
Ex. 10 – Lendas (Orfeo Novo); Minutagem: 0’20’’; Andamento: 85 BPM; 6 cordas.
101 De fato, no piano não é possível executar uma mesma nota (na mesma altura) em um “local”
diferente. Curiosamente, o tema de Bianca foi gravado, ao piano, pelo músico mineiro Antônio
Loureiro. Como solução para interpretar esse tema, o pianista colocou a melodia e a nota pedal em
oitavas distintas, tornando possível articular nota pedal e melodia com total independência. 102 O próprio tema de Bianca poderia ser reproduzido em um violão de 6 cordas, visto que a nota pedal
solta é o Sol. 96 Lendas é uma canção, ou seja, o violão assume o papel de acompanhador.
Nesse trecho temos a recorrência da nota pedal em corda solta intercalada com uma
melodia. Assim como ocorreu nos exemplos 8 e 9, nos compassos 10, 14 e 16,
percebemos que uma mesma nota aparece com função dupla: nota de
“acompanhamento” e nota da melodia.
Como vemos, o uso da nota pedal em corda solta é um recurso idiomático
que sempre esteve presente na linguagem violonística de Gismonti. A seguir temos
outro trecho, retirado de uma obra para violão de 6 cordas e flauta:
Ex. 11 – 2º mov. de Três retratos para Flauta e Violão (Orfeo Novo); Minutagem:
1’26’’; Andamento: 96 BPM; 6 cordas.
Nesse exemplo, também observamos a intercalação entre uma nota pedal
em corda solta e uma linha melodia em cordas presas. Durante a investigação em
torno da discografia de Gismonti, procuramos trazer exemplos musicais mais
remotos, com o objetivo de averiguar se sua linguagem violonística, e o seu estilo
interpretativo, permaneceram coerentes ao longo dos anos. Como afirma Wilkinson,
os intérpretes tocam de forma coerente ao longo de suas carreiras. Ao analisar
gravações, é possível percebermos que um músico desenvolve logo cedo um estilo
pessoal, que o acompanha durante toda sua trajetória artística103.
Voltando à discussão sobre o estilo interpretativo e a maneira como o
polegar atua nas cordas reentrantes, vimos que esse dedo frequentemente subverte a
sua função “natural” de tocar os baixos. Porém, nem sempre o peso dinâmico do
polegar é piano; pelo contrário, em diversos momentos é necessário acentuar tais
notas.
103 No âmbito da interpretação musical, Wilkinson ainda salienta que um intérprete jovem, que tem o
seu estilo de performance aceito, acaba por não mudar suas particularidades ao longo de sua carreira
para não correr riscos, sobretudo quando transformam-se em professores e seu estilo passa a ser
cobiçado por seus alunos. 97 Ex. 12 – Cego Aderaldo (Folk Songs); Minutagem: 0’50’’; Andamento: 85 BPM; 12
cordas.
No primeiro compasso do exemplo de Cego Aderaldo, Egberto executa
um padrão rítmico (indicado em vermelho) utilizando apenas a nota Mi, que se alterna
em corda solta e presa. Nesse caso, para o ritmo ser projetado, o polegar necessita
articular as notas com um peso dinâmico semelhante aos outros dedos. O tema inicia
no terceiro tempo do compasso seguinte e sempre que há um descanso da melodia, o
material rítmico retorna.
Encontramos na música Em Família, outro exemplo semelhante. No
programa ensaio da TV Cultura, Egberto explica a estrutura do seu violão de 10
cordas e exemplifica a possibilidade de executar melodias rítmicas usando duas notas
em uníssono, porém dessa vez com ambas em cordas solta:
Ex. 13 – Em Família (todas as gravações); Andamento: 152 BPM; 10 cordas.
98 Na música Em Família, Gismonti utiliza a 3º corda solta e a 9º corda solta
para produzir o ritmo. Nesse caso, são cruciais as acentuações, tanto no polegar
quanto no dedo anelar, que executa a terceira corda.
Uma outra possibilidade de produzir efeitos rítmicos semelhantes, porém
intercalando cordas presas e ligados, encontramos na música Dança das Cabeças.
Ex. 14 – Dança das Cabeças (Performance II); Minutagem: 0’54’’; Andamento: 175
BPM; 10 cordas.
Nesse trecho, Egberto novamente explora a possibilidade de executar uma
mesma nota intercalando corda solta e corda presa.
Nesses três últimos exemplos, uma particularidade da execução
violonística de Gismonti se manifesta: a virtuosidade espelhada pelos andamentos
elevados. Em Dança das Cabeças, Egberto executa as 5 semicolcheias com a unidade
de tempo relativa à 175 Bpm. Nessa caso, o ligado torna-se uma ferramenta que
possibilita tal velocidade.
Uma outra ocorrência encontramos em Salvador. Além do andamento
semelhante, esse fragmento também traz ligados e nota pedal com ritmos acentuados
no polegar.
Ex. 15 – Salvador (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’43’’; Andamento: 171 BPM; 10
cordas.
99 Este é um exemplo interessante, que novamente nos faz refletir sobre o
polegar na linguagem violonística de Gismonti. Nesse caso, a acentuação e o ritmo
que esse dedo executa, nas duas cordas reentrantes, remetem a uma atuação
tradicional da linha do “baixo” executada com polegar. Porém, há uma linha melódica
mais grave acontecendo no dedo indicador da mão direita. Esse procedimento revela
uma linguagem violonística que, por uma questão estrutural, dificilmente poderia ser
executada em uma violão tradicional. O ritmo e as acentuações nas notas do pedal,
executadas pelo polegar, criam uma ambiguidade que sugere a existência de uma
linha virtual “baixo”. Apenas o ritmo e a acentuação seriam fatores determinantes
para reconhecermos uma linha melódica como sendo estilisticamente genuína de
linhas de baixo?
A resposta a essa questão só pode ser contemplada dentro de um gênero
musical, pois é somente através de uma linguagem estabelecida que podemos falar em
estilo. A figura rítmica tradicional da linha de baixo do baião, por exemplo, pode ser
facilmente identificada, independentemente do registro das notas, ou até mesmo da
própria existência de uma altura definida. Reconhecemos o padrão rítmico do baião
apenas pela leitura das figuras rítmicas, pois na realidade esse padrão origina-se na
percussão. No caso de Salvador, a levada rítmica surge de um afro-samba espelhado
na linguagem violonística de Baden Powell104. Na performance de Baden, é comum
encontrarmos uma linha de baixo sendo executada com o polegar simultaneamente à
uma linha melódica intermediária, executada pelo indicador, da mesma forma como
ocorre no ex. 15. Por essa razão, acreditamos que o polegar, nesse trecho de Salvador,
tem a função virtual de um baixo. Desse modo, temos a demonstração de uma levada
de afro-samba com o uso particular da afinação reentrante. Aqui há o encontro de
uma tradição do violão brasileiro, representada pela levada rítmica de Baden Powell,
com a linguagem violonística de Egberto Gismonti.
Seguindo nessa mesma lógica, de notas pedais executadas pelo polegar
como “baixos”, selecionamos o material temático de Dança das Cabeças:
104 Salvador faz referência à composição Berimbau de Baden e Vinicius, da série de composições
destes autores denominadas Afro-sambas. Além do ritmo, a harmonia de ambas as músicas se
assemelham: o tema também alterna os acordes de Ré menor e Lá menor. No arranjo original de
Salvador, do primeiro disco de Egberto Gismonti, gravado em 1969, a menção ao Berimbau se faz
bastante evidente.
100 Ex. 16 – Dança das Cabeças (Performance II); Minutagem: 1’16’’; Andamento: 174
BPM; 10 cordas.
Nesse exemplo, temos a atuação do polegar, na afinação reentrante,
executando exatamente a rítmica do baião comentada anteriormente. Porém, nesse
caso, há um reforço da nota Lá grave da 8º corda solta.
Na realidade, o estilo interpretativo de Gismonti tem como essência a
liberdade – própria do compositor-intérprete – para fazer inúmeras variações. Em
Dança das Cabeças, o baixo clássico do baião, em alguns momentos de sua
performance, é realizado inteiramente com a nota Lá grave. Em nossa transcrição,
colocamos uma possibilidade que é bastante recorrente, porém não é a regra. No
próprio disco Dança das Cabeças, na primeira exposição do tema, os baixos
começam no Lá grave e na repetição os “baixos” aparecem com o Lá reentrante.
Essa variação na corda em que o polegar atua reforça nosso argumento de
que as notas da afinação reentrante em alguns momentos assumem a função do
baixo.
No ex. 16, indicamos em vermelho a intercalação entre uma mesma nota
articulada alternadamente em corda presa e corda solta. Esse trecho é bastante
semelhante ao ex. 14 e podemos observar também o uso de ligados.
Até o momento, vimos dois tipos de atuação do polegar com as notas
pedais da afinação reentrante, no que tange o peso dinâmico. No primeiro, há a
intenção de “esconder” a nota pedal para que ela sirva apenas como uma “cama de
101 ressonância”; no segundo, a nota pedal precisa ser acentuada para projetar melodias
rítmicas ou servir como uma espécie de “baixo virtual”.
No exemplo a seguir, podemos encontrar uma atuação do polegar que
precisa variar os dois pesos dinâmicos.
Ex. 17 – Selva Amazônica (Solo); Minutagem: 2’04’’; Andamento: 87 BPM; 12 cordas.
A nota Mi, da afinação reentrante, é articulada com sutileza, servindo
apenas como uma “cama de ressonância” para a melodia em 6º paralela no agudo. Já a
nota Lá grave, é articulada com uma força dinâmica proeminente, com o objetivo de
valorizar a mudança de um compasso para o outro. Nesse exemplo, é importante que
o intérprete tenha a habilidade de mudar o peso dinâmico do polegar em um curto
espaço de tempo.
No compasso 32, ocorre uma inversão das funções: a melodia passa a ser
executada pelo polegar e a terça Sib-Ré (arpejada) torna-se o pedal. É interessante
ressaltar que, devido à scordatura utilizada por Egberto, em todo esse trecho musical
sempre há uma corda solta participando como nota pedal.
No compasso 36, surge um detalhe de interpretação importantíssimo. O
tema de Selva Amazônica apresenta-se nas notas Mi-Mib-Re, articuladas pelo dedo
indicador. É necessário que o intérprete projete essas notas à frente das outras, para
que o ouvinte compreenda o material temático. O maior desafio desse procedimento é
102 quando o polegar e o indicador executam duas notas simultaneamente. Nesse caso, o
polegar precisa ter um peso dinâmico inferior ao indicador.
Na canção Encontro no Bar, como foi levantado anteriormente, Gismonti
utiliza uma scordatura na qual as três primeiras cordas ficam dispostas em graus
conjuntos (Dó-Si-Lá).
Ex. 18 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 0’; Andamento: 121 BPM; 6 cordas.
No inicia da gravação, Egberto executa essas três primeiras cordas com o
harmônico da décima segunda casa. Logo em seguida, o mesmo padrão é repetido em
cordas soltas. A alternância desse material, entre harmônicos e cordas soltas, é
repetida diversas vezes na composição. As cordas soltas passam a ser notas pedais,
que atuam como um ostinato durante quase toda a composição.
Um detalhe interessante, desse trecho destacado, é que ele evoca uma
ambiguidade entre melodia e arpejo. Habitualmente, a execução de cordas soltas no
violão é sinônimo de arpejo. Porém, na obra Encontro no Bar, o “arpejo” tornou-se
uma escala em graus conjuntos. O fato é que, independentemente das cordas estarem
configuradas em graus conjuntos ou disjuntos, se articularmos as três primeiras cordas
do violão separadamente, a ressonância das notas fará com que elas soem
harmonicamente, pois seria difícil abafar uma nota antes de executar a outra. Nesse
sentido, lançamos a hipótese de que Egberto Gismonti, por ser um pianista, procurou
encontrar maneiras de trazer o recurso do pedal de sustentação105 do piano para o
violão e encontrou a solução na scordatura. Na linguagem violonística chamamos esse
efeito de campanela. O nome deriva da palavra campana, que em espanhol significa
sinos. A analogia com os sinos provém justamente da sustentação das notas em graus
conjuntos, que criam intervalos dissonantes de segundas maiores e menores. A
diferença da campanela, tradicionalmente estabelecida no repertório dos instrumentos
de cordas, para o exemplo em Encontro no Bar, está apenas na digitação, visto que a
105 O pedal de sustentação é um recurso que o piano têm, que retira os abafadores das cordas,
deixando que elas soem simultaneamente. 103 scordatura na peça de Egberto gerou a possibilidade de realizar um “arpejo” em
cordas soltas, enquanto que na técnica padrão normalmente se tem a alternância de
cordas presas com cordas soltas.
Como foi demonstrado, a linguagem violonística de Egberto Gismonti
tem a nota pedal como um elemento estrutural. As diferentes scordaturas e a afinação
reentrante facilitam o desenvolvimento desse recurso, sobretudo por ampliar as
possibilidades de utilização de cordas soltas. Verificamos que a investigação sobre a
nota pedal trouxe aspectos inerentes ao estilo interpretativo de Gismonti,
principalmente no que tange a atuação do polegar. Averiguamos a necessidade do
intérprete trabalhar com pesos dinâmicos distintos – nos dedos da mão direita – com o
objetivo de projetar para o ouvinte as funções relativas à cada nota musical.
Constatamos a existência de um paradoxo na linguagem violonística de Gismonti, no
qual o polegar – mesmo executando uma nota aguda – assume a função de “baixo”.
Também observamos que a nota pedal é um elemento que já estava presente na
linguagem violonística de Gismonti, desde suas composições antigas, gravadas ainda
com o violão de 6 cordas. Lançamos a hipótese de que Gismonti, na busca por
transpor o pedal de sustentação do piano para o violão, através de uma scordatura
específica, criou uma possibilidade particular de executar o efeito expressivo da
campanela.
4.3.5 Harmônicos
Egberto Gismonti criou uma maneira particular de utilizar o recurso dos
harmônicos, que tornou-se marca na sua identidade. Com frequência, o repertório
tradicional para violão explora os harmônicos de oitava, quinta e duas oitavas, porém,
é raro encontrarmos de quinta e terça duas oitavas acima da nota “real”106. Este
recurso aparece constantemente nas performances de Gismonti, que busca explorar ao
máximo o potencial das notas da série harmônica.
No final da gravação de Cego Aderaldo, temos um exemplo desse
procedimento:
106 Aqui assumimos a nota “real” como a posição na escala do braço do instrumento onde um dedo da
mão esquerda se posiciona para produzir um harmônico. 104 Ex. 19 – Cego Aderaldo (Folk Songs); Minutagem: 7’32’’; Andamento: 65 BPM; 12
cordas.
Nesse trecho, colocamos no pentagrama as notas sobre as quais iremos
executar os harmônicos e acima delas indicamos se é uma terça ou uma quinta, duas
oitavas acima. Essa metodologia simplifica a leitura musical, pois as notas indicadas
na partitura estão no local exato onde os dedos da mão esquerda irão se posicionar. A
produção dos harmônicos depende exclusivamente da mão direita, que atua nas
regiões relativas à divisão proporcional da série harmônica ao longo da corda. O
mecanismo de ação da mão direita, que produz os harmônicos, está demonstrado na
figura a seguir:
Figura 1 – Posição dos dedos da mão
direita para realizar os harmônicos.
O dedo indicador se posiciona na corda no local proporcional ao
harmônico, enquanto que o dedo médio – ou anelar – fica responsável por tangê-la.
105 A figura abaixo reproduz o resultado sonoro do ex. 19.
Ex. 20 – Cego Aderaldo (resultado sonoro do ex. 19)
No exemplo, realiza-se uma melodia em harmônico na qual com um
dedo da mão esquerda colocado sobre a nota Mi, temos a possibilidade de executar,
com a mão direita – além da oitava – a terça (Sol#) e a quinta (Si). Adicionalmente,
esse uso dos harmônicos pode servir para se atingir algumas das notas mais agudas da
tessitura do violão. O ex. 19 transcorre sobre a 4º corda, que é relativamente grave.
Porém, ao utilizarmos as cordas primas, podemos atingir tessituras superagudas.
No exemplo a seguir, de Danças das Cabeças, Egberto brinca com a
alternância entre uma nota “real” e uma nota em harmônico superagudo.
106 Ex. 21 – Dança das Cabeças (Performance I); Minutagem: 3’02’’; Andamento: 107
BPM; 10 cordas.
Além de notas superagudas – como o harmônico de duas oitavas da nota
Dó, do último compasso – nesse trecho, temos uma amostra de um dado relevante
sobre o estilo interpretativo de Gismonti: a improvisação.
Essa transcrição foi retirada de uma performance ao vivo, que
habitualmente é recheada de liberdade formal, melódica e harmônica. Percebemos
como um elemento da linguagem violonística de Egberto, no caso o harmônico, é
utilizado de maneira improvisatória. A ideia musical, nesse fragmento, é de realizar
uma espécie de eco na melodia, como uma pergunta e resposta. Os harmônicos
sempre respondem ao motivo melódico proposto anteriormente pelas notas “reais”. É
como se o próprio intérprete solista travasse um desafio consigo mesmo, numa
espécie de duelo. As notas reais vão desafiando as notas em harmônico até que chega
107 ao ápice, com as fusas, quando Egberto revela todo o seu virtuosismo. A escala é
realizada em um espasmo veloz, que chega a tornar a execução turva. Nas notas em
harmônico, em resposta às fusas, é necessário utilizar ligados de três notas para que o
andamento não seja comprometido.
Outra questão fundamental do estilo interpretativo de Gismonti, revelado
pelo trecho improvisatório de Dança das Cabeças, é a sonoridade. O recurso do
harmônico, além de projetar notas mais agudas, também permite obter timbres
diversificados. O fato é que, ao utilizar essa técnica, nem sempre o dedo indicador
está posicionado exatamente no local proporcional ao harmônico que se pretende.
Com uma pequena diferença de posicionamento, a nota harmônica sai sem uma altura
definida; o que produz timbres e coloridos diversos. A imprecisão das notas
harmônicas torna-se algo proposital na performance de Egberto. No ex. 21,
colocamos a indicação na partitura para que os harmônicos sejam executados em duas
oitavas, porém uma execução estritamente precisa dessa técnica excluiria a beleza do
recurso. Diferentemente do ex. 19, no qual a passagem exige uma precisão no uso dos
harmônicos, no ex. 21 a variação de sonoridade se impõe.
Egberto encara essa especificidade tímbrica do violão como uma forma de
raciocinar este instrumento de maneira não temperada. Em entrevista Gismonti
afirma:
E fui descobrindo que tinha dificuldades [no violão] que eu não tinha
noção do que era aquilo. Porque piano você tem uma visão global e é um
instrumento temperado. (...) Eu quando sento não tenho um raciocínio de
nada que não seja temperado. Quando eu pego o violão eu tenho um
raciocínio oposto. Apesar de traste, mas aquilo ali só delimita o possível
lugar que a nota vai soar direito. Certeza você não tem nenhuma
(GISMONTI, 2016).
Essa incerteza da altura exata que uma nota vai soar sobre um
determinado traste, reforça o caráter improvisatório da performance violonística de
Egberto Gismonti e é uma das graças de sua postura como intérprete.
A seguir, temos o tema de Selva Amazônica no qual há, tanto o artifício
do eco, visto na improvisação de Dança das Cabeças, quanto a variação tímbrica nos
harmônicos.
108 Ex. 22 – Selva Amazônica (Nó Caipira); Minutagem: 0’17’’; Andamento: 89 BPM; 12
cordas.
Nesse exemplo, indicamos harmônicos de duas oitavas na partitura,
porém, na prática eles variam de maneira aleatória, de acordo com o arbítrio do
intérprete no momento da performance. Outro detalhe é a combinação desse recurso
com bends107, realizados pela mão esquerda, que Egberto usa bastante e traz novas
“incertezas” à sua performance.
Vale ressaltar que nos exemplos 19, 21 e 22 observamos novamente a
constância da nota pedal, em corda solta, na afinação reentrante. Em todos esses
trechos o polegar atua sutilmente, fazendo a “cama de ressonância” de
acompanhamento.
Também identificamos acordes arpejados executados com harmônicos.
Na obra Selva Amazônica, esse artifício é explorado em diversos momentos. Na
transcrição a seguir, os dois acordes com harmônicos anotados na partitura aparecem
no início e no fim da obra.
107 Esta é uma técnica de mão esquerda muito comum aos instrumentos de cordas dedilhadas. Consiste
em deslocar a corda em um sentido vertical, usando um dedo da mão esquerda que esteja incidindo
sobre alguma nota da escala. O objetivo é fazer a altura da nota variar, como em um vibrato, porém,
mais agressivo. Este recurso é comum no estilo interpretativo guitarrístico de gêneros musicais norteamericanos e ingleses, como o blues e o rock. 109 Ex. 23 – Selva Amazônica (Performance IV); Início e fim da performance; 12 cordas.
Para executar este procedimento, o violonista precisa posicionar a mão
direita da forma como foi demostrado na figura 1, na região da corda relativa ao
harmônico de duas oitavas. Depois, basta deslizar a mão verticalmente, do agudo para
o grave, como demonstra a seta no ex. 23. Esse mecanismo é bastante explorado por
Egberto108. Embora tenhamos anotado na partitura apenas esses dois acordes, durante
essa performance, Egberto os repetem diversas vezes, sempre variando a posição da
mão direita, de modo que um novo “cacho” de harmônicos soe. Em Selva Amazônica,
a ressonância é ainda amplificada pelas ordens duplas de aço, que compõe o violão de
12 cordas de Gismonti. Em alguns momentos, Egberto balança o violão e empurra o
braço do instrumento com a mão esquerda para que as ondulações harmônicas sofram
um vibrato agressivo. 109
Observamos que a escolha da configuração do acorde, utilizada no ex. 23,
não é aleatória. Além de repetir o mesmo acorde em outra região do braço no
instrumento, Egberto também usa essa mesma configuração de acorde para realizar os
harmônicos arpejados em outras músicas, como demonstra o exemplo a seguir110:
108 A gravação de Cego Aderaldo, do disco Circense, também termina com acordes arpejados em
harmônicos. 109 Este recurso é bastante explorado na guitarra elétrica. O lendário guitarrista Jimi Hendrix utilizouse com frequência dessa possibilidade. Nas performances ao vivo de Gismonti é recorrente
encontrarmos esse procedimento. 110 A configuração do acorde é a mesma, porém no ex. 14 o violão tem uma scordatura diferente. 110 Ex. 24 – Dança das Cabeças (Performance I); Final da performance; 10 cordas.
Nesse exemplo, antes de chegar no arpejo final, Egberto explora as
possibilidades melódicas dos harmônicos através da oitava, da terça e da quinta.
Nesse caso, a mão esquerda fica parada e a melodia de harmônicos é executada
apenas com a atuação da mão direita.111
Outra observação, quanto ao uso de arpejos com harmônicos, é a sua
funcionalidade estrutural: ele é frequentemente utilizado no fim da performance.
Dança das Cabeças, Selva Amazônica e Cego Aderaldo são alguns exemplos.
Até o momento, investigamos a presença dos harmônicos de 2 oitavas
acima e de terças e quintas em duas oitavas acima. Porém, dentro da linguagem
violonística de Egberto Gismonti, os harmônicos “tradicionais” – de uma oitava e
quinta – também são explorados com recorrência.
No fragmento da performance da obra Em Família, colocamos na
partitura a indicação da casa na qual o harmônico será executado.
111 Foi possível observar um detalhe de interpretação que ajuda a ressoar melhor o último acorde de
Dança das Cabeças: fazer uma pequena inclinação diagonal, ao deslizar a mão direita para cima, faz
com que o dedo indicador coincida com regiões mais ricas em harmônicos dessa configuração de
acorde. 111 Ex. 25 – Em Família (Performance V); Minutagem: 3’20’’; Andamento: 145 BPM; 10
cordas.
Nessa passagem, pela constante variação dos harmônicos, que não
estabelecem necessariamente um padrão objetivo, fica claro que o intérprete está
improvisando, deixando fluir sua espontaneidade. O fato é que, dentro do estilo
improvisatório de Gismonti, todos os elementos recorrentes da sua linguagem
violonística são trazidos a baila.
Egberto frequentemente executa harmônicos naturais de quinta e oitava
intercalando duas regiões do braço do instrumento com muita agilidade, como
podemos perceber no andamento do exemplo a seguir:
Ex. 26 – Dança dos Escravos (Performance VII); Minutagem: 1’10’’; Andamento: 140
BPM; 10 cordas.
112 Também observamos situação semelhante na canção Encontro no Bar:
Ex. 27 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 1’13’’; Andamento: 121 BPM; 6
cordas.
No extrato assinalado em vermelho, percebemos que Gismonti realiza
uma quiáltera de 6 notas com a unidade de tempo em 121 batidas por minuto. Nesse
caso, há uma alternância entre os harmônicos da casa 5 com a casa 7. No ex. 26,
Egberto executa 4 notas com a unidade de tempo marcando 140 batidas por minuto, o
que engendra aproximadamente a mesma velocidade. Também observamos nesse
fragmento uma polirritmia de 5 contra 4, em decorrência do padrão melódico dos
harmônicos que está organizado a cada 5 semicolcheias.
Ao discutirmos o pedal, recorremos à gravações remotas com o violão de
6 cordas. Em relação ao uso dos harmônicos em gravações antigas, selecionamos uma
obra reveladora, que comprova a proeminência desse recurso em sua linguagem.
Embora não seja uma obra de autoria de Gismonti, a interpretação do pot-pourri
Berimbau/Consolação carrega tanta identidade que ela não poderia ser negligenciada
por essa pesquisa.
Egberto interpreta as duas obras em Mi menor112. O objetivo de transpor
para essa tonalidade é evidente em seu arranjo: em Mi menor é possível tocar
integralmente a melodia, e quase toda a harmonia das músicas, utilizando apenas os
harmônicos de oitava e quinta. Selecionamos uma pequena amostra do arranjo
arquitetado por Gismonti:
112 Tradicionalmente, no âmbito instrumental, essas duas composições são executadas em Ré menor,
inclusive com a 6º corda afinada em Ré. 113 Ex. 28 – Consolação/Berimbau (Orfeo Novo); Minutagem: 0’; Andamento: 137 BPM; 6
cordas.
Nesse exemplo, percebemos que o uso dos harmônicos assume todas as
funções do arranjo. Destacado em vermelho, temos a levada característica da música
Berimbau (compasso 30), o material temático (compasso 36) e alguns contracantos
(compasso 38). Apenas na segunda parte da composição alguns acordes não são
possíveis de serem realizados em harmônicos.
Como discutimos no capítulo 2, a obra musical é um constructo que só
existe nas mãos do intérprete. A atuação deste, configura-se, de certa forma, como um
processo de recomposição daquilo que foi concebido pelo compositor. Egberto
Gismonti, por ser essencialmente um intérprete-compositor, quando se depara com
obras que não são suas, as transforma de tal maneira que a linha tênue que separa o
intérprete e o autor – na obra musical – se fragiliza ainda mais (vide Trem Caipira). O
intérprete deve apropriar-se do texto a ponto de torná-lo sua própria criação.
Percebemos que em Berimbau/Consolação, Gismonti explora um recurso inato à sua
linguagem violonística para dar uma roupagem gismontiana à obra interpretada,
tomando-a uma propriedade sua.
Neste tópico, discutimos a recorrência dos harmônicos na obra
violonística de Egberto Gismonti. Percebemos que Egberto explora possibilidades,
como os harmônicos de terça e quinta duas oitavas acima, que são normalmente
subvalorizadas pelo repertório tradicional de violão; vimos como o estilo
improvisatório da sua performance combina o uso de diversos harmônicos – na busca
por trazer um raciocínio não temperado para instrumento – gerando novas
sonoridades, tanto para as melodias quanto para os acordes arpejados; investigamos a
manifestação do virtuosismo violonístico de Gismonti na execução de escalas e
114 arpejos com harmônicos em velocidades elevadas; por fim, reiteramos a importância
do intérprete atuar como um agente ativo na criação da obra musical.
4.3.6 O Tapping e a independência das mãos
A técnica do tapping é muito comum nos instrumentos de cordas e há
registros de seu uso que remontam ao célebre violinista (e violonista) Niccolo
Paganini. No universo guitarrístico do século XX, essa técnica foi amplamente
desenvolvida por músicos antigos como Vittorio Camardese, Roy Smeck e Jimmy
Webster; e por guitarristas contemporâneos como Eddie Van Halen, Tommy
Emmanuel e Stanley Jordan.
O dicionário inglês-português Password113, traduz a palavra tap como:
batida leve. No universo musical guitarrístico, a palavra tapping carrega o significado
dessa ação. A técnica do tapping, acaba por subverter a maneira tradicional de
execução do instrumento. Ao invés de uma ação coordenada, entre mão direita e
esquerda, apenas uma das mãos executa a nota. Para isso, é necessário que o dedo
bata diretamente nas notas da escala do instrumento.
Na linguagem violonística de Egberto Gismonti, o uso do tapping se dá
principalmente na mão esquerda. A recorrência dessa técnica espelha um aspecto
interessante do seu estilo interpretativo, que é a independência das mãos. Podemos
lançar a hipótese de que essa autonomia provém da sua habilidade como pianista, tese
que Egberto confirma:
Existem violões, e eu estou fazendo isso, que você tem duas funções
simultâneas. Uma de piano, batendo em cordas, pra isso eu tive que chegar
em um braço desenhado com uma altura de traste que é meio quadrada,
arredondada... é uma confusão danada, pra não ficar [demonstra o barulho
de ruído]. E uma mão direita que está pinçando ao mesmo tempo
(GISMONTI, 2016).
Nas as obras em que ele utiliza o tapping, frequentemente há a
simultaneidade de outros recursos como nota pedal, arpejos ou harmônicos. Desse
modo, a autonomia das mãos é acentuada, exigindo do intérprete a necessidade de
desenvolver a independência motora com mais afinco. Sobre este aspecto, Gismonti
113 Password: K dictionaries: English dictionary for speakers of portuguese. 3º ed – São Paulo:
Martins Fontes, 2005. relata
115 ter
criado
diversos
estudos
de
polirritmias
e,
até
mesmo
de
politemporalidades114.
Além do estudo, a própria composição musical é pensada sob o ponto de
vista da simultaneidade de eventos:
Profissionalmente, para outros, eu comecei a escrever umas
peças... para quem eu conheço pessoalmente e sei que tem
seriedade suficiente para estudar até morrer, antes de dar a
coisa como pronta, como é o Odair Assad. (...) E escrevi pra
ele duas coisas ou três. Memória e Fado, tem dois violões
tocando e é uma pessoa só tocando. Aquilo não é melhor
nem pior, aquilo são dois violões em um. (...) Então, o piano
me leva a pensar os outros instrumentos com essa
característica. (...) Aquilo ali são dois pontos de vista, que é
polifonia. É orquestra pura! (GISMONTI, 2016)
Embora o piano seja gerador de determinados raciocínios musicais, seria
equivocado dizer que ele é a fonte primária. Acima de tudo está a música: a ideia
musical é que determina e conduz a composição de Egberto Gismonti, seja para
piano, seja para violão. Nesse sentido, a simultaneidade de eventos musicais partiria
de um princípio musical elementar, que é o contraponto:
O fato do violão, dentro do meu conceito de polifonia e polirritmia, não
disponibilizar mais de duas vozes compostas. Voz composta é aquela que
bifurca as vezes [solfeja]. No meu conceito não tem mais de duas vozes
compostas, é por isso que eu fui mudando a maneira de tocar piano,
diminuindo o número de notas, acordes e etc... e comecei a dissolver
harmonias e acabei na coisa mais precária, historicamente falando, que é o
contraponto. Eu trabalho com duas vozes em piano e trabalho com duas
vozes no violão. Isso me dá uma dimensão musical que não é pianística e
que não é violonística. Claro que qualquer música pode ser executada em
qualquer instrumento (GISMONTI, 2016).
Percebe-se que a condução a duas vozes é o princípio que determina o uso
do tapping concomitantemente com outros eventos musicais. Esclarecido esse
aspecto, partimos aos exemplos musicais.
Na música Em Família, selecionamos dois momentos distintos: no
primeiro o tapping aparece acompanhado por nota pedal, e no segundo por
harmônicos.
114 Em entrevistas a Silva, Egberto afirma ter inventado exercícios de estudos pianísticos nos quais
cada uma das mãos estaria acompanhando um metrônomo diferente. Para aprofundar esse assunto, ver
Silva (2008). 116 Ex. 29 – Em Família (Todas as gravações); 152 BPM; 10 cordas.
Ex. 30 – Em Família (Performance V); Minutagem: 4’19’’; Andamento: 123 BPM; 10
cordas.
No ex. 29, temos o mesmo trecho musical demonstrado anteriormente no
ex. 13, porém com o acréscimo do tapping. Percebemos a força percussiva dessa
passagem musical, com a exploração do padrão rítmico da alfaia 115, no gênero
folclórico maracatu. Um detalhe de digitação importante é que Gismonti utiliza o
dedo médio da mão esquerda para produzir o tapping. É quase consenso entre os
violonistas que o dedo médio possui mais peso do que os outros. Ao contrário da
tradução literal da palavra tap (bater de leve), para se produzir uma nota utilizando
essa técnica no violão, é necessário que o dedo martele a corda com bastante força.
115 Ver página 9. 117 No ex. 30, o tapping é acompanhado por harmônicos de duas oitavas e
terças e quintas em duas oitavas. Novamente, a rítmica do maracatu se apresenta e
podemos identificar, nos harmônicos, o padrão rítmico do gonguê116. No primeiro
compasso, é fundamental a atuação dos dedos indicador e médio para a realização das
quatro semicolcheias. Consequentemente, ambos incidem sobre a mesma casa.
Também observamos que, novamente, o dedo médio é responsável pelas
notas acentuadas. O dedo indicador funciona apenas como uma espécie de repique e a
sua atuação é mais sutil, não chegando a definir a altura da nota, produzindo um som
mais próximo de um ruído (por isso assinalamos com um x na partitura). Já no
segundo sistema, o dedo indicador executa uma altura definida.
Em Dança das Cabeças, Selva Amazônica e De Repente, também temos
outros exemplos da atuação do tapping, combinada com harmônicos e nota pedal.
Ex. 31 – Dança das Cabeças (Performance I); Minutagem: 2’12’’; Andamento: 101
BPM; 10 cordas.
O ex. 31 é relativo ao trecho de Dança das Cabeças demonstrado
anteriormente no ex. 8. Após executar a melodia, articulando as notas de maneira
tradicional, Egberto transpõe o mesmo material temático uma oitava abaixo, porém
dessa vez articula as notas com o tapping. No compasso 99, Egberto efetua
116 Ver página 9. 118 harmônicos de quinta e terça com a mão direita e simultaneamente realiza um padrão
ritmico nas notas graves, com o tapping de mão esquerda. Além dessa independencia
das mãos, esse trecho traz um outro detalhe do estilo interpretativo de Egberto, que
são os bends. Esse recurso é amplamente realizado por Egberto para enriquecer a
sonoridade e articulação da melodia117.
Ex. 32 – Selva Amazônica (Solo); Minutagem: 7’17’’; Andamento: 87 BPM; 12 cordas.
No ex. 32, o harmônico aparece na própria nota pedal118. Aqui, ele é
usado de forma não temperada, produzindo coloridos tímbricos diversificados. A
precisão e regularidade na execução dos harmônicos, não é algo interessante
artisticamente, podendo tornar a interpretação monótona e artificial. A variação e a
irregularidade dão justamente o caráter de imprevisibilidade que caracterizam a
performance violonística de Gismonti.
No exemplo que acabamos de demonstrar, vimos o uso de uma nota pedal
em harmônicos concomitantemente à uma melodia em tapping. Já no trecho que
iremos destacar a seguir, temos a simultaneidade de três elementos distintos,
articulados com completa autonomia: na mão direita, os dedos indicador e médio
executam notas em harmônicos; o polegar realiza um pedal em corda solta; e a mão
esquerda executa uma melodia em quartas paralelas, usando o tapping.
117 Optamos por não anotar os bends pois é um recurso utilizado de maneira sutil e improvisada. 118 Nos exemplos 10 e 13, demonstramos esse tema sendo arquitetado de outras formas.
119 Ex. 33 – De Repente (Sanfona); Minutagem: 3’52’’; Andamento: 134 BPM, 12 cordas.
Nesse exemplo, temos uma amostra do uso do tapping nas cordas primas
no violão. É importante destacar nesse fragmento, a melodia em intervalos de 4º justa.
Dentro da linguagem violonística de Gismonti, constatamos que é vasta a recorrência
desse intervalo. Ele busca explorar as possibilidades quartais inerentes ao violão,
abusando de acordes paralelos em plaquê119 e arpejos em cordas soltas.
A obra Dança dos Escravos, traz um exemplo da combinação do tapping
com esses arpejos em intervalos de quarta justa:
119 O plaquê é uma forma de tocar um acorde, na qual todas as notas são executadas simultaneamente. 120 Ex. 34 – Dança dos Escravos (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’56’’; Andamento:
137 BPM; 14 cordas120.
Aqui, temos o material temático em tapping121 simultaneamente com um
ostinato em arpejo quartal nas cordas soltas. Um detalhe sobre a interpretação é que
Egberto acentua o Dó e o Sol do primeiro compasso. Esses acentos são cruciais para
dar um interesse rítmico aos arpejos, além de demarcar o fim de um ciclo do
ostinato 122 . O fragmento musical também evidencia o aspecto da liberdade
improvisatória na performance de Gismonti. Em nossa transcrição, procuramos um
trecho no qual os padrões de arpejos estão bastante claros, porém Egberto faz
pequenas variações ao longo da interpretação, “brincando” com as possibilidades de
combinações que esses arpejos oferecem. Na obra De Repente, também há o uso
concomitante entre tapping e arpejos e Egberto também realiza diversas variações
progressivas nos arpejos.
Nesse
tópico
investigamos
um
aspecto
fundamental
no
estilo
interpretativo de Egberto Gismonti: a independência das mãos. A partir de uma ideia
musical, de contraponto a duas vozes, surge a necessidade de ampliar as
120 Lembrando que nessa transcrição a escrita está transposta. O violão de 14 cordas soa meio tom
acima das notas representadas no pentagrama. 121 No segundo compasso a melodia passa do pentagrama inferior para o superior. Seguindo o nosso
critério de notação, no pentagrama inferior escrevemos somente as notas digitadas nas cordas sete, oito,
nove e dez do violão de 10 cordas e onze, doze, treze e quatorze, do violão de 14 (Ver ex. 1). Esse
critério notacional facilitou visualmente o arco melódico ascendente. Nessa obra, chegamos à digitação
de Egberto através de vídeos. 122 O padrão desse ostinato é 5 + 5 +4 + 2. 121 possibilidades de execução no violão. Constatamos que as habilidades inerentes ao
intérprete pianista contribuíram para a consolidação de tal linguagem violonística.
Observamos diversas combinações do uso do tapping: com arpejos, com nota pedal e
com harmônicos. Outros elementos, como a liberdade improvisatória, o interesse
rítmico e o uso dos intervalos de 4º justa surgiram no debate.
4.3.7 Percussões
No tópico anterior, investigamos a recorrência da técnica do tapping na
obra violonística de Gismonti. Como a terminologia sugere, esse recurso opera de
maneira análoga à percussão, porém identificamos alturas bem definidas na sua
produção. Agora abordaremos três formas estritas de percussão no violão: na lateral
do corpo do instrumento, nas cordas soltas e nas cordas anteriores à pestana.
Assim como no tópico anterior, o uso das percussões torna imperativo ao
intérprete o desenvolvimento de habilidades motoras de independência das mãos.
Frequentemente, os efeitos percussivos são combinados com outras técnicas. Em
Dança dos Escravos, temos a simultaneidade de uma melodia – executada em tapping
– e percussões na lateral do corpo do violão:
Ex. 35 – Dança dos Escravos (Performance VI); Minutagem: 0’26’’; Andamento: 147
BPM; 10 cordas.
Aqui, a mão esquerda executa o tapping enquanto a mão direita faz a
percussão na lateral do corpo do violão. Novamente identificamos a liberdade
122 improvisatória do estilo de Gismonti: a execução dos ritmos percussivos são livres e,
embora tenhamos transcrito esse fragmento literalmente – em acordo com o que foi
executado na gravação –, poderíamos apenas colocar na partitura a seguinte
indicação: batucar ritmo de samba. A obra Dança dos Escravos faz uma menção à
esse gênero musical, fato que podemos constatar no encarte do disco Infância (1991).
Nele, o título dessa obra aparece antecedido pela frase “ensaio de escola de samba”.
Outro detalhe de interpretação nesse exemplo é a sonoridade: Egberto sempre busca
fazer variações tímbricas na percussão. Para isso, ele procura intercalar regiões
diferentes da lateral do corpo do violão e alternar o tipo de ataque da mão direita,
usando a unha ou com as falanges dos dedos.
Na composição Cego Aderaldo, identificamos uma técnica percussiva
semelhante ao slap123 desenvolvido pelos contrabaixistas. Egberto percute as cordas
do violão alternando o polegar da mão direita com os quatro dedos da mão esquerda.
Na figura a seguir temos o posicionamento das mãos para executar esse
procedimento.
Figura 2 – Posição das mãos para
realizar a percussão nas cordas
Na realidade, é a lateral do polegar que percute a corda do violão, da
mesma forma como realiza os contrabaixistas na técnica do slap. No ex. 36, temos o
trecho musical no qual identificamos essa técnica:
123 O slap, ou slapping, é uma técnica utilizada por contrabaixistas que consiste em bater a lateral do
dedo polegar nas cordas. Frequentemente os dedos indicador, médio ou anelar atuam puxando outra
corda.
123 Ex. 36 – Cego Aderaldo (Circense); Minutagem: 1’49’’; Andamento: 100 BPM; 12
cordas.
Esse exemplo também espelha o virtuosismo da performance violonística
de Gismonti, averiguado no andamento rápido da interpretação.
Outra recorrência percussiva, na linguagem violonística de Gismonti, é a
utilização das cordas na região anterior à pestana. Esse recurso é amplamente
utilizado no âmbito da música contemporânea de concerto. O próprio Egberto
Gismonti fez uso desse mecanismo em uma de suas obras de perfil atonal, a Central
Guitar, escrita para violão de 6 cordas. Essa composição é um dos exemplos do seleto
conjunto de obras que Gismonti escreveu, mas não executa.
O fato é que esse recurso percussivo também é rotineiro nas obras solistas
de Gismonti, sendo executado geralmente com a mão esquerda. Nas composições Em
família
e
Dançando,
identificamos
a
presença
desse
efeito
executado
simultaneamente ao uso da nota pedal:
Ex. 37 – Em Família (Sanfona e Em Família); Minutagem: 0’; Andamento: 152 BPM; 10
cordas.
124 Ex. 38 – Dançando (Duas Vozes); Minutagem: 3’24’’; Andamento: 111 BPM; 10
cordas.
O ex. 37 mostra um trecho já analisado no tópico do tapping. Egberto
varia, em suas performances, o recurso utilizado para projetar o ritmo do maracatu.
No ex. 29, ele optou pelo tapping e, no ex. 37, pela percussão nas cordas anteriores à
pestana.
Nos dois últimos fragmentos musicais (ex. 37 e 38), observamos a
presença dos dois tipos de nota pedal analisadas anteriormente. Na música Em
Família, o pedal é rítmico e precisa ser acentuado; já em Dançando o pedal serve
como uma “cama de ressonância”, exigindo leveza na atuação do polegar.
Na obra Dança dos Escravos, também temos outro fragmento já analisado
anteriormente, porém com o recurso percussivo nas cordas anteriores à pestana:
Ex. 39 – Dança dos Escravos (Dança dos Escravos); Minutagem: 8’19’’; Andamento:
146 BPM; 14 cordas.
Nesse trecho temos o mesmo padrão de arpejos visto no ex. 34, portanto
as mesmas questões a respeito do estilo improvisatório se aplicam.
O fragmento musical reproduzido a seguir, talvez seja um dos exemplos
mais expressivos da simultaneidade de técnicas, pautadas pela independência das
125 mãos, na performance violonística de Egberto Gismonti. Nesse trecho, Egberto utiliza
as cordas anteriores à pestana de uma maneira singular, dividindo elas em três
regiões: grave, médio e agudo. Na realidade, essas regiões acabam tendo alturas de
notas definidas. Por este motivo, em nossa transcrição, procuramos passar para a
pauta a altura dessas notas musicais.124Concomitantemente a esse recurso percussivo,
Egberto realiza harmônicos de terças e quintas, com um padrão rítmico que remete
novamente ao gonguê do maracatu. Após alguns compassos, um terceiro elemento
surge, expondo um tema melódico que é beneficiado pelas cordas soltas da afinação
reentrante.
124 Presumivelmente essas notas não possuem afinação temperada, pois a arquitetura do violão não foi
pensada para o intérprete criar melodias nas cordas anteriores à pestana. Na realidade, ao
investigarmos a altura dessas notas descobrimos algo interessante: um violão de 10 cordas tradicional
jamais chegaria em tais alturas. Por mais que tentássemos fazer diversas experiências, arrastando as
cordas anteriores à pestana pra cima e para baixo, para tentar atingir as notas que Egberto usa, não
obteríamos um resultado satisfatório. O motivo é que, nessa performance, Gismonti está usando um
violão de 12 cordas cujo cavalete e pestana foi adaptado para receber 10 cordas apenas. Desse modo, o
violão continua tendo 12 tarraxas, sendo possível amarrar as cordas em distancias diferenciadas. Essa
eventualidade, trouxe a possibilidade das cordas anteriores à pestana serem afinadas em alturas
particularmente únicas para um violão de 10 cordas. 126 Ex. 40 – Em Família (Performance V); Minutagem: 5’04’’; Andamento: 117 BPM; 10
cordas.
Nesse exemplo, a mão esquerda percute as cordas anteriores à pestana; os
dedos indicador e médio da mão direita realizam os harmônicos e o polegar executa a
melodia em cordas soltas 125 . Nesse fragmento, observa-se o enorme potencial
percussivo do estilo interpretativo de Egberto Gismonti. Novamente, nossa
transcrição apenas demonstra uma extrato de uma performance e tem mera finalidade
didática. Na prática, o intérprete está constantemente improvisando, tanto no sentido
rítmico e melódico, quanto tímbrico, pois a variação da sonoridade nos harmônicos
também é uma constante nesse trecho musical.
No tópico anterior, levantamos a hipótese de que a característica de
independência das mãos, na performance gismontiana, provém em parte de seus
125 Esse mesmo procedimento, de melodias em cordas soltas com o uso do polegar, aproveitando a
afinação reentrante, é observado em um fragmento de Lundu que será analisado mais adiante. 127 estudos pianísticos. Nesse momento, poderíamos supor que o caráter percussivo do
seu estilo interpretativo violonístico tem também a sua gênese no piano. O violão é
um instrumento de cordas dedilhadas. Já o piano é um instrumento de cordas
percutidas, pois os dedos batem nas teclas que impulsionam os martelos nas cordas.
Nesse sentido, podemos concluir que o piano moldou o estilo interpretativo de
Egberto Gismonti de uma maneira geral. Esse estilo, ao se manifestar no violão,
suscitou a criação de recursos percussivos que – beneficiados pela independência das
mãos – gerou uma linguagem violonística particular.
Ao questionar o compositor Egberto Gismonti sobre este aspecto,
obtivemos uma resposta reveladora:
Não, o instrumento de percussão é tudo o que bate, que pinça e etc. O
violão também seria um. Eu como não tenho uma experiência profunda
com outros instrumentos, apenas de tocar um pouco de flauta, clarinete e
etc. Mas eu não tenho... não sou um solista, a ponto de entrar e ficar uma
hora tocando e me dá como satisfeito. A coisa de ser percussivo é o
princípio da construção do instrumento. Não existe violão que não pince.
(GISMONTI, 2016)
Observamos que Gismonti compreende tanto o violão quanto o piano
como instrumentos de cordas percutidas. Para ele, pinçar é percutir. O princípio da
percussão está tão enraizado na sua musicalidade a ponto de não haver uma distinção
do modus operandi de um instrumento para o outro. Ambos são parte de um todo que
sustenta o seu raciocínio musical.
Há, contudo, um dado inegável: o piano foi o primeiro instrumento de
Gismonti. Com 15 anos, Egberto já havia completado 9 anos de estudos pianísticos no
Conservatório Brasileiro de Música. Já com o violão, não houve estudo formal. Nesse
sentido, é razoável acreditarmos que os maneirismos pianísticos aos poucos foram
moldando a forma como Egberto enxergava o violão126. Portanto, concluímos que o
caráter percussivo, inerente ao piano, passou a se manifestar na sua linguagem
violonística a ponto de ser algo encarado como inato.
126 Em entrevista, Egberto relata que, na falta de método, transpunha os estudos tradicionais de piano
para o violão. 128 4.3.8 Acordes paralelos
O violão é cheio de códigos, né? Você faz assim, faz assado... é tudo
código. (...) O que você toca aqui, você toca aqui... apenas o sentimento,
sonoridade etc, é diferente mas... você tem códigos bem definidos
(GISMONTI, 2016).
Nos últimos dois tópicos constatamos um pouco da influência do estilo
interpretativo pianístico na música para violão de Egberto Gismonti. Porém, há
muitos aspectos da sua linguagem que são eminentemente violonísticos. As
possibilidades de paralelismos, que o violão oferece, são uma das mais extraordinárias
idiossincrasias desse instrumento. Praticamente todos os compositores de violão se
valem da possibilidade de ter uma fôrma (ou “código”) na mão esquerda, que
“caminha” pelo braço do instrumento.
Na obra para violão de Gismonti, identificamos diversas passagens com o
uso de acordes paralelos, notadamente tríades maiores, tríades menores, tétrades da
dominante e power chords127.
No ex. 41, transcrevemos um fragmento de uma seção da música Selva
Amazônica, na qual uma fôrma do acorde maior desliza pelo braço do violão, sempre
acompanhada pela nota pedal Ré em corda solta. A medida que a mão se desloca, a
permanência da nota pedal vai gerando dissonâncias, como nos acordes de C# e Eb,
nos quais uma tensão de 2º menor é criada. Por outro lado, em determinados
momentos, a nota pedal fica em uma posição de total consonância (em uníssono),
como no D e no Bb. Um detalhe de interpretação importante a ser ressaltado é que
Gismonti toca os acordes utilizando apenas o polegar, consequentemente, a
articulação fica quebrada128, ao invés de plaquê.
127 É um acorde composto somente por oitava e quinta. É muito comum na linguagem do rock. 128 Na partitura as notas do acorde são sobrepostas verticalmente, porém, na prática são executadas de
forma arpejada. Existe aqui, uma liberdade para o músico arpejar da forma que quiser. É possível fazer
uma indicação de articulação na partitura para se “quebrar o acorde”. 129 Ex. 41 – Selva Amazônica (Solo); Minutagem: 7’34’’; Andamento: 91 BPM; 12 cordas.
O recurso de acordes paralelos, acompanhado por uma nota pedal em
corda solta, foi explorado por muitos compositores para violão, dos quais
destacaremos Heitor Villa-Lobos. Na segunda parte do seu Prelúdio Nº 2,
encontramos o mesmo procedimento utilizado por Egberto no ex. 41, porém os
acordes maiores são articulados em uma textura efetivamente arpejada.
130 Ex. 42 – Prelúdio Nº 2 (Villa-Lobos)
No Prelúdio Nº2, o pedal, nas cordas soltas (Mi e Si), também criam
dissonâncias de 2º menor, como nos acordes de Bb e C#, e consonâncias em uníssono,
como nos acordes de G e C.
Esse elemento da linguagem violonística de Villa-Lobos está presente na
obra para violão de Egberto Gismonti desde suas gravações mais remotas. A sua
interpretação de Berimbau/Consolação está carregada desse idiomatísmo.
131 Ex. 43 – Consolação/Berimbau (Orfeo Novo); Minutagem: 1’37’’; Andamento: 137
BPM; 6 cordas.
No ex. 43, destacamos um trecho com a mesma fôrma de acordes maiores.
Na gravação dessa obra, no disco Orfeo Novo (1971), Gismonti opta por executar os
acordes em plaquê. Dessa maneira, torna-se impossível realizar as notas pedal, pois
todos os dedos da mão direita precisam atuar simultaneamente, focando apenas nesses
acordes. Porém, em uma performance ao vivo dessa mesma obra, disponível no
youtube129, Egberto articula esses acordes maiores de uma maneira similar ao ex. 41
e ao Prelúdio Nº 2, deixando a primeira e segunda corda do violão como notas de
pedal.
Também observamos a recorrência de paralelismo de acordes maiores na
canção Jardim de Prazeres. Porém, dessa vez, a fôrma do acorde maior está nas
cordas agudas do violão e as notas do pedal nos bordões.
Ex. 44 – Jardim de Prazeres (Academia de Danças); Minutagem: 0’29’’; Andamento: 160 BPM; 6
cordas.
No segundo movimento da obra camerística Três Retratos para Flauta e
Violão, também identificamos o paralelismo de acordes com uma nota pedal. Porém,
o acorde em questão é uma tétrade da dominante.
129 Sítio eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=NSXgs5fIT54 132 Ex. 45 – 2º mov. de Três Retratos para Flauta e Violão (Orfeo Novo); Minutagem:
0’55’’; Andamento: 100 BPM; 6 cordas.
No ex. 45, é possível realizar o acorde com a articulação plaquê e a nota
pedal, pois a quinta do acorde está omitida, fazendo com que sobre um dedo da mão
direita para executar a nota Mi.
Em Cego Aderaldo temos um exemplo de paralelismo de acordes
menores, acompanhado de baixo pedal:
Ex. 46 – Cego Aderaldo (Circense); Minutagem: 2’; Andamento: 100 BPM; 12 cordas.
O que temos constatado é que, independentemente da qualidade do
acorde, o uso de fôrmas fixas que “caminham” pelo braço do violão é uma constante
na linguagem violonística de Gismonti. Na obra Encontro no Bar, temos um exemplo
de paralelismo no qual não há a definição se o acorde é maior ou menor, pois a terça
não está presente.
Ex. 47 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 0’9’’; Andamento: 121 BPM; 6 cordas.
133 Aqui, a mesma fôrma é transferida das cordas soltas para uma pestana na
casa 1 e depois para uma pestana na casa 4130. Também observamos novamente a
recorrência rítmica do baião nos baixos.
Essa fôrmas, que as vezes não chegam a deixar evidente a qualidade do
acorde, também podem estar acompanhadas de uma nota pedal. Na gravação da
música Salvador, do disco Orfeo Novo (1971), Egberto insere uma Coda à música,
que não existia na gravação original de 1969131:
Ex. 48 – Salvador (Orfeo Novo); Minutagem: 4’21’’; Andamento: 158 BPM; 6 cordas.
Nese exemplo, a fôrma é composta pelos dedos 1, 3 e 4 e a terceira corda
solta (G) é sustentada como nota pedal. Observamos novamente que, com a mudança
de posição, a nota pedal pode gerar contrastes que vão de dissonâncias de 2º menor a
consonância em uníssonos. Nesse fragmento, um detalhe interessante é que a nota
pedal está no meio do acorde, diferentemente dos outros exemplos. Este uso também
130 Nesse trecho, Egberto utiliza pestana de dedo 4. 131 Como discutido no capítulo 2, esse processo de acréscimos de material temático ao longo dos anos
é muito recorrente em Gismonti. O material exposto no ex. 48 passou a fazer parte do corpus da
composição até os dias atuais. 134 encontra paralelo na obra para violão de Villa-Lobos. Na seção Grandioso do seu
Estudo Nº4, identificamos a nota pedal sendo sustentada no meio do acorde, que se
desloca em fôrmas paralelas.
Ex. 49 – Estudo Nº 4 (Villa-Lobos)
No Estudo Nº 4, percebemos que a nota Ré, da quarta corda solta, é
sustentada durante todo o trecho musical, gerando tanto dissonâncias de 2º menor,
quanto consonâncias em uníssono. Nesse exemplo, também a nota Si (da segunda
corda solta), embora apareça apenas em alguns momentos, passa pelo mesmo
processo de tensão e relaxamento. Essa ligação com a obra para violão de Villa-Lobos
é confirmada pelo compositor. Por influencia de Turíbio Santos, Egberto afirma que
chegou a “tocar tudo do Villa”.
Retornando à Salvador, percebemos que Gismonti utiliza, no final do
fragmento exposto no ex. 48, os chamados power chords. Com a scordatura da 6º
corda em Ré, a digitação desse acorde fica facilitada. Embora o power chord não seja
uma tríade, podemos classifica-lo como um acorde latu senso, visto a importância
dessa estrutura na música popular contemporânea. Esse acorde é responsável por
compor a estrutura harmônica de uma ampla parcela de obras alocadas em gêneros
populares, como o rock, o heavy metal e outros.
O power chord do ex. 48, expõe uma técnica violonística que Gismonti
utiliza com frequência: o escovado. Essa técnica consiste na execução de um acorde
de maneira que cada dedo da mão direita esbarre em mais de uma corda. É uma
espécie de rasgueado, porém os dedos não tocam as cordas em um movimento de ida
e volta: as tangem apenas em um único sentido. Outra diferença é que o escovado está
relacionado, exclusivamente, aos dedos indicador, médio e anelar. No compasso 70,
135 percebemos que são usados os dedos indicador e médio para executar os power
chords. Cada dedo é responsável por tanger, individualmente, todas as notas de um
acorde.
Outro detalhe é a articulação de ligados a cada 4 semicolcheias e de notas
em cordas soltas, a partir do compasso 73. Essas notas nas cordas soltas, que são
“escapadas”, ampliam o potencial rítmico desse fragmento musical. Na gravação de
Salvador, do disco Dança dos Escravos, Egberto se apropria da afinação reentrante
para reforçar a pulsação, nesse mesmo fragmento musical.
Ex. 50 – Salvador (Dança dos Escravos); Minutagem: 3’13’’; Andamento: 152 BPM; 10
cordas.
Essa combinação de power chords, articulação com ligados e a técnica do
escovado, também é encontrada na obra De Repente.
Ex. 51 – De Repente (Sanfona); Minutagem: 7’09’’; Andamento: 93 BPM; 12 cordas.
136 Percebemos que, no ex. 51, Egberto utiliza exatamente o mesmo recurso
demonstrado em Salvador, com a diferença que a métrica é composta e os ligados
ocorrem a cada três semicolcheias.
Ainda verificamos a presença de paralelismo, com o uso de power chord,
na canção Encontro no Bar.
Ex. 52 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 2’09’’; Andamento: 121 BPM; 6
cordas.
Aqui, observamos uma amostra das facilidades que a scordatura pode
trazer para a digitação: Egberto executa todos os power chords utilizando apenas os
dedos 1 e 2 da mão esquerda.
Nesse tópico, investigamos a recorrência de acordes paralelos dentro da
linguagem violonística de Egberto Gismonti. Constatamos a similaridade desses
processos com a linguagem da obra para violão de Heitor Villa-Lobos, especialmente
no que tange o uso de notas pedal com acordes paralelos. No que interessa ao estilo
interpretativo, destacamos a técnica do escovado como um mecanismo indispensável
na articulação dos acordes, sobretudo nos power chords.
4.3.9 Ostinato melódico com ligados e nota pedal
Este recurso consiste numa melodia executada sobre uma mesma corda
cuja nota correspondente à corda solta é sistematicamente reiterada. A intercalação
entre corda presa e corda solta se dá através de ligados. Essa técnica é muito comum
em instrumentos de cordas como cavaquinho, viola caipira, violino, violão e outros132.
Na obra Lundu, temos um exemplo notório:
132 Para Schroeder (2010) este recurso é uma das aplicações da intitulada notas rebatidas. Porém, não
utilizamos esta terminologia pela falta de consenso entre os autores. Nóbrega (2000) e Marinho (2010),
137 Ex. 53 – Lundu (Música de Sobrevivência); Minutagem: 0’; Andamento: 82 BPM; 10
cordas.
Devido à scordatura dessa obra, a nota Fá pode ser executada em corda
solta. Nesse exemplo, observamos três articulações distintas: na primeira, a
articulação liga a nota diretamente à corda solta; na segunda, a articulação faz um
movimento ascendente antes de ligar à nota da corda solta; já na terceira, não há
ligados, mas a nota pedal se mantém e podemos observar que o polegar começa a
executar um padrão melódico nas cordas soltas mais graves. Em seguida os ligados na
mão esquerda retornam, mas a melodia na região médio grave persiste até o final da
seção.
Esse fragmento musical evidencia o aspecto virtuosístico da interpretação
violonística de Gismonti, que chega a executar 8 semicolcheias com a unidade de
tempo relativa à 82 batidas por minuto.
por exemplo, aplicam o termo notas rebatidas a um padrão fraseológico que não envolve nenhuma
nota pedal. 138 O emprego de ostinatos melódicos com ligados e nota pedal, encontra
paralelo na obra para violão de Heitor Villa-Lobos. A seção Un peu animé, do seu
Estudo Nº 10, é construída sobre o suporte dessa técnica.
Ex. 54 – Estudo Nº 10 (Villa-Lobos).
Observamos no Estudo Nº 10 de Villa-Lobos que a articulação das notas é
feita com um ligado que ascende, descende e depois descendente para a corda solta133.
Embora o padrão rítmico-melódico e a articulação dos ligados não sejam semelhantes
em Lundu, observamos uma similaridade em relação à existência de dois planos
sonoros: uma melodia executada no polegar, em uma região médio grave, com um
ostinato melódico com ligados e nota pedal no agudo.
Na canção Jardim de Prazeres, composta enquanto Gismonti ainda
utilizava apenas o violão de 6 cordas, também verificamos melodias com nota pedal
articuladas com ligados:
Ex. 55 – Jardim de Prazeres (Academia de Danças); Minutagem: 0’10’’; Andamento:
160 BPM; 6 cordas.
133 É importante destacar que, embora essa seja a proposta original de Villa-Lobos, a partir da
interpretação de Turíbio Santos a maioria dos violonista passaram a não ligar a quarta semicolcheia.
Sobre esse aspecto, Amorim (2009) confirma: “a tensão e as cordas sintéticas do violão do século XXI
não permitem, para a maioria dos violonistas, que o trecho seja executado tal qual escrito. A solução
mais recorrente – verdadeira convenção estabelecida na interpretação villalobiana – é a de tocar as três
primeiras notas ligadas, enquanto a última, em corda solta, é levemente articulada” (AMORIM, p. 141,
2009). 139 No ex. 55, o virtuosismo do estilo interpretativo de Egberto Gismonti
também se evidencia pelo andamento vivo.
Na gravação de Dança dos Escravos, no disco Infância (1991), o arranjo é
composto por dois violões, contrabaixo e violoncelo. O acompanhamento do segundo
violão, executado por Nando Carneiro, é um ostinato composto por ligados e pedais,
porém não temos nenhuma nota ligada diretamente à uma corda solta como nos
exemplos anteriores. Também acontece um paralelismo, pois o mesmo padrão de
digitação é repetido em várias regiões do braço do instrumento.
Ex. 56 – Dança dos Escravos (Acompanhamento do segundo violão).
Os três compassos desse exemplo compõem basicamente todo o
acompanhamento do segundo violão na obra. Eles são repetidos inúmeras vezes, em
um ostinato que revela a estrutura quartal e minimalista da harmonia da composição.
Nesse tópico investigamos a recorrência de ostinatos melódicos com
ligados e nota pedal na linguagem violonística de Egberto Gismonti. Identificamos
diversas maneiras como esse recurso pode ser explorado e, novamente, salientamos as
semelhanças da obra de Gismonti com a linguagem violonística de Villa-Lobos.
4.3.10 Melodias nas cordas reentrantes e as fôrmas de mão esquerda
Até o momento, nessa pesquisa, a nota pedal apareceu como um dos
recursos mais beneficiados pela afinação reentrante. Porém, essa estrutura de
afinação também pode proporcionar construções melódicas únicas. A obra Lundu
talvez contenha o melhor exemplo do aproveitamento das cordas reentrantes como
matéria prima para o desenvolvimento de um material temático. No ex. 57, temos a
140 apresentação do tema de Lundu no início da gravação dessa música, no disco Dança
dos Escravos:
Ex. 57 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’; Andamento: 78 BPM; 10 cordas.
No tópico relacionado aos acordes paralelos, verificamos que, na
linguagem violonística, de uma forma geral, é recorrente o uso de fôrmas que
“caminham” pelo braço do instrumento. Vimos que os acordes paralelos se deslocam
horizontalmente na topografia do instrumento. Na obra Lundu, temos um exemplo de
fôrmas que se deslocam verticalmente e atuam de maneira melódica, ao invés de
harmônica. No ex. 57, a fôrma da mão esquerda, composta pelos dedos 1, 2 e 4, se
desloca verticalmente na primeira casa do violão e depois repete o mesmo
comportamento na casa VI.
Na figura a seguir, temos o modelo de fôrma de mão esquerda:
Figura 3 – Fôrma da mão esquerda na posição aberta
141 No compasso 2, observamos que essa fôrma, ao passar pelas cordas
reentrantes, gera uma melodia em graus conjuntos. Para projetar o material melódico
da composição, as acentuações são indispensáveis. O resultado dos acentos expõe o
tema de Lundu, que extraímos no ex. 58.
Ex. 58 – material temático de Lundu extraído.
As notas da melodia são entrecortadas por notas que tem função de
acompanhamento. Devido a esse corte, o tema soa pontilhado, salientando uma
articulação staccato que colabora para evidenciar o caráter rítmico da composição.134
Sobre a ideia de trazer o ritmo do lundu para o violão, Egberto comenta:
No caso de coisas minhas (...). Lundu eu queria que tivesse como centro
emocional os atabaques tocados em lundu. Eu tenho músicas com nome do
gênero musical. Maracatu, por exemplo, eu passei semanas rabiscando,
indo ao piano, rabiscando... até que o piano transformou-se na caixa do
maracatu. É só isso.(...) Enquanto o piano não tocasse esse ritmo eu dizia:
‘não serve pra ser maracatu’. E no caso de Lundu, (...) eu queria o som dos
atabaques que não são feitos com madeiras de grandes qualidades e as
amarrações são feitas com cordas, produzindo um som mouco. Som mouco
é aquele que não tem ressonância, que cai no pé. (...) Pra (sic) conseguir
som mouco no violão eu tenho que usar a técnica pianística e não
violonística, que vem a ser o que? (...) Pra conseguir que o som seja curto
eu tenho que fazer [solfeja] (GISMONTI, 2016).
O som mouco dos atabaques de lundu é projetado justamente pela técnica
de staccato de mão esquerda. Egberto tem razão ao dizer que essa técnica assemelhase à maneira como os dedos são articulados no staccato do piano. Porém, ela é
bastante corrente na linguagem violonística, de uma forma geral. Como Gismonti não
134 O lundu, como gênero musical, é considerado uma das primeiras manifestações da música
brasileira, proveniente de sincretismos com os ritmos africanos. 142 teve uma formação tradicional no violão, é comum percebermos analogias com o
piano quando ele pretende descrever algo relacionado à técnica violonística:
Você sabe como se processa o Lundu quando eu toco aquilo? Você talvez
nunca tenha pensado que a mão esquerda tem que pensar piano. Piano é
instrumento de força numa alavanca. Pra alavanca levantar o martelo e
bater. (...) Você tem que treinar a mão esquerda sem instrumento. Se você
não treinar (...) o [dedo] mínimo, por exemplo, você nunca vai ter força pra
sustentar o som mouco. (...) O mínimo vai fazer abrir a nota e você não vai
saber tocá-lo junto com a mão direita e tirar ao mesmo tempo. Isso não é o
hábito violonístico (GISMONTI, 2016).
Outro detalhe, que observamos no ex. 57, é a razão pela escolha da
scordatura nas duas primeiras cordas. Para facilitar a digitação e manter a mesma
proporção entre a fôrma dos dedos 1, 2 e 4, Egberto afina a primeira corda em Fá e a
segunda em Dó. Dessa forma, a relação de 4º justa entre uma corda e outra se
mantém, o que consequentemente preserva a digitação simétrica dos dedos da mão
esquerda.
Sobre esse aspecto, Gismonti comenta:
Para que eu tenha uma posição indo e vindo a vontade aqui, essas cordas
vão ter que facilitar uma certa posição. Qual é uma certa posição que são
afinados os atabaques? A maioria dos atabaques de lundu são afinados em
terças e quintas. (...) Então eu vou querer a minha afinação em quartas,
porque isso me possibilita fazer as quintas abrindo dois espaços, dois
trastes em cada corda. Porque isso vai me dar quinta e quinta, quinta e
quinta (GISMONTI, 2016).
Esse mecanismo, de estabelecer uma fôrma na mão esquerda que
“caminha” pelo braço, é a matéria prima da obra Lundu. No exemplo a seguir, temos
outro fragmento da composição, com outra fôrma de mão esquerda:
Ex. 59 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 1’33’’; Andamento: 78 BPM, 10
cordas.
143 Além da digitação com os dedos 1, 3 e 4, destacamos em vermelho uma
fôrma que, embora também seja composta pelos dedos 1, 2 e 4, diferencia-se da
primeira. Nela, não há nenhuma casa entre os dedos 1 e 2, como demonstra a figura a
seguir:
Figura 4 – Fôrma da mão esquerda na posição fechada
No compasso 51, também identificamos o mesmo procedimento de
construção melódica sobre as cordas reentrantes. Poderíamos afirmar que essas três
posições de mão esquerda – dedos 1, 2 e 4 com a mão aberta e fechada e dedos 1, 3 e
4 – compõem 80% da digitação da obra Lundu. Além disso, temos apenas a seção de
ostinatos melódicos com ligados e nota pedal, demonstrada no ex. 53135.
Também temos a seção que prepara o trecho com o ostinato melódico
com ligados. Ela traz uma fôrma assemelhada àquela dos dedos 1, 3 e 4. Porém, os
dedos 3 e 4 atuam na mesma corda.
135 Na gravação de Lundu, no disco Dança dos Escravos, também há uma seção de improvisação que
articula melodias de uma forma tradicional. Porém, por ser uma seção de improvisação livre,
acreditamos que o material apresentado não compõe o corpus essencial dessa obra. 144 Ex. 60 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’51’’; Andamento: 78 BPM; 10
cordas.
No ex. 60, também percebemos o deslocamento vertical dessa fôrma de
mão esquerda. Nos compassos 29 e 30 ela atua na casa XIII e, a partir do compasso
31, ela executa exatamente a mesma coisa, porém na casa V.
Esses paralelismos estão presentes na obra inteira. O mesmo
procedimento realizado no compasso 1 e 2 da composição é repetido, posteriormente,
na casa VI e na casa VIII. Da mesma maneira, o procedimento trabalhado no ex. 59 é
reproduzido subsequentemente nas casas IX e II.
Ex. 61 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 2’01’’; Andamento: 78 BPM; 10
cordas.
145 Até esse momento, demonstramos que dentro da linguagem violonística
da obra Lundu, existe a recorrência de 4 fôrmas de mão esquerda, que se deslocam
verticalmente sobre o braço do violão e que, nas cordas reentrantes, produzem o
material temático da composição. Além disso, essas fôrmas realizam diversos
paralelismos, sendo reproduzidas em diferentes regiões do violão. Verificada essa
característica pragmática da obra Lundu, poderíamos supor que a gênese da
composição foi um gesto no instrumento. Seria improvável pensarmos que tal
estrutura poderia partir de uma ideia musical concebida sem a atuação do corpo do
instrumentista no violão. Porém, em entrevista, Egberto afirma que a música sempre
parte de uma reflexão concebida sem o instrumento. Para ele, o violão seria um objeto
limitador e não um propulsor de ideias.
Eu não acho que o violão seja um propulsor de ideias para a composição.
Eu não acho que seja necessário ter o instrumento ao lado. Memória e
Fado e Choro, que o Odair já toca (...), se eu sentasse no violão eu estaria
lascado. Porque eu jamais admitiria que aquilo ali pudesse ser tocado.
Então eu parto sempre do escrever. Claro que eu tenho um parâmetro de
violão e de outros instrumentos, então... eu não vou inventar o que é
impossível. O violão depois serviu muito pra definir o que que eu tinha
que retirar da ideia ou acrescentar na ideia. No caso Memória e Fado. foi
isso, (...) eu não pude olhar instrumento. Se eu pego o violão pra pensar, o
raciocínio vai onde eu já sei e eu não quero isso. Eu começo a escrever a
música, como ela tem que ser. (...) Depois eu abro dois pentagramas
grandes, as vezes até três, e vou escrevendo tudo o que precisa ter.
Posteriormente eu achato três em dois, olho a partitura e digo “será que
isso aqui é possível de ser executado?” (GISMONTI, 2016).
Para Egberto, o ato de pegar o instrumento iria limitar a composição, pois
a sua música ficaria condicionada ao que ele já sabe tocar.
Quando eu escrevo para orquestra, eu nunca sento no piano. Porque se
sentasse, ou até pra escrever para piano, eu iria condicionar o que eu sei
tocar, e eu não quero. Ninguém pode pensar que sentando no piano e
tocando, está tocando uma orquestra porque não está “tocando uma
orquestra” (GISMONTI, 2016).
Nesse sentido, Egberto afirma que a sua música sempre parte de uma
determinação ou vontade de representar alguma coisa.
A música não é feita só com a vontade de fazer. A música é feita com a
vontade de representar alguma coisa. Isso é um dado também que foge um
pouco, digamos, ao tradicional. Apesar de eu escrever muito pra orquestra
146 ou muito pra o que seja, a música nasce a partir de uma obrigação ou
determinação (GISMONTI, 2016).
No caso de Lundu, Gismonti queria representar os atabaques com o som
mouco. A partir dessa ideia pré estabelecia, ele chegou a conclusão de que precisaria
criar determinadas fôrmas no instrumento.
Quando cheguei a essa conclusão, para que o violão não ficasse
desequilibrado (no corpo), eu tive que procurar posições que fossem quase
idênticas e que percorressem as 10 cordas para cima e para baixo. Porque
se eu tiver que trocar de posição, não vai dar certo. Isso tudo antes de
compor. Porque tem um mecanismo para fazer o violão virar um atabaque.
Se eu parto da música eu não vou chegar ao atabaque. Então o meu ponto
de vista, mais ou menos concordo com você, porque eu mais ou menos sou
um compositor tradicional. Você, talvez jamais... se te dessem vinte
possibilidades, você jamais imaginaria que o Lundu nasce da ideia de que
o violão tem que virar um atabaque com um som mouco. É para ser um
atabaque de madeira ruim, amarrado com corda (GISMONTI, 2016).
Porém, no decorrer da entrevista, Egberto admite que o instrumento
também pode ser utilizado durante a composição de uma música. Embora esse
mecanismo não seja a regra, muito menos uma fonte primária para o desenvolvimento
da obra musical, a interação entre instrumentista e compositor é fundamental durante
a criação. Nesse sentido, voltamos às proposições levantadas no capítulo 2. Ao
tratarmos da obra de Egberto Gismonti, não podemos analisar separadamente a
composição e a interpretação. São partes indissociáveis de um mesmo processo, no
qual os sintomas de um, induz as ações do outro. É por essa razão que em nossa
pesquisa buscamos discutir as questões relativas à linguagem violonística em
conjunto com o estilo de performance inerente ao intérprete Gismonti.
Dito isso, podemos salientar um aspecto fundamental – no estilo
interpretativo de Gismonti – que a obra Lundu evidencia: a liberdade formal. A
interpretação gismontiana tem um forte vínculo com a improvisação. Isso se reflete
em todos os âmbitos da composição, incluindo a forma da música.
Durante a audição de diversas gravações de Lundu, percebemos como a
liberdade formal é beneficiada pela característica pragmática da linguagem
violonística dessa obra. Como vimos, existem basicamente 4 fôrmas que se deslocam
pelo braço do violão. Esse vem e vai é repetido diversas vezes. As inúmeras
repetições são um “prato cheio” para a liberdade formal, pois, em uma performance
147 ao vivo, Egberto pode optar por fazer ou não determinados ritornelos. O intérprete
pode optar por subir e descer as fôrmas – verticalmente pelo braço do instrumento –
quantas vezes quiser. Observamos que, em gravações solo, as estruturas de repetições
podem ser mais irregulares, enquanto que nas gravações em conjunto136 são mais
regulares.
Essa liberdade formal pode interferir radicalmente na estrutura da
composição. Os compassos 59 e 60, do ex. 61, demonstram uma fôrma na casa II que
já havia sido realizada nas casas V e IX. Ao analisarmos outras gravações de Lundu,
percebemos que a região da casa II deixou de ser explorada. Egberto simplesmente
retirou da obra esses compassos137.
Por outro lado, da mesma maneira que Gismonti remove partes da
composição, ele também acrescenta materiais que não estavam presentes na primeira
gravação da obra. O fragmento a seguir foi retirado do disco Música de
Sobrevivência.
Ex. 62 – Lundu (Música da Sobrevivência); Minutagem: 2’25”; Andamento: 80 BPM; 10
cordas.
Os compassos do ex. 62 foram acrescentados à composição exatamente
onde está o compasso 35 da transcrição de Lundu, do disco Dança dos Escravos138.
136
Egberto gravou a obra Lundu em distintos formatos: duo de violões; trio formado por 2 violões e
contrabaixo; quarteto formado por 2 violões, contrabaixo e violoncelo; e violão e orquestra sinfônica.
137 Outro exemplo de mudança estrutural pode ser encontrada nas gravações de Lundu do disco
Música de Sobrevivência e do disco Saudações, nas quais o início da música passou a ser o ostinato
melódico com ligados e nota pedal. 138
No anexo C, ver a transcrição completa. 148 Na obra Salvador, também vimos alguns materiais que foram sendo acrescentados ao
longo da discografia de Gismonti. Acreditamos que esse assunto renderia uma
pesquisa paralela. Por essa razão, não iremos nos aprofundar nessa direção. No
momento, nos interessa apenas constatar que a liberdade formal constitui um
elemento importante do estilo interpretativo de Egberto Gismonti e essa liberdade, na
obra Lundu, é diretamente beneficiada pelo pragmatismo que as estruturas de fôrmas
de mão esquerda trouxeram para a composição.
Voltando à questão da melodia nas cordas reentrantes, são raras as obras
cujo material melódico é explorado aproveitando essa estrutura de afinação. O tema
da música Ciranda é um exemplo no qual a melodia incide plenamente sobre a 7º
corda reentrante.
Ex. 63 – Ciranda/Cego Aderaldo (Performance III); Minutagem: 5’11”; Andamento: 81
BPM; 12 cordas.
149 Apesar da tessitura da maioria das notas no ex. 63 serem compatíveis com
o violão de 6 cordas, seria inviável executar esse arranjo – nessa tonalidade – em um
violão tradicional, pois o acompanhamento deve soar harmônico139, com o uso de
campanela.
Outro aspecto interessante é que essa transcrição foi retirada de uma
performance ao vivo da música Cego Aderaldo. Ao pesquisarmos diversas gravações
dessa música, foi constatado que o tema de Ciranda é frequentemente executado em
algum momento na interpretação de Cego Aderaldo. Essa observação retifica a
importância das intertextualidades e ritornelos investigados no capítulo 2.
Nesse tópico, examinamos duas maneiras de exploração de melodias com
o auxílio da afinação reentrante. Investigamos as particularidades do uso das fôrmas
de mão esquerda na composição musical e discutimos o ato de compor com o
instrumento. Salientamos a liberdade formal como uma identidade no estilo
interpretativo de Egberto Gismonti e, por fim, demonstramos que sua obra é um
processo em constante transformação, no qual podem haver reiterações de materiais
temáticos e aperfeiçoamentos da composição musical.
4.3.11 Irregularidade métrica
Elegemos a estrutura métrica como um elemento do ritmo mais oportuno
a ser discutido dentro da performance de Gismonti. Uma análise aprofundada sobre o
estatuto do ritmo em sua obra, de uma forma geral, merece uma pesquisa direcionada
exclusivamente para este campo. No momento, nosso interesse está na liberdade da
interpretação gismontiana, que, por vezes, gera uma flexibilização da regularidade da
métrica. Este procedimento está ligado ao estilo interpretativo de Gismonti, que acaba
por influenciar a linguagem da obra musical como um todo. Dentro da discografia
violonística de Gismonti, o melhor exemplo desse mecanismo talvez seja a gravação
da obra Salvador do disco Solo, executada no violão de 8 cordas.
Esta gravação tem uma abordagem diferenciada em relação às outras, pois
Egberto reformula toda a forma e o caráter da música. Nela, o tema B e C são extintos
139 Aqui nos restringimos a um sentido literal da palavra harmônico, ou seja, as notas devem estar
ressoando simultaneamente. Embora no ex. 63 elas sejam arpejadas, uma nota continua soando mesmo
após a outra ser tocada. Não há interrupções devido a scordatura escolhida. 150 e o andamento – diferente das outras versões, que são aceleradas – transcorre lento e
contemplativo. Há, portanto, uma mudança no caráter e na proposta poética desta
versão140.
Embora o registro do disco Solo tenha um caráter apolínio, comparado
com a proposta original da composição, que é um afro-samba, observamos que o
ritmo, na gravação de 1979, traz aspectos mais reveladores que em outros registros. O
clima etéreo e a agógica rubato desta gravação propiciam a realização de operações
rítmicas complexas, embora soem naturais e fluentes. Fluência e precisão são dois
aspectos imprescindíveis a qualquer performance e as execuções de Egberto Gismonti
as revelam com particular maestria.
Os termos fluência e precisão, em certo sentido significam conceitos opostos. A
fluência é bastante difícil de ser descrita, porém qualquer músico entende o seu
significado. A precisão no sentido mais restrito corresponde a execução de cada
ritmo em seu devido lugar, podendo chegar ao extremo de tornar uma
performance artificial. A decisão do performer de fazer um balanceamento entre
precisão e fluência é parte fundamental na consolidação de uma interpretação
musical (WEISBERG, 1993, p. 55).
Ao ouvirmos a gravação de Salvador, do disco Solo, não nos damos conta
de que operações rítmicas que quebram a regularidade da pulsação no nível da
unidade de tempo141 estão sendo realizadas. Numa fruição despreocupada, na escuta
dessa obra, não se percebe a complexidade rítmica ali presente, devido ao
balanceamento entre fluência e precisão na interpretação de Gismonti. Somente
quando tentamos forçar nossa atenção para identificar sua estrutura métrica é que
esbarramos em algumas dificuldades. Verificamos, durante a transcrição de Salvador,
que um dos principais elementos que auxiliam o intérprete na realização de uma
performance precisa – e ao mesmo tempo fluente – é a presença constante do pulso
mínimo, que estabelece uma regularidade rítmica em um nível específico, que não é
aquele relativo à unidade de tempo.
Como define Alenn Winold (1975), pulsos são curtos estímulos
recorrentes que percebemos como pontos no tempo e que podem ser ouvidos em
diferentes níveis, ou seja, são ouvidos em diferentes proporções de velocidade, sendo
cada subdivisão rítmica um nível de pulsação. Na obra Salvador, o pulso mínimo é
140 Ver capítulo 2. 141 Podemos compreender a pulsação em diferentes níveis: pulso mínimo, unidade de tempo, unidade
de compasso. 151 regular e explícito, podendo ser representado pela figura da semicolcheia142; já a
pulsação relativa ao nível da unidade de tempo, ou seja, à semínima, possui
agrupamentos irregulares de pulsos. Esta irregularidade na pulsação é uma das
principais razões para que a identificação da estrutura métrica seja dificultada.
Seguindo com as definições de Winold, a percepção da estrutura métrica
se dá pela repetição literal ou variada de eventos musicais que tendem a estabelecer
agrupamentos. Este conceito é aplicado tanto para o ritmo quanto para a harmonia, a
textura, a direção melódica, a dinâmica ou o timbre. Durante a transcrição de
Salvador, utilizamos a noção de agrupamentos proposto por Winold para identificar
esta irregularidade nos agrupamentos de pulsos, no nível da unidade de tempo. A
partir dessa noção de agrupamentos, selecionamos o contorno melódico e o ritmo
harmônico como dois elementos musicais que contribuíram para o reconhecimento
dos grupos de pulsos e, consequentemente,
da estrutura métrica. É importante
ressaltar que esses dois elementos se complementam.
No âmbito do contorno melódico, temos um exemplo que ocorre no
próprio tema da peça Salvador. Identificamos procedimentos rítmicos semelhantes ao
que o compositor Oliver Messiaen define como ritmos acrescentados (1956). Após
uma introdução de 31 compassos, o tema da peça surge; nele observamos uma
irregularidade rítmica pelo acréscimo de uma semicolcheia no compasso 37.
Essencialmente, este compasso representa um binário no qual um evento rítmico foi
acrescido à segunda unidade de tempo, sendo que cada um desses eventos são
equivalentes na velocidade.
Ex. 64 – Salvador (Solo); Minutagem: 0’50’’; Andamento: 76 BPM; 8 cordas.
142 Optei por representa-lo pela semicolcheia em minha transcrição.
152 Nesse exemplo, observamos que a nota pedal da afinação reentrante
participa desse ritmo acrescentado. Podemos supor que, devido a constante reiteração
dessa nota, é possível que algumas delas “escapem”. Nesse sentido, a agógica rubato
da interpretação é fundamental para criar uma fluência e não gerar um estranhamento
na audição. É aceitável que formulemos a hipótese de que a afinação reentrante,
nesse caso, foi determinante no estabelecimento de uma operação rítmica complexa.
Outro elemento da interpretação que é determinante para o “sucesso”
desse procedimento, é a leveza com que o polegar tange a corda reentrante. A função
do pedal, nessa obra, é de acompanhamento. Como fora discutido anteriormente, esse
tipo de recurso serve como uma “cama de ressonância” reiterativa. Para que a
interpretação não fique enfadonha e soe repetitiva, é crucial que o polegar atue com
delicadeza.
Notamos a irregularidade métrica em outras ocasiões, como demonstra o
ex. 65.
Ex. 65 – Salvador (Solo); Minutagem: 0’14’’; Andamento: 76 BPM; 8 cordas.
No compasso 12, temos a mesma situação na qual uma nota foi
acrescentada. Já no compasso 14, a irregularidade da métrica não necessariamente se
relaciona com uma nota executada “ao acaso”. Isto comprova que a flexibilização da
regularidade métrica não é ocasional na linguagem musical de Egberto Gismonti: é
algo consciente e determinado.
No ex. 66, observa-se que a irregularidade gera uma quebra clara no
ritmo harmônico:
153 Ex. 66 – Salvador (Solo); Minutagem: 0’32’’; Andamento: 76 BPM; 8 cordas.
Antes do compasso 16, havia uma regularidade no ritmo harmônico
correspondente a um acorde por compasso. No compasso 16, o acorde de ré menor
com sétima maior “invade” o compasso ocupado pelo lá menor com nona. No ex. 67,
demonstramos uma possibilidade de reescrevermos a métrica deste trecho, levando
em consideração o agrupamento harmônico.
Ex. 67 Quebra do ritmo harmônico com escrita multimétrica.
Nota-se que há uma compensação no ritmo harmônico, visto que o acorde
de lá menor tem a sua duração reduzida para que ocorra uma volta à regularidade
proposta anteriormente. Já no ex. 68, em outro trecho da obra, não há esta
compensação.
154 Ex. 68 – Salvador (Solo); Minutagem: 1’16’’; Andamento: 76 BPM; 8 cordas.
Seguindo a lógica de Messiaen, podemos interpretar o compasso 50 como
um binário onde foram suprimidos dois eventos ritmos. Neste exemplo,
diferentemente do ex. 67, a escrita multimétrica143 é inevitável.
Nesse último tópico, vimos que a irregularidade métrica é recorrente na
linguagem musical de Gismonti. Nesse sentido, muitas dessas assimetrias podem ter
sido ocasionais, fruto de uma interpretação na qual há muita liberdade temporal; e
outras podem ter sido intencionais, visto a recorrência desse procedimento na obra
como um todo. O estilo interpretativo de Egberto Gismonti, na gravação de Salvador
de 1979, é marcado por uma agógica precisa que, consequentemente, tornam as
irregularidades fluidas. Lançamos a hipótese de que o uso de uma nota pedal, na
afinação reentrante, em um determinado momento foi responsável pela irregularidade
da métrica. Por fim, novamente verificamos como a atuação do polegar é fundamental
para a expressividade da linguagem violonística de Gismonti.
143 A multimetria é formada por compassos sucessivos, distintos na fórmula, que podem ser
executados através de um denominador comum, ou pulso mínimo. Winold define a multimetria como
agrupamentos de pulsos com regularidade variada: regular por ter um denominador comum e variado
por conter agrupamentos irregulares. 155 CONCLUSÃO
A pesquisa se propôs essencialmente a estudar a obra para violão de
Egberto Gismonti. Ao traçarmos esse objetivo, vimos que seria inviável realizar tal
proposta sem colocarmos a figura do intérprete Egberto como peça primordial no
entendimento da dialética de sua obra. Isso se deve ao fato de que, na ausência de
partituras, impõe-se à pesquisa a obrigação de fazer uma reflexão sobre o estatuto da
interpretação e da composição na obra musical desse autor. Partindo de algumas
reflexões, como a ideia de que o ato de interpretar é também um exercício de compor,
sugerimos um caminho para que o músico interessado nesse repertório possa criar a
sua interpretação sem ter em mãos uma partitura musical. Para isso, é recomendável a
tomada de consciência dos processos inerentes à obra interpretada, como as
intertextualidades, os ritornelos, o provisório e o “aperfeiçoamento” de materiais
temáticos. A incorporação dessas questões essenciais, particulares à esse texto
musical, demanda do músico, sobretudo, a habilidade com transcrições de gravações.
Seguindo por esse raciocínio, através da transcrição de gravações de
diferentes obras e épocas, a pesquisa realizou um levantamento aprofundado dos
elementos que compõem a linguagem violonística de Egberto Gismonti e o estilo
interpretativo inerente à ela. Salientamos diversos parâmetros que não se configuram
apenas como questões teóricas e reflexivas, mas que trazem subsídios, do ponto de
vista prático, para aqueles que desejam compreender e interpretar a música para
violão de Gismonti.
Destacamos a posição de Egberto como um violonista experimental.
Vimos que sua linguagem violonística foi favorecida por uma conjuntura pessoal
composta pela rígida formação pianística e o autodidatismo no violão. Na busca por
extensões que aproximassem o violão do piano, Egberto desenvolveu violões de 8, 10,
12 e 14 cordas com distintas scordaturas, que agregam o uso de determinadas
afinações reentrantes. Na falta de uma formação tradicional no violão, Gismonti
transportou muitos raciocínios musicais pianísticos para a sua linguagem violonística
e estilo interpretativo, dos quais destacamos a independência das mãos, o tapping, as
percussões e o “pedal de sustentação”. Por outro lado, vimos como a experiência de
acrescentar cordas, sobretudo com a afinação reentrante, acabou aprofundando a sua
música em uma linguagem essencialmente própria do violão. Egberto utiliza recursos
156 violonísticos sui generis, como a nota pedal em corda solta, que realiza tanto a função
de “cama” de acompanhamento quanto melodias rítmicas144.
A afinação reentrante também possibilitou o desenvolvimento de
particularidades que o violão tradicional de 6 cordas não poderia executar. Dentre
elas, vimos a construção de materiais temáticos com o auxílio de fôrmas de mão
esquerda e o desenvolvimento de levadas rítmicas acrescidas de uma espécie de
“baixo”145 tangido pelo polegar.
Embora todos os aspectos da linguagem da obra para violão de Gismonti
tenham sido beneficiados pelas afinações reentrantes e os acréscimos de cordas
graves, nem todos os elementos idiomáticos de sua composição para violão partem
desses recursos ou mesmo da linguagem pianística. Os acordes paralelos e os
ostinatos melódicos com nota pedal em corda solta são elementos eminentemente
violonísticos, presentes na sua linguagem e que, possivelmente, foram acrescentados a
seu “repertório de gestos guitarrísticos” a partir do contato com a obra para violão de
Heitor Villa-Lobos. Outro elemento que não possui vínculo direto com a afinação
reentrante, embora seu uso tenha sido expandido por ela, é o harmônico. Verificamos
como Egberto criou uma linguagem singular ao articular esse recurso. Além de
explorar toda a gama de extensão da série harmônica nas cordas, Gismonti
desenvolveu uma maneira não temperada de raciocinar o violão.
Sobre o estilo interpretativo derivado da obra violonística de Gismonti, a
pesquisa apresentou diversas observações que podem auxiliar intérpretes que
pretendem executar esse repertório. Analisar particularidades específicas da
performance de Gismonti, como o virtuosismo, não traz grandes utilidades. Porém,
aspectos como a sonoridade, a independência das mãos, a articulação, as acentuações,
a agógica e a técnica trouxeram questões de grande valia para a compreensão desse
repertório, dentre as quais destacaríamos a articulação e acentuação do dedo polegar
nas cordas reentrantes; a busca por novas sonoridades com o uso dos harmônicos,
sobretudo nos superagudos; a técnica do escovado sobre os power chords; a digitação
de mão esquerda na execução de paralelismos, tanto melódicos, quanto harmônicos; e
a independência das mãos em ações coordenadas entre percussões, tappings, arpejos,
harmônicos e pedais.
144 Estas constatações confirmam a primeira hipótese levantada pela pesquisa.
145 Estes procedimentos confirmam a segunda hipótese levantada pela pesquisa.
157 Somando-se a essas questões, vimos que a improvisação apresenta-se
como um elemento determinante no estilo interpretativo de Gismonti, que influi
diretamente na estrutura da composição. Destacamos a liberdade formal e a liberdade
rítmica como manifestações da improvisação nas obras analisadas. Na primeira,
vimos como Gismonti apropria-se da condição de intérprete-compositor para mudar o
“rumo da prosa” da composição durante a performance. A ordem das seções são
cambiáveis e dentro delas próprias também há pequenas mudanças, como a não
realização de determinados ritornelos ou até mesmo a supressão de eventos musicais.
Na segunda, vimos como o ritmo realizado em arpejos e percussões são utilizados de
maneira improvisada e verificamos como a liberdade rítmica pode afetar a
regularidade da estrutura métrica da composição. Nesse último ponto, destacamos a
contribuição do uso polegar nas cordas reentrantes, gerando os ditos ritmos
acrescentados.
Apesar da improvisação ser um elemento recorrente no estilo
interpretativo de Gismonti, ela não é uma determinação para o intérprete que deseja
executar sua obra. A análise em torno dos aspectos improvisatórios serve para termos
uma dimensão da linguagem interpretativa de Gismonti, na qual a música deve ser
compreendida como um processo em constante movimento, portanto, um produto
transitório. Nesse sentido, a constatação da improvisação serve como um convite para
que o intérprete tenha um olhar mais dinâmico e flexível sobre a obra que deseja
interpretar, podendo intervir em qualquer esfera do arranjo.
Um dos objetivos da pesquisa foi compreender a trajetória da linguagem
violonística de Gismonti e do seu estilo interpretativo ao longo de sua discografia. Ao
final, observamos que não houve grandes mudanças em seus maneirismos
instrumentais. Elementos estruturais em sua música, como os pedais, os harmônicos,
os ostinatos com cordas soltas e ligados, as scordaturas e os acordes paralelos, já
estavam presentes em gravações remotas com o violão tradicional de 6 cordas. Com o
acréscimo de mais cordas e o uso de afinações reentrantes, esses elementos foram
apenas redimensionados em sua linguagem. Nesse sentido, ao ouvirmos as gravações
mais remotas, é inevitável constatarmos o óbvio: trata-se do mesmo intérprete e
compositor dos dias atuais!146
146 Esta conclusão confirma a terceira hipótese levantada pela pesquisa. 158 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Discos
GISMONTI, Egberto. 1969. Brasil: Polygram/Philips, 1969. LP
___________. Sonho 70. Brasil: Phonogram/Philips/Fontana, 1970. LP
___________. Orfeo Novo. Alemanha: Corona Music Jazz, 1971. LP
___________. Água e Vinho. Brasil: EMI – Odeon, 1972. LP
___________. Árvore. Brasil: Odeon/Carmo, 1973. LP
___________. Academia de Danças. Brasil: EMI – Odeon, 1974. LP
___________. Corações Futuristas. Brasil: EMI – Odeon, 1976. LP
GISMONTI, Egberto; HORN, Paul. EUA: CBS/Black Sun, 1976. LP
GISMONTI, Egberto; VASCONCELOS, Naná. Dança das Cabeças. Noruega: ECM
Records, 1977. LP
GISMONTI, Egberto. Carmo. Brasil: EMI – Odeon, 1977. LP
___________. Sol do Meio Dia. Noruega: ECM Records, 1978. LP
___________. Nó Caipira. Brasil: EMI – Odeon/Carmo Produções Artísticas, 1978.
CD
___________. Solo. Noruega: ECM Records, 1979. LP
___________. Sanfona. . Noruega: ECM Records, 1981. LP
___________. Circense. Brasil: EMI – Odeon, 1980. LP
GISMONTI, Egberto; GARBAREK, Jan; HADEN, Charlie. Mágico. Noruega: ECM
Records, 1980. LP
GISMONTI, Egberto. Em Família. Brasil: EMI – Odeon, 1981. LP
GISMONTI, Egberto; GARBAREK, Jan; HADEN, Charlie. Folk Songs. Noruega:
ECM Records, 1985. LP
GISMONTI, Egberto. Fantasia. Brasil: EMI – Odeon, 1982. LP
___________. Cidade Coração. Brasil: EMI – Odeon, 1983. LP
___________. Bandeira do Brasil. Brasil: EMI – Odeon, 1984. LP
163 GISMONTI, Egberto; VASCONCELOS, Naná. Duas Vozes. Noruega: ECM Records,
1985. LP
GISMONTI, Egberto. Trem Capira. Brasil: EMI – Odeon, 1985. LP
___________. Alma. Brasil: EMI – Odeon, 1986. LP
___________. Feixe de Luz. Brasil: EMI – Odeon, 1988. LP
___________. Dança dos Escravos. Noruega: ECM Records, 1989. LP
___________. Infância. Noruega: ECM Records, 1991. CD
___________. Amazônia. Brasil: EMI – Odeon, 1991. LP
___________. Casa das Andorinhas. Brasil: EMI – Odeon, 1992. CD
___________. El Viaje. Argentina: Milan Sur, 1992. CD
___________. Música de Sobrevivência. Noruega: ECM Records, 1993. CD
___________. Zig Zag. Noruega: ECM Records, 1996. CD
___________. Meeting Point. Noruega: ECM Records, 1997. CD
GISMONTI, Egberto; HADEN, Charlie. Egberto Gismonti & Charlie Haden at
Montreal Festival. Noruega: ECM Records, 2001. CD
GISMONTI, Egberto; GISMONTI, Alexandre. Saudações – CD 2: Dueto de Violões.
Noruega: ECM Records/Carmo Produções Artísticas, 2009. CD
GISMONTI, Egberto; GARBAREK, Jan; HADEN, Charlie. Carta de Amor.
Noruega: ECM Records, 2012. CD
Vídeos
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<https://www.youtube.com/watch?v=RI4uZ9J402U> acessado em 8/6/2016.
__________. Dança das Cabeças. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=K1EwZPvdmvw> acessado em 8/6/2016.
__________. Cego Aderaldo. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=4TIkp7N0CX8> acessado em 8/6/2016.
__________. Selva Amazônica. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=ReHB2RGjfrY> acessado em 8/6/2016.
__________. Em Família. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=1B7NT1MCD2c> acessado em 8/6/2016.
__________. Dança dos Escravos. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=8pKq52OFvuU> acessado em 8/6/2016.
__________. Dança dos Escravos. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=ZUFMHi7r57Q> acessado em 8/6/2016.
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<https://www.youtube.com/watch?v=Cjhw4V1wPqw> acessado em 8/6/2016
__________. Consolação/Berimbau. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=NSXgs5fIT54> acessado em 8/6/2016.
__________. Oncotô entrevista Egberto Gismonti. Disponível em:
<http://www.panfletosdanovaera.com.br/detalhe/4310> Acessado em 18/11/2015.
TELLES, Lucas. Salvador. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=oUeGu_KGL0Q> Acessado em 18/11/2015
164 165 ANEXO A – ENTREVISTA COM EGBERTO GISMONTI
1. Sobre as modificação no violão
Eu tenho um ponto de vista sobre o violão, que eu experimentei varias
soluções, uma delas foi expandir o número de cordas. Modificar a posição das cordas,
que é muito condicionante ao ponto de vista de criação, de escrita e de vícios. Eu
conheço razoavelmente orquestra hoje em dia, porque eu faço isso a vinte anos sem
parar. Acho que o violão é o instrumento mais viciado que existe sobre o ponto de
vista da execução, do ater, do comportamento e etc. Isso não é uma crítica negativa, é
uma crítica que pretende-se ser positiva.
Eu comecei a achar que estava faltando extensão. Porque eu venho de
piano eu não venho de violão. Então faltava coisa: ‘esse Mi aqui está alto de mais, eu
quero uma coisa mais grave, não é possível’. E agudo... tá bom, mas se a escala
tivesse mais três, quatro ou cinco trastes ajudaria também o raciocínio musical. Tudo
começa quando eu estou em Nova Friburgo, estudando violão de forma autodidata
absoluta, porque o que eu podia era transferir os conhecimentos teóricos de piano, os
estudos, os Beringers (...). Eu fiz todos eles no violão. Eu não tinha o que fazer
porque eu não sabia como que estudava violão. Mas eu tinha uma audição muito boa
e um solfejo muito bom, porque eu tive um professor que não foi brincadeira. Dulce
Vaz Siqueira e Aurélio Silveira, são os dois professores de piano. (...) E o violão foi
evoluindo, até que eu cheguei e esbarrei: ‘mas cadê a nota grave? Cadê não sei o
que?’. Isso nos anos sessenta e seis ou sete. Eu tinha seis ou sete anos de violão...
caseiro! (...) E ai cheguei as afinações por experimentação. Como não existia outro
violão além de 7 cordas, porque eu descobri o choro. Eu sai a caça de um sujeito que
chamava não sei o que Romão não sei de quê. Que era um luthier com um violão
ruim, precário! (...) Eu disse: ‘eu quero um violão que tenha um traste e uma escala
gorda, maior assim.’ (...) ‘Quantas cordas?’, ‘Bota oito’. Eu digo, aumentar duas em
seis já é uma imensidão. ‘Então que largura?’, ‘Mais ou menos igual lá o de seis, aí
você imagina e pega mais duas e aumenta.’ Um negócio feito assim, uma galega
danada, o violão desafinava que é uma beleza! Não tinha demarcação de traste certo.
(...) Aí chegou o violão de oito. Aí eu digo: ‘bom eu já toco um pouco do seis cordas,
não vou mudar muito essas seis cordas aí porque se não eu vou ficar maluco’. Aí
esticava uma corda, aí um outro ‘não uso uma corda de cello’. Aí usava e não dava
166 certo. Tudo isso sozinho porque não tinha a quem recorrer. Um belo dia alguém me
dá uma corda de marca maxxima, alemã. Que não cordas feitas sob medida. E eu
ponho ela na mais grave e começo a afinar, afinar e por uma decisão sem nenhum
critério técnico eu digo ‘essa corda tá com uma tensão proporcional as outras e ela
está afinada um quinta abaixo da sexta, era um lá’. E afinava bem de mais, era uma
beleza de corda. Aí comecei a tocar, com o espaço vazio da sétima. E alguém disse: ‘
vamos arranjar uma de sete cordas e você bota um Dó e fica Mi, Dó e Lá.’ Digo ‘Ah
boa ideia!’ Aí experimentei e digo ‘mas não faz o menor sentido isso, quero outra
corda aqui, não quero essa não’. Eu não sabia porque. (...) Um belo dia eu disse ‘eu
tenho que tentar alguma coisa aqui, eu não sei o que eu vou fazer’ Aí tinha um corda,
besta, de nylon dessas ai. (...) Aí botei e sai afinando (...) eu não sabia direito onde é
que eu ia afinar. E era uma corda três, era uma terceira corda. Eu fui afinando... e
parei no lá. E digo ‘ah que engraçado, tem duas oitavas de extensão, interessante
isso’. E levei um tempo, viu? Eu não tinha certeza, mas levei um tempo . E tudo o que
eu fiz no início, usando o violão de 8 cordas com essa afinação normal, deu um
resultado profissional excepcional. (...) O primeiro disco que eu gravei com isso, eu
não explorava ainda como parte do violão a ser tocável. Eu tocava muito pouco,
apesar de ter traste e tudo. Então eu usava muito cordas soltas, soltas soltas. E gravei
um disco, que aliás é o único na minha vida que chegou a um número que nenhum
carmense, por mais bêbado que estivesse, imaginaria que o disco ia vender 1 milhão
de discos, que é o Dança das Cabeças. “Eu gravei isso com o maluco do meu amigo
Naná Vasconcelos e não tinha uma partitura pronta. Tinha uma ideia: dois curumins
andando numa floresta, pronto! E o troço começou a resultar e eu digo ‘mas essa
corda aqui é excepcional, mas isso aqui eu vou ter que mudar, as vezes eu quero uma
coisa de Sol também, porque só esse lá tá muito chato. E comecei a achar que estava
muito chato. E nesse andanças, aí já estou em meados dos anos 70. Andanças
europeias, eu sempre saia para ir em lojas de instrumento e loja de violão era o que
mais tinha na época. (...) Um dia eu entro em uma loja em Córdoba e digo ‘eu estou
procurando um instrumento de mas cuerdas’. (...) ‘Ah tem um que toca o Narcise
Ypes. O Yepes toca em um violão e 10 cordas muito bonito’. (...) ‘Quanto custa?’,
‘Tanto’ e paguei e levei o instrumento, tirei as quatro cordas graves. Então aqui eu
tenho um violão e aqui eu tenho espaço suficiente para procurar. E ai foi um processo
que não está fundamentado em método nenhum, (....) porque quando você não tem
167 onde se basear. O meu conceito era todo piano, meu negócio era, eu queria um piano
com cara de violão.
A escolha das cordas é puramente musical. E por que mais cordas? É
porque eu ficava muito aborrecido por causa da extensão que não andava. Não andava
em relação ao que eu normalmente estudava e tocava.
2. Pelo piano ser definido como um instrumento de percussão, você acredita
esse dado tem alguma relação com o fato de você levar muitos elementos
percussivos para a sua linguagem violonística?
Não, o instrumento de percussão é tudo o que bate, que pinça e etc. O
violão também seria um também. Eu como não tenho uma experiência profunda com
outros instrumentos, apenas de tocar um pouco de flauta, clarinete e etc. Mas eu não
tenho... não sou um solista, a ponto de entrar e ficar uma hora tocando e me dá como
satisfeito. A coisa de ser percussivo é o princípio da construção do instrumento. Não
existe violão que não pince. Existem violões, e eu tô fazendo isso, que você tem duas
funções simultâneas. Uma de piano, batendo em cordas, pra isso eu tive que chegar
em um braço desenhado com uma altura de traste que é meio quadrada, arredondada...
é uma confusão danada, pra não ficar [demonstra o barulho de ruído]. E uma mão
direita que está pinçando ao mesmo tempo.
O fato do violão, dentro do meu conceito de polifonia e polirritmia, não
disponibilizar mais de duas vozes compostas. Voz composta é aquela que bifurca as
vezes [solfeja]. No meu conceito não tem mais de duas vozes compostas, eu fui
diminuindo a maneira de tocar piano, diminuindo o número de notas, acordes e etc... e
comecei a dissolver harmonias e acabei na coisa mais precária, historicamente
falando, que é o contraponto. Eu trabalho com duas vozes em piano e trabalho com
duas vozes no violão. Isso me dá uma dimensão musical que não é pianística e que
não é violonística. Claro que qualquer música pode ser executada em qualquer
instrumento.
168 3. Sobre escrever para outros músicos
Profissionalmente, para outros, eu comecei a escrever umas peças; para
quem eu conheço pessoalmente e sei que tem seriedade suficiente para estudar até
morrer, antes de dar a coisa como pronta, que é o Odair Assad. (...) E escrevi pra ele
duas coisas ou três. Memória e Fado, tem dois violões tocando e é uma pessoa só
tocando. Aquilo não é melhor nem pior, aquilo são dois violões em um. (...) Então, o
piano me leva a pensar os outros instrumentos com essa característica. (...) Aquilo ali
são dois pontos de vista, que é polifonia. É orquestra pura!
4. A música como uma história sendo contada.
Eu considero que cada composição,
tem pequenas aberturas que
possibilitam que se saia um pouco para direita ou para esquerda, mas que na realidade
são bem estruturadas, no sentido de história que está sendo contada. (...) Não gosto de
música pela música. E aprendi isso com uma das maiores musicólogas, ou algumas
das maiores. Na Argentina foi Fedora, no Brasil a Ester Scliar e a terceira a Nádia
Boulanger.
5. A determinação de algo externo para se compor
Essa é uma das músicas que parte de um conceito; depois que eu fiz essa
eu fiz outras. Tem uma outra que chama Dança dos Escravos, que aí tem percussão de
fato tocando e a mão esquerda tocando outra coisa. Mas aí é pianismo puro porque o
piano pode tocar…Ou seja, as músicas de violão, a maioria delas de uns anos pra cá
são feitas sempre em função de alguma necessidade por qualquer que seja o nível de
obrigação. Eu quero chegar no seguinte: eu componho música e eu faço música para
preencher coisas que me são pedidas. Não é a toa que eu fiz trinta filmes, trinta peças
de teatro, vinte e cinco ballets… me pedem para fazer uma coisa e eu sou obrigado a
fazer o mais convincente para o diretor que está pensando o que ele quer. Por mais
que eu tenha descoberto com o passar dos anos que coreógrafos, diretores, são muito
mais abstratos do que parecem, quer dizer, no fundo o fato de não saberem o que
querem, te falam qualquer coisa e você tem que acreditar ou não. Apesar de eu saber
que eles estão me falando o que eles não sabem, eu procuro chegar bem próximo.
169 Então isso me dá um ponto de vista de espectador da música que não é muito normal
em compositor. Quer dizer, eu gosto de olhar aquilo que eu descrevi; como é que
chegou o lundu, dos compositores que eu conheço que fazem música chamada culta,
mais escrita; jamais falariam da estrutura menor, sobretudo quando a música já está
pronta, já tá bem sucedida no sentido de bem executada, então, não gostam de falar
que a coisa é tão simples como ela é. Ela é muito simples mesmo. Aliás, se você
espremer isso, o que vai pingar é o seguinte: tudo que é simples pra você é porque
você faz muito bem feito. Não tem outro jeito. Por isso que eu falo para os meus
filhos “vão ter um concerto, tão com medo? Não entrem no palco. Desmarquem. Vão
pra casa estudar. O problema é de vocês, não é do teatro.”
6. Sobre compor sem o instrumento
Isso me deu uma audição de solfejo muito clara e que me serve. Escrever
para orquestra eu não sento em piano nunca. Porque se sentasse, ou até pra escrever
para piano, eu vou condicionar o que eu sei tocar, e eu não quero. Ninguém pode
pensar que sentando no piano e tocando, tá tocando uma orquestra porque não tá
tocando orquestra.
Eu não acho que o violão seja um propulsor de ideias para a composição.
Eu não acho que seja necessário ter o instrumento ao lado. Memória e Fado e Choro,
que o Odair já toca os dois, se eu sentasse no violão eu taria (sic) lascado, porque eu
jamais admitiria que aquilo ali pudesse ser tocado. Então eu parto sempre do escrever.
Claro que eu tenho um parâmetro de violão e de outros instrumentos, então não vai
inventar o que é impossível. O violão depois serviu muito pra definir o que que eu
tinha que retirar da ideia ou acrescentar na ideia. No caso Memória e Fado foi isso.
No caso de coisas minhas (...). Lundu eu queria que tivesse como centro
emocional os atabaques tocados em lundu. Eu tenho músicas com nome do gênero
musical. Maracatu, por exemplo, eu passei semanas rabiscando, indo ao piano,
rabiscando... até que o piano transformou-se no caixa do maracatu, é só isso.(...)
Enquanto o piano não tocou isso eu digo ‘não serve pra ser maracatu’. E no caso de
Lundu, (...) pra que eu tenha os atabaques que são feitos, não com madeira de grandes
qualidades e as amarrações são feitas com cordas, no lundu eles tem som moco. Som
moco é aquele que não tem ressonância, que cai no pé. (...) Pra conseguir som moco
170 no violão eu tenho que usar a técnica pianística e não violonística, que vem a ser o
que? (...) pra conseguir que o som seja curto eu tenho que fazer [solfeja].
Quando cheguei a essa conclusão, pra que o violão não fique
desiquilibrado, no corpo, eu tenho que procurar posições que sejam quase idênticas,
que percorram as 10 cordas para cima e para baixo. Porque se eu tiver que trocar de
posição, não vai dar certo isso. Isso tudo antes de compor. Porque tem um mecanismo
para fazer o violão virar um atabaque. Se eu parto da música eu não vou chegar ao
atabaque. Então o meu ponto de vista, mais ou menos concordo com você, porque eu
mais ou menos sou compositor tradicional. Você talvez jamais , se te dessem vinte
possibilidades, você jamais imaginaria que o Lundu nasce da ideia de que o violão
tem que virar um atabaque com um som moco, pra ser o atabaque de madeira ruim
amarrado com corda.
Depois que eu conclui isso ai eu fui pro violão e disse ‘pra que eu tenha
uma posição indo e vindo a vontade aqui, essas cordas vão ter que facilitar uma certa
posição’. Qual é um certa posição que são afinados os atabaques? A maioria dos
atabaques de lundu são afinados em terças e quintas. (...) Então eu vou querer a minha
afinação em quartas, porque que me possibilita fazer as quintas abrindo dois espaços,
dois trastes em cada corda, porque isso vai me dar quinta e quinta, quinta e quinta. E
eu tenho quase que cromática com as quintas.
A música não é feita só com a vontade de fazer. A música é com a
vontade de representar alguma coisa. Isso é um dado também que foge ao pouco,
digamos, ao tradicional. Apesar de eu escrever muito pra orquestra ou muito pra o
que seja, a música nasce a partir de uma obrigação ou determinação.
O contrário também acontece, (...) mas Memória e Fado e o Choro, eu
não pude olhar instrumento. Se eu pego o violão pra pensar, o raciocínio vai onde eu
já sei e eu não quero isso. Eu começo a escrever a música, como ela tem que ser. (...)
Aí eu abro dois pentagramas grandes, as vezes até três, e vou escrevendo tudo o que
precisa ter. Depois achato três em dois, olho a partitura e digo ‘será que isso aqui é
possível?’.
7. Formação musical e trajetória com o violão
Eu tinha que tocar em violão alguma coisa que fosse mais “preciosa” do
que os discos que meu pai trazia. Dilermando Reis, que tocava valsa, eu achava tudo
171 muito bonito, mas eu digo ‘não é isso que eu queria tocar’. E o meu pai, que vinha ao
Rio volte e meia. (...) Ele trazia pra mim discos. (...) E um dia ele trouxe um disco do
Baden Powell chamado O Mundo Musical de Baden Powell. Um disco gravado em
Paris e tal. E eu fiquei fascinado por aquilo e eu falei: ‘que diabo de violão é esse?
Esse é um violão só? Que maravilha! E como que faz essa coisa rítmica?’ Porque
aquilo ali virou uma seção de trezentos ritmistas tocando junto. (...) Eu disse, só tem
uma maneira de eu saber o que é isso. Eu vou transcrever isso. Punha o disco e
transcrevia. Tanto que eu até vir para o Rio de Janeiro, eu achava que violão escrevia
em dois pentagramas e a oitava que tava soando. Eu não sabia que era instrumento
transpositor. (...) E transcrevi o disco inteiro.
E transcrevi o disco do Baden, quando acabei o disco do Baden e ai fiz
um outro disco não sei de quem e aí caiu na minha mão um disco de um norte
americano (...), um violonista gitano, que tocava uma coisa misteriosíssima, que não
era jazz, era outro negócio. E depois apareceu o Garoto (...) e comecei a transcrever
todo mundo. E ai o violão passou a ser um instrumento (...). E ai o violão foi
nascendo como um instrumento de valia.
O violão é parte da estrutura que me sustenta como músico. Violão não é
violino, nem cello, nem viola, nem trompete, sem flauta, oboé, fagote na minha vida.
Violão é igual piano. E esses dois juntos fazem a música que eu penso. (...) Não dá
pra falar de um sem falar do outro. E aí o violão, eu só decidi encordoamento,
afinação, porque o meu estudo de violão inicial… Eu morava em Friburgo, cidade
serrana aqui perto. Duas, três horas de carro. E naquela época durava mais porque a
estrada era pior e tal. E não tinha, como até hoje não tem, orientação, pedagógica séria
para violão. Aliás, só tinha pra piano, que eu estudava, não sei se vocês sabem disso;
que a única filial do conservatório brasileiro de música estava em Friburgo. Então eu
dei a sorte de estar numa cidade que tinha um conservatório brasileiro de música,
onde a partir dos anos que eu estudei no conservatório, a gente tinha um período de
oito anos, no máximo, podiam ser sete, para completar, se diplomar, etc. E depois
mais alguns, quatro, cinco, chamados especialização. E paralelo à esse curso, a gente
estudava no modelo do conservatório de Paris, estudava teoria em geral, solfejo em
geral, contraponto, fuga, composição, orquestração e análises musicais. E como o
conceito era todo francês, se estudava o repertório europeu. Quando eu terminei meus
nove anos e completei com o exame que era feito no Theatro Municipal; a banca no
palco, tinha dois pianos, porque além de todo repertório que tinha que tocar, tinham
172 três concertos que tinham que ser escolhidos qual que seria na hora e tinha um
segundo pianista que lia o segundo piano… Terminei feliz da vida. Ganhei uma bolsa
para ir pra Viena como intérprete de piano. Fui, não pra fazer essa bolsa, mas fui para
trabalhar com uma cantora francesa, atriz, Marie Laforet, não tinha nada que ver com
isso, mas eu não queria ir pra Viena… “O que eu vou fazer em Viena? Não quero
mais saber de estudar piano desse jeito, porque é um catatau de material”. Você deve
saber disso, né? Você sabe, certamente. Quer dizer, ninguém toca (que estudou piano
de fato) ninguém toca dois prelúdios e duas fugas, toca o cravo bem temperado
inteiro. Ninguém toca uma sonata ou duas de Beethoven, toca tudo. Num concerto,
toca no mínimo uns dez. Não é brincadeira o negócio. Eu digo a coisa tradicional e
acadêmica. Então eu tava um pouco cansado disso. Passei por uns professores que me
deram abertura pra pensar diferente, como Jacques Klein na especialização, na
avenida Graça aranha. Eu sempre toquei de cór tudo, porque se eu tenho que ler, tem
mais um despachante no meio. Como eu nunca estudei com o instrumento, só estudo
a partitura e depois eu pego o instrumento porque eu não quero o despachante no
meio.
E aí o violão foi nascendo como um instrumento de valia, porque até…
Na minha cidade lá no interior, no Carmo, o violão era usado assim… Nunca
ninguém sentou sozinho num bar com amigos para tocar violão. Eram quatro tocando
juntos sempre. Violão é meio que um instrumento de integração e quando eles acham
que estão tocando uma música, estão tocando três diferente. Ninguém toca a mesma
coisa, então… O conceito de música de câmara é mais moderno, é Charles Ives. Cada
um toca uma coisa e sabe a letra, né? Bom, o violão foi evoluindo até que eu cheguei
e esbarrei e “cadê a nota grave? Cadê não sei o quê?”. Isso nos anos sessenta e seis,
sete… Eu tinha seis, sete anos de violão. Caseiro. Caseiro continua, mas enfim…
Mais caseiro do que… Eu digo “mas como é que eu vou fazer aqui, não tô
entendendo.”
8. Tom Jobim e Baden Powell
O Tom um dia apareceu no Geraldo e o Geraldo disse assim: “Tom, você
vai ouvir aqui um músico extraordinário”. E o Tom Jobim já era o Tom Jobim. Já
tinha feito tudo na vida, o Frank Sinatra e o diabo. E o Tom, benevolente como
poucos, sentou e disse “espere, eu vou pegar uma dose de whisky antes de você
173 começar”, e eu comecei a tocar. Violão, piano, piano, violão; toquei umas músicas
dele e tal. Terminou, ele disse assim “Geraldo, eu posso levar o menino lá pra casa?
Paulinho tem que ouvir ele um pouco.” Passei dois, três dias na casa dele e ele ligou
pro Baden e disse “Baden, vem aqui em casa que você vai conhecer um violonista”.
Então você imagina, Tom Jobim… Menino, como eu, sentado... ouvir o Tom dizer
“vem conhecer um violonista”, eu fiquei morrendo de medo. E quando Baden chegou,
eu fiquei muito sem graça e o Baden disse “o Tom disse que você sabe tocar muito
bem”, e eu “é, é, mais ou menos”, e ele disse “então toca aí”. E eu não sabia o que
tocar. E eu comecei a tocar tudo o que eu tinha transcrito dele no Mundo Musical [de
Banden Powell]. Comecei com o Choro para Metrônomo, que aquilo é uma encrenca
danada e ha trinta anos atrás, muito mais encrenca ainda. E eu transcrevi tudo.
Quando acabou ele disse assim “quem te ensinou a tocar isso?”, eu disse “ué,
ninguém me ensinou não, eu tirei do seu disco”, e ele “mas como tirou do disco?”
Não era uma época comum na qual as pessoas mexessem com música escrita, né? Ou
não falavam sobre isso, todo mundo era muito autodidata. E, resumo da ópera é que
essa liberdade de mexer na música do Baden que me levou a mexer nas minhas
músicas, me deu um aprendizado que eu trago até hoje. Eu estou falando de Salvador.
Tem que falar de um monte de coisa porque as minhas coisas não acontecem assim,
são lentas e progressivas. Regravar coisas, refazer coisas me levou a ter hoje uma
discoteca, que está dentro dessas gavetas aqui, um monte de coisas em cima do
piano…
9. Sobre o raciocínio não temperado no violão
E fui descobrindo que tinha dificuldades que eu não tinha noção do que
era aquilo como dificuldade, né? Porque piano você tem uma visão global e é um
instrumento temperado. (...) Eu quando sento não tenho um raciocínio de nada que
não seja temperado. Quando eu pego o violão eu tenho um raciocínio oposto. Apesar
de traste, mas aquilo ali só delimita o possível lugar que a nota vai soar direito.
Certeza você não tem nenhuma.
174 10. Turíbio Santos e Villa-Lobos
Ah bom, tem um dado aí sobre o conservatório brasileiro de música.
Quando eu ganhei a bolsa e depois fui pra Paris, não pela bolsa mas fui pra Paris;
quando eu sentei com Nadia Boulanger, depois de meia hora de conversa ela disse
assim: “estou muito impressionada e desolé, entristecida de vê-lo como um rapaz com
muito talento de música que não sabe nada da música brasileira.” Eu tinha estudado
no conservatório francês, que a gente chamava de brasileiro de música. Então eu sabia
que tinha Villa-Lobos… Villa-Lobos era aquele tipo que pegava uma vassoura no
estádio do Vasco... solfejo… canto orfeônico pra reger criança, era coisa política e eu
ouvi isso a vida inteira. Não estava relacionando com música. Claro que tinha as
Bachianas, que eu já tinha ouvido… Até porque nos últimos anos de piano, a gente
ganha senhas, carnê aliás, pra assistir - na época - assistirmos concertos ao meio dia,
onze horas, dez horas da manhã, no Municipal, com repertório vasto e sempre tinha
um brasileiro no meio. Foi lá, inclusive, que eu conheci Mário Tavares que eu pensei
que fosse só um bom regente; Mário Tavares é um grande compositor que nem todo
mundo conhece. Lá em conheci Guerra Peixe, lá eu fui conhecer o Radamés Gnattali.
Fui conhecer todo mundo e todos muito benevolentes.
Custou muito tempo, aí eu tomei um susto danado sobre o negócio do
Villa-Lobos. E pouco a pouco, morando em Paris eu descobri alguém que tinha um
ponto de vista sobre o Brasil, muito valioso e para violão, que é o senhor Turíbio
Santos. Sentamos (...) e o Turíbio disse: ‘ahh eu queria que você escrevesse umas
peças para mim. Eu gostaria de fazer um repertório...” (...) E escrevi umas músicas
como Central Guitar, por exemplo que é dedicada à ele, depois Variações para
Guitarra. E o Turíbio foi de uma franqueza, que na época eu não entendi, com vinte
anos não vai entender com facilidade um não né? Não é tão fácil. Mas ele me disse:
‘olhe essa sua música, eu vou fazer de tudo para ela ser bem executada por um monte
de gente. Vou querer que ela esteja na minha coleção da Max Eschig e vou querer
que você assine um contrato com a Max Eschig como compositor, para ter coisas
editadas. Porque eu sinto que a sua música é maravilhosa. Mas eu não tenho preparo
para tocar. Não é técnica, eu não tenho a crença de que essa música possa me
representar. Isso é de uma beleza!! Pouca gente que não convive com Turíbio sabe
que o Turíbio é um sujeito que tem essa dimensão e conhece os próprios limites, que
não são poucos e pequenos, são muito largos. Quer dizer, um sujeito que espalha
175 Villa-Lobos nos quatro cantos da França a ponto de invadir a Europa inteira, não é
brincadeira.
E conheci o Turíbio, no que conheci o Turíbio (...) aí ele começou a me
mostrar e no primeiro dia que ele me mostrou alguma coisa ele me mostrou todos os
prelúdios e uma coisa atrás da outra. Mas que compositor! Pera, deixa eu conhecer
esse compositor aqui. Eu sabia, claro, tinha as Bachianas e tal que eu já tinha ouvido.
- Você chegou a tocar alguma coisa pra violão do Villa-Lobos?
Toquei tudo. Turíbio me fez a cabeça. (...) Toquei coisa como o diabo, do Villa.
11. Benevolência
Essa geração; eu tô falando porque eu tenho dois filhos de trinta e poucos
que é mais ou menos a mesma coisa, eles ressentem de uma coisa que eles me
ouviram falar a vida inteira que é a benevolência de pessoas. Eu conto pra eles, o
Baden, o Tom, o Guerra-Peixe, o Radamés… Eu sei que vinte e nove são
responsáveis por eu ter tido coragem de fazer uma música que todo mundo dizia “isso
é muito ruim, isso é maluco. Ninguém vai gostar disso”, e eles me deram o apoio. Eu
acho que hoje em dia tem muito pouco…, né? Todo mundo apressado. Quer chegar
naquela cadeira e corre que não tá percebendo que já passou por ela trinta vezes e não
viu, né?
12. Experimentações com scordaturas e afinações reentrantes.
Meu conceito era todo piano. Meu negócio é que eu queria um piano com
cara de violão, era o que eu queria. E comecei a experimentar e disse assim “tem que
ter uma corda melhor do que esse Lá aqui aí procurei a fábrica da maxxima e pus e
disse: vocês fariam uma corda que chegasse a oitava abaixo à sexta?”, “não, só
fazemos até o fá, sétima abaixo.” Eu pensei “como alemão é muito chato, muito
teimoso, essa corda vai ser o meu mi, tá na cara que isso é meu mi”. Comprei uma, fui
pro hotel… Quando aquilo fez [solfeja], eu disse “ah, eu não to acreditando nisso.” Eu
digo “bom, então aquela lá vai ficar na oitava”. Porque eu queria uma
176 correspondência de alturas. Mal sabendo que entre a sexta e a décima, iriam entrar
duas cordas agudas. E aí eu lembrei da terceira corda que uma vez eu montei lá e
depois eu digo “eu vou colocar com um semi tom e porque isso vai me criar tríades
que o violão não tem. Aí, eu pianista pensando - nesse momento ele cantarola - isso
não tem em violão. Eu disse “isso aqui vai me possibilitar coisas…” e fui mexendo,
mexendo. E hoje em dia eu uso mais de uma afinação. Mas não são tantas não. Tem
uma afinação que expandiu o violão pra outro lado que eu nunca tinha imaginado, que
aí possibilitou entrar percussão pra valer. Que é praticamente em quartas, as cordas
normais, fá dó sol ré, e algumas, as quatro graves, ao invés de lá lá, fá sustenido ou
sol na nona, fá ou mi na décima… É que eu to escrevendo, tô compondo. Quando eu
vou pro violão eu digo “ih, mas essa nota repetida aqui, eu preciso dela. Como é que
eu vou conseguir isso, hein? Não faz sentido apoiar de alguma forma apoiar aquela
corda, aquela nota”. Aí eu não tenho a menor dúvida. Vou lá, afino ela não sei o que e
refaço a digitação do resto inteiro. Tem certos pontos culminantes que a nota tem que
ter, ela solta, ainda mais no violão.
E hoje em dia, eu uso mais de uma afinação, mas não são tantas não. Tem
uma afinação que expandiu o violão para um lado que eu nunca tinha imaginado, que
ai possibilitou entrar a percussão pra valer, que é praticamente em quartas. (...) E
como eu tenho uma audição boa e adquiri mais técnica do violão que eu toco, eu pude
me dar ao luxo de desafinar algumas cordas, né? Pensar em uma outra afinação.
Desafina e ele passa a ser transpositor não mais do instrumento que se escreve oitava
acima e, sim, de notas outras que estão transpostas em relação a posições que eu
tenho.
13. Encordoamento
E eu fui apertando corda pra direita, corda pra esquerda, “o que eu vou
fazer com isso aqui? Jogo fora… E entrou na última fase, isso já tem quinze anos, que
eu descobri que eu não precisava usar as cordas de nylon desencapadas, nenhuma das
cordas que eu sempre comprava. Uma vez eu tava em Saquarema, onde eu tinha uma
casa e meus filhos eram miúdos ainda, a gente estava brincando na praia, eles tinham
oito, nove anos… E alguém tava pescando com molinete e quando acabou jogou o
molinete no chão. E eu me aproximei daquilo, peguei na corda e disse “isso parece
um sol… Posso levar? Ele disse pode, desculpa, joguei o lixo e eu disse: não o lixo tá
177 ótimo.” Então a escolha das cordas é puramente musical e o porquê mais cordas é
porque eu ficava muito aborrecido por causa da extensão que não andava. Não andava
em relação ao que eu normalmente estudava e tocava.
A primeira e a segunda [cordas do violão de 12 estão em uníssono]…
Quando eu consigo [encordoamneto] 0.0.8 e que eu to com muito boa disposição eu
oitavo a primeira, segunda também. O grande problema é que torna o violão pesado
pra diabo e o braço daquilo ali tem duas oitavas inteiras, isso significa que o cavalete
é mais dentro do corpo e que as coisas ficam muito mais pesadas… E a mão direita,
que a gente habitua… Apesar de eu não ser violonista, eu tenho o hábito de tocar na
posição certa. Nesse violão você teria que trazer a mão muito mais pro lado esquerdo
e começa a ficar meio fora de posição porque o cavalete é meio adiantado. Pra esse
violão aí, eu suspendo o pé. Ponho mais dois, três centímetros que força o violão a
ficar mais inclinado senão eu não vou aguentar ficar assim, né? Aí força a mão a ficar
numa posição mais paralela às cordas e tal.
14. Influência de Ralph Towner
O de doze, originalmente, foi o Ralph Towner que fez pra mim quando a
gente fez uma turnê juntos. Terminou e eu fui à São Paulo no Sugiyama e consegui
convencê-lo a fazer uma viola de doze cordas para nylon. Ele disse “eu não quero
fazer”, mas eu “não, é para um amigo meu, o Ralph Towner, que toca muito bem”,
mal sabendo que ele, Ralph Towner tinha mandado fazer um violão de oito cordas de
aço com quatro duplas que aí ele estaria me dando o instrumento que é o instrumento
que ele toca que é a viola de doze cordas e o de oito cordas que sou eu que toco. Aí eu
afinei e fiz um jeito de afinar que coube perfeitamente. E afinado em ré transpositor
pra ter essas oitavas todas de extensão pra poder usar a corda 08, porque a corda 09
aqui arrebentaria a mão e o próprio instrumento.
15. Arranjos feito por outros violonistas e a manutenção da tonalidade
original
O João e o Douglas do Brasil Guitar Duo, que são muito amigos e tal, de
vez em quando eles vem. Aí passam o dia aqui, o dia inteiro pra gente corrigir…
Porque eles estão montando um disco com coisas minhas e eu dou as partituras de
178 orquestra e eles usam como os Assad usavam sempre, né? Tocavam as orquestras e
depois corrigia. Não é o conceito de adaptação mas as vezes faltava, sobrava nota…
Mas o João tá fazendo uma coisa que foge da regra também de violonista que eu to
adorando: o João sabe que a tonalidade determina a composição. Então se a música é
feita em sol bemol, ela é sol bemol. Ele mantém as tonalidades originais todas. Porque
quem escreve composição; quem escreve tá ouvindo notas e as notas são as notas que
tá ouvindo, não tá ouvindo o intervalo só. E quando muda a tonalidade eu fico: “ó, tá
tudo muito bem, mas vocês gravaram doze, treze, quatorze no tom completamente
errado”... “Não, mas ninguém nota”... eu disse “eu noto”.
16. Transcrições e arranjo
O troço do lundu, do atabaque, do som mouco, tem o mesmo grau de
dificuldade ou de complexidade ou de raciocínio ou de responsabilidade, que eu agora
to fazendo transcrições… Sabe quem é a Sonia Rubinsky? Pianista; aquela imensa
amiga… Em Paris a gente sempre vai pra casa dela, fica tocando… Eu resolvi fazer
transcrições de um compositor que eu adoro, já fiz homenagens com música sinfônica
que é o Carlos Gesualdo, dos madrigais… Eu tô transcrevendo madrigais do Gesualdo
para piano e como não pretendo que a transcrição do piano tenha nenhuma parecênça
com a música coral, apesar de piano ter uma adoração, aquela ressonância… mas não
é isso. Piano não é isso. Você não pode modificar o instrumento. Ou seja, na minha
cabeça não tem isso de jogar um monte de bola de gude, pedaço de ferro e tocar em
cima... que deixa de ser piano. Isso eu não quero. Eu sou muito tradicional com
negócio de instrumento. Pra fazer os madrigais, eu resolvi que eles estariam sendo
cantados no nordeste brasileiro no lugar mais seco que tem, que não vai ter
ressonância nenhuma. Pronto. Isso muda o conceito que nasce dentro da inquisição
quando aumenta o tamanho das igrejas e o catolicismo determina que as igrejas vão
ficar maiores e que ao invés de uma pessoa cantando, tem duas, tem três, até que
conclui que o melhor mesmo seria cantar duas coisas diferentes mas que rodasse
sempre, não parasse nunca, não tivesse pausa nunca. Aí é o negócio da ressonância
que junta com o gótico, desenho, arquitetura. Pronto. Eu tirei isso tudo e a música de
Gesualdo que é uma maravilha de música, da pra tocar no piano como Glenn Gould
toca Bach, sem pedal, sem nada. Não é cravo. A música dele é tão forte que precisa de
piano. Não é cravo. Cravo não presta pra isso porque é muito delicado. Não presta
179 para o lundu. Eu tô te dando parâmetros diferentes mas eu to falando de violão de
uma certa forma, mas eu não posso falar de violão só. O violão é parte da estrutura
que me sustenta como músico. Violão não é violino, nem cello, nem viola, nem
trompete, flauta, oboé, fagote, na minha vida. Violão é igual piano. E esses dois
juntos fazem a música que eu penso. Então não dá pra falar de um sem falar do outro.
17. Sobre as fôrmas de mão esquerda
O violão é cheio de códigos, né? Você faz assim, faz assado... é tudo
código. (...) O Que você toca aqui, você toca aqui.... apenas o sentimento, sonoridade
etc, é diferente mas... você tem códigos! Bem definidos.
18. Sobre a interpretação de Lundu
Você sabe como se processa o Lundu quando eu toco aquilo? Você talvez
nunca tenha pensado que a mão esquerda tem que pensar piano. Piano é instrumento
de força numa alavanca. Pra alavanca levantar o martelo e bater. (...) Você tem que
treinar a mão esquerda sem instrumento. Se você não treinar (...) o [dedo] mínimo,
por exemplo, você não vai nunca ter força pra sustentar o som moco. (...) O mínimo
vai fazer abrir a nota e você não vai saber tocá-lo junto com a mão direita e tirar ao
mesmo tempo. Isso não é o hábito violonístico.
A liberdade que você está se referindo é sobretudo as duas vozes e a
acentuação, porque a acentuação que determina a polifonia e polirritmia. Dentro do
Lundu eu posso raciocinar em dois, ou em três ou em seis, ou o que seja, mas eu
posso colocar os acentos uma semicolcheia sempre pra frente. Aí o Lundu
descaracteriza e passa a ser outra coisa.
19. Análise de interpretação através de gravações
Te dar um exemplo, tem duas caixinhas ali de discos, uma tem o
Toscanini e a outra tem o Vladimir Horowitz. Isso são as primeiras gravações das
composições a partir da década de trinta, quarenta. E por que que eu tenho isso? Pra
entender como é que a música foi feita. Que a música foi feita; o compositor tá cheio
de razão quando faz, acha que foi a melhor coisa do mundo até que a música começa
180 a ser tocada e ela ganha uma vida independente do compositor. O meu entendimento é
muito simples de música. É assim: o Vladimir Horowitz... dentro daquela caixinha
tem os vinte e dois concertos que ele fez no Carnegie Hall onde se repetem vinte
peças no mínimo. E nada melhor do que você ouvi-lo tocando aos vinte anos, aos
vinte e três, aos vinte e nove, aos trinta e cinco. Você entende como é que a música
modifica totalmente ele.
Ravel... eu tenho as primeiras gravações da obra de Ravel. E os
andamentos não tem nada que ver com os andamentos que as músicas se
transformaram. Pra mim é muito longe. Dentro do Toscanini… que isso aí é toda a
obra que ele gravou com a orquestra RCA [aponta para estante]. Ele foi diretor da
filarmônica de Berlim, do Scala de Milão e da RCA dos Estados Unidos. E aquilo ali
é a coleção de noventa e dois CDs de tudo que ele gravou com a RCA. E eu fui
diretamente na nona sinfonia para resolver um problema que eu trazia nas costas ha
dez anos. Eu li e originalmente a nona sinfonia foi escrita pra coral e orquestra pra
setenta e um músicos. Setenta e uma pessoas, pronto. Entre quatorze instrumentistas.
Eu digo “mas não é possível. Aquilo com setenta músicos não é possível.
Considerando o coral, virou música de câmara”.
Karajan, por exemplo, fazendo só de coral trezentos e quarenta pessoas
cantando e tal. Eu ouvi e descobri que a nona sinfonia não tem, originalmente, o
espírito heróico que o Karajan deu. Ficou fácil de entender, porque o Karajan era um
nazista de mão cheia então foi fácil entender que ele transformou aquilo num hino ao
nazismo e etc. Agora, você ouvir o original, demonstra não só a solidez mas a
fragilidade do compositor. É isso que me interessa em composição.
20. Sobre as recriações e regravações
Eu não fiz 69 discos (e o número 70 vai sair agora) não é a toa. Porque
todas as regravações que eu fiz (...), nos primeiros oito ou nove discos tem umas
quatro músicas que se repetiram... dois anos depois, repetiram de outra maneira.
Como eu nunca fui do ramo da música e muito menos do métier da música, (...) eu
refazia para consertar o que eu tinha considerado errado, um, dois, três disco atrás.
Não é muito comum. O sujeito grava a música x e dois anos depois regrava a música
x diferente, porque declara (e eu sempre declarei isso, não é de hoje não)... eu tô
fazendo porque estava errado. ‘Mas como errado?’ É porque eu acertei na época, eu
181 estava feliz na época; eu achei que estava uma beleza... depois eu achei que estava
horrível e fui refazendo. Tem até disco meu (...), o mais marcante chama Corações
Futuristas, que o disco saiu... seis meses depois saiu a segunda versão do disco....
com capa, de outra cor inclusive, escrito: segunda mixagem. Eu sempre tive tanta
liberdade na decisão da música, que eu sempre quis que ela tivesse mais atualizada
possível. Não tem nada a ver com modernidade.... é atualizada. Depois eu parei de
fazer isso porque a chance que me apareceu pra fazer uma quantidade imensa de
discos... não dava pra ficar corrigindo todos os outros discos, se não ia ter uma
confusão danada.
A fragilidade, a vulnerabilidade… Porque a música que eu faço, ela só é
boa ou ela só é ruim porque você ouviu e disse que ela é boa ou ruim. Porque não é
vantagem nenhuma eu achar que eu tô uma beleza. Que eu sou um compositor
maravilhoso. E eu não termino nada que eu não ache que esteja um espetáculo. As
vezes é um desastre absoluto que eu mesmo corrijo. Se tem a oportunidade, eu vou lá
e refaço pra fazer direito, em relação ao que eu havia pensado. Então essa coisa de
fazer e desfazer foi me dando uma convivência com música que foi muito além de
tudo o que eu poderia imaginar. E a prova dos nove dessa história me foi dada de
forma concreta, absoluta, a três, quatro meses. Existe uma revista nos Estados Unidos,
de música, que não é uma revista como é o livro dos recordes, mas tem uma seção na
revista destinada à coisas inusitadas de música. E uma música minha ganhou um setor
por uma razão que acho que responde a sua pergunta. Eu tenho uma música chamada
Bodas de Prata, que eles listaram e disseram assim: “isto é fora de qualquer regra”. A
música foi gravada em setenta e cinco… Eu tava passando nos Estados Unidos; o
Airton Moreira me levou à muitos lugares e acabou me levando na casa do Herbie
Hancook e lá pelas tantas, ele disse assim: “nós temos hoje à noite um encontro com a
Sarah Vaughan, cantora Sarah Vaughan de jazz, uma beleza”.
Resumo da ópera, eu fui e ele disse: “toque pra ela aquelas suas canções”,
e uma delas era Bodas de Prata. E ela disse “que música louca que troca de acordes a
cada três segundos. Por que que tem tanto acorde?” e eu “porque eu não sei ficar
parado”. Aquelas brincadeiras. E ela disse “quero gravar isso”. E eu fui no estúdio no
dia seguinte e toquei com ela. Isso foi setenta e tal. Passaram-se trinta anos, essa
música foi gravada de Sarah Vaughan, passando por três, quatro, cinco cantoras
incluindo Keith Wallace, a própria Flora, Jane Duboc… Saxofonistas como Wayne
Shorter, como Jan Garbarek,... Que foi virando, virando, até que chegou e foi gravada
182 pelo Yo-Yo Ma também e tocada pela Martha Argerich, porque eu escrevi para dois
pianos pro festival dela e fomos tocar juntos. E isso foi publicado dizendo assim: a
música pode não ter fronteira nenhuma. E acrescentaram dizendo: e ocasionalmente,
noventa por cento das gravações, é o mesmo pianista tocando a mesma música ( Que
sou eu). Isso é uma coisa que responde a pergunta de repetir, não repetir, fazer… A
música não é feita pra uma pessoa tocar. A música é pra ser tocada por qualquer
pessoa, de qualquer forma. É assim que é o meu pensamento. Quando eu faço
Memória e Fado pro Odair e um monte de gente… No Japão tem três ou quatro
duetos de violão que eu conheci, que vão ao hotel e ficam lá parados quinze horas na
porta, que sentaram e tocaram o Memória e Fado do Odair em dois violões. Tava
beleza também. O meu negócio é que a música minha ou de qualquer outra pessoa
não pare. Esse é que é meu interesse.
21. Leo Brouwer
Ele pegou quatro, cinco arranjos que eu já tinha feito, refez os arranjos,
acrescentou quatro violões e botou orquestra de cordas e fez dez estudos para piano,
que são chamados Diez Bocetos para Piano, dos quais sete são dedicados pra mim,
que é uma maneira que eu toco, polirrítmica em piano e chama Gismontiana, a tal
peça, e o outro chama Exercício de Piano, que são músicas. Ou seja, a música se
modifica tanto que ela passou pela mão de um sujeito que é meu amigo e é um dos
ídolos que eu tenho pelo comportamento que ele tem, dignidade que ele tem com
música. O Léo, aquilo ali, eu não conheço ninguém tão reto com a música. É a música
em primeiro lugar, segundo e terceiro. O resto vem depois. E como a gente é muito
amigo, eu sei que ele é assim. Então eu tenho uma admiração danada e a música vai
se mudando, porque a música, depois de feita, independe do compositor. E se o
compositor é burro o suficiente pra teimar que deveria ser como ele tá pretendendo, a
música dele não vai viver nunca. Vide Anton Webern, que eu gosto demais de ler
Webern, eu não gosto de escutar Webern. Eu leio tudo dele. Que as soluções técnicas
que ele dá são maravilhosas. Vocês sabem da história dele, que ele fez orquestração
de uma fuga e apresentou e ninguém reconheceu nada. Maravilhoso. Porque é o
timbre que vale. Eu digo, o modernismo está no timbre, sobretudo. No que ele mudou
o timbre, Bach deixou de ser Bach. Os caras só perceberam minutos depois. Enfim,
isso é mais te respondendo porque que a música se mexe. Porque ela tem vida própria.
183 Música é um negócio espetacular. Quer dizer, isso que você tá fazendo não resolve
diretamente nada na sua vida, nada na minha, mas abre uma janela que você vai
continuar usando pra outras coisas e eu também, e por consequência que você abriu
uma janela pra você, você abriu pra todo mundo que vai te ouvir. É lindo. O processo
é esse.
22. Gravação
Sabe um negócio de músico que reclama sempre de microfone na hora de
gravação? Eu tive gravadora. Montei uma gravadora chamada Carmo que produziu
quarenta e tal discos e eu não fiz pra ser bonzinho com ninguém não. Eu fiz porque eu
queria entender melhor o comportamento dos músicos. Sobretudo os amigos
próximos que eu tinha. E descobri que a maioria dos músicos reclamam muito de
microfonação, quando não estão prontos pra tocar. A culpa cai sempre no técnico. A
coisa mais comum que tem é o músico falar “ih, fui gravar, ficou uma porcaria, o
técnico era horrível, o microfone era horrível, o estúdio era horrível”, é tudo sempre
horrível. E eu prefiro partir das coisas muito simples. Eu parto numa gravadora fora
chamada ECM Records, que é uma companhia que trabalha com música chamada
culta e música improvisada, música folclórica, música de todo tipo, sem
discriminação nenhuma. Você vai ter desde Arvo Pärt, vai ter Steve Reich, vai ter
todo mundo misturado até com a minha proposta de fazermos berimbau e orquestra.
Ele [Manfred Eicher] não sabia o que era berimbau e quando eu falei o que era, ele
disse “mas isso é um instrumento?” e eu disse “é, o instrumento na mão dele é como
se fosse um Pablo Casals tocando cello, pronto. Comparação não tem. E ele um dia;
eu perguntando sobre a qualidade de som, a qualidade da companhia, “qual é a
técnica?” e ele disse “tem vários pontos de vista. O que eu prefiro, vou te explicar
fazendo uma pergunta”. E isso que ele falou serve pra instrumento, serve pra tudo na
minha vida. Ele disse assim “você tem um cassete mono em casa?”, eu digo “tenho”.
“Você já gravou alguma vez nesse cassete?”, eu digo “já”. “Gostou?”, eu disse “ah,
tem umas coisas ótimas”, e ele “então a melhor gravação é essa. A melhor gravação é
a que você toca e fica feliz. Não é a que ficou bem gravada. Se foi bem gravada,
melhor. Se você tá feliz e sabe o que você quer…”
184 23. Sobre o palco e o respeito ao público
Conheço poucos violonistas que apesar de estarem atrás da cortina antes
de um concerto, esperando… A plateia já está lá… Já deu o primeiro sinal, o segundo;
e ele tá afinando, tá afinando, tá afinando, tá afinando e quando ele entra no palco, ele
demora três quatro minutos para começar. O meu ponto de vista não é do violonista, o
meu ponto de vista é de quem sai de casa. Eu tenho uma absoluta devoção ao público.
Não é só do ponto de vista comercial não. Eu descobri, rodando o mundo, que tinha
que se arranjar alguma fórmula que me compensasse o sacrifício de viajar tanto.
Porque isso pode ser muito bom pra mãe, pro pai, pra tia, “rodou o mundo, foi não sei
aonde”, mas por conta disso eu acabei descobrindo uma medida que me compensa em
relação ao público que é a minha cidade natal, do ponto de vista romântico, eu só
tenho lembrança dela com dois mil habitantes, três mil habitantes... o Carmo. Eu sei
que tem oito, nove mil hoje, até porque eu frequento. Mas cada lugar que eu chego, eu
olho nas salas assim e [penso] “hoje tem um Carmo, hoje tem meio Carmo”. É porque
eu sei e tenho consciência de que se eu fiz uma carreira, apesar de cheio de
companhias envolvidas, editoras, o diabo a quatro, eu fiz uma carreira fundamentada
na sustentação pessoal e financeira que me deram os espectadores no mundo todo. Por
conta disso… Aliás, meus filhos aprenderam essa lição muito. Quando tinham 14, 15
anos; tocavam uma música só cada um e eu disse “tá na hora de turnê, vambora.” E
eles acabavam nem tocando. Não tocavam nada, mas aprendiam o que era palco. Tem
uma linha divisória que a gente não enxerga entre fora do palco e dentro do palco.
Entrando e ultrapassando essa linha, o pensamento só pode ser um, que se tiver uma
pessoa, quinhentas, mil, quatro mil, dez mil, etc… São pessoas que anotaram numa
agenda que “dia tal fulano vai tocar e eu quero ver.” No dia específico tomaram
banho a tempo, comeram a tempo, pegaram uma condução qualquer, estacionaram ou
não; fila, compraram ingresso; entraram, sentaram e quando você entra no palco, sem
exceção, o público está sorrindo para quem vai tocar. Com expectativas grandes, que
a tradução eu tenho como seguinte: “Escuta, ô fulano que está no palco, eu tô te
dando o que tem de mais precioso na minha vida que é o meu tempo. E por conta
disso, eu não aceito certas atitudes como essa de violonistas em geral que entram e
aumentam em três, quatro minutos, a expectativa de quem está ouvindo. O violão é
um instrumento que foge à realidade dos solistas no mundo. O violão não tem…
Existe um vídeo do Julian Bream forçando o Stravinsky a ouvir (todo mundo conhece
185 esse vídeo) antes de uma leitura de uma peça importante. O stravinsky diz “não, peraí,
sai pra lá.” Isso é uma coisa muito de violonista. Não é crítico o seu ponto de vista.
Seu ponto de vista ‘ser violonista’. Mas como eu tenho o piano e tenho a orquestra
como instrumentos principais na minha vida, o violão passou o sê-lo… Mas eu
comparo e digo assim “tem coisas em violão que não podem existir. Na minha
apresentação, não. Eu chego ao absurdo de carregar um luthier comigo viajando. Pra
que o violão… Eu toco dois ou três, eu viajo com dois ou três… Um está comigo. Eu
não uso estante pra colocar violão, nada disso. Eu entro com um, que eu acabei de
afinar, eu entro e toco. E caso o violão desafine, eu considero que isso é um acaso de
destino e acabou. Se eu puder afinar, eu afino. Se eu não puder, eu vou até o fim e
depois afino. Isso não muda grande coisa para quem tá ouvindo, mas muda pra
sensação de que, “puxa, mas essa gente dedica tanto tempo a se preparar…” Porque
as filas são insuportáveis hoje pra tudo. O seu tempo de vida que você dá pra tudo é
outra coisa insuportável. Porque é insuportável. Cada um de nós que fica num trânsito
preso, numa fila de banco, numa fila de feira… Não interessa que fila; Não gosta. E
eu considero que as pessoas que vão nos dar o seu tempo como profissão… Claro que
eles recebem de troco alguma coisa e nos dão de troco muito mais que o tempo, mas
eu considero isso… Daí eu tento separar do seu ponto de vista sociológico e musical,
porque eu não misturo essas duas coisas. Então é o ponto de vista de um pianista e
não de um violonista.
24. Música dodecafônica
Música contemporânea era toda aquela que eles chamavam de
contemporânea. Aí passou, não deu muito certo como linguagem; não deu muito certo
do seu ponto de vista atrativo à vida. E eu tô falando baseado nos estudos que eu fiz
durante meu período longo na França, que eu fiquei um ano morando lá, além da
Nadia Boulanger eu fui estudar com Jean Barraqué, que era discípulo de Anton
Webern. E quando vim pro Brasil, fiz a tradução do Introdução à Música dos Doze
Sons que é a bíblia dos Doze Sons, do René Leibowitz, e nunca foi editado. A rádio
MEC me pediu isso. E o Edino Krieger na época, não sei o quê… Nunca foi editado
porque eu fui procurando adaptar a linguagem do livro à história nossa de
miscigenação, de ter que ter uma relação, né? A miscigenação é uma inquietação do
186 dodecafonismo dentro da história sociológica do princípio do século passado. E
acabou que o livro provava, no fim, que não era possível admitir que essa música
existisse, essa música dodecafônica. E é claro que eles riram muito quando eu dei ao
Edino [Krieger], na época, ele leu e disse assim “essa sua tradução é fabulosa, ela
contradiz tudo. Já conversou com o Koellreutter?”, eu disse “não, deixa o Koellreutter
quieto lá na dele. Não quero essa discussão e tal”.
25. Estudo com instrumentos mudos
E isso aí serve pra mim pra qualquer coisa. Por exemplo, aqui embaixo,
que eu tenho o segundo andar aqui embaixo, eu tenho um piano grande, ali dentro eu
tenho um Stanley três quartos, e eu comprei um Baldwin, que é o pior piano que tem
porque eu só gosto de estudar… É um piano mudo. Eu tenho um piano mudo aqui,
mas como eu gosto de piano mudo mesmo em forma de piano, o Baldwin; eu boto
feltro em cima e ele faz [cantarola]... e é ruim demais. Mas tem entre cinquenta e uma
a quarenta e oito gramas, o teclado e eu estudo assim. Meus vizinhos todos perguntam
“você mudou? Não tá mais morando aqui?”, eu digo “to”. E eles, “estuda?”, eu digo
“estudo”, porque não ouve nada, né? Ali, tem um violãozinho aqui dentro de uma
caixinha, que o Mario Jorge Passos fez pra mim que é a cópia… Isso é violão mudo…
Isso eu carregava nos anos oitenta, noventa; eu carregava na minha bolsa, isso e meu
piano mudo que é essa caixinha aqui. O negócio de técnica de piano… Primeiro que
eu estudo música sem instrumento. Eu prefiro. Seja pra ler, seja pra tocar piano, eu
prefiro sem instrumento. Então o instrumento é usado num momento apropriado que o
instrumento deve ser usado. O que eu preciso é que os dedos estejam em forma,
preparados pra tocar; e também eu não tenho nenhuma organização de estudar todos
os dias. Isso é minha discussão com a Sônia [Rubinsky]. “Mas como você não estuda
todo dia durante seis horas?”, eu digo “tá maluca? Se eu fizer isso eu não vou cuidar
de editora, eu não vou cuidar de nada, eu não vou viver minha vida. Deixa pra lá.”
Quando, por exemplo, eu cheguei dessa turnê da Ásia; foi massacrante. Turnê na Ásia
é o cão. Cheguei e tô acabando meu retiro de instrumento, de tudo. Já to no meu
quinto, sexto dia que não quero saber de nada disso.
187 ANEXO B – TRANSCRIÇÃO DA OBRA SALVADOR (VIOLÃO DE 8 CORDAS)
Afinação:
6º Ré
7º Lá aguda
8º Lá
Violão de
8 cordas
8
Salvador
Trascrito do disco Solo
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202 203 ANEXO C – TRANSCRIÇÃO DA OBRA LUNDU (VIOLÃO DE 10 CORDAS)
Afinação:
1º Fá
2º Dó
6º Ré
7º Lá aguda
8º Lá
9º Sol aguda
10º Fá
Violão de
10 cordas
Lundu
Transcrito do disco Dança dos Escravos
Egberto Gismonti
Trasc. Juliano Camara
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213 ANEXO D –
Quadro 3 – A presença do violão na discografia de Egberto Gismonti
Disco
Ano
Obras
Característica
1969
1969
Salvador
Solista com
acompanhamento
de outros
instrumentos
Sonho 70
1970
Pr’um Samba
Acompanhador
Computador
Acompanhador
Clama-Claro
Acompanhador
Estudo Nº5
Câmara
Parque Laje
Câmara
Indi
Acompanhador
O Mercador de
Acompanhador
Serpentes
Orfeo Novo
Lendas
Acompanhador
Pêndulo
Câmara
Indi
Acompanhador
Parque Laje
Câmara
Salvador
Câmara
Três Retratos para
Câmara
1971
Flauta e Violão
Consolação/Berimbau147
Solista com
acompanhamento
de outros
instrumentos
Água e Vinho
1972
Lendas
Acompanhador
Federico
Acompanhador
Pr’um Samba
Acompanhador
147 Composições de Baden Powell e Vinicius de Moraes. 214 Árvore
1973
Eterna
Câmara
Mulher Rendeira148
Acompanhador
Luzes da Ribalta
Acompanhador
Memória e Fado
Acompanhador
Encontro no Bar
Acompanhador
Variações sobre um
Acompanhador
Tema e Leo Brouwer149
Academia de
1974
Danças
Salvador
Câmara
Palácio de Pinturas
Câmara
Jardim de Prazeres
Acompanhador
Celebração de Núpcias
Câmara
A Porta Encantada
Câmara
Scheherazade
Câmara
Continuidade dos
Câmara
Parques
Corações
1975
Futuristas
Dança das Cabeças
Câmara
Café
Câmara
Carmo
Dança das
1976
Cabeças
Dança das Cabeças
Solista
Celebração de Núpcias
Solista
A Porta Encantada
Solista
Fé Cega, Faca
Solista
Amolada
The Altitude Of
1976
150
Dança das Cabeças
Câmara
The Sun – Egberto
Carmo
Câmara
Gismonti e Paul
Parque Laje
Câmara
Salvador
Câmara
Café
Acompanhador
Apesar de Tudo
Acompanhador
151
Horn
Carmo
1977
148 Composições de Zé do Norte. 149 Esta é uma adaptação feita por Egberto que mistura elementos do Estudo Nº1 de Leo Brouwer e
Cravo e Canela de Milton Nascimento. 150 Obra de Milton Nascimento 151 Este disco foi gravado em parceria com o flautista norte americano Paul Horn. 215 Sol do Meio Dia
Nó Caipira
Solo
Sanfona
Circense
Mágico
Em Família
1978
1978
1979
1980
1980
1980
1981
152 Composição de Geraldo Carneiro e P. Reis. 153 Composição de Jan Garbarek. Feliz Ano Novo
Acompanhador
As Primaveras
Acompanhador
Cristiana
Câmara
Palácio de Pinturas
Câmara
Raga
Solista
Café
Câmara
Dança Solitária Nº2
Solista
Saudações
Acompanhador
Nó Caipira
Câmara
Selva Amazônica
Solista
Selva Amazônica
Solista
Salvador
Solista
Em Família
Câmara
Dança dos Pés
Câmara
Eterna
Câmara
De Repente
Solista
Cavaquinho
Solista
12 de Fevereiro
Solista
Carta de Amor
Solista
Karatê
Câmara
Cego Aderaldo
Câmara
Mágico
Câmara
Ciranda
Câmara
Bailarina152
Câmara
Mágico
Câmara
Spor153
Câmara
Em Família
Câmara
Choro
Câmara
Auto-Retrato
Acompanhador
Branquinho/Passarinho
Acompanhador
216 11/06/81 (Feito em
Acompanhador
Casa)
Folk Songs
Fantasia
1981
1982
Folk Song154
Câmara
Cego Aderaldo
Câmara
Velen155
Câmara
Dois Violões
Câmara
Para John e Paco
Câmara
Cidade Coração
1983
Carta de Amor
Câmara
Duas Vozes156
1984
Aquarela do Brasil157
Câmara
Rio de Janeiro
Câmara
Dançando
Solista
Fogueira
Solista
Bianca
Solista
1984
-
-
Trem Caipira
1985
-
-
Alma
1986
-
-
Feixe de Luz
1988
-
-
O Pagador de
1988
-
-
1989
Valsa de Francisca I
Câmara
Mutação
Solista
Dois Violões
Câmara
Lundu
Solista
O Trenzinho do Caipira
Solista
Egberto Gismonti
– Bandeira do
Brasil158
Promessas159
Kuarup
Dança dos
Escravos
1989
(de Bachianas
Brasileiras Nº2)160
154 Adaptação de Jan Garbarek. 155 Composição de Jan Garbarek. 156 Neste disco Egberto também grava com a Dilruba, instrumento semelhante a Cítara. 157 Obra de Ary Barroso. 158 Neste disco não há a presença do violão, porém Gismonti gravou cítara e dilruba. 159 Trilha sonora da minissérie homônima ao disco apresentada pela Rede Globo. 217 Infância
1991
Alegrinho
Solista
Dança dos Escravos
Solista
Salvador
Solista
Memória e Fado
Solista
Dança dos Escravos
Solista com
acompanhamento
de violoncelo e
contrabaixo
Dança Nº1
Solista com
acompanhamento
de violoncelo e
contrabaixo
Dança Nº2
Solista com
acompanhamento
de violoncelo e
contrabaixo
Amazônia
Forró Na Beira Da Mata
Câmara
Ciranda no Céu
Câmara
Ao Redor Da Fogueira
Câmara
1992
-
-
El Viaje161
1992
-
-
Música de
1993
Carmen
Câmara
Bianca
Câmara
Lundu #2
Câmara
Alegrinho #2
Câmara
Zig Zag
Câmara
Mestiço e Caboclo
Câmara
Carta de Amor
Câmara
Orixás
Câmara
Casa das
1991
Andorinhas
Sobrevivência
Zig Zag
1996
160 Obra de Heitor Villa-Lobos 161 Este disco contém a trilha sonora do filme argentino homônimo, dirigido por Fernando E. Solanas.
O disco também contém obras de A. Piazzolla e do próprio diretor do filme. 218 Meeting Point
1997
-
-
Egberto Gismonti
2001
Salvador
Câmara
e Charlie Haden at
First Song162
Câmara
Montreal festival
Em Família
Câmara
2009
-
-
2009
Lundu
Câmara
(Dueto de
Mestiço e Caboclo
Câmara
Violões)
Dois Violões
Câmara
Dança dos Escravos
Câmara
Zig Zag
Câmara
Carmen
Câmara
Águas e Dança
Câmara
Saudações
Solista
Carta de Amor
Câmara
La Pasionaria164
Câmara
Cego Aderaldo
Câmara
Folk Song165
Câmara
Spor166
Câmara
Branquinho
Câmara
Two Folk Songs167
Câmara
Carta de Amor, var.
Câmara
Saudações – CD 1
(Sertões Veredas –
Tributo à
Miscigenação)
Saudações – CD 2
Mágico – Carta de
2012
Amor163
162 Obra de Charlie Haden. Embora tenha sido lançado em 2012 este disco foi gravado ao vivo em 1981. de Charlie Haden. 165 Adaptação de Jan Garbarek. 166 Composição de Jan Garbarek. 167 Adaptação de Jan Garbarek. 163
164 Obra
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