UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ESCOLA DE MÚSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: PRÁTICAS INTERPRETATIVAS A Composição e a Performance Violonística de Egberto Gismonti Juliano Camara Santos Rio de Janeiro 2016 2 Juliano Camara Santos A Composição e a Performance Violonística de Egberto Gismonti Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre. Orientadora: Marcia Ermelindo Taborda Rio de Janeiro 2016 3 Juliano Camara Santos A Composição e a Performance Violonística de Egberto Gismonti Rio de Janeiro, 4 de julho de 2016 BANCA EXAMINADORA Profa. Marcia Ermelindo Taborda (orientadora) Prof. Fábio Adour da Camara (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Prof. Flávio Terrigno Barbeitas (Universidade Federal de Minas Gerais) 4 Ao meu pai Joaquim Santos, por me mostrar os caminhos da “música de sobrevivência”. 5 AGRADECIMENTOS A minha família, por ter me ensinado que qualquer forma de utopia vale a pena. Agradeço especialmente a minha mãe, Isabel Camara, pelo companheirismo e ao meu pai, Joaquim Santos, por ter me mostrado a força da música e a beleza de nossa profissão. A minha orientadora Marcia Taborda, pela confiança depositada nesse projeto e pelos enriquecedores debates ao longo da pesquisa. Agradeço, sobretudo, pela amizade que desfrutamos ao longo desses últimos anos. A toda banca examinadora – Paula da Matta, Flávio Barbeitas e Fábio Adour – pela atenciosa disponibilidade em colaborar com essa pesquisa. Em especial à Fábio Adour pelas referências e pela ajuda nas questões relativas à estrutura métrica. A secretaria do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e à CAPES pelo suporte financeiro ao longo do último ano do curso. Ao compositor Egberto Gismonti, pela disponibilidade em me receber em sua residência para uma longa entrevista. A Alexandre Gismonti, pela recente amizade e parceria. Pelas longas conversas que forneceram inestimáveis subsídios para essa pesquisa e pelo empréstimo do violão de 8 cordas, indispensável para a realização das transcrições das gravações. A Nicolas de Souza Barros, pelo empréstimo do violão de 10 cordas, sem ele não teria sido possível realizar esse trabalho com a profundidade que eu gostaria. A professora Sara Cohen pelas enriquecedoras aulas sobre ritmo, que forneceram os subsídios teóricos necessários para o desenvolvimento de uma parte importante da pesquisa. Aos amigos do projeto Violões de Tiradentes: Eduardo Pinheiro, Bernardo Marcondes, Luã Belik e Gabriel Pitta, que sempre estiveram presentes na minha vida e que, por razões inexplicáveis do destino, tornaram-se parceiros de profissão. Agradeço por crescermos juntos e por vocês terem topado realizar a 6º edição do nosso projeto com o tema da minha pesquisa. A Sara Marinho, pela ajuda nas transcrições da entrevista. 6 RESUMO Esta pesquisa tem como objetivo definir quais são os elementos que caracterizam as obras para violão e a performance violonística de Egberto Gismonti. Devido a ausência de partituras relativas à esse repertório e ao fato de que esse intérpretecompositor reconstrói as suas obras a cada nova performance, foi necessário uma profunda investigação sobre a dialética entre interpretação e composição na obra musical desse autor. Para esse fim, utilizamos como referencial teórico os conceitos de processo e produto concebidos por Nicholas Cook. Após estabelecermos os parâmetros gerais que caracterizam o relacionamento entre o ato de compor e o ato de interpretar, pesquisamos os elementos particulares que compõem a linguagem violonística de Gismonti e o estilo interpretativo inerente à ela. A partir do referencial teórico fornecido por Daniel Wilkinson, sobre o uso das gravações como uma ferramenta na compreensão do estilo interpretativo, utilizamos a discografia de Gismonti para identificarmos as recorrências dos maneirismos violonísticos próprios deste compositor. Palavras-chave: Egberto Gismonti; violão de 10 cordas; afinação reentrante. 7 ABSTRACT This research aims to define what are the elements that characterize the works for guitar and guitaristic performances of Egberto Gismonti. Due to the absence of scores related to this repertoire and the fact that the performer/composer reconstructs his works with each new performance, it was necessary to investigate the dialectics between interpretation and composition in the musical works of this author. For this purpose, we use as a theoretical reference the process and product concepts designed by Nicholas Cook. After we set the general parameters that characterize the relationship between the act of writing and the act of interpreting in Gismonti, we research the particular elements that make up the guitaristic language of Gismonti and it’s inherent interpretive style. From the theoretical framework provided by Daniel Wilkinson, on the use of recordings as a tool in understanding the interpretive style, we use the Gismont’s discography to identify recurrences of guitaristic mannerisms specific to this composer. Keywords: Egberto Gismonti; 10 string guitar; reentrant tuning. 8 LISTAS DE FIGURAS Figura 1 – Posição dos dedos da mão direita para realizar os harmônicos...........104 Figura 2 – Posição das mãos para realizar a percussão nas cordas.......................122 Figura 3 – Fôrma da mão esquerda na posição aberta...........................................140 Figura 4 – Fôrma da mão esquerda na posição fechada.........................................143 9 LISTAS DE EXEMPLOS MUSICAIS Exemplo. 1 – Afinação do violão de 10 cordas (Dança das Cabeças e Em Família)..........................................................................................87 Exemplo. 2 – Afinação do violão de 10 cordas (Salvador).........................................89 Exemplo. 3 – Afinação do violão de 10 cordas (Lundu e Danças dos Escravos).......89 Exemplo. 4 – Afinação do violão de 14 cordas (Dança dos Escravos).......................90 Exemplo. 5 – Afinação do violão de 12 cordas (Selva Amazônica)............................90 Exemplo. 6 – Afinação do violão de 12 cordas (De Repente e Cego Aderaldo).........91 Exemplo. 7 – Afinação do violão de 6 cordas com scordatura (Encontro no Bar).....92 Exemplo. 8 – Dança das Cabeças (Performance II); Minutagem: 0’09’’; Andamento: 86 BPM; 10 cordas............................................................93 Exemplo. 9 – Bianca (Duas Vozes); Minutagem: 1’02’’; Andamento: 74 BPM; 10 cordas...............................................................................................94 Exemplo. 10 – Lendas (Orfeo Novo); Minutagem: 0’20’’; Andamento: 85 BPM; 6 cordas.................................................................................................95 Exemplo. 11 – 2º mov. de Três retratos para Flauta e Violão (Orfeo Novo); Minutagem: 1’26’’; Andamento: 96 BPM; 6 cordas...........................96 Exemplo. 12 – Cego Aderaldo (Folk Songs); Minutagem: 0’50’’; Andamento: 85 BPM; 12 cordas...............................................................................97 Exemplo. 13 – Em Família (todas as gravações); Andamento: 152 BPM; 10 cordas...............................................................................................97 Exemplo. 14 – Dança das Cabeças (Performance II); Minutagem: 0’54’’; Andamento: 175 BPM; 10 cordas........................................................98 Exemplo. 15 – Salvador (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’43’’; Andamento: 171 BPM; 10 cordas........................................................98 Exemplo. 16 – Dança das Cabeças (Performance II); Minutagem: 1’16’’; Andamento: 174 BPM; 10 cordas.....................................................100 Exemplo. 17 – Selva Amazônica (Solo); Minutagem: 2’04’’; Andamento: 87 BPM; 12 cordas.............................................................................101 Exemplo. 18 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 0’; Andamento: 121 BPM; 6 cordas.............................................................................102 Exemplo. 19 – Cego Aderaldo (Folk Songs); Minutagem: 7’32’’; Andamento: 10 65 BPM; 12 cordas............................................................................104 Exemplo. 20 – Cego Aderaldo (resultado sonoro do ex. 19).....................................105 Exemplo. 21 – Dança das Cabeças (Performance I); Minutagem: 3’02’’; Andamento: 107 BPM; 10 cordas......................................................106 Exemplo. 22 – Selva Amazônica (Nó Caipira); Minutagem: 0’17’’; Andamento: 89 BPM; 12 cordas........................................................108 Exemplo. 23 – Selva Amazônica (Performance IV); Início e fim da performance; 12 cordas.............................................................................................109 Exemplo. 24 – Dança das Cabeças (Performance I); Final da performance; 10 cordas.............................................................................................110 Exemplo. 25 – Em Família (Performance V); Minutagem: 3’20’’; Andamento: 145 BPM; 10 cordas.....................................................111 Exemplo. 26 – Dança dos Escravos (Performance VII); Minutagem: 1’10’’; Andamento: 140 BPM; 10 cordas......................................................111 Exemplo. 27 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 1’13’’; Andamento: 121 BPM; 6 cordas........................................................112 Exemplo. 28 – Consolação/Berimbau (Orfeo Novo); Minutagem: 0’; Andamento: 137 BPM; 6 cordas........................................................113 Exemplo. 29 – Em Família (Todas as gravações); 152 BPM; 10 cordas...................116 Exemplo. 30 – Em Família (Performance V); Minutagem: 4’19’’; Andamento: 123 BPM; 10 cordas......................................................116 Exemplo. 31 – Dança das Cabeças (Performance I); Minutagem: 2’12’’; Andamento: 101 BPM; 10 cordas......................................................117 Exemplo. 32 – Selva Amazônica (Solo); Minutagem: 7’17’’; Andamento: 87 BPM; 12 cordas.............................................................................118 Exemplo. 33 – De Repente (Sanfona); Minutagem: 3’52’’; Andamento: 134 BPM; 12 cordas...........................................................................119 Exemplo. 34 – Dança dos Escravos (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’56’’; Andamento: 137 BPM; 14 cordas......................................................120 Exemplo. 35 – Dança dos Escravos (Performance VI); Minutagem: 0’26’’; Andamento: 147 BPM; 10 cordas......................................................121 Exemplo. 36 – Cego Aderaldo (Circense); Minutagem: 1’49’’; Andamento: 100 BPM; 12 cordas......................................................123 Exemplo. 37 – Em Família (Sanfona e Em Família); Minutagem: 0’; 11 Andamento: 152 BPM; 10 cordas......................................................123 Exemplo. 38 – Dançando (Duas Vozes); Minutagem: 3’24’’; Andamento: 111 BPM; 10 cordas..........................................................................124 Exemplo. 39 – Dança dos Escravos (Dança dos Escravos); Minutagem: 8’19’’; Andamento: 146 BPM; 14 cordas......................................................124 Exemplo. 40 – Em Família (Performance V); Minutagem: 5’04’’; Andamento: 117 BPM; 10 cordas...........................................................................126 Exemplo. 41 – Selva Amazônica (Solo); Minutagem: 7’34’’; Andamento: 91 BPM; 12 cordas............................................................................129 Exemplo. 42 – Prelúdio Nº 2 (Villa-Lobos).............................................................130 Exemplo. 43 – Consolação/Berimbau (Orfeo Novo); Minutagem: 1’37’’; Andamento: 137 BPM; 6 cordas.......................................................131 Exemplo. 44 – Jardim de Prazeres (Academia de Danças); Minutagem: 0’29’’; Andamento: 160 BPM; 6 cordas........................................................131 Exemplo. 45 – Retrato Nº 2 para Flauta e Violão (Orfeo Novo); Minutagem: 0’55’’; Andamento: 100 BPM; 6 cordas........................................................132 Exemplo. 46 – Cego Aderaldo (Circense); Minutagem: 2’; Andamento: 100 BPM; 12 cordas............................................................................................132 Exemplo. 47 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 0’9’’; Andamento: 121 BPM; 6 cordas..............................................................................................132 Exemplo. 48 – Salvador (Orfeo Novo); Minutagem: 4’21’’; Andamento: 158 BPM; 6 cordas..............................................................................................133 Exemplo. 49 – Estudo Nº 4 (Villa-Lobos)................................................................134 Exemplo. 50 – Salvador (Dança dos Escravos); Minutagem: 3’13’’; Andamento: 152; 10 cordas................................................................135 Exemplo. 51 – De Repente (Sanfona); Minutagem: 7’09’’; Andamento: 93 BPM; 12 cordas............................................................................................135 Exemplo. 52 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 2’09’’; Andamento: 121 BPM; 6 cordas.............................................................................136 Exemplo. 53 – Lundu (Música de Sobrevivência); Minutagem: 0’; Andamento: 82 BPM; 10 cordas............................................................................137 Exemplo. 54 – Estudo Nº 10 (Villa-Lobos)...............................................................138 Exemplo. 55 – Jardim de Prazeres (Academia de Danças); Minutagem: 0’10’’; Andamento: 160 BPM; 6 cordas........................................................138 12 Exemplo. 56 – Dança dos Escravos (Acompanhamento do segundo violão)...........139 Exemplo. 57 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’; Andamento: 78 BPM; 10 cordas.............................................................................140 Exemplo. 58 – material temático de Lundu extraído.................................................141 Exemplo. 59 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 1’33’’; Andamento: 78 BPM; 10 cordas........................................................142 Exemplo. 60 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’51’’; Andamento: 78 BPM; 10 cordas........................................................144 Exemplo. 61 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 2’01’’; Andamento: 78 BPM; 10 cordas.............................................................................144 Exemplo. 62 – Lundu (Música da Sobrevivência); Minutagem: 2’25”; Andamento: 80 BPM; 10 cordas.......................................................147 Exemplo. 63 – Ciranda/Cego Aderaldo (Performance III); Minutagem: 5’11”; Andamento: 81 BPM; 12 cordas.......................................................148 Exemplo. 64 – Salvador (Solo); Minutagem: 0’50’’; Andamento: 76 BPM; 8 cordas...............................................................................................151 Exemplo. 65 – Salvador (Solo); Minutagem: 0’14’’; Andamento: 76 BPM; 8 cordas...............................................................................................152 Exemplo. 66 – Salvador (Solo); Minutagem: 0’32’’; Andamento: 76 BPM; 8 cordas...............................................................................................153 Exemplo. 67 Quebra do ritmo harmônico com escrita multimétrica.........................153 Exemplo. 68 – Salvador (Solo); Minutagem: 1’16’’; Andamento: 76 BPM; 8 cordas...............................................................................................154 13 LISTAS DE QUADROS Quadro 1 – Linguagem violonística e estilo interpretativo...................................77 Quadro 2 – Obras analisadas.................................................................................80 Quadro 3 – A presença do violão na discografia de Egberto Gismonti...............213 14 SUMÁRIO Página INTRODUÇÃO...........................................................................................................16 CAPÍTULO 1 – ENTRE TEXTOS E CONTEXTOS..................................................19 1.1 O contexto histórico em que Egberto Gismonti inicia sua carreira...............21 1.2 Egberto Gismonti e Mário de Andrade..........................................................24 1.3 A relação obra/compositor/intérprete.............................................................26 1.4 Aspectos da interpretação pianística..............................................................28 1.5 O popular e o erudito.....................................................................................29 1.6 A Improvisação..............................................................................................31 1.7 Corporalidade e a relação entre Egberto Gismonti e Baden Powell..............32 CAPITULO 2 – INTERPRETAÇÃO E COMPOSIÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE PROCESSO E PRODUTO NA OBRA MUSICAL DE EGBERTO GISMONTI.......37 2.1 Significados extramusicais............................................................................40 2.2 Intertextualidades e ritornelos......................................................................42 2.3 Regravações..................................................................................................44 2.4 A gravação enquanto processo......................................................................46 2.5 Interpretar é compor......................................................................................49 CAPÍTULO 3 – LEVANTAMENTO DA PRESENÇA DO VIOLÃO NA OBRA DE EGBERTO GISMONTI...............................................................................................54 3.1 Egberto Gismonti, o Multi-instrumentista.....................................................55 3.2 O violão solista...............................................................................................57 3.3 O violão camerista.........................................................................................64 3.4 O violão acompanhador.................................................................................69 3.5 Arranjo de Egberto Gismonti para violão......................................................71 CAPÍTULO 4 – A LINGUAGEM VIOLONÍSTICA DA OBRA DE EGBERTO GISMONTI E O SEU ESTILO INTERPRETATIVO.................................................73 4.1 Estilo interpretativo.......................................................................................75 4.2 Linguagem violonística.................................................................................77 4.3 Os elementos recorrentes na linguagem violonística e no estilo interpretativo de Egberto Gismonti.....................................................................................................78 4.3.1 A transcrição de gravações e a seleção de obras analisadas.................80 15 4.3.2 As hipóteses de pesquisa......................................................................83 4.3.3 Scordaturas, afinação reentrante e uma proposta de escrita musical..84 4.3.4 A nota pedal e a atuação do polegar.....................................................92 4.3.5 Harmônicos.........................................................................................103 4.3.6 O Tapping e a independência das mãos..............................................114 4.3.7 Percussão.............................................................................................121 4.3.8 Acordes paralelos................................................................................128 4.3.9 Ostinato melódico com ligados e nota pedal......................................136 4.3.10 Melodias nas cordas reentrantes e as fôrmas de mão esquerda.......139 4.3.11 Irregularidade métrica.......................................................................149 CONCLUSÃO ..........................................................................................................155 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................158 REFERÊNCIAS FONOGRÁFICAS E AUDIOVISUAIS........................................162 ANEXO A: ENTREVISTA COM EGBERTO GISMONTI.....................................165 ANEXO B: TRANSCIÇÃO DA OBRA SALVADOR (VIOLÃO DE 8 CORDAS).187 ANEXO C: TRANSCRIÇÃO DA OBRA LUNDU (VIOLÃO DE 10 CORDAS....203 ANEXO D: QUADRO DA PRESENÇA DO VIOLÃO NA DISCOGRAFIA DE EGBERTO GISMONTI.............................................................................................213 16 INTRODUÇÃO O compositor e multinstrumentista Egberto Gismonti1 é uma das figuras mais respeitadas da música brasileira no mundo. É dono de uma discografia gigantesca que em 2016 chegará a marca de 70 discos, ao longo de 50 anos de carreira. Desde a década de 1970, é integrante do seleto catálogo de artistas da gravadora alemã ECM, que oferece suporte para que qualquer música seja gravada, independente de grandes expectativas comerciais. No pequeno cast da ECM, estão nomes como Keith Jarrett, Chick Corea, Pat Metheny e Ralph Towner. Um dos maiores sucessos dessa companhia foi o antológico disco Dança das Cabeças, gravado por Egberto Gismonti em duo com o percussionista Naná Vasconcelos. Tido por críticos do mundo todo como o melhor lançamento do ano, Dança das Cabeças conseguiu um feito espetacular para um disco de música instrumental: atingiu a marca de 1 milhão de cópias vendidas. A obra de Gismonti tem sido reverenciada nos quatro cantos do planeta. Foi gravada por artistas como Sarah Vaughan, Herbie Hancock, Yo Yo Ma, Martha Argerich, Wayne Shorter, Henry Mancini, Elis Regina, Duo Assad, Paco de Lucia, dentre outros. Criador de uma linguagem violonística particular, Gismonti ficou notabilizado pelo uso de violões de 8, 10, 12 e 14 cordas. Embora as obras criadas especificamente para esses instrumentos não sejam interpretadas por outros violonistas com frequência, é evidente o interesse de grandes intérpretes de violão pela sua obra musical como um todo. Em uma pesquisa não aprofundada, constatamos gravações de obras de Gismonti feitas por violonistas como Marco Pereira (Frevo rasgado), Odair Assad (Memória e Fado, arranjo de Egberto Gismonti), Badi Assad (Palhaço, arranjo de Sérgio Assad), Paulo Martelli (Lôro; Água e Vinho, arranjo de Daniel Wolff), Ulisses Rocha (Infância), Aliéksey Vianna (Ritmos e Danças), Paco de Lucia, John Mclaughlin e Al Di Meola (Frevo rasgado); e conjuntos como Brasil Guitar Duo (7 Anéis), Duo Assad (Frevo, Infância, Baião Malandro, Contos de Cordel) e Los Angeles Guitar Quartet (Forrobodó, arranjo de Egberto Gismonti). 1 Nasceu em 5 de dezembro de 1947, na cidade do Carmo (RJ). Seu tio e seu avô eram compositores e seu pai, além de coletor federal, vendia pianos. Gismonti é filho de imigrantes: o pai nasceu no Líbano e a mãe na Itália. Aprendeu a tocar piano muito cedo, tendo cursado o Conservatório Brasileiro de Nova Friburgo. Já o violão apareceu na sua vida na adolescência. 17 Além dos intérpretes, a linguagem da obra de Gismonti tem servido de inspiração para diversos compositores violonistas, dos quais destacamos o célebre Leo Brouwer (Gismontiana), Daniel Murray (disco Autoral) e Chrystian Dozza (Sobre um Tema de Gismonti). Embora a música de Egberto Gismonti tenha bastante ressonância no meio musical violonístico, no âmbito acadêmico brasileiro – até o presente momento – não encontramos nenhuma tese ou dissertação que tenha se debruçado sobre a obra para violão desse compositor2. Por outro lado, é relativamente fácil encontrarmos estudos sobre a sua obra para piano. Por esta razão, a presente pesquisa tem como finalidade suprir uma lacuna na bibliografia sobre o compositor, ao propor as primeiras reflexões em torno da sua obra violonística. No capítulo 1 realizamos a revisão da bibliografia acadêmica sobre Egberto Gismonti. Nessa etapa, observamos diversos aspectos, que vão desde os estudos sobre a sua obra para piano, até questões mais gerais de sua música, como o debate sobre a dicotomia popular x erudito e a relação com a crítica de Mário de Andrade. Também fizemos um levantamento de artigos de jornais do final da década de 1960, para compreender o contexto político, social e artístico no qual Gismonti surge para o público. Dois desafios precisam ser considerados ao estudarmos a obra de Gismonti. O primeiro deles é a escassez de partituras; o segundo é o fato de Egberto ser essencialmente um intérprete-compositor. Quais seriam as consequências desse binômio na sua obra musical? Como a pesquisa contribuirá para o campo da interpretação musical diante da ausência de partituras? O fato é que, além de não existir a sacralização da partitura na música de Gismonti, na qualidade de intérpretecompositor ele toma a liberdade de mudar suas obras a cada nova gravação ou performance ao vivo. Para suprir esses desafios, o Capítulo 2 traz o estudo de Nicholas Cook sobre processo e produto na obra musical, que discute justamente a relação entre interpretação e composição. Nessa etapa, veremos como a música de Gismonti é beneficiada pela confluência dessas duas esferas, criando uma dinâmica particular, que superdimensiona, na obra musical, aspectos como o transitório, o flutuante e o reiterativo. Devido a ausência de partituras, a pesquisa sugere que a discografia de Egberto seja uma fonte fundamental para a compreensão dos processos 2 Após a defesa dessa pesquisa, tomamos conhecimento de dois artigos que foram disponibilizados recentemente. Um deles aborda a obra Cego Aderaldo e o outro Dança das Cabeças. 18 inerentes à sua obra musical, servindo de matéria-prima para os intérpretes interessados nesse repertório. No Capítulo 3, dimensionamos a presença desse instrumento na obra musical de Gismonti como um todo. Para isso, tomamos a iniciativa de elaborar um catálogo no qual as composições para violão foram divididas em três categorias: violão solista, violão camerista e violão acompanhador. Após adquirir uma consciência da dimensão do violão na obra musical de Gismonti, tanto do ponto de vista qualitativo quanto quantitativo, a pesquisa imerge na sua etapa mais prática. O Capítulo 4 teve como finalidade promover, de maneira objetiva, a compreensão dos elementos que constituem o binômio composição e interpretação na obra para violão de Gismonti. Para nos limitarmos somente ao universo desse instrumento, optamos por utilizar terminologias mais oportunas, que seriam correlatas à essas duas esferas: linguagem violonística e estilo interpretativo. Utilizando os estudos de Daniel Wilkinson, acerca da importância das gravações na compreensão do estilo interpretativo, recorremos à discografia e à gravações ao vivo como fontes de pesquisa. Procuramos identificar nas gravações de Gismonti, em distintas épocas, as recorrências de elementos musicais que fossem particulares à sua linguagem violonística e ao estilo interpretativo. Para esse intuito, foram transcritos 56 fragmentos musicais retirados de 15 obras. Para cada obra, utilizamos mais de uma gravação como referência, totalizando 30 gravações, as quais foram realizadas entre os anos de 1971 a 2008. Pela ausência de partituras, a transcrição tornou-se um imperativo, impondo a necessidade de propormos uma forma de escrita musical compatível com os violões de 8, 10, 12 e 14 cordas arquitetados por Gismonti. Sobre a singularidade da estrutura desses violões, foram investigados os possíveis ganhos na linguagem violonística com a ampliação das cordas e, consequentemente, os aperfeiçoamentos de aspectos interpretativos. Por outro lado, também examinamos se determinados elementos inerentes à linguagem violonística e o estilo interpretativo de Gismonti já estavam presentes na sua obra para violão antes das experiências com violões diferenciados do tradicional de 6 cordas. Outra fonte de pesquisa utilizada foi a entrevista com o compositor. Nela constatamos a intrigante relação entre o piano e o violão no pensamento musical de Gismonti. Analisamos quais são os elementos da linguagem pianística que se manifestam na sua obra para violão e verificamos como esta circularidade acabou gerando uma linguagem violonística singular. 19 CAPÍTULO 1 – ENTRE TEXTOS E CONTEXTOS Os estudos acerca da obra de Egberto Gismonti são relativamente recentes. O primeiro trabalho acadêmico de que temos referência foi a dissertação de mestrado intitulada Dança das Cabeças – A Trajetória Musical de Egberto Gismonti (VILELA, 1998). Apesar disso, cada vez mais autores demonstram interesse em pesquisar esta obra e este artista. Durante a revisão da bibliografia, observamos que a maior parte dos estudos, na área de práticas interpretativas, são voltados para a obra pianística. Embora algumas pesquisas citem obras de Egberto para violão, identificamos apenas uma tese de doutorado, na área da educação musical3, que tem a obra para violão como objeto de estudo e dois artigos4. Outros trabalhos discutem aspectos gerais da composição de Gismonti, como a influência da literatura de Mário de Andrade5 ou a inserção de Egberto no contexto musical da década de 19606. Existe, ainda, um ensaio produzido pelo filósofo Rúrion Soares Melo sobre o estatuto do popular em Egberto Gismonti7. O catálogo da produção acadêmica sobre Egberto até onde pudemos constatar configura-se da seguinte maneira: 7 dissertações de mestrado (práticas interpretativas); 10 artigos (práticas interpretativas, filosofia e musicologia); 2 monografias (musicologia); 2 teses de doutorado (educação musical) 8. Diante desta produção diversificada, iremos apresentar os pontos mais relevantes que estes textos trouxeram para o campo de estudo em torno da obra de Egberto Gismonti. 3 SCHROEDER, Jorge Luiz. Corporalidade Musical: as marcas do corpo na música, no músico e no instrumento. Tese de doutorado. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2006. 4 SCHROEDER, Jorge Luiz. Corporalidade musical na música popular: uma visão da performance violonística de Baden Powell e Egberto Gismonti. Per Musi, Belo Horizonte, n. 22, 2010, p. 167-180; e TINÉ & JUNIOR, Paulo e Mario. Procedimentos modais presentes no violão da peça Cego Aderaldo de Egberto Gismonti. In: XXV CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, Vitória, 2015. 5 GILIOLI, Renato de Souza. Influências da literatura musical de Mário de Andrade em Egberto Gismonti: um ensaio exploratório. Monografia. USP, 2004. 6 MOREIRA, Maria Beatriz. Egberto Gismonti e sua inserção no campo da música popular brasileira da década de 1960. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 2., Rio de Janeiro, 2012. 7 MELO, Rúrion Soares. O “popular” em Egberto Gismonti. Novos Estudos, São Paulo, 78, p. 191-200, jul. 2007. 8 Encontramos o registro de três pesquisas realizadas na Unicamp sobre a obra de Gismonti: uma monografia que trata do modalismo presente na sua obra violonística (JUNIOR, Adimir); uma dissertação de mestrado sobre o disco Alma (GOMES, Vinicius) e uma tese de doutorado sobre o disco Água e Vinho (MOREIRA, Maria). Infelizmente esses trabalhos ainda não estão disponíveis. Eles foram contabilizados no catálogo, porém não tivemos acesso ao conteúdo dos textos. 20 Complementarmente, buscaremos compreender o pensamento de Gismonti no contexto histórico da 1960 a partir de um levantamento de artigos de jornais. Talvez pela dificuldade em estudar um repertório que é raramente publicado em partituras, poucas foram as obras de Egberto Gismonti analisadas em trabalhos acadêmicos. Até o momento encontramos, na área de práticas interpretativas, pesquisas dedicadas à peças para piano, tais como Maracatu, Frevo, Sonhos de Recife, Água e Vinho e 7 Anéis e somente um artigo, recentemente publicado, sobre uma peça violonística (Cego Aderaldo). Alguns desses trabalhos utilizaram processos de transcrição e análises de gravações, ou buscaram referencial nas partituras publicadas no encarte do disco Alma (ODEON, 1986). É notório que Egberto Gismonti possui um forte vínculo com a música escrita: além de ter se formado no Conservatório Nacional de Música de Nova Friburgo, teve aulas particulares de orquestração e análise musical com Nádia Boulanger 9 e música dodecafônica com Jean Barraqué 10 . Apesar disso, embora escreva com frequência para orquestras e diversas formações instrumentais, é raro encontrarmos partituras da música que o próprio Gismonti executa em suas performances ao vivo. O trabalho de Borges (2005), sobre a obra Sonhos de Recife, revela que a partitura da mesma é um caso excepcional: Gismonti só escreveu essa partitura porque uma amiga russa queria tocar a peça. Essa partitura não pode ser entendida como uma partitura da prática erudita, pois foi escrita para uma determinada pessoa tocar, por isso é necessário ter um olhar dinâmico e flexível sobre essa referência. (BORGES, 2005, p. 27) Esta necessidade, de ter um olhar dinâmico e flexível sobre a partitura, confirma a importância de se considerar a improvisação como uma das características fundamentais da obra de Egberto. Por esta razão, Borges (2005) amplia sua fonte de análise, utilizando também, como referência, a gravação de uma performance ao vivo de Gismonti no Teatro Colón (Bueno Aires, Argentina/Maio de 2003). 9Nádia Boulanger (1887-1979): Compositora, regente e educadora musical francesa. Tornou-se uma das maiores referências no ensino da composição no século XX. Foram seus alunos: Aaron Copland, Astor Piazzolla, Almeida Prado, Daniel Barenboim, Elliot Carter, Leonard Bernstein, Camargo Guarnieri, Claudio Santoro, Philip Glass, dentre outros. 10 Jean Barraqué (1928-1973): Compositor francês discípulo de Olivier Messiaen. Criou uma identidade própria de compor usando a técnica serial. Muitas de suas obras foram destruídas por sua própria ação. 21 Uma outra fonte de pesquisa utilizada nos trabalhos sobre Egberto, bastante usual quando o compositor analisado é contemporâneo do pesquisador, é a entrevista. Ela traz, para os trabalhos acadêmicos, aspectos curiosos da personalidade do artista, revelando concepções filosóficas que ajudam na compreensão das questões levantadas pela pesquisa. Na entrevista para o projeto Oncotô, de Jorge Mautner11, Gismonti revela porque realiza inúmeras regravações de uma mesma obra. Para ele, este processo faz parte de um ciclo de aprendizagem, no qual a composição configura-se como um pensamento, que está sujeito a redescobertas e reformulações. Na entrevista realizada por este pesquisador, Egberto afirma que regravou determinadas músicas porque acreditava que elas haviam sido gravadas de forma inadequada. As regravações seriam, portanto, um processo de aperfeiçoamento da obra. Essa característica, de poder reelaborar a composição a cada performance, nos fornece subsídios para pensarmos a sua música como uma construção constante, que valoriza o caráter do processo acima do produto em si. Essa ideia será discutida no capítulo 2. Discutiremos, adiante, os pontos mais importantes sobre a obra de Egberto Gismonti levantados pelas pesquisas acadêmicas. Alguns desses aspectos são recorrentes, como a relação com o folclore, a dualidade popular x erudito e a improvisação. Antes de chegarmos à revisão desta bibliografia, achamos oportuno fazer um pequeno levantamento de artigos de jornais da década de 1960 para compreender o contexto histórico no qual Gismonti surge para o público. 1.1 O contexto histórico em que Egberto Gismonti inicia sua carreira A carreira de Egberto Gismonti teve impulso no ano de 1968, na ocasião de sua participação no III Festival Internacional da Canção (FIC), com a música O Sonho, interpretada pelo grupo Os Três Morais, acompanhados por uma orquestra de cerca de 100 músicos, sob a batuta de Radamés Gnattali. Embora não tenha ganho prêmio, Egberto saiu como a grande revelação do festival. A repercussão foi tamanha que em apenas 2 anos O Sonho já havia sido gravada mais de 20 vezes, no Brasil e no exterior, por músicos como Maísa, Elis Regina, Henry Mancini e Paul Mauriat. A música trazia novidades estéticas para a MPB da época, principalmente em relação ao 11 Disponível no link: http://www.panfletosdanovaera.com.br/detalhe/4310 22 arranjo12. Já a letra e a melodia, espelhavam, de certa forma, as angústias inerentes àquela época (tempos de “chumbo”), trazendo o universo onírico como uma válvula de escape da realidade. Ao despertar do sonho, o eu-lírico vê a cama, o seu amor, e chora. Ambos os ingredientes, poesia e estética, foram bem aceitos pelo público. Egberto ocupou um bom espaço nas páginas dos jornais de 1968 e 1969 que se dedicavam à crônica dos festivais. Em junho de 69, o Jornal do Brasil destaca a importância deste artista, no artigo Egberto Gismonti: Um músico para os Músicos. Nele, propõe-se a necessidade de quebrar a “barreira imaginária entre a música popular e erudita”, ressaltando a coexistência de signos entre elas e a necessidade de erigir a estética como finalidade básica. O artigo ainda destaca a questão do contraditório na música de Gismonti, trazendo um diálogo indireto com a proposta tropicalista. Anti-conservador, anti-sambista, anti-regiolanista, Egberto seria antes de tudo o indivíduo. A sua negação, na realidade, diz respeito aos radicalismos estéticos. Como se num dia ele pudesse ser o maracatu (regional) e, no outro, Webern (universal, ou seria alemão?), de acordo com as suas vontades: O fundamental aqui é o artista comunicar o que o caracteriza, ser subjetivo. Há que impor a sua individualidade, eis por que sou contra os movimentos, que acabam por converter-se em prisões estilísticas. Por uma questão de cultura vivencial acompanho os movimentos contemporâneo, se bem que pelo prisma crítico. Não quer dizer que o artista deve se alienar do mundo objetivo, marijuanizar-se. Mas não creio, também, que a sua função seja reproduzir prosaicamente a primeira página do JB, por exemplo. (VALLE, 1969, p. 2) A crítica de Egberto aos movimento da época se dava tanto à MPB nacionalista tradicional, marcada pelas orientações cepecistas 13 , quanto aos tropicalistas, no que tange o espírito da modernidade. 12 Podemos citar um exemplo: a utilização de uma nota pedal, em Sib no agudo, realizada pelas cordas durante quase toda a música. A harmonia vai se desenvolvendo e a nota permanece contínua. De acordo com Egberto, era um efeito imagético que representava o foguete percorrendo o espaço sideral. Uma curiosidade é que os músicos da orquestra, responsáveis pela execução desta nota, não gostaram muito da novidade, embora o efeito seja essencial para o discurso poético da canção. 13 Relativo ao Centro Popular de Cultura da UNE de 1962, organizado por jovens intelectuais de esquerda. O CPC, alinhado com as ideias do PCB, tinha como proposta política/cultural a defesa do nacional popular pela busca da expressão simbólica da nacionalidade e da brasilidade. O conceito de cultura do CPC se caracteriza como arte popular revolucionária, ao invés de “arte popular” ou “arte do povo”; passar o poder ao povo; a arte como tomada de poder; recusa da problemática individual: “fora da arte política não há arte popular”. O CPC surgiu de um movimento da Dramaturgia brasileira (teatro e cinema), que colocava a visão do operário como plano principal (Rio 40 graus, Eles não usam Black Tie). O manifesto ficou mais como uma proposta de postura do que propriamente de estética (NAPOLITANO, 2014). 23 Do ponto de vista estético, para os tropicalistas poderiam coexistir o nordeste, a bossa nova, o pop, o rock, a música e a poesia concretas: como uma Geléia Geral, termo concebido por Toquarto Neto. Porém, enquanto os tropicalistas aceitam o dado concreto do homem industrial, Egberto tenta reverter o jogo e humanizar a máquina. Esta sua proposta é exemplificada pela busca tanto pela cultura oriental14, marcante nesse período, quanto pela posterior aproximação com a cultura indígena, em meados da década de 197015. O indivíduo em Egberto é, portanto, a busca pela essência do homem: O Oriental busca a essência do homem. É esse todo o objetivo de sua cultura. É a maneira que encontrei de subverter a civilização industrial, ou talvez de humanizá-la. Soluções orientais para problemas ocidentais. (...) O caminho da música é racional. A maneira mais elevada de comunicação é a mente-a-mente que pode reter o que não sensibiliza os sentidos. O nosso país é culturalmente ainda muito atrasado, razão pela qual procuro mais um diálogo com os músicos do que com o povo. Importante é saber que aquela forma de comunicação não exclui a intuição. Cito como exemplo Milton Nascimento. Milton é uma pantera. Instinto puro, talvez o estudo o destruísse. No entanto estabeleceu uma comunicação racional com toda a plateia do II FIC, cujos sentidos estavam entregues à Gutenberg Guarabyra: É isto que eu quero, atingir a sensibilidade racional do ouvinte (VALLE, 1969, p. 2). Podemos observar que Egberto, em seus primeiros discos, apresentava concordâncias com a proposta tropicalista (mesmo do ponto de vista estético), como, por exemplo, a inserção da música erudita de vanguarda e certas proposições plásticas do arranjo, que buscam o contraditório: a sobreposição do moderno e do arcaico, do regional e do cosmopolita. Porém, a sua proposta de atingir a sensibilidade racional do ouvinte se contrapõe a elementos presentes na performance dos tropicalistas, como a provocação, a violência simbólica, a não linearidade do discurso poético e, fundamentalmente, o comportamento. Na performance de Egberto, há um respeito ao ritual do palco, algo semelhante ao respeito do monge diante do seu templo. Apensar de Gismonti definir a sua música como “uma crítica estética ao que não se parece com ela”, a sua relação com os movimentos, embora crítica, se dava de forma amistosa, receptiva àquilo que o interessava. Seu olhar catalizador 14 Egberto fez viagens ao oriente, sobretudo à Índia. 15 Existe um livro chamado Música Transpessoal (1989), escrito pelo musicoterapeuta Carlos Fregtman em colaboração com Egberto, que investiga as vivências do compositor com as culturas indígenas e orientais sob com uma abordagem holística da psicoterapia e do misticismo. 24 soube colher a importância estética e poética de cada movimento, como demonstra o artigo A Revelação, Egberto, de 1968, no Diário da Noite: Esse negócio de achar que só o sambão pode identificar a música brasileira vai acabar. Acho muito certo a procura de uma música universal por parte dos tropicalistas. É isso que todos os compositores de vanguarda estão querendo achar, mas isso não quer dizer que a música de todo mundo vai ficar igual (DUARTE, 1968, p. 6). Embora discorde esteticamente dos “excessos” na proposta estética e comportamental tropicalistas, Egberto se entusiasma com a poética das letras: “são como uma viagem a toda velocidade por caminhos diversos”. É esta viagem onírica que definiria a proposta poética da sua música O Sonho, uma busca por uma nova realidade: “este mundo está horrível. Então vamos buscar outro”. No artigo Egberto Gismonti e sua Inserção no Campo da Música Popular Brasileira em Fins da Década de 1960, Moreira (2012) reflete sobre o disco de estreia do compositor, intitulado Egberto Gismonti (1969). A autora aponta a presença simultânea dos dualismos modernidade x tradição16, erudito x popular, engajado x alienado, demonstrando um ecletismo nas faixas do disco. Moreira demonstra como Egberto se permitia um livre trânsito pelos distintos movimentos de sua época, sem ter o comprometimento de fixar-se em uma proposta estética ou poética. 1.2 Egberto Gismonti e Mário de Andrade O nacionalismo musical na obra de Egberto foi um tema pontuado por alguns pesquisadores. Porém, seria possível observarmos a gramática musical de Mario de Andrade na obra de Egberto Gismonti? Na monografia Influências da Literatura Musical de Mário de Andrade em Egberto Gismonti: Um Ensaio Exploratório, Gilioli (2004) busca esta resposta, trazendo alguns dados concretos que confirmam esta hipótese. No encarte do disco Meeting Point (ECM, 1997), de Egberto Gismonti, há uma narrativa que conta, justamente, uma visão sobre o mito da origem do povo brasileiro, baseado nas três raças. Em Mário de Andrade este mito derivaria na estética da miscigenação. A faixa Música de Sobrevivência de Meeting 16 Para Moreira, a busca da MPB por um parâmetro mediador entre o moderno e o tradicional de certa forma é consequência dos acontecimentos recentes da sociedade: a consolidação da indústria fonográfica, a ampliação de um público consumidor de bens culturais e a crescente mídia de massa: rádio e TV (MOREIRA, 2012, p. 844). 25 Point, é baseada na melodia “Pagode”, coletada por Mário de Andrade em Minas Gerais, assim como a melodia da faixa “A Pedrinha Cai” é baseada em cantos dos pedreiros. Ambas pertencem ao 1º Volume de Melodias Registradas por Meios NãoMecânicos17. Em entrevista à Gilioli, Egberto afirma que, na ocasião da gravação deste disco, estivera lendo constantemente Mário de Andrade. Egberto diz ainda que “o folclore é uma grande ideia”, porque “reflete a conclusão de uma grande maioria”. Destacam-se, principalmente, as notas rebatidas 18 na descendente, a utilização das sincopas, a influência da modinha, a utilização de intervalos de terça, a preocupação com uma orquestração brasileira, dentre outros. Estes são alguns dos elementos que configuram as aplicações práticas que Egberto Gismonti faz do que chamamos de estética da miscigenação de Mário de Andrade (GILIOLI, 2004, p. 41). Embora seja evidente a admiração de Egberto pela produção crítica, literária e de pesquisa de Mário de Andrade, existem diversas questões que os diferenciam. No ensaio O Popular em Egberto Gismonti, Melo (2007) demonstra quais seriam as principais diferenças no estatuto do popular em Egberto e em Mário de Andrade. Esta diferença reside na liberdade com que Egberto se coloca diante do dualismo nacional x estrangeiro, presente no debate nacionalista. A forma receptiva com a qual Egberto enxerga as culturas do mundo, permite que ele expanda o seu material musical e, consequentemente, a sua linguagem. De acordo com Melo, em Egberto não há uma vitória do popular, em termos de recursos composicionais, nem da música “desinteressada”19, o que permite tirarmos a conclusão de que existe uma resposta ao dualismo diferente da forma como o trata Mario de Andrade, uma vez que suas obras não podem mais ser compreendidas através dos elementos “brasileiros” do “nacional-popular”. Melo acredita que existe uma tensão no popular em Egberto que por vezes parece querer negá-lo, utilizando-se da sutileza, da sugestão, da insinuação ou do implícito. O autor defende que nas músicas Maracatu e Frevo, para piano solo, 17 ALVARENGA, Oneyda (org). Melodias Registradas por Meios Não-Mecânicos. São Paulo: PMSP/ Departamento de Cultura, 1946. 18 Ver item 1.7 19 Nos trabalhos críticos de Mário de Andrade, a música interessada corresponde às manifestações de arte primitivas e tradicionais, como o folclore. Para ele, estas seriam manifestações de arte “utilitária”, visto que teriam um forte vínculo com uma função social. Já a arte desinteressada corresponde a “música artística”, desvinculada de uma função social, pois tem um perfil intrinsecamente individualista. Para Mário, uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo e os compositores, para alcançarem à “música artística”, tem só que dar aos elementos populares uma transposição erudita. (ANDRADE, Mário. Ensaio sobre a música Brasileira. São Paulo: Martins, 1962.). 26 e Lundu e Danças dos Escravos, para violão solo, existiria uma “sugestão” do material correspondente à esse gêneros. A negação é apenas no sentido do folclore com a sua “roupagem” tradicional. Ao invés da literalidade, ele aparece transmutado ou sugerido. Diante das fontes primárias, Melo afirma que, no nacionalismo tradicional bartokiano, o folclore é visto como uma rica fonte de material, uma matriz técnica (melódico-harmônica). Já em Egberto, a música popular é uma matriz à qual a técnica deverá se ajustar. A partir da tese de Melo, podemos supor que o disco Sol do Meio Dia (1978)20 realizado após sua vivência com os índios Iwoalapity, no alto Xingu, representaria este pensamento: aprender os instrumentos indígenas e sua música, para posteriormente tentar adequar suas próprias referências ocidentais às propostas discursiva, poética e até mesmo estética da música dos indígenas, trazendo o índio como principal ator e não apenas como uma mera matriz técnica. 1.3 A relação obra/compositor/intérprete. Em sua dissertação de mestrado, Uma Abordagem Semiológica da Peça Maracatú, de Egberto Gismonti, Silva (2014) utiliza-se do modelo de análise tripartite desenvolvido por Nattiez para atingir uma compreensão ampla da interpretação musical. De acordo com a autora, a interpretação é um processo que conjuga forças expressivas inerentes à obra, ao intérprete e ao compositor. Primeiramente, Silva faz um estudo acerca dos elementos contidos na partitura, a partir de uma análise paradigmática que segmenta a obra Maracatu, partindo do micro para o macro. Os primeiros motivos são identificados e logo percebe-se a íntima relação destes, com as fórmulas rítmicas do gênero maracatu, escolhido como fonte primária da composição. Posteriormente, a autora formula hipóteses e interpretações acerca dos padrões deixados pelo compositor como material simbólico. Para Silva, no caso de Maracatu, estes padrões seriam o folclórico, o rítmico e o improvisatório. Silva identifica a melodia da composição como um padrão folclórico; já o acompanhamento da mão esquerda do piano denota, 20 Uma curiosidade: neste período Gismonti criou um pequeno jornal que acompanhava seus discos, chamado Jornal Caipira. Na ocasião do Sol do Meio Dia, o jornal apresentou uma série de diversidades sobre a cultura indígena, contando com a participação de diversos artistas, como Ferreira Gullar, Gonzaguinha, Marlui Miranda, Zezé Mota, Tarik de Souza e Geraldo Carneiro. 27 em algumas situações, padrões improvisatórios. O padrão rítmico foi observado por um motivo que representaria o gonguê21, instrumento musical típico do maracatu e que tem a função de manter a métrica da orquestra. No Maracatu de Gismonti, este material ocorre durante a peça inteira: é um elemento ostinato que dita o andamento da peça. Outro exemplo do material rítmico é o acompanhamento da mão esquerda no grave, que faz um ritmo semelhante à alfaia22 do maracatu, que, por sua vez, também é um instrumento grave. Posteriormente veremos que esses elementos rítmicos também foram transplantados para a linguagem violonística de Gismonti. O ritmo do maracatu, por exemplo, se manifesta na sua obra Em Família. Por fim, Silva formula hipóteses sobre a maneira que a obra foi percebida pelo intérprete, na posição de receptor. A autora, a partir de sua vivencia ativa com a manifestação popular do maracatu, percebe que a partitura não define as acentuações, que devem ser realizadas pelo intérprete, o qual precisa ter consciência do gênero musical a que a música remete para fazer uma interpretação coerente. Silva chama a atenção para o ritmo resultante de todos os motivos da peça, que é composto basicamente de semicolcheias, que, segundo Silva, são a essência do ritmo do maracatu. O filósofo e semiólogo Umberto Eco, em seu livro Interpretação e Superinterpretação (1993), afirma que no campo da semiologia, entre a intenção do autor (intentio auctoris) e a intenção do intérprete (intentio lectoris), existe uma terceira possibilidade, que é a intenção do texto (intentio operis). Esses três pilares correspondem, funcionalmente, ao modelo tripartite utilizado por Silva em sua pesquisa. Nesse sentido, duas observações apontadas por Eco são relevantes: a primeira delas é que as intenções do autor são dificilmente descobertas e, frequentemente, irrelevantes para a interpretação de um texto (no nosso caso, obra musical). Ao abordar uma obra de um compositor como Egberto Gismonti, que recria suas músicas a cada nova gravação ou performance, fica evidente que as especulações acerca da visão do autor devem levar em consideração o caráter processual de sua obra, pois as intenções podem ser transitórias 23 . Nesse sentido, as hipóteses 21 Instrumento semelhante à um sino achatado feito de ferro. Este instrumento, pela sua composição material, é relacionado ao orixá Ogum, que é o orixá do ferro. 22 Instrumento musical da família dos membranofones. É constituído por: corpo, membrana, aro e cordas de afinação. É um tambor grave tocado por duas baquetas. 23 Ver capítulo 2. 28 formuladas pelo intérprete podem dizer mais sobre ele próprio do que sobre as intenções poéticas do compositor em si. A segunda observação de Eco é que a intenção de uma obra não é revelada pela superfície textual. Só é possível falar da intenção de um texto em decorrência de uma leitura por parte do intérprete. Portanto, por mais pragmática que seja uma análise musical, ainda sim ela representa uma interpretação subjetiva do analista. A relação entre compositor, obra musical e intérprete é um assunto indispensável em uma pesquisa que envolve um compositorintérprete. Por isso reservamos o capítulo 2 dessa dissertação para uma abordagem mais extensiva a esse respeito. 1.4 Aspectos da interpretação pianística Na dissertação de mestrado A Interpretação e o Pianismo de Egberto Gismonti em sua Obra “Sonhos de Recife”, Borges (2005) define pianismo como um conjunto de particularidades do interprete que são desenvolvidas, não necessariamente, a partir de dogmas e paradigmas tradicionais da interpretação pianística e estão intimamente ligadas à personalidade do artista e a forma como ele entende e assimila o texto musical24. A metodologia de Borges é direcionada para reflexões sobre a interpretação musical; os procedimentos analíticos tradicionais que tratam, por exemplo, da harmonia, da forma, da fraseologia, não são o foco de sua pesquisa. Quando Borges propõe uma análise da obra, esta é baseada em parâmetros estruturais somente com a finalidade de auxiliar no processo de construção da interpretação musical. Para Borges, a maior dificuldade na elaboração de uma interpretação para as obras de Gismonti é a ausência de parâmetros estilísticos, devido à singularidade de sua obra. Por exemplo, ao estudarmos uma peça para piano do período romântico, encontramos diversos estudos dedicados à interpretação pianística deste período nos quais poderemos amparar nossa interpretação, assim como existem diversas gravações ao nosso alcance, para uso comparativo ou referencial. No caso da obra de Gismonti, ainda não se produziu um volume significativo de estudos que possam 24 No caso do pianismo de Egberto, um exemplo máximo é a sua técnica de mão direita, na qual a angulação da mão é adaptada devido às unhas grandes, importantes para a técnica violonística. 29 identificar parâmetros interpretativos singulares à ela. No caso de Sonhos de Recife, uma das maiores especificidades está no ritmo: no “balanço” e gingado do frevo. Com o amparo da gravação da obra, executada ao vivo pelo compositor, Borges faz sugestões de interpretação como: articulações, dinâmicas, andamentos, pedalizações, dentre outras. Há também sugestões de como estudar trechos da obra que trazem dificuldades técnicas, principalmente relacionadas à independência das mãos em situações de polirritmias. Esta é uma das principais características do pianismo de Egberto que foi transplantada para o violão, como veremos no capítulo 4. O apuro técnico de independência das mãos, em Egberto, foi desenvolvido ao longo dos anos, com estudos específico criados pelo próprio compositor25. O desenvolvimento pianístico de Gismonti é fortemente marcado pelo seu desenvolvimento composicional. Sua concepção de música, em busca de uma linguagem própria, o impulsionou a procurar recursos técnicos e interpretativos cada vez maiores.” (BORGES, 2005, p. 55) Gismonti é um grande defensor do estudo de técnica aplicada ao repertório, ao invés da técnica pura. Em muitas ocasiões, a manipulação criativa de um exercício técnico pode levar à gênese de uma composição. Este processo é identificado em diversas composições de Egberto. No caso do violão, poderíamos citar a série de 12 estudos26. 1.5 O popular e o erudito Os trabalhos acadêmicos direcionados à obra de Gismonti são unânimes em afirmar que existe um equilíbrio entre a música erudita e a música popular em sua obra. Na dissertação de mestrado Frevo para Piano de Egberto Gismonti: Uma Análise de Procedimentos Populares e Eruditos na Composição e Performance (PINTO) e no artigo O Caos Organizado de Egberto Gismonti em Frevo: Improvisação e Desenvolvimento Temático (PINTO e BORÉM), os autores 25 Existe um artigo dedicado à exercícios de polirritmias sobre temas pianísticos de Gismonti, feito por Daniel Grajew (2015). 26 A série de 12 estudos para violão nunca foi publicada. Porém, alguns desses estudos estão presentes na discografia de Egberto, como o Estudo nº 5, do disco Egberto Gismonti (1969); ou Celebração de Núpcias, do disco Academia de Danças. 30 realizaram uma transcrição da gravação, seguida de uma análise dos procedimentos temáticos na composição de Egberto. A definição de caos organizado viria da liberdade improvisatória com que ele reorganiza seus materiais temáticos, revelando uma estrutura altamente coerente em torno de pequenos motivos. Segundo os autores, este recurso de liberdade improvisatória se alinharia ao conceito que Schoenberg denomina variação progressiva. Na transcrição, os autores identificam elementos do gênero musical pernambucano, o frevo, e processos estilísticos comuns ao pianismo de F. Chopin e J.S.Bach. A partir disso, eles argumentam que existiria um estilo de fronteira – ou estilo crossover – na linguagem de Gismonti, devido a junção de arquétipos da música erudita e da música popular. Porém, os conceitos de popular e erudito demarcam territórios tão amplos que estabelecer uma “zona de fronteira” seria algo demasiadamente abstrato. Na própria tradição dita erudita é trivial a busca pela incorporação de gêneros populares, tornando inconsistente a ideia de uma terceira categoria denominada “zona de fronteira”. Na dissertação de mestrado Egberto Gismonti e a Poética da SemiErudição, Pinto (2015) propõe outra nomenclatura generalista sobre a obra de Gismonti: A prática musical se cinde, não apenas distinguindo músicos ligados à tradição oral daqueles iniciados nos meandros da linguagem escrita, mas também abrindo espaço à atuação de tipos híbridos, compromissados tanto com os procedimentos eruditos quanto com as práticas tradicionais. Se podemos definir a música erudita como aquela que se fundamenta em processos concernentes à escrita musical, a produção que se vale parcialmente de processos de escrita, agregados em obra fundamentada na tradição popular, será por nós referida como semi-erudita (PINTO, 2015, p. 120). O autor cunha o termo semi-eruditção para enquadrar compositores que utilizam-se de processos da música popular, fundamentada na tradição oral, e processos da música erudita, fundamentada na escrita. Entretanto, como lidar com esse modelo visto que cada vez mais os músicos do campo dito popular dominam a linguagem escrita e suas ferramentas técnicas e reflexivas? Se seguirmos essa linha de raciocínio a tendência global seria todos os músicos se tornarem semi-eruditos. O fato é que a categorização de erudito e popular também é generalista, pois contextos sociais, históricos, territoriais e estéticos distintos são colocados dentro de uma mesma “caixa”. Para evitarmos um campo teórico controverso acreditamos que a 31 terminologia mais adequada e isenta, para o Frevo de Gismonti, seria música instrumental brasileira. Essa é uma nomenclatura que comporta a diversidade de gêneros musicais e de estéticas em Gismonti – seja europeia, seja folclórica – e supera a dicotomia popular x erudito e sua “fronteira”. 1.6 A improvisação A improvisação é uma das marcas da performance musical de Egberto Gismonti. Praticamente todos os autores que estudaram a sua obra e performance descreveram momentos em que a improvisação é determinante na sua linguagem. Correntino (2013), ao analisar a peça 7 Anéis, discute o contexto da música instrumental no período pós bossa nova, buscando investigar a inserção de Egberto neste meio musical. Para este autor, conteúdos experimentais pertencentes às correntes de vanguarda das décadas de 60 e 70, como o jazz avant-gard, podem ser identificados na produção de Egberto: Pode-se afirmar que Gismonti absorveu elementos musicais referentes a diversas culturas e os organizou de uma forma jazzística, ou seja, orientou sua música para uma prática de estratégias e conteúdos bastante pertinentes aos universos da improvisação (CORRENTINO, 2013, p. 20) Porém, o próprio Egberto não se considera um jazzista, sendo possível notar diferenças entre a sua linguagem de improvisação e a do no jazz. Em Sonhos de Recife, por exemplo, Borges (2005) afirma que a improvisação não se baseia em estruturas de variações da própria obra, como ocorre no jazz, mas sim em novos elementos, completamente distintos e estruturados, onde pode haver, inclusive, a inserção de um trecho de outra composição27. Para Pinto e Borém, na obra Frevo a improvisação se revela mais próxima do choro do que do jazz, pois baseia-se em alterações rítmicas (por antecipação, retardos, diminuição, aumentação, fragmentação), variações melódicas, espacialização das alturas, etc.; ornamentos que sustentam uma coerência temática do início ao fim da peça. Para além de tentarmos categorizar a linguagem de improvisação de Egberto, o mais importante é constatarmos que esta habilidade musical é recorrente 27 Sobre esse aspecto, ver no capítulo 2 o conceito de intertextualidade na obra musical de Gismonti. 32 em sua obra. Na partitura de Frevo, há a indicação “improvisar quantas vezes queira”, o que releva, novamente, a particular relação de Gismonti com a escrita musical de suas obras: Percebe-se que a partitura, para ele, não é um registro acabado de uma obra. Ela permite adaptações e contribuições interpretativas de cada músico para que a música soe da melhor forma possível. Na sua opinião, os intérpretes são considerados compositores, pois podem tocar explorando as habilidades e recursos que possuem, no que diz respeito à formação instrumental, forma, textura e à improvisação (SILVA, 2014, p. 36)28. Gismonti afirma, em depoimento colhido por Borges, que a sua performance/obra varia de acordo com o público e o ambiente. É um diálogo entre a sala de concerto, as expectativas do público e a performance do artista. 1.7 Corporalidade e a relação entre Egberto Gismonti e Baden Powell Em diversos depoimentos, Egberto Gismonti afirma ser Baden Powell a sua principal referência no violão. A relação íntima entre a musicalidade desses dois artistas foi descrita por Schroeder (2010) no artigo Corporalidade musical na música popular: uma visão da performance violonística de Baden Powell e Egberto Gismonti. O autor utiliza-se da noção de corporalidade musical, conceito discutido em sua tese de doutorado Corporalidade Musical – As marcas do corpo na música, no músico e no instrumento, para erigir semelhanças entre a performance desses dois músicos. Orientada no âmbito da educação musical, a tese de Schroeder (2006) busca, por meio desse conceito, conjugar diversas variáveis presentes na performance musical, que vão desde às facilidades e limitações de cada músico até os rastros de diversos outros corpos que marcaram historicamente este instrumento. A corporalidade musical configura-se, portanto, como o modo de tocar um instrumento em que pode ser visível a presença de forças motoras, cognitivas, contextuais, históricas e culturais: Só posso concordar com a afirmação de que tocar é colocar em ação um conhecimento que está nas mãos, nos ouvidos, nas imagens sonoras, nas imagens representativas que cada um faz do próprio instrumento, na 28 No capítulo 2 discutiremos a ideia de que interpretar é compor. 33 memória e na confluência de todas essas instâncias na direção da realização musical. É a essa convergência de determinantes, todas elas marcadas por qualidades corporais, que denomino corporalidade musical. (SCHROEDER, 2006, p. 43) Para Schroeder, a corporalidade musical é sustentada pelo tripé música, músico, instrumento. Fazer música é uma construção coletiva, na qual há a presença de indivíduos, que, ao longo dos anos, foram estabelecendo regras, valores e hierarquias. O instrumento musical, enquanto corpo físico, também traz as marcas daqueles músicos que definiram quais seriam as possibilidades mecânicas e expressivas desse instrumento. Por fim, o músico, se expressando dentro de um gênero específico, reflete suas idiossincrasias, com suas limitações e facilidades. A atuação do músico também espelha outros corpos, que marcaram o gênero musical em que ele se insere e o seu próprio instrumento. A corporalidade, portanto, é um princípio gerador da realização musical, indo além da presença do corpo físico; ela é também uma noção de corpo ampliado, com suas marcas deixadas nos objetos e nas produções simbólicas: No ato da execução o músico revela não apenas o seu “mundo percebido” musicalmente falando, mas especialmente o modo como percebe, e isso, pela indubitável idiossincrasia de cada músico em cada momento em que se expõe, não poderia ser ignorado (SCHROEDER, 2006, p. 39). Essa maneira idiossincrática como o músico percebe e expõe o “seu mundo” encontra uma conceitualização semelhante em Camara (2008), na sua tese de doutorado Sobre harmonia: uma proposta de perfil conceitual. Nela, o autor propõe a noção de zona auditiva-instrumental, que seria uma parte do conhecimento musical que é adquirido pelo músico inconscientemente e é condicionado pelo contexto social. Desse modo, Camara identifica a mesma relação apontada por Schroeder – entre corpo, instrumento e música – salientando dois mediadores: a audição e o instrumento musical. A audição só pode ser um mediador na medida em que o indivíduo trava contato com toda uma cultura sonora e assim adquire uma rede de módulos musicais de referência; cada instrumento musical, da mesma maneira, trás consigo um sem número de dados culturais, que vão desde as razões que orientam as ornamentações de sua construção, passando pela sua estrutura antropomórfica, até a linguagem musical implícita ou explícita em graus variados, mas de alguma forma guardada e registrada na afinação do instrumento, no montante de notas ou alturas disponíveis, etc. E é por essa via que o acesso ao corpo de conhecimento dessa zona conceitual se torna 34 possível. As elaborações harmônicas, por exemplo, de um Guinga são claramente associáveis 1) ao seu instrumento – o violão – e/ou 2) ao universo sonoro que o nutriu – o do Choro, do Samba, da Bossa-Nova, do Jazz, etc... (CAMARA, 2008, p. 84) Camara afirma que o conhecimento adquirido através dessa zona auditivainstrumental consiste em “uma forma de pensar não necessariamente verbal e, principalmente, não codificada pelas teorizações instituídas e consagradas”. Ela é um processo individualizado no qual os músicos desenvolvem habilidades estritamente ligadas à aspectos físicos e sensoriais de seu corpo. Nesse sentido, toda performance musical espelha um conhecimento sui generis, que reflete, não meramente a trajetória formal do músico, mas, acima de tudo, uma trajetória mais profunda e íntima que une corpo, ouvido e instrumento musical. Ao aplicar o conceito de corporalidade à análise da prática musical, Schroeder propõe a noção de “carnavalização”29 para entender as performances de Egberto e Baden. Para o autor, esta noção surge dos momentos em que a performance desses artistas chegam à extremos, deformando a regularidade, tanto do ponto de vista da métrica quando do andamento. Há, também, momentos em que ocorre uma quebra no padrão idealmente estabelecido de “limpeza” e “clareza” sonora: os violonistas tocam com tal peso dinâmico, que seus violões chegam a trastejar. Este discurso é análogo à “inversão da ordem” estabelecida na “carnavalização”, identificada por Bakhtin na idade média: Bakhtin se refere a um momento específico, o das festas populares, onde a ordem do poder se altera, pelo menos temporariamente. O grotesco se sobrepõe ao belo, o provisório ao perene, a instabilidade se instala e o torto supera o reto. As partes baixas, sujas, íntimas do corpo aparecem; a alma desce ao submundo do material e os tronchos tornam-se reis (SHROEDER, 2010, p. 172). No caso de Baden, o autor cita a interpretação de Berimbau no disco Ao Vivo no Teatro Santa Rosa como exemplo dessa carnavalização, que é espelhada pelo andamento acelerado, que gera uma instabilidade rítmica. No caso de Egberto, Schroeder afirma que os elementos de rebeldia e excesso não se mostram em conflito 29 “Este é um termo utilizado por Bakhtin na sua obra sobre a cultura popular da Idade Média e do Renascimento, que envolve, principalmente nas manifestações populares desse período, uma maneira indisciplinada e “antioficial” de comportamento, que ocorria principalmente nas festas populares e ritos cômicos. “ (SCHROEDER, 2006, p. 70) 35 como em Baden; na realidade eles fazem parte da sua linguagem e da estrutura de sua obra. Sua exasperação temporal, por exemplo, que ele utiliza com frequência no violão, não estremece uma organização musical preestabelecida, não borra seus limites bem delineados, mas habita um mundo já praticamente beneficiado pela existência dos borrões, pelas hachuras e pelas linhas fragmentadas e indefinidas. Em outra palavras, Egberto toma a liberdade de construir um universo musical, uma proposta estética, que contém, ou pelo menos pressupõe, a possibilidade do excesso (na verdade, exige) (SCHRODER, 2010, p. 175). Em relação à carnavalização em Egberto Gismonti, a reflexão de Schroeder expõe uma contradição: se o conceito de Bakhtin originalmente pressupõe uma quebra da ordem estabelecida, a carnavalização em Gismonti não existiria, pois a “ordem” em Egberto, como o próprio Schroeder constatou, já seria um universo particularmente “às avessas”. Assim como a música dodecafônica estabeleceu para si um novo status quo, Gismonti estabeleceu uma linguagem na qual o “carnaval” é a regra. Se nos propusermos a compreender a carnavalização como uma inversão do status quo, em Gismonti ela só poderia existir se o mesmo interpretasse, por exemplo, a peça Miudinho30, de H. Villa Lobos, seguindo os preceitos clássicos da interpretação pianística, respeitando – nota a nota – a partitura e o arranjo original. Voltando à corporalidade, Schroeder afirma que este conceito está atrelado à maneira como o intérprete compreende suas possibilidades técnicas, sua agilidade digital e suas limitações, e identifica semelhanças na performance de Baden e Egberto, ou seja, em suas corporalidades musicais. É o caso da liberdade com que ambos os músicos manipulam o texto musical em suas performances, podendo alterar quaisquer aspectos da composição, como forma, ritmo, melodia, harmonia, andamento e caráter: Esta liberdade, que ambos demonstraram em várias outras oportunidades, executando outras peças, é algo que remete à liberdade do orador, do contador de histórias, do narrador. Os dois músicos conhecem profundamente o discurso musical que irão pronunciar, sabem de sua organização pois, não por coincidência, são os compositores dessas peças. Executaram essas mesmas peças (executa ainda, no caso de Egberto) inúmeras vezes, tornando-as conhecidas das audiências, entretanto, concedem a elas a possibilidade de alterações radicais, a depender das 30 4º movimento da Bachianas Nº 4. Egberto gravou esta obra no disco Trem Caipira, reelaborando o arranjo e utilizando sintetizadores. 36 situações especiais onde esse discurso determinado vai ser pronunciado, ou publicado (no sentido de tornado público) (SCHROEDER, 2010, p. 178). Alguns outros aspectos técnicos também são levantados por Schroeder, como o recurso da corda solta, que possibilita uma maior ressonância do instrumento, ou o uso de notas rebatidas31, semelhantes à maneira como opera o ponteado de viola e o baixo pedal: Egberto utiliza abundantemente não só dos ostinatos e bordões em cordas soltas, acrescentados de acordes que vão se movimentando e alterando as relações dissonantes com esses bordões utilizados, mas também das mudanças de acordes em paralelo, onde se fixa uma fôrma de mão e faz com que ela passeie pelo braço do violão livremente (estratégia que utiliza acordes paralelos na forma de frases melódicas e que, se acrescentados de cordas soltas, causam efeitos inusitados de dissonâncias) (SCHROEDER, 2010, p. 176). Esta estratégia de deslizar uma mesma fôrma pelo braço do violão na tentativa de não apenas criar tensões harmônicas, mas também gerar um melodia de acorde, encontra paralelo nas obras de Villa-Lobos, como por exemplo na série de 12 estudos.32 31 A terminologia de notas rebatidas merece uma atenção especial, pois há registros divergentes do seu uso. Encontramos esse termo em Mário de Andrade, que considerava este recurso uma espécie de moto perpétuo (ANDRADE, 1989, p. 200). Antonio Madureira as define como “notas ligadas de duas em duas em grupos de semicolcheias, tendo sempre uma que se repete para ligar a seguinte” (NOBREGA, 2000, p. 63). Já Schroeder entende que: “são repiques de notas que se interpõem às notas da linha melódica, como acontece num outro exemplo conhecido desse procedimento que são os ponteados da viola caipira, que podem ser tocados apenas sobre uma corda, alternando notas da corda presa com notas da corda solta, intercaladas geralmente uma a uma” (SCHROEDER, 2010, p. 175). Para este último, a nota rebatida é uma nota pedal em corda solta que se intercalada à melodia. Em nossa pesquisa optamos por utilizar apenas a terminologia nota pedal, pois não identificamos um consenso entre os autores. 32 Estes aspectos da linguagem violonística de Gismonti serão abordados no capítulo 4 dessa dissertação. 37 CAPÌTULO 2 – INTERPRETAÇÃO E COMPOSIÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE PROCESSO E PRODUTO NA OBRA MUSICAL DE EGBERTO GISMONTI Algumas das questões levantadas ao longo desta pesquisa, como a improvisação, sustentam o argumento de que ao pesquisarmos a obra de Egberto Gismonti, não podemos desvincular a interpretação da composição. Sua performance ao vivo constitui-se como um processo composicional, no qual não existe a soberania da partitura. Isto permite que a obra seja um objeto em constante construção e reconstrução, nas mais diversas esferas, tais como forma, melodia, harmonia, ritmo, ethos, poética, nome da obra, dentre outras. A partir do referencial teórico proposto por Nicholas Cook, investigaremos a relação entre processo e produto na composição e performance de Egberto Gismonti, visando compreender as dimensões ontológicas de sua obra, para, em seguida, apontar caminhos àqueles que tenham interesse em interpretar essa música. O conceito de obra musical, idealizado pela tradição da música erudita ocidental – no âmbito da musicologia histórica –, perpetuou a visão da música enquanto uma construção estática, ou seja, um produto. Tal conceito abrange tanto a obra enquanto uma produção da sociedade capitalista (exemplo: o fonograma, o disco, o DVD, etc.), quanto a obra idealizada pelo compositor, seja na partitura, seja em seu imaginário. Esta corrente de pensamento, em um contexto mais radical, espera que a performance musical seja um diálogo direto entre compositor e plateia. Neste caso, o intérprete seria apenas um “reprodutor” das ideias e vontades do compositor e a obra musical um produto que expressaria todas as verdades contidas na partitura. Nicholas Cook lança a hipótese de que o próprio vocábulo que utilizamos para nos referir à performance musical diminui o potencial de compreensão da música enquanto processo. A ideia de que a performance é essencialmente reprodução e, consequentemente, uma atividade subordinada, senão redundante, está inserida na nossa própria linguagem. Você pode “simplesmente tocar”, mas é estranho falar sobre “simplesmente interpretar (ou executar)”: a gramática básica da performance é que você interpreta alguma coisa, você apresenta uma performance “de” alguma coisa. Em outras palavras, a linguagem nos leva a construir o processo de performance como suplementar ao produto que a ocasiona, ou no qual resulta; é isto que nos leva a falar naturalmente sobre a música “e” sua performance, da mesma forma que os teóricos do cinema falam do filme “e” sua música, como se a 38 performance não fosse parte integral da música (e a música do filme). A linguagem, em suma, marginaliza a performance (COOK, 2006, p. 6). Existiria, portanto, uma noção de que a obra musical idealizada estaria em um plano distinto da música na prática (GOEHR, 1992). Essa visão, similar à maneira como os gregos conceitualizavam a música, faz emergir a figura do compositor como um ser dotado de um patrimônio intelectual soberano, e é consequência direta da forma como a música erudita ocidental se impôs diante das outras culturas do mundo. Representa a vitória de uma cultura mais elevada, que se estabeleceu a partir de grandes obras, arquitetadas por grandes mentes. Nesse sentido, a ideia da música como produto é também um juízo que atende muito bem às prerrogativas do capitalismo. Havia também uma noção, derivada em parte da etnomusicologia, de que a tendência da musicologia de abordar todas as músicas como produto, ao invés de processo, representava um tipo de hegemonia colonizadora, uma afirmação dos valores de uma arte superior sobre uma arte inferior (COOK, 2006, p. 6). A etnomusicologia, ao se debruçar sobre culturas de tradição oral, nas quais outra estrutura social se impõe, entende a música inevitavelmente enquanto processo, pois nesses contextos a música é uma ação participativa de todos os membros da comunidade, na qual não existe o conceito individualista de autor e obra. Voltando à analogia da música enquanto produto e os arquétipos da ideologia capitalista, Cook salienta algumas proposições relevantes de outros autores: Matthew HEAD (2000, p.200) observa que as obras musicais funcionam como investimentos, gerando uma renda regular. Jacques ATTALI (1985, p.32) aponta que, por meio de partituras ou gravações, a experiência musical pode ser interminavelmente adiada e estocada. A música se torna parte de uma economia estética definida pelo consumo passivo e cada vez mais privado de produtos industrializados, ao invés de definida pelos processos sociais ativos da performance participativa (CHANAN, 1994). Em suma, parece que nos esquecemos que a música é uma arte de performance e, mais do que isto, parece que não poderíamos pensar nela como tal, mesmo se quiséssemos, haja vista a forma como a conceituamos (COOK, 2006, p. 7). 39 Christopher Small propõe uma inversão do paradigma da performance subordinada à obra. De acordo com ele, em uma sociedade mais criativa e inclusiva não haveria a obra musical, mas, sim, a atividade de fazer música, de dançar ou de escutar. “A música erudita representa um tipo de sociedade que não permite a participação mútua de todos os indivíduos porque é baseada em obras e não em interações” (1998, p.11 apud Cook, 2006, p. 8). A proposta de Small compreende a música não como objeto, mas, sim, como ação, ou seja, não como produto, mas como processo. Apenas do terreno conquistado, Cook abre mão dessa visão que superdimensiona o processo em detrimento do produto. Para ele, na realidade, a obra musical caracteriza-se pela confluência desses dois fatores. Por mais que uma performance ao vivo tenha um caráter dinâmico, sujeita à múltiplas variáveis ao longo da execução, as escolhas interpretativas do músico ou o próprio concerto podem ser vistos como um produto a ser ofertado ao público. A partir desses primeiros apontamentos a respeito da relação entre produto e processo, voltamos nossa atenção para a obra musical de Egberto Gismonti. Como verificaremos adiante, a sua discografia, embora constitua-se como um produto de mercado, espelha um longo processo de transmutações, reiterações e aperfeiçoamentos. Também veremos que, devido à ausência de partituras, é importante uma participação mais ativa dos intérpretes que queiram executar essas obras, se envolvendo em práticas como a transcrição de gravações e o arranjo. Tais práticas, aproximam a atividade do intérprete da atividade do compositor. Sobre a junção desses dois ofícios, Cook nos fornece uma informação importante que, em certa medida, territorializa (ainda que de forma anacrônica) Egberto Gismonti em uma tradição. No âmbito da música erudita ocidental existiram dois tipos de tradições. Uma seria a tradição do “opus”, iniciada no século XIX e associada a Beethoven, e a outra, bastante distinta e baseada no performer, seria a de pianistas-compositores como Chopin e Liszt. Se o paradigma da tradição do “opus” é a sinfonia de Beethoven, o da tradição do virtuoso é o tema com variações, geralmente baseado em melodias de óperas da moda, mas concebido como um veículo para a exibição artística; se a primeira tradição está associada a um texto único, de autoridade, reproduzido durante a performance, a segunda invoca a multiplicidade de textos que é a regra do rock, por exemplo, mas que causa problemas aos musicólogos treinados na tradição filológica. Muitas das obras de Chopin e Liszt sobrevivem em diversas, mas igualmente autenticas, versões notadas (faz sentido aqui uma relação com a utilização jamaicana deste termo), versões estas que são traços de diferentes 40 performances, igualmente autênticas. Se, para repetir as palavras de Small, musicando significa que “obras musicais existem para dar aos performers algo para interpretar”, então o musicando residiria no próprio âmago da obra musical. (COOK, 2006, p. 9) A tradição de pianistas-compositores, minguada ao longo do século XX na música erudita ocidental, reflete inteiramente a posição de Gismonti em relação às suas obras. A performance deste compositor é sempre norteada por processos que lembram um tema com variações, porém em Egberto iremos substituir as melodias de óperas oitocentistas pelos próprios temas do compositor, que são amplamente reutilizados e reconstruídos 33. Este é um ponto nevrálgico da obra musical de Egberto Gismonti: as reiterações de materiais temáticos ou intertextualidades. Qualquer pesquisa que pretende debruçar-se sobre sua música, e mesmo qualquer intérprete que pretenda executá-la, precisa levar em consideração a dinâmica de suas composições. A ideia de ação, proposta por Small como sendo o âmago de qualquer obra musical, é expandida por Egberto nas mais diversas instâncias, desde significados extramusicais até os elementos constituintes da estrutura da composição em si: forma, melodia, caráter, andamento, harmonia, dentre outros. 2.1 Significados extramusicais “Eu gravei isso [o disco Dança das Cabeças] com o maluco do meu amigo Naná Vasconcelos e não tinha uma partitura pronta. Tinha uma ideia: dois curumins andando numa floresta... pronto!” (GISMONTI, 2016) Existem muitos críticos que condenam a compreensão da música como guardiã de um significado extramusical. Não seria oportuno de nossa parte entrar em uma discussão epistemológica nesse campo, nem criar uma reflexão crítica em torno das significações poéticas da obra de Gismonti a partir do olhar do ouvinte ou do compositor. Esta seria uma pesquisa que mereceria uma atenção exclusiva. A nossa intenção é apenas constatar que o seu discurso poético é um dado importante da sua 33 Há uma outra diferença entre Gismonti e a tradição dos pianistas compositores oitocentistas. Egberto raramente executa uma obra que não é sua, enquanto que compositores como Chopin e Listz frequentemente executavam obras de outros autores. 41 personalidade criativa, que interfere diretamente na elaboração da estrutura de sua composição musical. A poética de sua música sofre as mesmas oscilações ao longo do tempo, demonstrando que é também um processo em constante movimento. O significado extramusical de uma obra pode mudar de acordo com a história que se pretende narrar naquele momento específico. Ao tomarmos a música Palácio de Pinturas como exemplo, podemos perceber uma mudança de sentido poético na comparação de algumas gravações. Em entrevista, Egberto afirma que no primeiro registro (Academia de Danças, 1974) havia um livro de As Mil e Uma Noites no estúdio, que os músicos ficavam folheando nos intervalos. Os títulos das músicas do disco foram tirados de frases deste livro, com o propósito de dar um certo sentido ao encadeamento das faixas. Já na gravação de Palácio de Pinturas, do disco Nó Caipira (1977), colhemos um outro depoimento de Gismonti: Palácio das Pinturas, que é uma espécie de som que surgiu um dia em que eu ia numa canoa com os índios pelo Amazonas, e chegamos a um lugar onde as árvores cobriam o céu. Eu a transformei na história de alguém que vai em uma canoa vendo as formas e as situações da selva. Tem um momento em que as cordas sobem a notas muito rápidas e agudas, como os raios do sol que se colam entre as árvores da selva. E assim é o disco, o campo do norte do Brasil visto através dos sentidos e das emoções.34 Na gravação de Palácio de Pinturas, do disco Nó Caipira, houve uma mudança radical no arranjo e no caráter da música. Percebemos que um novo sentido extramusical surgiu para aquela composição, exigindo que uma nova arquitetura fosse concebida. Nesse caso, poderíamos fazer uma analogia com a literatura, na qual uma mesma estória pode ser contada, sob diversas óticas, pelo mesmo narrador. Ela não deixa de ser a mesma, porém o seu percurso (ou o processo) é cambiável. Sobre o conceito de música pela música, Egberto declara. “Eu considero que cada composição, tem pequenas aberturas que possibilitam que se saia um pouco para direita ou para esquerda, mas que na realidade são bem estruturadas, no sentido de história que está sendo contada. (...) Não gosto de música pela música e aprendi isso com grandes musicólogas. Na Argentina foi Fedora, no Brasil a Ester Scliar e a terceira, a Nádia Boulanger.” (GISMONTI, 2016) 34 LERNOUD. Pipo. "Gismonti conta tudo e algumas coisas mais". Revista Express. Argentina. 1981. p. 18/19. 42 A partir da constatação de que uma narrativa poética pode determinar a composição de Egberto Gismonti, aprofundaremos nossa investigação destacando outro aspecto processual da obra musical de Gismonti: o diálogo entre textos, sobretudo quando estes são um retorno a materiais já utilizados em outras composições. 2.2 Intertextualidades e Ritornelos No contexto de nossa pesquisa, não pretendemos fazer uma investigação exaustiva quanto ao grau e à dimensão da intertextualidade na obra de Egberto Gismonti. Poderíamos citar inúmeros exemplos explícitos de processos intertextuais, como as antologias poéticas35 ou as músicas para teatro, cinema, ballet e televisão. Porém, preferimos nos concentrar exclusivamente na composição e performance. Assim, buscaremos um sentido mais restritivo para o termo intertextualidade, compreendendo esta como o processo de citação de materiais temáticos.36 Ao travarmos um contato extensivo com o todo da obra musical de Egberto, percebemos uma enorme recorrência de intertextualidades. Godoy (1998), ao tentar compreender o processo criativo deste compositor, busca na filosofia de Deleuze e Guattari, o conceito de ritornelo. O sentido etimológico deste termo é aproveitado para resignificar a reincidência de um comportamento que busca a territorialização: Os autores [Deleuze e Guattari] apresentam o ritornelo falando de Etologia (estudo do comportamento dos animais); como 'os pássaros criam seus territórios, além do seu canto, pela criação de cenários, mudanças de desenhos das suas penas, danças, gestos, posturas e como esse mesmo operador de pensamento, funciona na organização social humana, Etnologia (estudo dos comportamentos humanos), até chegar nas teorias da arte e no comportamento dos artistas (GODOY. 1998, p.17). A partir dessa analogia com o comportamento dos animais, que retornam sempre ao mesmo território, repetindo sempre as mesmas ações para resguardar a sua sobrevivência, compreendemos a ideia de ritornelo como o território da personalidade 35 Egberto compôs e gravou: Antologia Poética de João Cabral de Melo Neto (SOM LIVRE, 1979); Antologia Poética de Ferreira Gullar (SOM LIVRE, 1979); Antologia Poética de Jorge Amado (SOM LIVRE, 1980). 36 Restringiremos somente às auto-citações de Egberto. 43 do artista, sustentada pelo seu comportamento expressivo. Nesse sentido, como sugere Godoy, as forças criativas em Egberto Gismonti parecem a todo o instante querer retornar à sua essência enquanto indivíduo (retornar/encontrar o seu terreno). Essa constatação pode ser comprovada pela importância que as relações afetivas tem em suas obras. Como exemplo, podemos citar a onipresença da sua cidade natal, o Carmo, em sua vida e obra; a lembrança e reverência pelo tio Edgar, clarinetista e compositor; o nascimento de seus filhos37. O comportamento expressivo reflete memórias e afetividades, formando um conjunto de elementos que determinam a personalidade do artista. O ritornelo é a busca por esta expressividade através do retorno do artista à sua própria essência. Em um sentido objetivista, podemos destacar o processo de retorno a textos já utilizados anteriormente como uma das marcas do ritornelo em Gismonti. Em uma análise ligeira da obra para violão deste compositor, detectamos diversas reutilizações de materiais temáticos. Para citar alguns exemplos, a peça de concerto Deux Danças Pour Deux Guitares deu origem à Dança Nº 2 e também à música A Porta Encantada; as músicas Celebração de Núpcias e A Porta Encantada transformaramse na obra Água e Dança para dois violões, no disco Saudações (2009); Raga transformou-se em Para John e Paco e o segundo movimento da suíte Três Retratos Para Flauta e Violão deu origem a obra Zig Zag38; em Dança dos Escravos há uma citação de Luzes da Ribalta. Estes são alguns exemplos de ritornelos de materiais temáticos reutilizados de forma estrita; há também um outro processo, que é a citação indireta de motivos já utilizados em outras composições. Neste caso, Egberto constrói uma composição cujo tema possui semelhanças mais sutis com outras obras. Um exemplo é a peça Dois Violões, cujo material temático remete à peça Karatê. Outro caso que poderíamos citar é a performance de Gismonti na composição De Repente. Em suas performances ao vivo, percebemos que ela fundiu-se à outra música, Cego Aderaldo. Egberto uniu os elementos das duas composições, criando um mix que não existia nas gravações originais. Em Cego Aderaldo, também há outra citação 37 Egberto Gismonti, além de ter uma gravadora com o nome de Carmo, gravou um disco com este mesmo nome. A última faixa é o próprio hino da cidade (que aliás foi composta pelo seu tio Edgar). Gismonti também lançou um disco intitulado Em Família. Este LP é marcado pelo nascimento de seus dois filhos: Bianca e Alexandre. Algumas obras foram compostas dedicadas à eles e em muitas delas é possível ouvir choros, gemidos, brincadeiras e até os primeiros batimentos cardíacos dos filhos. Posteriormente Bianca e Alexandre se juntaram ao pai na profissão, dividindo palcos e gravações. 38 Todos os exemplos aqui elencados foram extraidos, exclusivamente, de obras cuja presença do violão é determinante. 44 recorrente, que surgiu após a gravação original (Circense, 1980): no disco Folk Songs, Egberto insere, nessa composição, o tema da música Ciranda, também originária do disco Circense. Esta citação passou a ser uma parte integrante da obra, sendo reafirmada nas performances ao vivo do compositor. A presença do ritornelo, em Gismonti, não é um processo inerente somente à composição. A sua performance também está repleta de déjà vu, como na ocasião da execução de Salvador em duo com Charlie Haden, ao vivo em Montreal (200139): em um momento de liberdade improvisatória, após a exposição dos temas, Egberto passa a tocar – para a improvisação do contrabaixo – o acompanhamento característico de seu violão em uma outra composição de sua autoria, chamada Café.40 Ainda tomando como exemplo a obra Salvador, ao ouvir Egberto interpretar esta música, percebemos que sua performance sintetiza a trajetória da composição ao longo de sua carreira, expondo de forma improvisada, recursos tímbricos, gestos, texturas e materiais motívicos que foram sendo acrescentados ao longo dos anos. Este processo é observado, por exemplo, no disco Orfeo Novo (1971), no qual Gismonti acrescenta um terceiro tema à obra. Este novo material temático torna-se parte do corpus da obra, sendo reutilizado nas demais gravações e performances.41 2.3 Regravações As constantes regravações podem ser compreendidas como um longo processo de aperfeiçoamento da obra. Em cada nova gravação, Egberto reformula completamente sua música, o que faz emergir uma questão relacionada à originalidade. Qual dessas gravações representaria a essência da composição? Qual seria o produto original? A resposta a essa questão pode ser facilmente encontrada, visto que todas as gravações, por mais distintas que sejam umas das outras – em diversas instâncias –, representam uma verdade daquela obra; e por mais que estejam materializadas em um produto (o disco), a essência de qualquer registro fonográfico está contida no processo de composição e performance que o concebe. Enquanto 39 Este disco foi lançado em 2001, porém a gravação foi feita em 1989. 40 Há um detalhe: o tema de Café não chega a ser executado, embora a citação (harmônica) seja bastante explícita na parte do violão. 41 Da mesma forma que esses materiais podem ser acrescentados à música, o processo inverso também ocorre. Na gravação do disco Solo, de 1979, o terceiro e o segundo tema são suprimidos. 45 produto, a gravação seria um processo congelado e armazenado, mas que não deixaria de representar uma verdade da obra, ainda que seja uma verdade circunstancial. Portanto, a performance executada em um registro transmite a verdade do intérprete – e no caso de Egberto, do compositor também – naquele determinado momento. Em entrevista a este pesquisador, Egberto afirma que as constantes regravações servem para melhorar aquilo que não tinha sido feito “corretamente”. Na realidade, o “correto” é uma visão temporária e relativa. A relação de Gismonti com determinadas obras muda com o tempo, e por isso ele vê a necessidade de regravá-las. “Eu fiz 69 discos (e o número 70 vai sair agora) não é a toa. Porque todas as regravações que eu fiz (...), nos primeiros oito ou nove discos tem umas quatro músicas que se repetiram... dois anos depois, repetiram de outra maneira. Como eu nunca fui do ramo da música e muito menos do métier da música, (...) eu refazia para consertar o que eu tinha considerado errado, um, dois, três disco atrás. Não é muito comum. O sujeito grava a música x e dois anos depois regrava a música x diferente, porque declara (e eu sempre declarei isso, não é de hoje não)... eu tô fazendo porque estava errado. ‘Mas como errado?’ É porque eu acertei na época, eu estava feliz na época; eu achei que estava uma beleza... depois eu achei que estava horrível e fui refazendo. Tem até disco meu (...), o mais marcante chama Corações Futuristas, que o disco saiu... seis meses depois saiu a segunda versão do disco.... com capa, de outra cor inclusive, escrito: segunda mixagem. Eu sempre tive tanta liberdade na decisão da música, que eu sempre quis que ela tivesse mais atualizada possível. Não tem nada a ver com modernidade.... é atualizada. Depois eu parei de fazer isso porque a chance que me apareceu pra fazer uma quantidade imensa de discos... não dava pra ficar corrigindo todos os outros discos, se não ia ter uma confusão danada” (GISMONTI, 2016). As regravações de Gismonti, como um todo, são vistas por ele como ciclos de aprendizado. A ideia de ciclo não só reafirma a noção da música enquanto processo, como também expõe a possibilidade de compreendermos a sua discografia como um grande e duradouro processo. Os ciclos de aprendizados são congelados em produtos (discos, filmes e etc) e espelham, em si, a trajetória de longos processos. Sobre este aspecto, Egberto afirma: Sempre me dei ao “luxo” familiar de mudar o rumo da prosa da música que eu venho tocando, sempre fazendo a mesma [música] com variações. Por que se já fiz uma vez, duas três... eu tenho que fazer outra coisa, que isto eu já cansei, agora eu quero isto... claro que passado o primeiro ciclo de aprendizado, minha vida meio que se divide em números de discos, de filmes... a liberdade que me foi dada no Carmo com essa história da segurança.42 42 GISMONTI. Oncotô entrevista Egberto Gismonti. Disponível <http://www.panfletosdanovaera.com.br/detalhe/4310> Acessado em 18/11/2015. em: 46 Esta fala traz alguns dados relevantes: a) a constatação da tradição do tema com variações verificada por Cook em intérpretes-compositores como Liszt e Chopin; b) a consciência da liberdade para “mudar o rumo da prosa”, remetendo ao modus operandi do orador ao contar uma história, que por mais que seja exposta com diferenças, não deixa de ser “a mesma”; eis, portanto, que cada gravação é “a/uma” original; c) a verificação do conceito do ritornelo nas recordações do Carmo, o que representa a consciência de si mesmo, o retorno à origem, a busca pela própria essência. A segurança a que Egberto se refere no texto é algo que o compositor acredita ser comum a todos que vivem em uma cidade pequena e interiorana. Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, Gismonti diz que só quem nasceu no interior não sabe o que é ser anônimo. Em uma cidade pequena, todos se conhecem e o fato de não ser um anônimo proporciona, de acordo com Gismonti, a segurança de ser livre para criar o que bem entender, sem a angústia de não ser aceito ou notado. O Carmo forneceu à Egberto a coragem de ser um experimentador; de desenvolver a sua personalidade criativa sem medo de fazer algo que não proporcionasse notoriedade. 2.4 A gravação enquanto processo Como vimos, a dinâmica da música de Egberto Gismonti reforça o caráter de processual em sua obra, no entanto, podemos compreender a música tanto como processo quanto como produto, porém é a relação entre estes dois que define o que é a performance musical (COOK, 2001). Mesmo a execução ao vivo de uma obra – embora seja um evento temporal, portanto, processual – constitui-se em um produto a ser consumido pelo ouvinte, desde a compra do ingresso até o consumo/fruição musical em si. Além disso, a execução da obra, Da Capo ao Fine, é um produto resultante das escolhas interpretativas do performer. Já na gravação, o produto é derivado de vários processos (incluindo a pósprodução), que pode chegar ao ponto de reproduzir uma performance fictícia. A gravação (um produto comercial) afigura-se como um traço de uma performance (um processo), mas, na realidade, consiste geralmente de um produto composto de vários takes, e do processamento do som, em 47 diferentes graus de elaboração – em outras palavras, não é propriamente um traço, mas sim a representação de uma performance que, na realidade, nunca existiu (COOK, 2006, p. 14). Apropriando-se da tecnologia dos estúdios de gravação, os intérpretes criam performances que na realidade nunca existiram. No caso de Egberto Gismonti, a utilização deste recurso tecnológico se expande para a construção da própria obra, visto a sua posição de intérprete e compositor. Dentro da discografia de Gismonti, podemos constatar que, na maioria significativa de suas gravações, ele executa mais de um instrumento. Mesmo em discos eminentemente solo, como Dança dos Escravos (1988) e Alma (1986), em algum momento há a sobreposição de algum outro instrumento (nem que seja um sino!). Em Dança das Cabeças (1977), disco em duo com o percussionista Naná Vasconcelos, podemos identificar alguns momentos em que o violão de Gismonti foi complementado, a posteriori, por outro violão. Apesar disso, é expressivamente notável a concepção de “gravação ao vivo”, proposta pelo duo. Também há casos extremos, como no disco Fantasia (1982), em que Egberto grava todos os instrumentos sozinho, em seu estúdio caseiro; ou no disco Bandeira do Brasil (1984), no qual o processo de gravar tudo sozinho só não foi consumado por que há uma pequena participação do saxofonista Nivaldo Ornelas e da cantora Maryz Bravo em duas faixas do álbum. Notamos, nesses processos de gravação, como a composição e a interpretação são campos que caminham juntos em Egberto Gismonti. A própria compreensão de qual é a dimensão de sua obra – o que é criação do compositor, o que é do intérprete – em uma performance compartilhada com outros músicos, demonstra o quanto Gismonti valoriza o papel do intérprete na obra musical. Para ele, músicos como Robertinho Silva, Mauro Senise, Nando Carneiro, Zeca Assumpção, Naná Vasconcelos, Jaques Morenlenbaum e Nivaldo Ornelas são “aqueles que tornam esta música possível”. A ideia da música como uma criação coletiva fica bastante evidente em alguns discos de Gismonti43. Nesse sentido, sua composição é somente um script – 43 Talvez o melhor exemplo seja Dança das Cabeças, em parceria com Naná Vasconcelos. O disco é um ritual interativo regado a muita improvisação. Observamos que no catálogo, o direito autoral ficou exclusivo à Egberto. Em entrevista a esse pesquisador, Gismonti afirma que foi uma gentiliza do Naná, 48 para utilizar o conceito de Cook – que organiza o papel de cada personagem/músico durante a performance: Paul Valéry comparou a peça musical a uma receita (GOEHR 1996, p.11), R.G. Collingwood viu a partitura como um “esquema precário” de instruções para a performance (KIVY 1995, p.264), ao passo que GODLOVITCH (1998, p.82) se refere às obras grafadas como “modelos, rascunhos, esquemas ou guias que, quando consultados dentro dos limites da aprovação convencional, dão chance à música de acontecer ou de funcionar” (COOK, 2006, p. 12). A quebra da visão da música engessada no texto musical pode ser notada em Egberto não só na maneira como ele se relaciona com a sua obra e com os músicos que o acompanham, mas também no caminho aberto por ele em relação a reelaborar textos vinculados à tradição erudita44. O maior exemplo disso é o disco Trem Caipira (1985). Nele, Egberto resolveu gravar Heitor Villa-Lobos à sua maneira, arranjando obras até então nunca reelaboradas e interpretadas no âmbito da música popular. Foi necessário um trabalho árduo para convencer os editores da obra de Villa-Lobos, pois jamais algo semelhante havia sido realizado. Em entrevista, Egberto relata: Eu quis fazer uma música que fosse Villa-Lobos, mas tivesse também a minha cara. Além disso, o tempo todo fiquei preocupado com o que ele pensaria da música que eu estava fazendo. Por isso, recomecei o disco várias vezes. Na verdade, não me preocupei em analisar teoricamente a música de Villa-Lobos, mas em transmitir a emoção com que ele criou cada composição.45 Sobre o disco Trem Caipira, Luiz Antonio Giron, redator da Folha de São Paulo, em reportagem do ano de 1985, comenta: O resultado desse ofício de leitura livre, em que Gismonti adaptou músicas do compositor segundo seus pontos de vista, é bastante polêmico. Os músicos eruditos certamente não engolirão em seco as alterações interpretativas que Gismonti imprimiu às composições através do uso e que abriu mão da autoria do disco em retribuição ao convite inesperado para gravar. Vasconcelos sempre foi grato a Gismonti, por ter aberto várias portas à ele, sobretudo na ECM. 44 Este processo é verificado sobretudo em obras de concerto (eruditas) do próprio Egberto Gismonti. A peça Deux Danças Pour Deux Guitares, citada anteriormente, possui este caráter concertístico erudito e foi realocada em um âmbito bastante popular (rock progressivo) na música A Porta Encantada, no disco Academia de Danças. 45 SILVA, Beatriz Coelho. "Gismonti & Villa, coluna do meio". O Globo. 1985 49 abuso de sintetizadores. Porém mesmo raivosos, sentirão ímpeto de consultar partituras e gravações mais "fiéis". Só esse fato, o de provocar uma volta à obra original de Villa-Lobos, já dá a medida da importância de "Trem Caipira".46 A liberdade criativa de Egberto Gismonti o leva a transcender normas estabelecidas em qualquer escala, mesmo ao interpretar outro autor, sem limites impostos ou “padrões de conduta” preestabelecidos. Outro exemplo é o seu arranjo intitulado Variações Sobre um Tema de Leo Brouwer (Árvore, 1973). Nele, Egberto compõe uma variação para o Estudo Nº4 do compositor cubano Leo Brouwer e acrescenta ao arranjo flautas, piano, percussão, saxofone e coro. Em determinado momento, a música entra na segunda parte da composição Cravo e Canela de Milton Nascimento e retorna ao tema sem passar pela primeira parte da referida canção de Milton. Essa liberdade é um traço marcante da personalidade musical de Gismonti, que se reflete na maneira como ele atua no estúdio de gravação. Como vimos neste tópico, os processos envolvidos na concepção de uma gravação, feita por Egberto, possuem algumas características: a possibilidade de criar o arranjo da obra gravando vários instrumentos, a valorização da participação dos intérpretes na obra musical e a compreensão da “partitura” como um script. Estes três aspectos nos fazem refletir sobre a hipótese de que o intérprete também é um compositor. 2.5 Interpretar é compor A concepção de interpretação pode ser expandida para um sentido mais amplo. Podemos entender que o performer, dentro da tradição da música erudita ocidental, compõe a sua interpretação baseando-se no texto musical. A composição de uma interpretação demanda a compreensão dos processos sociais, estilísticos e estruturais inerentes à obra. Em se tratando de músicas não notadas em partituras, o desenvolvimento de uma interpretação também demanda a assimilação destes mesmos processos, porém alguns aspectos são acrescentados, como a transcrição de gravações e, possivelmente, a recriação envolvendo o arranjo. É recomendável ao intérprete, que pretende executar uma peça de Egberto Gismonti de uma maneira 46 GIRON. Luís Antônio. "O Villa-Lobos que Gismonti reinventou". Folha de São Paulo. 27/11/1985 50 Gismontiana, compreender os processos inerentes à essa obra a ponto de ter a liberdade de manejar as estruturas do arranjo, o que caracterizaria, deste modo, uma esfera mais ampla do ato de compor a interpretação. Sobre o processo de transcrição de sua obra, Gismonti declara: Quando o Sérgio, do Duo Assad, me pediu uma partitura, eu disse ‘Pra quê? Vocês estão escrevendo a música que eu faço. Quando você pega a minha música, harmoniza, faz variações em cima dos improvisos e aquilo tudo vira minha partitura, vocês estão fazendo a minha música’. Isso é uma coisa tão contemporânea! É uma forma que não cabe dentro do tradicional! (BORGES, 2005, p. 30). O Duo Assad, antes de perguntar a respeito da existência de partituras, já estava tocando as obras de Gismonti de uma maneira coerente em relação à essência de seus processos. Para interpretá-las é importante entender que se tratam de obras com muitas aberturas. Nesta dissertação de mestrado, realizamos diversas transcrições de trechos de obras para violão com o intuito de investigar a linguagem violonística de Gismonti e o estilo interpretativo inerente à ela. Acredito que a composição de uma interpretação de uma obra de Gismonti deveria passar por um estudo aprofundado, que levasse em consideração o desenvolvimento da obra interpretada ao longo da discografia do autor. Um exemplo é a interpretação da obra Salvador, feita pelo violonista Lucas Telles47, que ampara-se em 3 gravações. A elaboração da interpretação, baseada na trajetória da obra, ou seja, em seus diversos processos, é um modo possível de construção interpretativa que dialoga com a linguagem da composição e o estilo interpretativo do autor48. A construção da interpretação de Gismonti é, portanto, uma fusão de horizontes que se materializa em um produto provisório. Somando a isso, a perspectiva de uma interpretação Gismontiana também pode ser encarada como a possibilidade de subversão completa do caráter de obra musical. Um exemplo, novamente, seria o disco Trem Caipira, que se apresenta como uma espécie de mensagem para que os intérpretes deixem aflorar sua personalidade criativa, sem limites impostos pela partitura. 47 A referida gravação pode ser encontrada no sítio eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=oUeGu_KGL0Q 48 O capítulo 4 tem como finalidade investigar a linguagem violonística de Gismonti por meio de suas gravações. A partir desse exame, acreditamos que seja possível estabelecer alguns parâmetros interpretativos pertinentes ao músico que pretende executar obras para violão de Gismonti. 51 Até o momento, desenvolvemos a ideia de que a interpretação é um ato de composição em um sentido mais amplo, que pressupõe a recriação no nível do arranjo. Por outro lado, também podemos compreender a composição como um ato de interpretação. A pesquisadora Marília Laboissière nos fornece o seguinte subsídio: Nesse processo temos então, do ponto de vista metafórico, o conceito de primeira interpretação, interpretação do compositor em torno de suas próprias ideias criadoras, adquirindo tônus em razão de que só ele, como um ser integral, é capaz dessa empreitada especulativa, já que o fenômeno da música não é simplesmente inspiração, mas um fenômeno especulativo (LABOISSIÈRE, 2007, p.117). Posteriormente ela complementa: A CRIAÇÃO DE UMA OBRA: Para o compositor, criar é assim “interpretar” o seu imaginário, ainda que de forma metafórica, é dar sentido à sua fantasia sonora, sensível, interna, codificando na partitura uma construção de sentido que será marcada por particularidades que podem ser lidas como ausência e presença de um estilo, de um tempo, de uma época (LABOISSIÈRE, 2007, p. 118). A composição, de acordo com Laboissière, é o primeiro movimento interpretativo; o segundo partiria do intérprete e o terceiro do ouvinte. Dito isto, podemos imaginar que, do ponto de vista do performer, há uma inversão dos acontecimentos: o primeiro movimento interpretativo é a escuta da gravação; o segundo é a transcrição e assimilação do texto musical; e o terceiro, a composição da interpretação. Este esquema serve à obras sem partituras e disponíveis apenas em gravações, como o repertório para violão estudado nessa pesquisa. Enquanto ouvinte, o músico tem a possibilidade de interpretar, através da escuta, a linguagem que pretende executar. Nesse processo, a obra é incorporada a ele próprio: INTERPRETAR/OUVIR UMA OBRA é viver um sentido expresso como sensação, provocado pelas reações entre indivíduo e fluxo sonoro, evocando estados emotivos. Recriando os afectos e perceptos existentes na música, forma-se o incorporal homem-música, produzindo agregados sensíveis marcados por uma particularidade: sem significação a priori, música e intérprete se tornam um só corpo, um estado de ser, um momento vivificante num movimento incessante e irreversível. O resultado desse processo interpretativo percebido como sentimento numa leitura poética, ou numa leitura racionalista, é sempre induzido pela capacidade que a música tem de suscitar diferentes tipos e intensidades de sensação: o “sermúsica” (LABOISSIÈRE, 2007, p. 131). 52 A incorporação da música ao ouvinte/intérprete significa que os elementos estruturais da obra e da performance estão sendo assimilados e decodificados. Os elementos estruturais da composição, no caso desta pesquisa, é a própria linguagem violonística de Gismonti49. Para o performer que pretende tocar a obra de Gismonti, é importante a incorporação de aspectos processuais envolvidos na composição: das intertextualidades até o estilo interpretativo e a técnica propriamente dita. Um exemplo que podemos trazer para ilustrar esta absorção da obra musical de Gismonti, feita por outro intérprete, é o do violonista sul africano Derek Gripper. Em seu site, podemos encontrar diversas transcrições de obras de Gismonti realizadas por ele50: elas tentam refletir o estilo interpretativo de Egberto, porém o arranjo não é executado literalmente como foi gravado pelo compositor. Na transcrição da obra Salvador, do disco Solo (1979), constatamos que Gripper parece incorporar os elementos de improvisação modal utilizados por Gismonti. Esta observação demonstra que o intérprete não faz uma execução conservadora da obra, transcrevendo literalmente o texto musical. Além disso, sua performance revela uma compreensão verdadeira das possibilidades processuais do objeto interpretado51. Para isto ocorrer, é necessário a absorção da linguagem Gismontiana, a qual começa a ser decodificada no momento da escuta. Após ouvir e transcrever a obra, o intérprete de Gismonti parte para a composição de sua performance. Em um movimento duplo, que conjuga a ação de compor e interpretar, ele busca aliar o imaginário do compositor ao seu próprio, na tentativa de transformar-se a si mesmo na música que executa: INTERPRETAR/EXECUTAR UMA OBRA é dar sentido à leitura, construindo um fluxo sonoro intermediado pelo silêncio significante, que, marcado por particularidades, dá um sentido pessoal aos indicativos formais da obra. Sugerindo uma ideia de completude, apresenta-se como forma viva, única e original, uma recriação que leva à beleza do estranhamento. É territorializar um espaço no qual, segundo Ferraz (1998, p. 153), não existe mais nem objeto, nem intérprete, mas devir indivíduo-música, no qual o intérprete se “torna parte do tecido sonoro, se transformando passo a passo em som, para praticamente percorrer os entremeios desse som” (LABOISSIÈRE, 2007, p. 124). 49 Ver capítulo 4. O sítio eletrônico ao qual me refiro é: http://www.derekgripper.com/contemporary-guitar/egbertogismonti/ 51 Outro dado é que o intérprete adapta a sua transcrição ao violão de 6 cordas. A gravação original é para violão de 8 cordas com afinação reentrante. 50 53 Este movimento de completude entre intérprete e obra é intrínseco na performance de Gismonti. Neste caso, ele estabelece um diálogo direto entre compositor e plateia, de uma forma muito mais aprofundada do que pretendia o paradigma interpretativo tradicional da musicologia histórica52. Mas, visto que a interpretação também é um ato de compor, a performance das obras de Gismonti, realizada por outros intérpretes, também pode refletir um diálogo direto entre aquele que compõe e aquele que escuta, pois, ao manipular o arranjo da obra, o intérprete passa a ter domínio sobre a esfera composicional da música. Para obter sucesso nesta empreitada, é primordial a compreensão dos processos composicionais e interpretativos inerentes à obra, como, por exemplo, os ritornelos e as intertextualidades demonstrados anteriormente. Até o momento, discutimos aspectos gerais da relação entre processo e produto na obra de Gismonti. A partir do próximo capítulo, iremos nos delimitar apenas ao violão. Começaremos realizando um catálogo inicial das composições para violão de Gismonti e, finalmente, no capítulo 4, nos aprofundaremos nas questões específicas de sua linguagem violonística e estilo interpretativo. 52 Este paradigma é calcado na idealização da partitura e da verdade do compositor. Personalidades como Schoenberg e Stravinsky contribuíram para fomentar esta visão sobre a obra musical. Para eles o performer não deveria “interpretar” e, sim, “executar” o que está escrito na partitura. 54 CAPÍTULO 3 – A PRESENÇA DO VIOLÃO NA OBRA DE EGBERTO GISMONTI Existe uma dificuldade em estabelecer a extensão da obra para violão de Egberto Gismonti. Ter uma dimensão precisa, tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo, é um dos maiores desafios, pois a escassez de partituras e a ausência de um catálogo dificultam esse trabalho. A singularidade e a dinâmica de sua obra, sistematicamente recriada em gravações e performances, com uma liberdade criativa despreocupada das amarras de gêneros e formas musicais pré concebidas, são fatores que dificultam qualquer trabalho que vise entendê-la e mensurá-la. Como solução para dimensionar a sua obra para violão, tão vasta e dinâmica, e criar um catálogo, foram estabelecidos três parâmetros de análise qualitativa: 1) violão solista; 2) violão em contexto camerístico; 3) violão acompanhador. A metodologia utilizada nesse levantamento foi a seguinte: como as obras de Gismonti aparecem em múltiplas roupagens, resolvemos coloca-las na qualidade de solista somente quando foram concebidas para violão solo; quando foram gravadas ou executadas em algum momento por Egberto, em caráter solista; e quando possuem uma estrutura autônoma, que não demanda acompanhamento. Identificamos como violão acompanhador somente as obras que caracterizam-se como canção. Desse modo evitamos entrar em contradições, pois seria inviável estabelecer a diferença entre um violão acompanhador e um violão em contexto de câmara. Quaisquer obras que contenham violão, mas que não sejam canção e não tenham um caráter solista, foram alocadas no contexto camerístico 53 . Como não há partituras, baseamos a catalogação das obras nos registros fonográficos, seguindo a cronologia das gravações. É importante salientar o desafio de se estabelecer uma metodologia que defina as características do violão nas obras de Egberto. Sua força criativa traz uma infinidade de possibilidades que podem nos contradizer. Um exemplo curioso talvez seja o disco de Paul Horne (A Altura do Sol, 1976), no qual Egberto atuou como produtor, arranjador, compositor e intérprete. As músicas Dança das Cabeças e 53 As composição que possuem apenas vocalizes, entram no contexto de música de câmara. 55 Salvador, que sempre foram arquitetadas por Egberto com o violão em primeiro plano, são apresentadas – por escolhas na mixagem da gravação – com o instrumento em segundo plano. Um ouvinte que não tenha tido contato com as versões clássicas dessas duas composições, poderia facilmente identificar o violão como um instrumento acompanhador, embora Egberto toque o arranjo de violão com o mesmo conteúdo da versão solista. Nesse caso, as duas obras gravadas no disco de Paul Horne poderiam ser colocadas tanto no contexto solista, quanto no contexto de música de câmara. Obras que foram regravadas de diversas formas, mas que possuem características de violão solista, foram colocadas nesse contexto por se tratar do objeto desta pesquisa. 3.1 Egberto Gismonti, o multi-instrumentista Antes de começarmos a avaliar a presença do violão na obra de Egberto Gismonti, é importante levantarmos algumas questões a respeito do intérpretecompositor Egberto. Em uma escuta aprofundada de sua discografia, percebemos que existe uma equidade na presença do violão e do piano54. Além do volume de obras exclusivamente dedicadas aos dois instrumentos serem semelhantes, Egberto é quase sempre fiel ao instrumento para o qual uma obra foi concebida. Uma música composta para violão solista pode ter outros instrumentos agregados dentro do arranjo – inclusive o piano –, porém o piano raramente assumirá a função de solista em uma obra concebida para violão e vice versa55. Isso não significa que Egberto se prende a instrumentações; pelo contrário, esse dado só é válido quando analisamos a transposição de obras entre o piano e o violão. Na realidade, a liberdade criativa em combinar os mais diversos instrumentos é uma marca na discografia de Gismonti. É o caso da música Palácio de Pinturas, que foi gravada originalmente no disco 54 Este fato é observado em toda a produção de Gismonti, inclusice na sua música para cinema, teatro, televisão ou ballet. Na sua discografia há um disco integralmente dedicado ao violão (Dança dos Escravos, 1988) e um disco integralmente dedicado ao piano (Alma, 1986). São poucos os discos que o violão não está presente. Em uma investigação não exaustiva, pude constatar alguns desses discos: Janela de Ouro (1970); Trem Caipira (1985); Feixe de Luz (1988); Casa das Andorinha (1992); Meeting Point (1997). 55 Há um caso que poderia ser entendido como uma excessão à essa regra. No disco Alma (1986), Egberto grava a música Karatê ao piano, e no disco Circense (1988) grava essa música na viola, com o piano fazendo acompanhamento. Em performances ao vivo, Egberto executa a música Karatê tanto no piano quanto no violão. 56 Academia de Danças (1976). Nela há a presença de violão, cordas, piano, sintetizadores, baixo, bateria e voz. Posteriormente ela foi gravada em duo de violão – com Ralph Towner – no disco Sol do Meio Dia (1978) e logo depois com um arranjo integralmente para orquestra, no disco Nó Caipira (1978). Outro dado importante é o interesse de Gismonti por timbres e texturas dos mais diversos instrumentos. Egberto executou em seus discos instrumentos como kalimba, viola, cítara, órgão, sintetizadores, flautas indígenas, baixo elétrico, bateria, flautas de madeira, garrafas, sanfona, cavaquinho, violoncelo, zabumba, bambuzal, pífano, dilruba56, entre outros. Muitas de suas composições foram concebidas para instrumentos específicos, tornando-se obras pouco ou nunca executadas em suas performances posteriores à gravação original. Um exemplo é o disco Bandeira do Brasil (1984), no qual Egberto troca o violão pela cítara. Este instrumento assume papel de solista em Carta Marítma e Força Lascada57. Neste álbum, Egberto também executa cavaquinho, dilruba, flautas de bambu e sintetizadores. Outro caso de composições menos ortodoxas, que possuem um elo indissociável com a instrumentação concebida em sua origem, encontra-se no disco Sol do Meio Dia (1978). Egberto grava com o percussionista Naná Vasconcelos músicas como Kalimba (Kalimba, voz, flautas de madeira, berimbau e percussão) e Sapain (garrafa, voz, flauta de madeira e corpo). A busca por novos timbres vai além dos instrumentos acústicos. Egberto gravou diversos discos com uma forte presença de sintetizadores e teclados eletrônicos. No disco Fantasia (1982), registrado integralmente por Egberto em seu estúdio, o teclado eletrônico Obx-a está presente em todas as faixas, inclusive nas músicas Dois Violões e Para John e Paco, que são obras feitas para violão. Feixe de Luz (1988), Trem Caipira (1985) e Casa das Andorinhas (1992) são outros exemplos de discos marcados pela presença de sintetizadores, teclados eletrônicos e samplers. Em se tratando de violão, podemos dizer que Egberto Gismonti é um multi violonista. Os primeiros discos de Egberto foram gravados com o violão de 6 cordas. Algumas obras importantes como Central Guitar (1973), Variation Pour Guitare (1970) e Deux Danças Pour Deux Guitares (1974) foram compostas para o 6 cordas. No decorrer da década de 1970, Egberto migrou para violões de 8 e 12 cordas. 56 Instrumento de cordas friccionadas, similar a cítara, oriundo do norte da Índia. 57 Essa música é praticamente uma fantasia sobre Asa Branca e Mulher Rendeira. 57 Com esses violões, Gismonti gravou alguns de seus discos antológicos da segunda metade da década de 1970, como Dança das Cabeças (1977), Sol do Meio Dia (1978), Nó Caipira (1978) e Solo (1979). Na década seguinte, Egberto passou para os violões de 10 e 14 cordas58, usados em suas performances até os dias de hoje. A partir dessa migração, a maioria de seus discos seguintes foram gravados com esses violões, como, por exemplo, Em Família (1981), Duas Vozes (1984) e Dança do Escravos (1988). 3.2 O violão solista Para obtermos uma dimensão quantitativa do violão na obra de Egberto Gismonti, baseamos nossa pesquisa na discografia do autor, em entrevistas de jornais/revistas e em depoimentos do compositor e de seu filho Alexandre Gismonti. São raras as obras de Egberto Gismonti que foram editadas e publicadas em partituras; a maioria de suas composições editadas são para música de câmara e orquestra sinfônica. Devido à falta de dados, seguiremos a ordem cronológica dos discos como forma de estabelecer o ano da composição. Obras que não foram gravadas em discos, nem publicadas, serão colocadas ao final. Salvador (1969): Esta é uma das obras mais regravadas e tocadas por Egberto até a atualidade. É, portanto, um dos principais objetos de análise desta pesquisa. Salvador consta no primeiro disco de Egberto (1969), com acompanhamento de bateria e contrabaixo. Em um levantamento não exaustivo, foi possível constatar 7 discos com a presença dessa composição. No disco Orfeu Novo (1971), em um determinado momento, o violão divide a função de solista com a flauta, expondo uma interpretação de caráter camerista. Nesta gravação Egberto insere uma terceira parte na música, que é reafirmada nas gravações seguintes. No disco Solo (1979), a obra transforma-se completamente, tanto no caráter quanto nos recursos técnicos. Neste disco Egberto utiliza um violão de 8 cordas com afinação reentrante59. Atualmente Salvador é executada em concertos solo com o violão de 10 cordas. Ao ouvi-lo tocar percebemos que sua performance sintetiza a trajetória desta música que integra, de forma 58 Ver capítulo 4 59 Idem. 58 improvisada, recursos tímbricos, gestos, texturas e materiais motívicos que foram sendo acrescentados e reciclados ao longo dos anos. Variation Pour Guitare (1970): Obra para violão solo, provavelmente composta no período de estudos na França, editada pela Max Eschig. É uma peça pouco conhecida. Há uma gravação feita pelo violonista Betho Davezac (Variations Sur La Guitare, 1976). Variation Pour Guitare faz parte de um conjunto de obras que Egberto cria, mas não executa como intérprete. Central Guitar (1973): Esta peça também faz parte desse conjunto que Egberto não executa. Editada também pela Max Eschig, Central Guitar é uma obra bastante conhecida no meio do violão de concerto. Existem gravações de diversos intérpretes, como Álvaro Pierre (1990), Udo Janoske (1994) e Walter Abt (1995). Memória e Fado (1973): Esta é uma canção na qual o violão faz acompanhamento e foi gravada pela primeira vez no disco Árvore (1973). Como colocado anteriormente, ao tratarmos de Gismonti, nenhum critério pode ser estanque. No disco Dança dos Escravos (1988), Egberto a regrava com dois violões. Portanto a composição poderia ser classificada no contexto camerista, porém, em 2010, o violonista Odair Assad lançou o disco El Caminante, de violão solo, no qual uma das faixas é Memória e Fado, com uma versão arranjada pelo próprio Egberto. Memória e Fado possui uma partitura para violão solo que não foi publicada oficialmente. Dança das Cabeças (1976): Esta composição é um divisor de águas no desenvolvimento da performance violonística de Egberto. A primeira gravação foi feita em Corações Futuristas (1976), registro no qual ela apresenta caráter camerístico. O violão, por vezes, fica em segundo plano devido a densidade do arranjo, composto por instrumentos diversos, como flauta, baixo, sax, bateria, percussão e sintetizadores. Porém um fato ocorrido no ano de 1977 talvez tenha motivado Egberto a lançar Dança das Cabeças e outras obras para violão em um contexto mais intimista. Gismonti gravaria um novo disco pela ECM, em Oslo, na Noruega, porém os músicos de seu grupo (Academia de Danças) não conseguiram embarcar por razões alfandegárias. O percussionista Naná Vasconcelos, que nunca havia tocado com Gismonti, estava na Europa e aceitou o convite para gravar. Por 59 este acaso, nasceu o disco Dança das Cabeças (1977), um dos maiores sucessos comerciais da carreira de Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos. Gravado com o violão de 8 cordas com a afinação reentrante, este trabalho inicia a jornada de Gismonti pela junção de diversos procedimentos técnicos e composicionais, como o uso de harmônicos, pedais, percussões, acordes paralelos, entre outros. Dança das Cabeças é uma obra que o compositor frequentemente executa em suas performances solo. Celebração de Núpcias (1976): Esta música, assim como Dança das Cabeças, também foi gravada no disco Corações Futuristas (1976) e regravada com Naná Vasconcelos em Oslo. A Porta Encantada (1976): Composição que segue a mesma trajetória de Celebração de Núpcias. É interessante observar que as duas músicas foram gravadas em sequência, sem cortes definidos de uma faixa para a outra60. Um outro dado interessante é que A Porta Encantada utiliza os mesmos materiais motívicos da obra Deux Danças pour Deux Guitares (1974). É também notável a presença de um segundo violão (gravado também por Egberto), nesta música no disco Dança das Cabeças. Raga (1977): Esta peça traz um dado curioso: foi gravada originalmente no disco Carmo (1977), com um arranjo composto por orquestra e diversos instrumentos: percussão, baixo, piano elétrico, kalimba e sintetizadores. Não identificamos, na ficha técnica, a presença do violão, pairando a dúvida de que o uso de sintetizadores poderia copiar o timbre do violão de aço ou da viola. Já no disco Sol do Meio Dia (1978), Gismonti regrava essa composição utilizando o violão de 8 cordas com afinação reentrante. Saudações (1978): Esta obra é uma canção feita em parceria com Paulo César Pinheiro e gravada pela primeira vez no disco Nó Caipira (1978), com arranjo de voz e violão. Posteriormente, Gismonti a grava no formato de violão solo (10 cordas) no disco Saudações (2009). Por isso classificamos no contexto de violão solista. 60 Este mecanismo, de gravar um disco ininterrupto, foi uma opção que Egberto desenvolveu na década de 70. 60 Dança Solitária Nº2 (1978): É uma música para violão solo que aparece no disco Sol do Meio Dia (1978)61. No disco anterior (Dança da Cabeças), há a Dança Solitária para piano, singularidade que nos remete novamente a equidade com que Egberto trata estes dois instrumentos em sua discografia. Ambas são peças de caráter introspectivo e improvisatório. Selva Amazônica (1978): É uma composição para violão de 12 cordas, dedicada a Villa-Lobos e gravada pela primeira vez no disco Nó Caipira (1978). Este primeiro registro tem um caráter camerístico, com a presença de contrabaixo, percussões, kalimba e viola. Já no disco Solo (1979), Egberto a grava sozinho, usando vocalizes eventualmente. Nesta peça, recursos técnicos, como harmônicos e pedais são amplamente explorados. No meio da gravação do disco Solo, identificamos um trecho de acordes paralelos que remetem à linguagem violonística de Villa-Lobos, como na segunda parte do seu prelúdio Nº2. Já no primeiro registro, há uma alusão direta à Mulher Rendeira (Zé do Norte). Cego Aderaldo (1979): Obra gravada no disco Folk Songs (1980), com o trio formado por Egberto Gismonti (violão de 12 cordas), Charlie Haden (contrabaixo) e Jan Garbarek (Sax Soprano). Cego Aderaldo também está presente no disco Circense (1980) com participação do violinista L. Shankar, e no disco Mágico (201262). É uma composição que Egberto toca em seus concertos solo. Karatê (1980): Esta é uma das raras composições que Egberto executa tanto no violão quanto no piano. Foi gravada pela primeira vez no disco Circense (1980), aparentemente na viola 63 . A versão para piano aparece no disco Alma (1986). Constatamos regravações desta obra por artistas como Hamilton de Hollanda (Música das Nuvens e do Chão, 2004), Duo Assad (Live in Brussels, 2004) e o Grupo D’alma (D’alma, 1981). 61 Esta é a primeira gravação, na discografia de Gismonti, que o violão aparece integralmente solo. 62 Este disco foi lançado em 2012, porém a gravação foi feita ao vivo em 1981. 63 É difícil de identificar se Egberto gravou com viola caipira ou com seu violão de 12 cordas, que possui ordens duplas de aço nas primeiras cordas e tem, portanto, com um timbre bastante semelhante à viola. 61 Em Família (1981): Composição que marca a fase na qual Egberto migra dos violões de 8 e 12 cordas para os violões de 10 e 14 cordas. Em Família é uma obra que integra suas performances solo no violão de 10 cordas até a atualidade. Exemplifica diversos recursos técnicos recorrentes na linguagem violonística de Egberto, como a independência entre as duas mãos, percussões, tappings 64 , ostinatos, harmônicos naturais usados como pedais rítmicos, entre outros. Foi gravada no disco Sanfona (1981) e Em Família (1981) com a participação de outros instrumentos, como baixo, bateria, sax, flauta e piano. Também aparece no álbum gravado em duo com Charlie Haden ao vivo, em Montreal (2001). Dança dos Pés (1981): Composição de caráter improvisatório que aparece no potpourri do disco Sanfona (1981), em uma sequência que reúne Em Família/Sanfona/Dança dos Pés/Eterna. De Repente (1981): Música gravada com o violão de 12 cordas no disco Sanfona (1981) que passou a ser executada em conjunto com a composição Cego Aderaldo. Cavaquinho (1981): Esta é uma composição para violão de 10 cordas, também presente no disco Sanfona (1981). 12 de Fevereiro (1981): Outra obra para violão de 10 cordas do disco Sanfona (1981). Nesta gravação se destaca a presença da voz de Egberto, fazendo vocalises, recurso recorrente em diversas gravações solo. Choro (1981): Obra registrada no disco Em Família (1981), na qual Gismonti executa violão e piano. Poderia ser classificada como música de câmera, porém há um fato interessante sobre ela. O violonista Alexandre Gismonti, filho de Egberto, fez um arranjo para violão solo da peça e apresentou em seu recital de formatura. Ao ouvi-lo tocar, Egberto resolveu fazer a sua versão da obra, pois achou que “estavam faltando algumas vozes”. Tais vozes são parte integrante do primeiro arranjo, do disco Em Família, o que demostra sua consciência sobre o que é essencial na composição. A 64 Ver capítulo 4. 62 obra, possui, portanto, uma partitura para violão solo que não foi publicada oficialmente. Rio de Janeiro (1985): Esta música, assim como Para John e Paco, é uma variação sobre outra composição: é possível identificar claramente a semelhança com a obra Em Família; todos os elementos motívicos estão presentes. Ela foi gravada no disco Duas Vozes (1985), com o percussionista Naná Vasconcelos. Dançando (1985): Obra para violão de 10 cordas do Duas Vozes (1985). Na gravação, além da percussão de Naná Vasconcelos, ouve-se a voz de Egberto. Fogueira (1985): Obra para violão de 14 cordas (ou 12 cordas) também gravada no disco Duas Vozes (1985). Bianca (1985): Obra dedica à filha Bianca Gismonti, registrada pela primeira vez no disco Duas Vozes (1985), com a utilização de efeitos eletrônicos no violão, como o chorus 65 . Egberto a gravou em formação camerística no disco Música de Sobrevivência (1993): Gismonti ao violão de 10 cordas, Jaques Morelenbaum no violoncelo e Zeca Assumpção no contrabaixo. Bianca é uma das composições mais executadas por Egberto em seus concertos de violão solo. Lundu (1988): Obra para violão de 10 cordas registrada pela primeira vez de forma solista no disco Dança dos Escravos (1988). Posteriormente, Egberto a regravou no disco Música de Sobrevivência (1993) com o nome de Lundu #2, com violoncelo e contrabaixo no arranjo. Recentemente, Lundu foi regravada em duo de violões por Egberto Gismonti e seu filho Alexandre Gismonti, no disco Saudações (2009). Lundu é um bom exemplo das múltiplas faces que uma mesma obra assume na discografia de Gismonti: vai desde o simples violão solo, passa para violão e conjunto de câmara e chega até o violão com orquestra.66 65 O chorus é um efeito que tem a finalidade de produzir a sensação de aumento na quantidade de fontes sonoras, frequentemente chamado de dobra. (fonte Wikipédia) 66 Uma versão de Lundu em formato de violão e orquestra foi verificada no concerto realizado por Egberto, em 1992, com a Orquestra Experimental de Repertório, pelo projeto Memória Brasileira, no Teatro Cultura Artística. 63 Alegrinho (1988): Obra dedicada ao filho Alexandre Gismonti que foi gravada pela primeira vez com um violão requinto 67 no disco Dança dos Escravos (1988). Seguindo a mesma trajetória que Lundu, ela é regravada no disco Música de Sobrevivência (1993) com o nome de Alegrinho #2. Nesta ocasião há o acréscimo de dois violões, contrabaixo e violoncelo. Alegrinho é uma das composições para violão que foram passadas para o papel, mas sem uma publicação formal. Egberto escreveu a pedidos de seu filho Alexandre, que manifestou interesse em tocá-la.68 Dança dos Escravos (1988): Composição para violão de 14 cordas registrada no disco Dança dos Escravos (1988). É uma das músicas que melhor exemplifica a polirritmia e independência entre mão direita e esquerda de Gismonti. Enquanto a mão direita realiza arpejos ininterruptos, a esquerda executa melodias e ritmos com a técnica do tapping. Esta obra também é um bom exemplo das diversas reciclagens que Egberto faz de suas composições, há citações de trechos da obra Luzes da Ribalta (ARVORE, 1973). Dança dos Escravos também reaparece no disco Infância (1991), com acréscimo de contrabaixo e violoncelo, e no disco Saudações (2009), em duo de violões. Um dado interessante, nas gravações de Egberto Gismonti, é que nem sempre uma música, inicialmente solo, permanecerá até o fim nesta configuração. No primeiro registro de Dança dos Escravos, a partir de certo ponto, Gismonti insere outro violão para complementar seu arranjo. Assim como Lundu, essa composição ganhou uma versão para violão e orquestra, executada em Tokyo em 2008. Mutação (1989): Peça para violão solo composta para o filme Kuarup, que posteriormente foi gravada no disco Kuarup (1989). 12 Estudos para violão (nunca publicado): Este é um conjunto de obras que Egberto compôs pensando no seu próprio estudo. Não foram publicados, porém tomei conhecimento de sua existência pelo depoimento do compositor. O Estudo Nº5 foi gravado por Egberto no seu primeiro disco (1969). Na ocasião, Gismonti acrescentou ao arranjo flauta, quarteto de cordas e metrônomo. A obra Celebração de Núpcias é um desses estudos, com alguns elementos acrescidos. 67 Violão com uma tessitura mais aguda, geralmente uma quarta acima da afinação tradicional. 68 Em ocasião semelhante, Gismonti passou para o papel a sua composição Sonhos de Recife, a pedido de uma amiga russa. 64 3.3 O violão camerista É evidente, ao observarmos a trajetória de Egberto Gismonti, que sua vocação como camerista sempre esteve presente. Em diversos depoimentos, Egberto afirma que o convívio e a troca com os músicos o mantiveram motivado a compor e gravar. Músicos como Robertinho Silva, Mauro Senise, Nando Carneiro, Zeca Assumpção, Naná Vasconcelos, Jaques Morenlenbaum, Nivaldo Ornelas, entre outros, acompanharam Gismonti no decorrer de sua discografia. Atualmente, Egberto tem se apresentado com mais frequência em situações solista, porém, no passado, a música de câmara era parte constante da sua rotina. Em 1973, apresentou-se na Sala Cecília Meirelles (RJ) com um quarteto formado por Odette Ernest Dias (flauta), Geza Kiszely (viola), Gerhard Peter Dauelsberg (violoncelo) e Gismonti (violão). No programa havia músicas como Distribuição de Flores, para flauta e violão, e Assobio a Jato, para flauta e violoncelo, ambas de Villa-Lobos, e um quarteto de Schubert para violão, flauta, viola e violoncelo, além de músicas de Gismonti, como Retratos, para violão e flauta e Variações in Memoriam a Anton Webern, para flauta, viola e violoncelo. Nesse momento, elencaremos composições de Egberto Gismonti que possuem caráter camerístico. Como critério, selecionamos obras concebidas para violão e outros instrumentos, com exceção das canções. Computador (1969): Esta música foi registrada no primeiro disco de Gismonti. O violão é um dos instrumentos que executam a melodia da música. Parque Laje (1970): Obra gravada pela primeira vez no disco Sonho 70 (1970) e posteriormente no disco Orfeo Novo (1971), com arranjo para flauta, violão, contrabaixo e vocalise. Pêndulo (1970): Nesta peça o violão tem uma participação bastante discreta; foi gravada no disco Sonho 70 (1970). Três Retratos Para Violão e Flauta (1971): É uma suíte em três movimentos que Egberto gravou no disco Orfeo Novo (1971), com o flautista Bernard Wystraete. Três 65 Retratos Para Violão e Flauta, se aproxima, esteticamente, da música erudita contemporânea. Eterna (1972): Obra gravada no disco Água e Vinho (1972) e composta para um quarteto constituído de violão, clarinete, sax soprano e violoncelo. Palácio de Pinturas (1974): Obra gravada pela primeira vez no disco Academia de Danças (1974). Neste arranjo, o violão desempenha um importante papel textural. Já na gravação para orquestra, do disco Nó Caipira (1978), não há presença do violão no arranjo. Outro registro de Palácio de Pinturas, no qual o violão tem papel central, é do disco Sol do Meio Dia (1978): foi gravado em duo com o violonista Ralph Towner, ambos usando violões de 12 cordas. Scheherazade (1974): Esta peça na realidade é uma reexposição presente no disco Academia de Danças (1974): é exatamente a mesma música que Jardim de Prazeres, porém sem voz. Continuidade dos Parques (1974): É uma obra gravada no disco Academia de Danças (1974): a melodia é cantada em vocalise e o violão desempenha função de acompanhamento harmônico. Deux Danças Pour Deux Guitares (1974): Peça para dois violões editada pela Henry Lemoine. Identificamos recursos violonísticos semelhantes à escrita de VillaLobos, como ostinatos melódicos que intercalam corda presa e corda solta.69 Café (1976): Obra registrada pela primeira vez no disco Corações Futuristas (1976) e posteriormente gravada com letra no disco Carmo (1977). Nesta composição o violão tem uma atuação discreta, realizando acompanhamento harmônico. Café também aparece no disco Sol do Meio Dia (1978). 69 Existe um trecho bastante semelhante à abertura do Concerto Para Violão e Orquestra de VillaLobos. 66 Carmo (1976): Esta obra tem uma trajetória similar a anterior: foi gravada pela primeira vez no disco Corações Futuristas (1976) e posteriormente com letra no álbum Carmo (1977), porém, desta vez, sem violão. Cristiana (1977): Nesta peça, gravada no disco Carmo (1977), Egberto executa viola. Nó Caipira (1978): Esta obra abre o disco Nó Caipira (1978). Além do violão, há instrumentos como bateria, percussão, pandeiro, cavaquinho, viola, sax, flautas, zabumba e contrabaixo. Aqui Egberto usa diversos recursos característicos de sua performance ao violão, como harmônicos naturais executando ritmos como o maracatu. É interessante observar que existem algumas citações da música Dança das Cabeças. Mágico (1979): Composição gravada no disco homônimo, Mágico (1979), e no disco Circense (1980). Ciranda (1980): Obra gravada no disco Circense (1980). Além do violão, o arranjo conta com naipe de cordas friccionadas, piano, cítara, contrabaixo, saxofone, percussão, voz e coro infantil. Carta de Amor (1981): Esta obra aparece originalmente no disco Sanfona (1981), em uma configuração de violão de 10 cordas e vocalise. Posteriormente regravada com Jan Garbarek (sax) e Charlie Haden (contrabaixo) em trio, ao vivo, no disco Mágico (2012), e com Nando Carneiro (violão) e Zeca Assumpção (contrabaixo) no disco Zig-Zag (1996). Carta de Amor também aparece no disco Cidade Coração (1983), desta vez com um instrumental mais denso: violão, piano, sintetizadores, saxofone, percussão e bateria. Branquinho (1981): Canção registrada no disco Em Família (1981) e posteriormente gravadacno disco Mágico (1981), com Charlie Haden (contrabaixo), Egberto Gismonti (Violão de 14 cordas) e Jan Garbarek (Sax). Dois Violões (1982): Peça gravada pela primeira vez no disco Fantasia (1982) e dedicada à Baden Powell. Como o nome sugere, Egberto sempre utiliza dois violões. 67 No primeiro registro há outros instrumentos, como flauta, surdo e teclado Obx-a (todos executados pelo compositor). Já no disco Dança dos Escravos (1989), aparece em dois violões, ambos tocados por Egberto. Em Saudações (2009)70, foi gravada com seu filho Alexandre Gismonti. Nesta composição há autocitação, uma referência clara à música Karatê. Para John e Paco (1982): Gravada no disco Fantasia (1982), é uma homenagem aos músicos Paco de Lucia e John Mclaughlin, como o nome sugere. Para John e Paco é uma composição que exemplifica bem a liberdade criativa de Egberto, pois sentimos como se a música fosse variações sobre Raga (1977). Nessa gravação, ele utiliza instrumentos, como surdo, violoncelo e o teclado obx-a. Forrobodó (1988): Composição que pertence ao conjunto de obras pianísticas de Egberto. Em 2002, o quarteto de violões Los Angeles Guitar Quartet lançou um disco com um arranjo feito pelo próprio Gismonti. Uma das características marcantes da obra é a polirritmia. Valsa de Francisca I (1989): Composição feita para violão solista com acompanhamento de orquestra. Esta obra foi gravada para o filme Kuarup e posteriormente inserida no disco homônimo à ele (1989). Dança Nº1 (1991): É uma peça para violões, violoncelo e contrabaixo, gravada no disco Infância (1991). Nesta composição fica nítida a influência da música contemporânea europeia, sobretudo do compositor Igor Stravinsky.71 Dança Nº2 (1991): Obra que segue a mesma lógica de Rio de Janeiro, Para John e Paco e Porta Encantada, pois há uma outra composição que se assemelha a ela. A semelhança é tamanha, que poderíamos dizer que se trata da mesma peça cujo nome fora trocado. Dança Nº2 utiliza os mesmos elementos composicionais das peças Deux Danças Pour Deux Guitares (1974) e A Porta Encantada (1976). Em Dança Nº2, 70 Este é outro disco de Egberto Gismonti integralmente dedicado ao violão. Todas as faixas são gravadas por ele e seu filho Alexandre Gismonti. 71 Além de ser facilmente constatada (em entrevistas) a devoção que Egberto Gismonti tem por este compostior, algumas músicas como Strawa no Sertão (Meeting Point, 1996) e Sagração (Fantasia, 1982) foram dedicadas à Stravinsky. 68 Egberto utiliza a mesma formação da Dança Nº1, talvez com o intuito de inserir uma pequena suíte no disco. Forró Na Beira Da Mata (1991): Obra para violão de 12 cordas, violoncelo e orquestra. Foi gravada no disco Amazônia (1991). Ciranda no Céu (1991): Obra para dois violões e orquestra, gravada no disco Amazônia (1991). Ao Redor Da Fogueira (1991): Obra para dois violões, contrabaixo e violoncelo, gravada no disco Amazônia (1991). Carmem (1993): Obra gravada com dois violões no disco Música de Sobrevivência (1993) e, posteriormente, no disco Saudações (2009). Zig Zag (1995): Obra gravada originalmente pelo Egberto Gismonti Trio (grupo formado por Egberto e Nando Carneiro nos violões e Zeca Assumpção no contrabaixo) no disco Zig Zag (1995). Posteriormente Egberto regrava no disco Saudações (2009) com seu filho Alexandre Gismonti. O tema desta obra é análogo ao segundo movimento da suíte Três Retratos Para Flauta e Violão, gravado no disco Orfeo Novo (1971). Mestiço e Caboclo (1995): Obra que segue a mesma trajetória da anterior, foi gravada originalmente no disco Zig Zag (1995) e posteriormente no disco Saudações (2009). Orixás (1995): Uma obra percussiva para 2 violões e contrabaixo, também gravada no disco Zig Zag (1995). Águas e Danças (2009): Composta para dois violões, foi gravada no disco Saudações (2009). Novamente Egberto lança mão de materiais temáticos utilizados por ele em outras composições. Esta composição se assemelha a sequência das obras Celebração de Núpcias e A Porta Encantada, presentes no disco Academia de Danças (1974). 69 Consequentemente ela também utiliza materiais da obra Deux Danças Pour Deux Guitares (1974). Contos de Cordel (2015): Obra para dois violões em 6 movimentos, composta para o Duo Assad, e gravada no disco O Clássico Violão Popular Brasileiro (2015), lançado pela gravadora Tratore. Retratos (sem data): Peça composta para violão e flauta e estreada em 1973 na Sala Cecília Meirelles. Não foi detectado nenhum registro desta obra além da matéria do jornal Última Hora, feita pelo jornalista Eurico Nogueira França. Sobre esta peça o jornalista escreveu: “Tem feições rapsódicas e é muito bem escrita”. Ritmos e Danças (sem data): Editada pela Max Eschig, é uma peça para violão e orquestra. Há uma gravação feita pelo violonista Aliéksey Vianna, no disco Ritmos e Danças (2010). 3.4 O violão acompanhador No final da década de 1960, Egberto Gismonti decide dedicar-se à música popular. Após completar o curso de piano no Conservatório Brasileiro de Música-RJ, Gismonti se entrega de vez à composição e resolve enveredar pelo campo da canção popular brasileira. A discografia de Egberto Gismonti é bastante marcada pela canção, sobretudo nos seus primeiros discos, e o idiomatísmo do seu violão impõe um caráter singular à essas obras. Muitos recursos, que posteriormente Egberto sistematiza em sua interpretação com os violões de 10 e 14 cordas, já haviam sido explorados no violão de 6 cordas. O uso de ostinatos melódicos, pedais, harmônicos naturais e paralelismos sempre estiveram presentes em suas performances ao violão. Seguindo com o nosso critério de identificar a presença do violão na obra musical de Egberto, elencaremos as canções gravadas com este instrumento. Clama-Claro (1969): Canção em parceria com Arnaldo Medeiros, gravada no primeiro disco de Egberto (1969). O violão executa acompanhamento harmônico. Há um interlúdio em que o violão faz um improviso dobrando a melodia com a voz. 70 Pr’um Samba (1969): Música registrada no primeiro disco de Egberto (1969), com o violão sendo tocado por Durval Ferreira. Ele executa o acompanhamento harmônico e contrapõe melodias. Também contém um interlúdio em que o violão faz um improviso dobrando a melodia com a voz. Indi (1970): Canção em parceria com Arnaldo Medeiros, gravada pela primeira vez no disco Sonho 70 (1970) e posteriormente em Orfeo Novo (1971). Neste último, o violão de Egberto aparece com mais evidência. O mercador de Serpentes (1970): Gravada pela primeira vez no disco Sonho 70 (1970), é uma das composições que Egberto inscreveu nos Festivais da Canção do final da década de 1960. O violão aparece mais destacadamente no arranjo no final da gravação. Lendas (1970): Parceria com Paulinho Tapajós, foi registrada primeiro no disco Sonho 70 (1970) e posteriormente no Orfeo Novo (1971). A presença do violão em ambas as gravações é bastante evidente, realizando contrapontos dissonantes e ostinatos. Federico (1972): Em parceria com João Carlos Pádua, foi gravada no disco Água e Vinho (1972). O violão aparece com bastante evidência. Luzes da Ribalta (1973): Em parceria com Geraldo Carneiro, foi gravada no disco Árvore (1973): o violão executa acompanhamento harmônico e contrapontos melódicos. Encontro no Bar (1973): Canção em parceria com Geraldo Carneiro, gravada no disco Árvore (1973). Observa-se a utilização de recursos como ostinatos em cordas soltas e em harmônicos naturais. Nessa obra há uma scordatura interessante: as três primeiras cordas são afinadas em graus conjuntos (C-B-A) 72. 72 Ver capítulo 4. 71 Jardim de Prazeres (1974): Parceria com Geraldo Carneiro, foi registrada no disco Academia de Danças (1974). O violão tece diversos comentários no arranjo, com muitos efeitos percussivos e ostinatos melódicos com ligados e nota pedal. Observamos a presença de chorus no violão. As Primaveras (1977): Parceria com Geraldo Carneiro, foi gravada no disco Carmo (1977). O violão executa acompanhamento harmônico. Apesar de Tudo (1977): Parceria com Geraldo Carneiro, foi gravada no disco Carmo (1977). O violão executa acompanhamento harmônico. Feliz Ano Novo (1977): Em parceria com Geraldo Carneiro, foi gravada no disco Carmo (1977). O violão executa acompanhamento harmônico. As Primaveras (1977): Parceria com Geraldo Carneiro, foi registrada no disco Carmo (1977). O violão executa acompanhamento harmônico. Auto-Retrato (1981): Em parceria com Geraldo Carneiro, foi gravada no disco Em Família (1981). O violão executa acompanhamento harmônico e contrapontos melódicos. Branquinho – Passarinho (1981): Canção gravada no disco Em Família (1981). O violão executa acompanhamento harmônico. 11-06-81 (Feito em Casa) (1981): Canção gravada no disco Em Família (1981). O violão executa acompanhamento harmônico. 3.5 Arranjos de Egberto Gismonti para violão Em toda a trajetória discográfica de Egberto Gismonti, é rara a presença de obras de outros autores. O único disco integralmente dedicado a obra de outro compositor é Trem Caipira (1985). Embora sejam poucos os exemplos de interpretações de obras de outros autores, estas tornam-se bastante significativas para 72 o entendimento de sua personalidade musical. Selecionamos exemplos de obras arranjadas para violão que possuem algumas das características da performance violonística de Egberto. Berimbau/ Consolação (Baden Powell e Vinicius de Moraes): A presença de Baden Powell no violão de Egberto é evidente; em diversos depoimentos podemos constatar essa afirmação. A sua obra Salvador (1969) é inspirada nos afro-sambas de Baden e Vinícius de Morais. O pot-pourri Berimbau/Consolação foi gravado no disco Orfeo Novo (1971). Embora neste período Egberto ainda utilizasse o violão de 6 cordas, as suas escolhas interpretativas já demonstravam bastante personalidade: Egberto grava as duas músicas em Mi menor e não em Ré menor, como é tradicionalmente executada pelos violonistas, assim ele pode explorar a melodia em harmônicos naturais. Podemos identificar também a presença de Villa-Lobos em sua interpretação, sobretudo nos acordes da segunda parte do Prelúdio Nº2 deste compositor. Fé cega Faca Amolada (Milton Nascimento): Gravada no disco Dança das Cabeças (1977), também com o percussionista Naná Vasconcellos, foi arranjada para violão de 8 cordas. Aquarela do Brasil (Ary Barroso): Gravado no disco Duas Vozes (1984), com o percussionista Naná Vasconcellos, esse arranjo para violão de 10 cordas é um bom exemplo dos paralelismos harmônicos característicos do violão de Gismonti. A melodia é praticamente toda executada em chord melody.73 Trenzinho do Caipira (Villa-Lobos): Arranjo gravado no disco Dança dos Escravos (1988) com o violão de 10 cordas. Nesta gravação, percebemos escolhas harmônicas bastante características do violão de Gismonti: acordes dissonantes em bloco com a melodia, uso de pedais, uso de harmônicos, percussões, dentre outros recursos. 73 Também conhecida como harmonia em bloco. Este tipo de técnica de arranjo consiste em usar vozes paralelas à melodia, com a mesma divisão rítmica. Para cada nota da melodia há um acorde correspondente. 73 CAPÍTULO 4 – A LINGUAGEM VIOLONÍSTICA DA OBRA DE EGBERTO GISMONTI E O SEU ESTILO INTERPRETATIVO. A história de Egberto Gismonti com o violão começa por influência de sua mãe. Na adolescência, ela dizia que Egberto deveria tocar violão, enquanto o pai preferia que o filho tocasse piano, pois, de acordo com ele, tratava-se de um instrumento aristocrático. Egberto teve uma educação pianística tradicional e formouse no Conservatório Brasileiro de Música, que tinha uma filial em Nova Friburgo, cidade onde morava. No caso do violão, não haviam professores, obrigando-o a ter uma formação violonística autodidata. Ao conhecer os discos de Baden Powell, Gismonti ficou encantado e, valendo-se do bom ouvido adquirido nas aulas de solfejo, começou a transcrever tudo aquilo que estivesse ao seu alcance: Eu tinha que tocar no violão alguma coisa que fosse mais “preciosa” do que os discos que meu pai trazia. Dilermando Reis, que tocava valsa, eu achava tudo muito bonito, mas eu dizia: ‘não é isso que eu quero tocar’. E o meu pai, que vinha ao Rio volte e meia, (...) me trazia discos. (...) E um dia ele trouxe um disco do Baden Powell chamado O Mundo Musical de Baden Powell. Um disco gravado em Paris e tal... e eu fiquei fascinado por aquilo e eu falei: ‘que diabo de violão é esse? Esse é um violão só? Que maravilha! E como que faz essa coisa rítmica?’ Porque aquilo ali virou uma seção de trezentos ritmistas tocando junto. (...) Eu disse: “só tem uma maneira de saber o que é isso, eu vou transcrever”. Então eu colocava o disco e transcrevia. Tanto que até eu vir para o Rio de Janeiro, eu achava que violão escrevia em dois pentagramas e na oitava que estava soando. Eu não sabia que era um instrumento transpositor. (...) E transcrevi o disco inteiro (GISMONTI, 2016). É curioso observar que a transcrição de gravações é uma ferramenta que, frequentemente, faz parte da formação do músico popular 74 . Nesse sentido, verificamos que, embora Gismonti tenha tido uma educação de conservatório bastante rígida, notadamente em um modelo francês, que privilegia o repertório clássico europeu, o violão aproximou seus estudos de práticas correntes da música popular: E transcrevi o disco do Baden. (...) Depois fiz um outro disco não sei de quem... e aí caiu na minha mão um disco de um norte americano (...), um 74 No caso do músico popular, a transcrição não significa, necessariamente, passar para o papel a música aprendida. Em muitos casos, o músico nem sabe ler partitura, ele simplesmente “aprende de ouvido” ou “tira de ouvido”. 74 violonista gitano, que tocava uma coisa misteriosíssima, que não era jazz, era outro negócio. E depois apareceu o Garoto (...). E comecei a transcrever todo mundo. E então o violão passou a ser um instrumento (...) e foi nascendo como um instrumento de valia (GISMONTI, 2016). Aos poucos, o violão, que era um instrumento secundário, passou a ter um peso diferenciado na sua rotina musical. Da mesma forma que a música popular e a música de concerto tornaram-se uma coisa só, o violão uniu-se ao piano como instrumentos condutores da sua música: O violão é parte da estrutura que me sustenta violino, nem cello, nem viola, nem trompete, minha vida. Violão é igual ao piano. E esses que eu penso, (...) não dá pra falar de um sem 2016). como músico. Violão não é nem flauta, oboé, fagote na dois juntos fazem a música falar do outro (GISMONTI, Além de Baden Powell e Garoto, outro violonista foi fundamental para a trajetória de Gismonti com o violão: Turíbio Santos. Foi através dele, que Egberto praticamente conheceu a música de Villa-Lobos: Custou muito tempo e eu tomei um susto danado sobre o negócio do VillaLobos. E pouco a pouco, morando em Paris, eu descobri alguém que tinha um ponto de vista sobre o Brasil muito valioso e para violão, que é o senhor Turíbio Santos. Sentamos (...) e o Turíbio disse: “ahh eu queria que você escrevesse umas peças para mim. Eu gostaria de fazer um repertório...” (...) E escrevi umas músicas como Central Guitar, por exemplo que é dedicada à ele, depois Variações para Guitarra. E o Turíbio foi de uma franqueza, que na época eu não entendi. Com vinte anos... não vai entender com facilidade um “não”, né? Não é tão fácil. Mas ele me disse: “olhe, essa sua música...eu vou fazer de tudo para que ela seja bem executada por um monte de gente. Vou querer que ela esteja na minha coleção da Max Eschig e vou querer que você assine um contrato com a Max Eschig como compositor, para ter coisas editadas. Porque eu sinto que a sua música é maravilhosa. Mas eu não tenho preparo para tocar. Não é técnica, eu não tenho a crença de que essa música possa me representar.” Isso é de uma beleza!! Pouca gente que não convive com Turíbio sabe que ele é um sujeito que tem essa dimensão e conhece os próprios limites, que não são poucos e pequenos, são muito largos. Quer dizer, um sujeito que espalha Villa-Lobos nos quatro cantos da França a ponto de invadir a Europa inteira, não é brincadeira. (...) No que conheci o Turíbio (...) ele começou a me mostrar [a obra de Villa-Lobos] e no primeiro dia (...) ele me mostrou todos os prelúdios e uma coisa atrás da outra. Mas que compositor! Espera aí, deixa eu conhecer esse compositor! Eu sabia, claro, que tinha as Bachianas e tal, que eu já tinha ouvido (GISMONTI, 2016). 75 Por influência de Turíbio Santos, Egberto escreveu duas peças para violão solo, de caráter contemporâneo, e passou a estudar a obra para violão de Villa-Lobos, que viria interferir diretamente na sua linguagem violonística. Aos poucos, Egberto desenvolveu um apuro técnico com o violão, transformando este instrumento, junto com o piano, na espinha dorsal da sua obra. Como ele próprio declara, não seria possível compreender sua música isolando o violão do piano. Nesse capítulo, iremos investigar a linguagem violonística de Egberto Gismonti de uma maneira ampla: discutiremos a relação dela com a linguagem pianística e o estilo interpretativo de Egberto de uma forma em geral. 4.1 Estilo Interpretativo O musicólogo Daniel Leech Wilkinson, em seu livro Recorded Music, investiga a importância do estudo de gravações como uma ferramenta para a compreensão de um estilo de performance. De acordo com ele, este mecanismo era feito somente por críticos e colecionadores mais aficionados, ao invés de musicólogos. Robert Philip e Timothy Day foram pioneiros no estudo do estilo de performance baseado em gravações. Como afirma Wilkinson, as gravações permitem que os pesquisadores investiguem a maneira como os estilos mudam ao longo do tempo: As evidencias de mudanças no estilo de performance, providas pelas gravações, tem profundas implicações no estudo de performance histórica. Se queremos compreender a prática da performance em eras anteriores ao início da gravação, como o período barroco e o clássico, nós iremos somente escrever através de evidencias (WILKINSON, 2009, p. 247). Para o autor, a audição de gravações do início do século passado são evidencias vivas do estilo interpretativo corrente no século XIX, a partir delas, tornou-se palpável a observação da forma como determinadas recorrências interpretativas variam ao longo do tempo. Portanto, é amparado nas gravações que investigaremos a obra de Gismonti. Porém, o que é exatamente estilo de performance? Como poderíamos defini-lo? O pianista Marcelo Verzoni investiga a origem etimológica do conceito de 76 estilo, em música. O autor cita duas referências à palavra estilo no filósofo Órris Soares (1968, p. 84 apud VERZONI, 2000, p. 9-10). “Determinada forma que se torna sinal distintivo de uma época, quer em relação à literatura e às artes em geral, quer em relação aos costumes (à moda, como à prática de certos hábitos)”. E em um sentido mais restrito: “modo de um escritor, que se torna a expressão de sua maneira de sentir e praticar a arte ou as letras. A forma pessoal de um escritor: estilo de Voltaire, estilo de Stendhal, estilo de Nietzsche.” Segundo a enciclopédia Die Musik in Geschichte und Gegenwart: Na música, o conceito de estilo refere-se não apenas a compositores isolados, períodos determinados ou lugares, mas também a gênero, formação e até mesmo à prática de execução. (...) O conceito de estilo pressupõe que as mesmas características apareçam repetidas vezes. (...) Assim sendo, o estilo reside na constância dos traços característicos próprios de um todo musical empírico (1965, p. 1301 apud VERZONI, 2000, p. 13). Em música, o estilo é um conjunto de formas expressivas recorrentes, que carregam tanto características próprias do sujeito quanto do objeto ao qual o sujeito se debruça: Conceitualmente, estilo de performance é muito parecido com estilo de composição. Compositores a medida que se desenvolvem criam recorrências em suas obras que se refletem no tratamento de melodias, de harmonias, de texturas e da forma. São características tanto pessoais quanto de sua geração (WILKINSON, 2009, p. 248). De acordo com Wilkinson, algumas dessas recorrências são herdadas de seus predecessores, algumas são emprestadas de seus contemporâneos e outras aparecem como novidades. Nesse sentido, performers criativos, que possuem um controle técnico satisfatório, desenvolvem maneiras individualizadas de tirar sons de seus instrumentos. A relação entre estes sons subjacentes à sua performance é que o identifica, colocando-o em comparação com seus predecessores e contemporâneos. O estilo interpretativo é composto, enfim, pelos maneirismos expressivos recorrentes nos intérpretes, que se manifestam de forma tanto individualizada quanto coletiva. Nesse sentido, podemos identificar um estilo interpretativo em vários níveis, inerentes à obra, ao intérprete, à uma nacionalidade ou a um grupo social. Em nossa pesquisa iremos investigar o estilo interpretativo de Egberto Gismonti ao mesmo 77 tempo em que elencaremos aspectos que definam a linguagem violonística – ou o idiomatísmo violonístico – de sua obra. 4.2 Linguagem violonística Segundo Wilkinson, além do estilo interpretativo, existiria o estilo de composição. Optamos, nesta pesquisa, por empregar linguagem violonística da composição, ao invés de estilo de composição, já que iremos delimitar nossas análises apenas às obras para violão. Como argumentado no capítulo 2, a obra musical deve ser compreendida de maneira integral, de modo que composição e interpretação se fundem. Desse modo, o estilo interpretativo é inerente à linguagem violonística da obra. Apesar de ser possível separá-los conceitualmente, na pesquisa estes dois aspectos devem ser abordados simultaneamente. Apesar disso, elaboramos um quadro, com propósito didático, para visualizarmos a distinção conceitual desses dois campo na obra para violão de Egberto Gismonti. Quadro 1 – Linguagem violonística e estilo interpretativo LINGUAGEM VIOLONÍSTICA ESTILO INTERPRETATIVO - Scordaturas - Liberdade formal - Afinação reentrante75 - Liberdade rítmica - Pedais - Sonoridade - Harmônicos - Agógica - Tapping - Andamentos - Percussão - Improvisação - Acordes paralelos - Técnica do escovado - Ostinato melódico com ligados - Acentuação - Melodias nas cordas reentrantes - Articulação 75 Segundo o dicionário Grove: afinação Reentrante é o termo usado para descrever a afinação de instrumentos de cordas cujas ordens de alturas não ocorrem em sentido ascendente, mas sim em um padrão de intervalos que ascende e descende. A afinação reentrante é encontrada, por exemplo, na guitarra renascentista de quatro ordens (g’/g’ - d’/d’- f#’/f#’ - b’), na guitarra barroca de cinco ordens (a/a – d’/d’- g/g – b/b – e’/e’), no ukelele (g’- c’- e’- a’), na cythara de cinco ordens (d – a - g – d’- e’), no charango sul- americano (g’/g’- c’/c’- e’/e’- a’/a’- e’/e’). (GROVE ON LINE) 78 - Fôrmas de mão esquerda - Digitação - Simultaneidade de eventos musicais - Virtuosismo contrastantes - Irregularidade métrica - Independência das mãos A primeira constatação que fazemos, ao elaborar esse modelo, é que todos os aspectos elencados no estilo interpretativo também fazem parte da linguagem violonística. Por outro lado, os elementos da linguagem violonística são caracterizados, a priori, como princípios da estrutura composicional para violão. A grosso modo, temos uma distinção conceitual do que são “elementos inerentes à composição” e o que são “elementos inerentes ao intérprete”. Nesse âmbito, o estilo interpretativo estaria subjugado à linguagem violonística, como se esta fosse provedora daquele. Fazendo uma analogia “fria” com a linguística, somente através da linguagem é que nos expressamos. Nesse sentido, o estilo interpretativo representaria os aspectos expressivos da execução musical e a linguagem violonística as estruturas da composição. Apesar dessa divisão conceitual, como havíamos argumentado anteriormente, estes princípios se retroalimentam e, na prática, precisamos discuti-los de maneira simultânea. 4.3 Os elementos recorrentes na linguagem violonística e no estilo interpretativo de Egberto Gismonti. Para Wilkinson, todos os instrumentistas e compositores tem diferentes coleções de hábitos, que podemos chamar de estilo pessoal, mesmo que muitos desses maneirismos sejam, inevitavelmente, atributos de seu tempo. As características do estilo de performance estão ligadas à interação entre as possibilidades do instrumento e do corpo que o manipula. O que o corpo pode fazer depende da prática e o que é praticado depende do som que se objetiva alcançar. No caso de Egberto Gismonti, a busca pelo som caracteriza-se não apenas pela busca por aspectos interpretativos tradicionais, mas, sobretudo, por um processo composicional amplo, que experimenta ao máximo as possibilidades geradas pelo instrumento que se tem como matéria prima. No caso da sua obra violonística, a configuração particular de seus violões amplia sua linguagem e permite, consequentemente, o desenvolvimento de um estilo 79 de interpretação peculiar. Para encontrarmos os elementos recorrentes na obra para violão de Gismonti e discutirmos a sua linguagem e estilo interpretativo, percorremos diversas gravações, tanto discográficas, como em vídeo de suas performances ao vivo. A metodologia utilizada nessa etapa foi a seguinte: 1) Fizemos uma seleção de obras representativas do repertório de Gismonti. A maior parte das obras analisadas possuem, essencialmente, um caráter de violão solista 76 , porém, alguns exemplos acompanhador de serão violão camerista e violão utilizados para reforçar os argumentos. 2) Para cada obra escolhida, procuramos analisar mais de uma gravação, de estúdio ou vídeo. O intuito, ao buscar máximo de gravações de uma mesma obra, foi o de auxiliar a compreensão e assimilação dos processos discutidos na pesquisa. Nem sempre a execução do trecho analisado se apresenta com nitidez numa gravação. De forma complementar, os vídeos são cruciais para tirar dúvidas, sobretudo em relação à questões sobre digitação. 3) Ao ouvir o conjunto dessas obras, identificamos os elementos recorrentes na linguagem violonística e no estilo interpretativo de Gismonti.77 4) Selecionamos os trechos de maior interesse para a pesquisa e os transcrevemos em notação musical. Foi necessário elaborarmos uma proposta de escrita musical, tendo em vista as peculiaridades estruturais dos violões de Egberto Gismonti. 5) Terminado o processo de transcrição, elencamos e discutimos os elementos encontrados na linguagem violonística, salientando os aspectos inerentes ao estilo interpretativo. 76 Ver capítulo 3. 77 Ver quadro 1. 80 4.3.1 A transcrição de gravações e a seleção das obras analisadas. Uma das práticas musicais mais recorrentes dos violonistas é a transcrição, seja aquela que muda a instrumentação original de uma composição, seja aquela que pretende notar na partitura obras gravadas em discos, não necessariamente mudando o instrumento para o qual foi destinada a composição. Ribeiro (2014), em sua dissertação de mestrado, aponta as diversas classificações terminológicas para as práticas de reelaboração musical, sendo a transcrição uma delas. Porém, na transcrição de gravações, cujo objetivo é grafar na partitura a obra musical ou simplesmente aprendê-la a tocar78, encontramos uma outra categoria de transcrição, que não configura-se como uma prática de reelaboração musical. Apesar de não ser, necessariamente, uma atividade de criação, a transcrição de gravações é uma importante ferramenta de estudo e traz benefícios como o desenvolvimento da percepção auditiva, a assimilação de aspectos interpretativos e a compreensão do texto musical; além de ser o melhor meio para acessar repertórios que não estão disponíveis em partituras, como é o caso da maior parte das obras de violão compostas e gravadas por Egberto Gismonti. Para o aprofundamento da compreensão da linguagem violonística de Egberto Gismonti, elegemos 15 obras para transcrever. Dentre elas, onze composições79 possuem caráter solista. Três obras são canções, nas quais a função do violão é de acompanhador, e uma obra tem caráter essencialmente camerista. No quadro a seguir, listamos as obras analisadas, com as suas respectivas gravações e características: Quadro 2 – Obras analisadas OBRAS Salvador GRAVAÇÕES VIOLÕES CARÁTER - Disco Dança dos Escravos (1989) - 10 cordas - Solista - Disco Orfeo Novo (1971) - 6 cordas - Camerista - Disco Solo (1979) - 8 cordas - Solista 78 Popularmente conhecido como “tirar de ouvido”. 79 Uma das obras é o arranjo de Gismonti de uma composição de outro autor: trata-se do pot-pourri Consolação/Berimbau de Baden Powell. Este é um exemplo oportuno, pois demonstra a faceta puramente intérprete de Gismonti. 81 Dança das Cabeças - Disco Dança das Cabeças (1977) - 8 cordas - Camerista - Performance ao vivo I80 - 10 cordas - Solista - 10 cordas - Camerista - Disco Circense (1980) - 12 cordas - Camerista - Disco Folk Songs (1980) - 12 cordas - Camerista - Performance ao vivo III82 - 12 cordas - Solista - Disco Sanfona (1981) - 12 cordas - Solista - Disco Solo (1979) - 12 cordas - Solista - Performance ao vivo II Cego Aderaldo De Repente Selva Amazônica 81 - Disco Nó Caipira (1978) - 12 cordas - Solista 83 - 12 cordas - Solista - Disco Em Família (1981) - 10 cordas - Camerista - Disco Sanfona (1981) - 10 cordas - Camerista - 10 cordas - Solista - Disco Duas Vozes (1984) - 10 cordas - Solista Dança dos - Disco Dança dos Escravos (1989) - 14 cordas - Solista Escravos - Performance ao vivo VI85 - 10 cordas - Camerista - Performance ao vivo VII86 - 10 cordas - Violão e - Performance ao vivo IV Em Família - Performance ao vivo V Bianca 84 Orquestra Dançando Lundu - Disco Duas Vozes (1984) - 10 cordas - Camerista - Disco Solo (1979) - 10 cordas - Solista - Disco Saudações (2009) - 10 cordas - Camerista - Disco Música de Sobrevivência - 10 cordas - Camerista - 10 cordas - Violão e (1993) - Performance ao vivo VIII Encontro no - Disco Árvore (1973) 87 Orquestra - 6 cordas - acompanhador Bar 80 Performance I. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=RI4uZ9J402U> acessado em 8/6/2016. 81 Performance II. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=K1EwZPvdmvw> acessado em 8/6/2016. 82 Performance III. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=4TIkp7N0CX8> acessado em 8/6/2016. 83 Performance IV. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ReHB2RGjfrY> acessado em 8/6/2016. 84 Performance V. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=1B7NT1MCD2c> acessado em 8/6/2016. 85 Performance VI. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=8pKq52OFvuU> acessado em 8/6/2016. 86 Performance VII. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ZUFMHi7r57Q> acessado em 8/6/2016. 87 Performance VIII. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Cjhw4V1wPqw> acessado 82 Jardim de - Disco Academia de Danças (1974) - 6 cordas - acompanhador Lendas - Disco Orfeo Novo (1971) - 6 cordas - acompanhador Retrato 2 para - Disco Orfeo Novo (1971) - 6 cordas - Camerista Consolação/B - Disco Orfeo Novo (1971) - 6 cordas - Camerista erimbau - Performance ao vivo IX88 Prazeres flauta e violão - Solista Acreditamos que as composições de caráter solista são as mais representativas da linguagem violonística de Gismonti. Na realidade, algumas dessas obras foram arquitetadas de distintas formas ao longo do tempo: da configuração solista, passando pelo caráter camerista e em alguns casos transformando-se em uma peça para violão e orquestra. Porém, o arranjo do violão isoladamente não varia muito e independe da quantidade de instrumentos que entram na arquitetura geral da música, por isso o caráter solista se impõe nessas composições. Com as transcrições dessas obras, alcançamos uma ampla compreensão sobre os maneirismos na música para violão de Gismonti. Optamos por passar para o papel apenas os trechos que julgamos significativos para o entendimento da sua linguagem violonística e do seu estilo interpretativo. Como vimos no capítulo 2, para alinhar a interpretação aos processos ontológicos da linguagem Gismontiana, é recomendável ao intérprete ter mais de uma gravação como referência, buscando uma perspectiva que considere, por exemplo, a trajetória das intertextualidades na obra interpretada89. Enquanto intérprete de violão, tenho interesse em executar tais obras e, para tal fim, vejo a necessidade de passar por este processo. No âmbito das práticas interpretativas, buscamos a interação entre a atividade do intérprete e a atividade de analista: são funções que devem caminhar juntas. Nesse sentido, a partitura é apenas uma ferramenta auxiliar na ilustração das questões levantadas pela pesquisa. 88 Performance XI. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=NSXgs5fIT54> acessado em 8/6/2016. 89 Ver capítulo 2 83 4.3.2 As hipóteses de pesquisa. Após termos um contato extensivo com as obras para violão de Egberto Gismonti, percebemos que algumas particularidades da sua linguagem violonística foram influenciadas diretamente por uma conjuntura pessoal, estabelecida pela ausência de uma educação musical formal como violonista em contraponto com uma sólida formação pianística. A busca por aumentar o número de cordas no violão e a utilização de afinações reentrantes são alguns dos elementos possivelmente desenvolvidos por Gismonti em decorrência dessa falta de formalismos acadêmicos no aprendizado do violão. Ao constatarmos que essa conjuntura foi determinante no processo criativo de suas obras para violão, formulamos 3 hipóteses a serem verificadas ao longo de nossa pesquisa: 1. Procedimentos técnicos, como a independência da mão esquerda e da mão direita, são utilizados por Egberto Gismonti – no violão – de maneira análoga ao piano. Embora ele acredite que a busca pela afinação reentrante tivesse a intenção de aproximar o violão do piano (no resultado sonoro), este recurso aprofundou ainda mais a sua linguagem violonística, projetando aspectos idiomáticos deste instrumento. 2. Com a utilização de afinações reentrantes em seus violões, Egberto Gismonti criou, em sua obra violonística, uma expressão musical própria, que não pode ser reproduzida no instrumento tradicional, o violão de seis cordas. 3. Embora Egberto Gismonti tenha ampliado as possibilidades sonoras de seus violões, com o uso da afinação reentrante, alguns elementos determinantes de sua linguagem violonística e estilo interpretativo já estavam presentes em suas gravações mais remotas, ainda com o violão tradicional de seis cordas. Tendo em vista estas colocações, iniciaremos nossa investigação utilizando as obras elencadas no Quadro 2. Cada tópico a seguir representa um elemento recorrente na linguagem violonística ou estilo interpretativo de Gismonti. Dessa forma, nossa análise conseguirá abranger o binômio intérprete-compositor, de modo que tenhamos uma compreensão de sua obra musical como um todo. 84 4.3.3 Scordaturas, afinação reentrante e uma proposta de escrita musical A estrutura dos violões de Egberto Gismonti é um fator determinante de sua linguagem violonística e estilo interpretativo. Ao longo de sua trajetória, Gismonti manteve uma postura experimentalista, que abrange todos os aspectos de sua música. Sempre buscou vivenciar diferentes gêneros e culturas musicais – da música indígena à música atonal –, e sempre investigou a sonoridade de variados instrumentos, indo da kalimba ao sintetizador. A postura experimental de Gismonti começou, sobretudo, com o violão: Eu comecei a achar que estava faltando extensão. Porque eu venho de piano, eu não venho de violão. Então faltava coisa: “esse Mi aqui está alto de mais, eu quero uma coisa mais grave, não é possível!” E agudo... tá bom, mas se a escala tivesse mais três, quatro ou cinco trastes ajudaria também o raciocínio musical. Tudo começa quando eu estou em Nova Friburgo, estudando violão de forma autodidata absoluta, porque o que eu podia era transferir os conhecimentos teóricos de piano, os estudos, os Beringers (...). Eu fiz todos eles no violão. Eu não tinha o que fazer porque eu não sabia como que estudava violão. Mas eu tinha uma audição muito boa e um solfejo muito bom, porque eu tive um professor que não foi brincadeira. Dulce Vaz Siqueira e Aurélio Silveira, são os dois professores de piano. (...) E o violão foi evoluindo, até que eu cheguei e esbarrei: “mas cadê a nota grave? Cadê não sei o que?”. Isso nos anos sessenta e seis ou sete. Eu tinha seis ou sete anos de violão... caseiro! (...) A escolha das cordas é puramente musical. E por que mais cordas? É porque eu ficava muito aborrecido por causa da extensão que não andava. Não andava em relação ao que eu normalmente estudava e tocava [no piano] (GISMONTI, 2016). A busca por mais cordas no violão, aos poucos o levou à configuração de violões com afinação reentrante. Sobre esta novidade, declarou: Esse número de cordas (...) é pra ter um tipo de extensão que tem os pianistas, não qualifica a música, não a torna melhor. Mas torna pro Egberto, pianista, a possibilidade de tocar violão (GISMONTI. Ensaio. São Paulo: TV Cultura 1992. Programa de TV) Nesta entrevista ao programa Ensaio da TV Cultura, percebemos a cautela de Egberto ao se declarar um violonista experimental, ou um pianista que toca violão. Mas sua discografia nos mostra que o violão e o piano são a espinha dorsal de sua música: não existe uma hierarquização entre os dois instrumentos. 85 O uso da afinação reentrante nos cordofones da família dos alaúdes foi bastante explorado ao longo da trajetória histórica desses instrumentos, notadamente durante o período barroco. Há muitas implicações decorrentes deste procedimento, especialmente relacionadas aos recursos técnicos e sonoros que proporcionam.90 Em entrevista, Egberto afirma não ter tido conhecimento do que era a afinação reentrante antes de começar a usá-la. Não houve nenhum cordofone ou instrumentista que o inspirou a experimentar tal recurso. Sua descoberta foi ocasional e baseada em um processo empírico de tentativa e erro. E aí cheguei às afinações por experimentação. Como não existia outro violão além de 7 cordas, porque eu descobri o choro. Eu saí à caça de um sujeito que chamava não sei o que Romão não sei de quê. Que era um luthier com um violão ruim, precário! (...) Eu disse: “eu quero um violão que tenha um traste e uma escala gorda, maior assim”. (...) “Quantas cordas?”, “Bota oito”. Então pensei que aumentar duas em seis já seria uma imensidão. “Então que largura?”, “Mais ou menos igual lá o de seis... aí você imagina e pega mais duas e aumenta”. Um negócio feito assim, uma “galega” danada. O violão desafinava que era uma beleza! Não tinha demarcação de traste certo. (...) Aí chegou o violão de oito e eu pensei: “bom, eu já toco um pouco do seis cordas, não vou mudar muito essas seis cordas aí porque se não eu vou ficar maluco”. Então eu esticava uma corda e alguém dizia: “não, usa uma corda de cello!”. Aí eu usava e não dava certo. Tudo isso sozinho porque não tinha a quem recorrer. Um belo dia, alguém me dá uma corda de marca máxima (alemã), que são cordas feitas sob medida. E eu ponho ela na mais grave e começo a afinar... afinar... e por uma decisão sem nenhum critério técnico eu disse “essa corda tá com uma tensão proporcional às outras e ela está afinada um quinta abaixo da sexta... era um lá”. E afinava bem de mais, era uma beleza de corda. Aí comecei a tocar, com o espaço vazio da sétima. E alguém disse: “vamos arranjar uma de sete cordas e você coloca um Dó e fica Mi, Dó e Lá”. Pensei: “Ah boa ideia!”. Aí experimentei e percebi: “mas não faz o menor sentido isso, quero outra corda aqui, não quero essa não”. Eu não sabia porque. (...) Um belo dia eu disse: “eu tenho que tentar alguma coisa aqui, eu não sei o que eu vou fazer”. E então tinha uma corda de nylon dessas. (...) Aí botei e sai afinando (...), eu não sabia direito onde é que eu ia afinar. E era uma corda três, era uma terceira corda. Eu fui afinando... e parei no lá. E pensei: “ah que engraçado, tem duas oitavas de extensão, interessante isso”. E levei um tempo, viu? Eu não tinha certeza, mas levei um tempo. E tudo o que eu fiz no início, usando o violão de 8 cordas com essa afinação normal, deu um resultado profissional excepcional. (...) O primeiro disco que eu gravei com isso, eu não explorava ainda como parte do violão a ser tocável. Eu tocava muito pouco, apesar de ter traste e tudo. Então eu usava muitas cordas soltas, soltas, soltas. E gravei um disco, que aliás é o único na minha vida que chegou a um número que nenhum carmense, por mais bêbado que estivesse, imaginaria que ia vender 1 milhão de discos, que é o Dança das Cabeças. Eu gravei isso com o maluco do meu amigo Naná Vasconcelos e não tinha uma partitura pronta. Tinha uma ideia: dois curumins andando numa floresta, pronto! E o troço 90 Uma menção ao uso da afinação reentrante na música popular contemporânea merece constar nesta pesquisa. Trata-se do violonista sul africano Lionel Loueke. Com uma linguagem jazzística apurada que combina efeitos vocais e violão preparado, Loueke utiliza um violão de 6 cordas com a 5º corda reentrante. 86 começou a resultar e eu pensei: “mas essa corda aqui é excepcional... porém isso aqui eu vou ter que mudar, as vezes eu quero uma coisa de Sol também, porque só esse lá está muito chato”. E comecei a achar que estava muito chato. E nessas andanças, aí eu já estou em meados dos anos 70. Andanças europeias, eu sempre saía para ir em lojas de instrumentos... e loja de violão era o que mais tinha na época. (...) Um dia eu entro em uma loja em Córdoba e falo “eu estou procurando um instrumento de mas cuerdas”. (...) “Ah, tem um que toca o Narcise Yepes. O Yepes toca em um violão e 10 cordas muito bonito”. (...) “Quanto custa?”. E paguei e levei o instrumento. Tirei as quatro cordas graves e pensei: “aqui eu tenho um violão e aqui eu tenho espaço suficiente para procurar”. E ai foi um processo que não está fundamentado em método nenhum, (....) porque quando você não tem onde se basear. O meu conceito era todo piano, eu queria um piano com cara de violão (GISMONTI, 2016). O resultado desse processo de experimentação foi o fato de que Egberto Gismonti criou uma linguagem violonística particular, tendo, como veículo, instrumentos de oito, dez, doze e quatorze cordas que utilizam afinações reentrantes. Porém, contraditoriamente, observamos que sua postura experimental, pelo menos no que tange à mudanças estruturais no instrumento, não ocorre com o piano: Piano não é isso. Você não pode modificar o instrumento. Ou seja, na minha cabeça não tem isso de jogar um monte de bola de gude, pedaço de ferro e tocar em cima... que deixa de ser piano. Isso eu não quero. Eu sou muito tradicional com negócio de instrumento (GISMONTI, 2016). Esse comentário de Egberto reforça o argumento que o violão ajudou sua música a tornar-se mais inovadora. Fora as afinações reentrantes, Gismonti fez investigações singulares por meio de diversas scordaturas 91, inclusive no violão tradicional de 6 cordas. É certo que a grande maioria das scordaturas não apresenta a versatilidade da afinação padrão. Em contrapartida, elas trazem a tona diferentes perspectivas sonoras e musicais, novas maneiras de compreender o instrumento e de pensar a própria música. Tudo que temos a fazer é girar algumas tarraxas e um novo universo de excitantes descobertas surgirá. É como se nós, violonistas, tivéssemos nas mãos um instrumento inteiramente novo, desconhecido, do qual já dominássemos toda a mecânica de movimentos necessária à sua execução. Com este novo instrumento, podemos realizar uma música que não seria possível com o violão comum, ou então que lhe soaria difícil, estranha e sem brilho. (VASCONCELOS, 2002 p. 92) 91 Scordaturas são mudanças de afinação das cordas do violão, que alteram a configuração tradicional: E-A-D-G-B-E. 87 Esta possibilidade de transformar o violão em “outro instrumento” abre novos caminhos para a composição. O recurso da scordatura é um convite para o compositor explorar outras possibilidades mecânicas do instrumento. Este também é um ponto no qual fica evidente a dinâmica entre o intérprete e o compositor, visto que a criação torna-se fruto de experimentações empíricas que só um instrumentista/compositor seria capaz de realizar. A exploração de novos recursos é uma constante na obra violonística de Gismonti e certamente deixará um enorme legado para as novas gerações de violonistas-compositores brasileiros.92 Neste âmbito, um dos substratos da presente pesquisa é deixar uma proposta de escrita, da obra para violão de Gismonti, que facilite a leitura da partitura musical, acolhendo a configuração peculiar das afinações reentrantes de seus instrumentos. A seguir, demonstraremos 7 diferentes scordaturas encontradas ao longo da discografia de Egberto Gismonti. O exemplo Nº1 refere-se a configuração do violão de 10 cordas de Egberto, nas músicas Em Família e Dança das cabeças. Ex. 1 – Afinação do violão de 10 cordas (Dança das Cabeças e Em Família). Observamos, no ex.1, que a afinação tradicional do violão de 6 cordas (EA-D-G-B-E) está contida dentro dessa afinação. As seis primeiras cordas permanecem inalteradas e acima delas são acrescidas uma 7º corda aguda (A); uma oitava corda grave (A); uma 9º corda aguda (G); e uma décima corda grave (F). Sobre a escrita musical: optamos pelo uso de dois pentagramas, ambos em clave de Sol. Existem diversos fatores que justificam essa opção: 1) dessa forma é possível distinguir visualmente, no pentagrama, as notas que são relativas ao violão 92 Sobre este legado, talvez um dos melhores exemplos que encontramos na atualidade é no violonista e compositor Daniel Murray. Em 2014 ele lançou o disco Autoral com peças para violão de 11 cordas com afinação reentrante, dispostas da mesma maneira como o violão de Egberto Gismonti, porém com uma corda grave a mais. Murray dedica algumas músicas à exploração de diversos recursos técnicos abertos pela linguagem Gismontiana. 88 tradicional (nas seis primeiras cordas) e as notas que são relativas às quatro cordas acrescidas com a afinação reentrante. Seria inviável utilizar um único pentagrama, pois deixaria a partitura com muitos sinais de digitação relativos às indicações de cordas93. 2) A questão topográfica da escrita orienta o violonista na leitura musical; primeiro porque na maior parte do tempo as notas do pentagrama inferior são tocadas com o polegar e segundo porque as notas do pentagrama inferior frequentemente são mais agudas do que as notas da pauta superior. Nesse sentido, pelo fato de estarem no pentagrama de baixo, servem de auxílio à leitura, visto que no corpo do instrumento estas notas estarão topograficamente em uma região relativa às notas graves. 3) A escolha pela clave de Sol no pentagrama inferior parte de dois princípios: os violonistas habitualmente estão mais familiarizados com esta clave e, não menos importante, como há notas no pentagrama inferior uníssonas à notas do pentagrama superior (Exemplo: a 9º corda solta é uníssona com a 3º corda solta), seria um equívoco escrevê-las em claves diferentes. Outro argumento é que na clave de fá algumas notas das cordas agudas, da afinação reentrante, necessitariam de linhas suplementares superiores inviáveis94. 4) Como a opção pela clave de sol é a mais coerente, a indicação de oitava abaixo torna-se necessária para as notas graves do pentagrama inferior. Seria inviável escrever as linhas suplementares necessárias para notar essas alturas. A composição Em Família foi concebida quando Gismonti passou a utilizar o violão de 10 cordas. Já a obra Dança das Cabeças surgiu quando Egberto usava o violão de 8 cordas, que possui a mesma afinação, porém não tem a 9º e a 10º corda. Discos como Danças das Cabeças (1976) e Sol do Meio Dia (1978), foram gravados com este último instrumento. Assim como Dança das Cabeças, Salvador foi gravada em diferentes instrumentos. Originou-se no violão de 6 cordas, passou pelo violão de 8 cordas e consolidou-se no violão de 10. Nesta composição observamos a scordatura da 6º corda afinada em Ré. 93 A pedido desse pesquisador, Egberto nos enviou a grade de Lundu e Dança dos Escravos para violão e orquestra. Percebemos que o próprio compositor utiliza-se apenas de um pentagrama. Por essa razão, cada nota da partitura necessita ter uma indicação relativa à corda. Essa “poluição visual” poderia ser evitada com a nossa proposta de escrita. Também observamos que em um determinado trecho de Dança dos Escravos, quando há percussões, o compositor é obrigado a abrir um outro pentagrama no violão. 94 Um exemplo é o compasso 10 da transcrição completa de Lundu, encontrada no anexo C desse trabalho. 89 Ex. 2 – Afinação do violão de 10 cordas (Salvador). A configuração é basicamente a mesma da anterior, exceto pela 6º corda. Já nas obras Dança dos Escravos e Lundu, o violão de 10 cordas possui outras duas scordaturas95, como demonstra o ex.3. Ex. 3 – Afinação do violão de 10 cordas (Lundu e Danças dos Escravos). Como podemos perceber, a primeira e a segunda cordas estão meio tom acima. O objetivo desta scordatura é manter os intervalos de 4º justa entre uma corda e outra.96 Dança dos Escravos foi gravada tanto no violão de 10 quanto no violão de 14 cordas. Porém, há um detalhe importante a ser colocado: os violões de 10 cordas e os violões de 14 são bastante semelhantes, pois o número de ordens97 é o mesmo. A diferença básica entre eles é que no violão de 14 cordas, as quatro primeiras ordens são duplas. Um outro detalhe é que essas cordas são de aço, gerando um timbre semelhante à viola caipira. 95 Em entrevista, Egberto ainda relatou algumas scordaturas do violão de 10 cordas, com a 9º em F# e a 10º em E. Porém, a obra em questão não foi recordada no momento da entrevista. Em Memória e Fado, a 8º corda está em B. 96 A justificativa para esta configuração será vista posteriormente em nossa pesquisa. No momento só estamos expondo o universo de afinações dos violões de Gismonti. 97 Os instrumentos de cordas são compostos por ordens de cordas que podem ser simples, duplas ou triplas. O violão tradicional é estruturado em 6 ordens simples. Já a viola caipira é composta por 5 ordens duplas. 90 Em termos práticos, a execução de Dança dos Escravos no violão de 10 e no violão de 14 cordas não traz grandes diferenças, pois é possível manter a mesma digitação. Para o ouvinte, entretanto, a diferença é bastante consistente, não só porque os violões possuem ordens duplas de aço, mas também por que Gismonti afina todas as cordas meio tom acima, como demonstra o ex. 4. Ex. 4 – Afinação do violão de 14 cordas (Dança dos Escravos). As cordas extras estão assinaladas em vermelho, mas é evidente que, para uma leitura fluente, não existe a necessidade de colocarmos as cordas duplas: a figura é um mero exemplo ilustrativo. No caso do violão de 14 cordas, uma outra proposta facilitadora da leitura musical, é a utilização do recurso da transposição. É mais intuitivo notar na partitura as notas meio tom abaixo, embora soem um semitom acima. Neste caso, faz-se necessário colocar uma indicação de instrumento transposto no início da partitura. Assim como o violão de 14 cordas se assemelha ao violão de 10, o violão de 12 cordas tem o mesmo número de ordens que o de 8. Novamente, as quatro primeiras ordens são duplas e de aço, porém a terceira e a quarta são afinadas com um intervalo de oitava. Ex. 5 – Afinação do violão de 12 cordas (Selva Amazônica). 91 Aqui também fizemos um mero exemplo ilustrativo, nas transcrições optamos por não escrever as ordens duplas oitavadas. Em entrevista, Egberto afirma que de vez em quando oitava a primeira e a segunda ordem também, desde que tenha um encordoamento de diâmetro 0.08, por conta da tensão. Gismonti conta que seu violão de 12 cordas foi inspirado no do seu amigo Ralph Towner. Percebemos que essa afinação também mantém a relação intervalar do violão tradicional de seis cordas, porém está transposta um tom abaixo.98 Sobre as scordaturas e a transposição um tom abaixo, Egberto declara. E hoje em dia, eu uso mais de uma afinação, mas não são tantas. Tem uma afinação que expandiu o violão para um lado que eu nunca tinha imaginado, que aí possibilitou entrar a percussão pra valer, que é [uma afinação] praticamente em quartas. (...) E como eu tenho uma audição boa e adquiri mais técnica do violão que eu toco, eu pude me dar ao luxo de desafinar algumas cordas. Pensar em uma outra afinação. Desafina e ele passa a ser transpositor não mais do instrumento que se escreve oitava acima e, sim, de notas outras que estão transpostas em relação à posições que eu tenho. (GISMONTI, 2016) O violão transposto, além de possibilitar a manutenção das mesmas relações de digitação no braço do instrumento, traz um benefício mais pragmático: Egberto afirma que o violão de 12 cordas de aço é naturalmente muito tenso; assim, afinando um tom abaixo, se estabelece maior conforto para o violonista e longevidade para o próprio instrumento. No ex. 6, observamos, no violão de 12 cordas, que o mesmo procedimento de afinar a 6º corda um tom abaixo (como em Salvador) está presente nas obras De Repente e Cego Aderaldo. Ex. 6 – Afinação do violão de 12 cordas (De Repente e Cego Aderaldo). 98 Nesse caso optamos por notar na partitura a altura real das notas, ao invés de transposta, visto que a maioria das transcrições realizadas ao longo da pesquisa têm caráter apenas didático. Caso seja realizada uma transcrição completa dessas obras para violão de 12 cordas, acredito que seria bastante oportuno a utilização da escrita transposta. 92 A utilização de scordaturas não tradicionais também podem ser observadas em obras para o violão de 6 cordas, como na canção Encontro no Bar, de 1973. Nela, Egberto afina a primeira corda em Dó e a terceira corda em Lá. Ex. 7 – Afinação do violão de 6 cordas com scordatura (Encontro no Bar). O objetivo dessa scordatura é criar uma escala em graus conjuntos (Lá-SiDo) nas três primeiras cordas soltas do violão. As implicações da utilização desse recurso, nessa obra, serão abordadas posteriormente. O fato é que as scordaturas e a afinação reentrante são recorrências que marcam a linguagem violonística de Egberto Gismonti. Sobre este aspecto, Egberto declara: Eu tenho um ponto de vista sobre o violão, que eu experimentei varias soluções, uma delas foi expandir o número de cordas. Modificar a posição das cordas, que é muito condicionante ao ponto de vista de criação, de escrita e de vícios. Eu conheço razoavelmente orquestra hoje em dia, porque eu faço isso há vinte anos sem parar. Acho que o violão é o instrumento mais viciado que existe sobre o ponto de vista da execução, do ater, do comportamento e etc. Isso não é uma crítica negativa, é uma crítica que pretende ser positiva. (GISMONTI, 2016) Os vícios, que Egberto salienta, se referem às idiossincrasias que o violão possui. As composições para este instrumento, de uma maneira geral, se beneficiam de diversos maneirismos próprios do violão. Nesse aspecto, mudanças estruturais na afinação, potencializam determinadas características que o violão tradicional não possui. Tais procedimentos acabam por fortalecer a especificidade da linguagem violonística de Egberto Gismonti. 4.3.4 A nota pedal e a atuação do polegar. A música Maracatu, de Egberto Gismonti, contém um dos maiores exemplos de nota pedal na obra pianística desse autor. Como analisou Silva (2014), a 93 nota Fa# representa o ostinato do gonguê, que se mantém do início ao fim na composição. Porém, apesar desse exemplo notório, diferentemente das obras pianísticas, a nota pedal na linguagem violonística de Gismonti é quase sempre um elemento condutor. O uso de distintas scordaturas, sobretudo com o acréscimo das afinações reentrantes, contribuiu para a supervalorização deste recurso, que, por sua vez, foi determinante no desenvolvimento de uma técnica violonística própria. Na música para violão de Gismonti, frequentemente observamos melodias intercaladas por nota pedal, como demonstra o ex. 8. Ex. 8 – Dança das Cabeças (Performance II); Minutagem: 0’09’’; Andamento: 86 BPM; 10 cordas. Nesse fragmento de Dança das Cabeças, temos a nota pedal (Lá) sendo executada pelo polegar na 7º corda (reentrante) solta, enquanto que a melodia transcorre em cordas presas. Um aspecto idiomático do violão – e dos instrumentos de cordas dedilhadas e friccionadas – aparece no terceiro compasso. Nele, vemos a possibilidade de termos a mesma nota – na mesma altura – sendo executada em um “local” diferente do instrumento. É notório que o timbre de uma nota em corda solta ressoa completamente diferente dessa nota executada em uma corda presa. Por mais que o performer queira, e estude para nivelar os timbres, o próprio violão ressoa de maneira distinta, pois a arquitetura de cada corda é diferente, trazendo, em si, uma 94 sonoridade particular99. Além da questão do timbre, há a funcionalidade textural. No ex. 8 a nota lá na última semicolcheia do terceiro compasso tem função melódica, enquanto que essa mesma nota, em corda solta, tem uma função de “acompanhamento”. Gismonti explora esse recurso sistematicamente em suas obras para violão. Na exposição do tema da peça Bianca, temos um exemplo notório desse procedimento. Ex. 9 – Bianca (Duas Vozes); Minutagem: 1’02’’; Andamento: 74 BPM; 10 cordas. No ex. 9, a nota pedal Sol (solta) é executada na 9º corda reentrante do violão de 10 cordas, enquanto que a melodia transcorre na nota Sol (presa). Aqui salientamos um aspecto importante do ponto de vista da interpretação violonística, que é a acentuação. Devido à funcionalidade dessa nota pedal, Egberto Gismonti desenvolveu uma maneira particular de executar o polegar. Tradicionalmente, este dedo tem a função de executar os baixos, que, por sua vez, possuem um “peso” ou acentuação melódica imponente100. No estilo interpretativo de Gismonti, o polegar executa uma nota aguda, que, funcionalmente, opera como uma “cama de ressonância”. Para se produzir o efeito de acompanhamento, é necessário que o polegar atue com pouco peso dinâmico. Nesse sentido, acreditamos que o estilo 99 Por exemplo: a terceira corda solta (G) do violão tradicional é fabricada com nylon. Na 5º casa da quarta corda temos a mesma nota, na mesma altura, que é fabricada com nylon revestido de aço. 100 Para exemplificar, poderíamos evocar o violão de baixarias da linguagem do choro, que precisa ser articulado pelo polegar com proeminência. 95 interpretativo de Gismonti cria uma inversão de papéis na maneira como o polegar atua. A sutileza da nota pedal é fundamental para não tornar a execução enfadonha. Por outro lado, ela também é crucial para que a melodia da música seja projetada. No tema de Bianca, a nota Sol recebe dois tipos de tratamento, que precisam ser enfatizados para que as funcionalidades não se confundam. Por exemplo, no primeiro compasso, há uma síncope na nota sol presa que precisa ser ouvida. É indispensável que as 4 semicolcheias da nota pedal de acompanhamento não obscureçam a audição da síncope, por isso optamos por tocar toda a melodia explorando ao máximo as notas em corda presa. No ex. 9 temos uma amostra de linguagem violonística que o piano seria incapaz de reproduzir101. Embora Egberto afirme, na entrevista ao programa ensaio da TV cultura, que a utilização da afinação reentrante foi uma busca por reproduzir elementos da linguagem pianística no violão, este procedimento acabou por aprofundar em sua música uma linguagem absolutamente própria do violão. Na realidade, o recurso discutido nos exemplos 8 e 9 já estava presente na linguagem violonística de Egberto Gismonti antes mesmo do uso da afinação reentrante, com o violão de 6 cordas.102 Ex. 10 – Lendas (Orfeo Novo); Minutagem: 0’20’’; Andamento: 85 BPM; 6 cordas. 101 De fato, no piano não é possível executar uma mesma nota (na mesma altura) em um “local” diferente. Curiosamente, o tema de Bianca foi gravado, ao piano, pelo músico mineiro Antônio Loureiro. Como solução para interpretar esse tema, o pianista colocou a melodia e a nota pedal em oitavas distintas, tornando possível articular nota pedal e melodia com total independência. 102 O próprio tema de Bianca poderia ser reproduzido em um violão de 6 cordas, visto que a nota pedal solta é o Sol. 96 Lendas é uma canção, ou seja, o violão assume o papel de acompanhador. Nesse trecho temos a recorrência da nota pedal em corda solta intercalada com uma melodia. Assim como ocorreu nos exemplos 8 e 9, nos compassos 10, 14 e 16, percebemos que uma mesma nota aparece com função dupla: nota de “acompanhamento” e nota da melodia. Como vemos, o uso da nota pedal em corda solta é um recurso idiomático que sempre esteve presente na linguagem violonística de Gismonti. A seguir temos outro trecho, retirado de uma obra para violão de 6 cordas e flauta: Ex. 11 – 2º mov. de Três retratos para Flauta e Violão (Orfeo Novo); Minutagem: 1’26’’; Andamento: 96 BPM; 6 cordas. Nesse exemplo, também observamos a intercalação entre uma nota pedal em corda solta e uma linha melodia em cordas presas. Durante a investigação em torno da discografia de Gismonti, procuramos trazer exemplos musicais mais remotos, com o objetivo de averiguar se sua linguagem violonística, e o seu estilo interpretativo, permaneceram coerentes ao longo dos anos. Como afirma Wilkinson, os intérpretes tocam de forma coerente ao longo de suas carreiras. Ao analisar gravações, é possível percebermos que um músico desenvolve logo cedo um estilo pessoal, que o acompanha durante toda sua trajetória artística103. Voltando à discussão sobre o estilo interpretativo e a maneira como o polegar atua nas cordas reentrantes, vimos que esse dedo frequentemente subverte a sua função “natural” de tocar os baixos. Porém, nem sempre o peso dinâmico do polegar é piano; pelo contrário, em diversos momentos é necessário acentuar tais notas. 103 No âmbito da interpretação musical, Wilkinson ainda salienta que um intérprete jovem, que tem o seu estilo de performance aceito, acaba por não mudar suas particularidades ao longo de sua carreira para não correr riscos, sobretudo quando transformam-se em professores e seu estilo passa a ser cobiçado por seus alunos. 97 Ex. 12 – Cego Aderaldo (Folk Songs); Minutagem: 0’50’’; Andamento: 85 BPM; 12 cordas. No primeiro compasso do exemplo de Cego Aderaldo, Egberto executa um padrão rítmico (indicado em vermelho) utilizando apenas a nota Mi, que se alterna em corda solta e presa. Nesse caso, para o ritmo ser projetado, o polegar necessita articular as notas com um peso dinâmico semelhante aos outros dedos. O tema inicia no terceiro tempo do compasso seguinte e sempre que há um descanso da melodia, o material rítmico retorna. Encontramos na música Em Família, outro exemplo semelhante. No programa ensaio da TV Cultura, Egberto explica a estrutura do seu violão de 10 cordas e exemplifica a possibilidade de executar melodias rítmicas usando duas notas em uníssono, porém dessa vez com ambas em cordas solta: Ex. 13 – Em Família (todas as gravações); Andamento: 152 BPM; 10 cordas. 98 Na música Em Família, Gismonti utiliza a 3º corda solta e a 9º corda solta para produzir o ritmo. Nesse caso, são cruciais as acentuações, tanto no polegar quanto no dedo anelar, que executa a terceira corda. Uma outra possibilidade de produzir efeitos rítmicos semelhantes, porém intercalando cordas presas e ligados, encontramos na música Dança das Cabeças. Ex. 14 – Dança das Cabeças (Performance II); Minutagem: 0’54’’; Andamento: 175 BPM; 10 cordas. Nesse trecho, Egberto novamente explora a possibilidade de executar uma mesma nota intercalando corda solta e corda presa. Nesses três últimos exemplos, uma particularidade da execução violonística de Gismonti se manifesta: a virtuosidade espelhada pelos andamentos elevados. Em Dança das Cabeças, Egberto executa as 5 semicolcheias com a unidade de tempo relativa à 175 Bpm. Nessa caso, o ligado torna-se uma ferramenta que possibilita tal velocidade. Uma outra ocorrência encontramos em Salvador. Além do andamento semelhante, esse fragmento também traz ligados e nota pedal com ritmos acentuados no polegar. Ex. 15 – Salvador (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’43’’; Andamento: 171 BPM; 10 cordas. 99 Este é um exemplo interessante, que novamente nos faz refletir sobre o polegar na linguagem violonística de Gismonti. Nesse caso, a acentuação e o ritmo que esse dedo executa, nas duas cordas reentrantes, remetem a uma atuação tradicional da linha do “baixo” executada com polegar. Porém, há uma linha melódica mais grave acontecendo no dedo indicador da mão direita. Esse procedimento revela uma linguagem violonística que, por uma questão estrutural, dificilmente poderia ser executada em uma violão tradicional. O ritmo e as acentuações nas notas do pedal, executadas pelo polegar, criam uma ambiguidade que sugere a existência de uma linha virtual “baixo”. Apenas o ritmo e a acentuação seriam fatores determinantes para reconhecermos uma linha melódica como sendo estilisticamente genuína de linhas de baixo? A resposta a essa questão só pode ser contemplada dentro de um gênero musical, pois é somente através de uma linguagem estabelecida que podemos falar em estilo. A figura rítmica tradicional da linha de baixo do baião, por exemplo, pode ser facilmente identificada, independentemente do registro das notas, ou até mesmo da própria existência de uma altura definida. Reconhecemos o padrão rítmico do baião apenas pela leitura das figuras rítmicas, pois na realidade esse padrão origina-se na percussão. No caso de Salvador, a levada rítmica surge de um afro-samba espelhado na linguagem violonística de Baden Powell104. Na performance de Baden, é comum encontrarmos uma linha de baixo sendo executada com o polegar simultaneamente à uma linha melódica intermediária, executada pelo indicador, da mesma forma como ocorre no ex. 15. Por essa razão, acreditamos que o polegar, nesse trecho de Salvador, tem a função virtual de um baixo. Desse modo, temos a demonstração de uma levada de afro-samba com o uso particular da afinação reentrante. Aqui há o encontro de uma tradição do violão brasileiro, representada pela levada rítmica de Baden Powell, com a linguagem violonística de Egberto Gismonti. Seguindo nessa mesma lógica, de notas pedais executadas pelo polegar como “baixos”, selecionamos o material temático de Dança das Cabeças: 104 Salvador faz referência à composição Berimbau de Baden e Vinicius, da série de composições destes autores denominadas Afro-sambas. Além do ritmo, a harmonia de ambas as músicas se assemelham: o tema também alterna os acordes de Ré menor e Lá menor. No arranjo original de Salvador, do primeiro disco de Egberto Gismonti, gravado em 1969, a menção ao Berimbau se faz bastante evidente. 100 Ex. 16 – Dança das Cabeças (Performance II); Minutagem: 1’16’’; Andamento: 174 BPM; 10 cordas. Nesse exemplo, temos a atuação do polegar, na afinação reentrante, executando exatamente a rítmica do baião comentada anteriormente. Porém, nesse caso, há um reforço da nota Lá grave da 8º corda solta. Na realidade, o estilo interpretativo de Gismonti tem como essência a liberdade – própria do compositor-intérprete – para fazer inúmeras variações. Em Dança das Cabeças, o baixo clássico do baião, em alguns momentos de sua performance, é realizado inteiramente com a nota Lá grave. Em nossa transcrição, colocamos uma possibilidade que é bastante recorrente, porém não é a regra. No próprio disco Dança das Cabeças, na primeira exposição do tema, os baixos começam no Lá grave e na repetição os “baixos” aparecem com o Lá reentrante. Essa variação na corda em que o polegar atua reforça nosso argumento de que as notas da afinação reentrante em alguns momentos assumem a função do baixo. No ex. 16, indicamos em vermelho a intercalação entre uma mesma nota articulada alternadamente em corda presa e corda solta. Esse trecho é bastante semelhante ao ex. 14 e podemos observar também o uso de ligados. Até o momento, vimos dois tipos de atuação do polegar com as notas pedais da afinação reentrante, no que tange o peso dinâmico. No primeiro, há a intenção de “esconder” a nota pedal para que ela sirva apenas como uma “cama de 101 ressonância”; no segundo, a nota pedal precisa ser acentuada para projetar melodias rítmicas ou servir como uma espécie de “baixo virtual”. No exemplo a seguir, podemos encontrar uma atuação do polegar que precisa variar os dois pesos dinâmicos. Ex. 17 – Selva Amazônica (Solo); Minutagem: 2’04’’; Andamento: 87 BPM; 12 cordas. A nota Mi, da afinação reentrante, é articulada com sutileza, servindo apenas como uma “cama de ressonância” para a melodia em 6º paralela no agudo. Já a nota Lá grave, é articulada com uma força dinâmica proeminente, com o objetivo de valorizar a mudança de um compasso para o outro. Nesse exemplo, é importante que o intérprete tenha a habilidade de mudar o peso dinâmico do polegar em um curto espaço de tempo. No compasso 32, ocorre uma inversão das funções: a melodia passa a ser executada pelo polegar e a terça Sib-Ré (arpejada) torna-se o pedal. É interessante ressaltar que, devido à scordatura utilizada por Egberto, em todo esse trecho musical sempre há uma corda solta participando como nota pedal. No compasso 36, surge um detalhe de interpretação importantíssimo. O tema de Selva Amazônica apresenta-se nas notas Mi-Mib-Re, articuladas pelo dedo indicador. É necessário que o intérprete projete essas notas à frente das outras, para que o ouvinte compreenda o material temático. O maior desafio desse procedimento é 102 quando o polegar e o indicador executam duas notas simultaneamente. Nesse caso, o polegar precisa ter um peso dinâmico inferior ao indicador. Na canção Encontro no Bar, como foi levantado anteriormente, Gismonti utiliza uma scordatura na qual as três primeiras cordas ficam dispostas em graus conjuntos (Dó-Si-Lá). Ex. 18 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 0’; Andamento: 121 BPM; 6 cordas. No inicia da gravação, Egberto executa essas três primeiras cordas com o harmônico da décima segunda casa. Logo em seguida, o mesmo padrão é repetido em cordas soltas. A alternância desse material, entre harmônicos e cordas soltas, é repetida diversas vezes na composição. As cordas soltas passam a ser notas pedais, que atuam como um ostinato durante quase toda a composição. Um detalhe interessante, desse trecho destacado, é que ele evoca uma ambiguidade entre melodia e arpejo. Habitualmente, a execução de cordas soltas no violão é sinônimo de arpejo. Porém, na obra Encontro no Bar, o “arpejo” tornou-se uma escala em graus conjuntos. O fato é que, independentemente das cordas estarem configuradas em graus conjuntos ou disjuntos, se articularmos as três primeiras cordas do violão separadamente, a ressonância das notas fará com que elas soem harmonicamente, pois seria difícil abafar uma nota antes de executar a outra. Nesse sentido, lançamos a hipótese de que Egberto Gismonti, por ser um pianista, procurou encontrar maneiras de trazer o recurso do pedal de sustentação105 do piano para o violão e encontrou a solução na scordatura. Na linguagem violonística chamamos esse efeito de campanela. O nome deriva da palavra campana, que em espanhol significa sinos. A analogia com os sinos provém justamente da sustentação das notas em graus conjuntos, que criam intervalos dissonantes de segundas maiores e menores. A diferença da campanela, tradicionalmente estabelecida no repertório dos instrumentos de cordas, para o exemplo em Encontro no Bar, está apenas na digitação, visto que a 105 O pedal de sustentação é um recurso que o piano têm, que retira os abafadores das cordas, deixando que elas soem simultaneamente. 103 scordatura na peça de Egberto gerou a possibilidade de realizar um “arpejo” em cordas soltas, enquanto que na técnica padrão normalmente se tem a alternância de cordas presas com cordas soltas. Como foi demonstrado, a linguagem violonística de Egberto Gismonti tem a nota pedal como um elemento estrutural. As diferentes scordaturas e a afinação reentrante facilitam o desenvolvimento desse recurso, sobretudo por ampliar as possibilidades de utilização de cordas soltas. Verificamos que a investigação sobre a nota pedal trouxe aspectos inerentes ao estilo interpretativo de Gismonti, principalmente no que tange a atuação do polegar. Averiguamos a necessidade do intérprete trabalhar com pesos dinâmicos distintos – nos dedos da mão direita – com o objetivo de projetar para o ouvinte as funções relativas à cada nota musical. Constatamos a existência de um paradoxo na linguagem violonística de Gismonti, no qual o polegar – mesmo executando uma nota aguda – assume a função de “baixo”. Também observamos que a nota pedal é um elemento que já estava presente na linguagem violonística de Gismonti, desde suas composições antigas, gravadas ainda com o violão de 6 cordas. Lançamos a hipótese de que Gismonti, na busca por transpor o pedal de sustentação do piano para o violão, através de uma scordatura específica, criou uma possibilidade particular de executar o efeito expressivo da campanela. 4.3.5 Harmônicos Egberto Gismonti criou uma maneira particular de utilizar o recurso dos harmônicos, que tornou-se marca na sua identidade. Com frequência, o repertório tradicional para violão explora os harmônicos de oitava, quinta e duas oitavas, porém, é raro encontrarmos de quinta e terça duas oitavas acima da nota “real”106. Este recurso aparece constantemente nas performances de Gismonti, que busca explorar ao máximo o potencial das notas da série harmônica. No final da gravação de Cego Aderaldo, temos um exemplo desse procedimento: 106 Aqui assumimos a nota “real” como a posição na escala do braço do instrumento onde um dedo da mão esquerda se posiciona para produzir um harmônico. 104 Ex. 19 – Cego Aderaldo (Folk Songs); Minutagem: 7’32’’; Andamento: 65 BPM; 12 cordas. Nesse trecho, colocamos no pentagrama as notas sobre as quais iremos executar os harmônicos e acima delas indicamos se é uma terça ou uma quinta, duas oitavas acima. Essa metodologia simplifica a leitura musical, pois as notas indicadas na partitura estão no local exato onde os dedos da mão esquerda irão se posicionar. A produção dos harmônicos depende exclusivamente da mão direita, que atua nas regiões relativas à divisão proporcional da série harmônica ao longo da corda. O mecanismo de ação da mão direita, que produz os harmônicos, está demonstrado na figura a seguir: Figura 1 – Posição dos dedos da mão direita para realizar os harmônicos. O dedo indicador se posiciona na corda no local proporcional ao harmônico, enquanto que o dedo médio – ou anelar – fica responsável por tangê-la. 105 A figura abaixo reproduz o resultado sonoro do ex. 19. Ex. 20 – Cego Aderaldo (resultado sonoro do ex. 19) No exemplo, realiza-se uma melodia em harmônico na qual com um dedo da mão esquerda colocado sobre a nota Mi, temos a possibilidade de executar, com a mão direita – além da oitava – a terça (Sol#) e a quinta (Si). Adicionalmente, esse uso dos harmônicos pode servir para se atingir algumas das notas mais agudas da tessitura do violão. O ex. 19 transcorre sobre a 4º corda, que é relativamente grave. Porém, ao utilizarmos as cordas primas, podemos atingir tessituras superagudas. No exemplo a seguir, de Danças das Cabeças, Egberto brinca com a alternância entre uma nota “real” e uma nota em harmônico superagudo. 106 Ex. 21 – Dança das Cabeças (Performance I); Minutagem: 3’02’’; Andamento: 107 BPM; 10 cordas. Além de notas superagudas – como o harmônico de duas oitavas da nota Dó, do último compasso – nesse trecho, temos uma amostra de um dado relevante sobre o estilo interpretativo de Gismonti: a improvisação. Essa transcrição foi retirada de uma performance ao vivo, que habitualmente é recheada de liberdade formal, melódica e harmônica. Percebemos como um elemento da linguagem violonística de Egberto, no caso o harmônico, é utilizado de maneira improvisatória. A ideia musical, nesse fragmento, é de realizar uma espécie de eco na melodia, como uma pergunta e resposta. Os harmônicos sempre respondem ao motivo melódico proposto anteriormente pelas notas “reais”. É como se o próprio intérprete solista travasse um desafio consigo mesmo, numa espécie de duelo. As notas reais vão desafiando as notas em harmônico até que chega 107 ao ápice, com as fusas, quando Egberto revela todo o seu virtuosismo. A escala é realizada em um espasmo veloz, que chega a tornar a execução turva. Nas notas em harmônico, em resposta às fusas, é necessário utilizar ligados de três notas para que o andamento não seja comprometido. Outra questão fundamental do estilo interpretativo de Gismonti, revelado pelo trecho improvisatório de Dança das Cabeças, é a sonoridade. O recurso do harmônico, além de projetar notas mais agudas, também permite obter timbres diversificados. O fato é que, ao utilizar essa técnica, nem sempre o dedo indicador está posicionado exatamente no local proporcional ao harmônico que se pretende. Com uma pequena diferença de posicionamento, a nota harmônica sai sem uma altura definida; o que produz timbres e coloridos diversos. A imprecisão das notas harmônicas torna-se algo proposital na performance de Egberto. No ex. 21, colocamos a indicação na partitura para que os harmônicos sejam executados em duas oitavas, porém uma execução estritamente precisa dessa técnica excluiria a beleza do recurso. Diferentemente do ex. 19, no qual a passagem exige uma precisão no uso dos harmônicos, no ex. 21 a variação de sonoridade se impõe. Egberto encara essa especificidade tímbrica do violão como uma forma de raciocinar este instrumento de maneira não temperada. Em entrevista Gismonti afirma: E fui descobrindo que tinha dificuldades [no violão] que eu não tinha noção do que era aquilo. Porque piano você tem uma visão global e é um instrumento temperado. (...) Eu quando sento não tenho um raciocínio de nada que não seja temperado. Quando eu pego o violão eu tenho um raciocínio oposto. Apesar de traste, mas aquilo ali só delimita o possível lugar que a nota vai soar direito. Certeza você não tem nenhuma (GISMONTI, 2016). Essa incerteza da altura exata que uma nota vai soar sobre um determinado traste, reforça o caráter improvisatório da performance violonística de Egberto Gismonti e é uma das graças de sua postura como intérprete. A seguir, temos o tema de Selva Amazônica no qual há, tanto o artifício do eco, visto na improvisação de Dança das Cabeças, quanto a variação tímbrica nos harmônicos. 108 Ex. 22 – Selva Amazônica (Nó Caipira); Minutagem: 0’17’’; Andamento: 89 BPM; 12 cordas. Nesse exemplo, indicamos harmônicos de duas oitavas na partitura, porém, na prática eles variam de maneira aleatória, de acordo com o arbítrio do intérprete no momento da performance. Outro detalhe é a combinação desse recurso com bends107, realizados pela mão esquerda, que Egberto usa bastante e traz novas “incertezas” à sua performance. Vale ressaltar que nos exemplos 19, 21 e 22 observamos novamente a constância da nota pedal, em corda solta, na afinação reentrante. Em todos esses trechos o polegar atua sutilmente, fazendo a “cama de ressonância” de acompanhamento. Também identificamos acordes arpejados executados com harmônicos. Na obra Selva Amazônica, esse artifício é explorado em diversos momentos. Na transcrição a seguir, os dois acordes com harmônicos anotados na partitura aparecem no início e no fim da obra. 107 Esta é uma técnica de mão esquerda muito comum aos instrumentos de cordas dedilhadas. Consiste em deslocar a corda em um sentido vertical, usando um dedo da mão esquerda que esteja incidindo sobre alguma nota da escala. O objetivo é fazer a altura da nota variar, como em um vibrato, porém, mais agressivo. Este recurso é comum no estilo interpretativo guitarrístico de gêneros musicais norteamericanos e ingleses, como o blues e o rock. 109 Ex. 23 – Selva Amazônica (Performance IV); Início e fim da performance; 12 cordas. Para executar este procedimento, o violonista precisa posicionar a mão direita da forma como foi demostrado na figura 1, na região da corda relativa ao harmônico de duas oitavas. Depois, basta deslizar a mão verticalmente, do agudo para o grave, como demonstra a seta no ex. 23. Esse mecanismo é bastante explorado por Egberto108. Embora tenhamos anotado na partitura apenas esses dois acordes, durante essa performance, Egberto os repetem diversas vezes, sempre variando a posição da mão direita, de modo que um novo “cacho” de harmônicos soe. Em Selva Amazônica, a ressonância é ainda amplificada pelas ordens duplas de aço, que compõe o violão de 12 cordas de Gismonti. Em alguns momentos, Egberto balança o violão e empurra o braço do instrumento com a mão esquerda para que as ondulações harmônicas sofram um vibrato agressivo. 109 Observamos que a escolha da configuração do acorde, utilizada no ex. 23, não é aleatória. Além de repetir o mesmo acorde em outra região do braço no instrumento, Egberto também usa essa mesma configuração de acorde para realizar os harmônicos arpejados em outras músicas, como demonstra o exemplo a seguir110: 108 A gravação de Cego Aderaldo, do disco Circense, também termina com acordes arpejados em harmônicos. 109 Este recurso é bastante explorado na guitarra elétrica. O lendário guitarrista Jimi Hendrix utilizouse com frequência dessa possibilidade. Nas performances ao vivo de Gismonti é recorrente encontrarmos esse procedimento. 110 A configuração do acorde é a mesma, porém no ex. 14 o violão tem uma scordatura diferente. 110 Ex. 24 – Dança das Cabeças (Performance I); Final da performance; 10 cordas. Nesse exemplo, antes de chegar no arpejo final, Egberto explora as possibilidades melódicas dos harmônicos através da oitava, da terça e da quinta. Nesse caso, a mão esquerda fica parada e a melodia de harmônicos é executada apenas com a atuação da mão direita.111 Outra observação, quanto ao uso de arpejos com harmônicos, é a sua funcionalidade estrutural: ele é frequentemente utilizado no fim da performance. Dança das Cabeças, Selva Amazônica e Cego Aderaldo são alguns exemplos. Até o momento, investigamos a presença dos harmônicos de 2 oitavas acima e de terças e quintas em duas oitavas acima. Porém, dentro da linguagem violonística de Egberto Gismonti, os harmônicos “tradicionais” – de uma oitava e quinta – também são explorados com recorrência. No fragmento da performance da obra Em Família, colocamos na partitura a indicação da casa na qual o harmônico será executado. 111 Foi possível observar um detalhe de interpretação que ajuda a ressoar melhor o último acorde de Dança das Cabeças: fazer uma pequena inclinação diagonal, ao deslizar a mão direita para cima, faz com que o dedo indicador coincida com regiões mais ricas em harmônicos dessa configuração de acorde. 111 Ex. 25 – Em Família (Performance V); Minutagem: 3’20’’; Andamento: 145 BPM; 10 cordas. Nessa passagem, pela constante variação dos harmônicos, que não estabelecem necessariamente um padrão objetivo, fica claro que o intérprete está improvisando, deixando fluir sua espontaneidade. O fato é que, dentro do estilo improvisatório de Gismonti, todos os elementos recorrentes da sua linguagem violonística são trazidos a baila. Egberto frequentemente executa harmônicos naturais de quinta e oitava intercalando duas regiões do braço do instrumento com muita agilidade, como podemos perceber no andamento do exemplo a seguir: Ex. 26 – Dança dos Escravos (Performance VII); Minutagem: 1’10’’; Andamento: 140 BPM; 10 cordas. 112 Também observamos situação semelhante na canção Encontro no Bar: Ex. 27 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 1’13’’; Andamento: 121 BPM; 6 cordas. No extrato assinalado em vermelho, percebemos que Gismonti realiza uma quiáltera de 6 notas com a unidade de tempo em 121 batidas por minuto. Nesse caso, há uma alternância entre os harmônicos da casa 5 com a casa 7. No ex. 26, Egberto executa 4 notas com a unidade de tempo marcando 140 batidas por minuto, o que engendra aproximadamente a mesma velocidade. Também observamos nesse fragmento uma polirritmia de 5 contra 4, em decorrência do padrão melódico dos harmônicos que está organizado a cada 5 semicolcheias. Ao discutirmos o pedal, recorremos à gravações remotas com o violão de 6 cordas. Em relação ao uso dos harmônicos em gravações antigas, selecionamos uma obra reveladora, que comprova a proeminência desse recurso em sua linguagem. Embora não seja uma obra de autoria de Gismonti, a interpretação do pot-pourri Berimbau/Consolação carrega tanta identidade que ela não poderia ser negligenciada por essa pesquisa. Egberto interpreta as duas obras em Mi menor112. O objetivo de transpor para essa tonalidade é evidente em seu arranjo: em Mi menor é possível tocar integralmente a melodia, e quase toda a harmonia das músicas, utilizando apenas os harmônicos de oitava e quinta. Selecionamos uma pequena amostra do arranjo arquitetado por Gismonti: 112 Tradicionalmente, no âmbito instrumental, essas duas composições são executadas em Ré menor, inclusive com a 6º corda afinada em Ré. 113 Ex. 28 – Consolação/Berimbau (Orfeo Novo); Minutagem: 0’; Andamento: 137 BPM; 6 cordas. Nesse exemplo, percebemos que o uso dos harmônicos assume todas as funções do arranjo. Destacado em vermelho, temos a levada característica da música Berimbau (compasso 30), o material temático (compasso 36) e alguns contracantos (compasso 38). Apenas na segunda parte da composição alguns acordes não são possíveis de serem realizados em harmônicos. Como discutimos no capítulo 2, a obra musical é um constructo que só existe nas mãos do intérprete. A atuação deste, configura-se, de certa forma, como um processo de recomposição daquilo que foi concebido pelo compositor. Egberto Gismonti, por ser essencialmente um intérprete-compositor, quando se depara com obras que não são suas, as transforma de tal maneira que a linha tênue que separa o intérprete e o autor – na obra musical – se fragiliza ainda mais (vide Trem Caipira). O intérprete deve apropriar-se do texto a ponto de torná-lo sua própria criação. Percebemos que em Berimbau/Consolação, Gismonti explora um recurso inato à sua linguagem violonística para dar uma roupagem gismontiana à obra interpretada, tomando-a uma propriedade sua. Neste tópico, discutimos a recorrência dos harmônicos na obra violonística de Egberto Gismonti. Percebemos que Egberto explora possibilidades, como os harmônicos de terça e quinta duas oitavas acima, que são normalmente subvalorizadas pelo repertório tradicional de violão; vimos como o estilo improvisatório da sua performance combina o uso de diversos harmônicos – na busca por trazer um raciocínio não temperado para instrumento – gerando novas sonoridades, tanto para as melodias quanto para os acordes arpejados; investigamos a manifestação do virtuosismo violonístico de Gismonti na execução de escalas e 114 arpejos com harmônicos em velocidades elevadas; por fim, reiteramos a importância do intérprete atuar como um agente ativo na criação da obra musical. 4.3.6 O Tapping e a independência das mãos A técnica do tapping é muito comum nos instrumentos de cordas e há registros de seu uso que remontam ao célebre violinista (e violonista) Niccolo Paganini. No universo guitarrístico do século XX, essa técnica foi amplamente desenvolvida por músicos antigos como Vittorio Camardese, Roy Smeck e Jimmy Webster; e por guitarristas contemporâneos como Eddie Van Halen, Tommy Emmanuel e Stanley Jordan. O dicionário inglês-português Password113, traduz a palavra tap como: batida leve. No universo musical guitarrístico, a palavra tapping carrega o significado dessa ação. A técnica do tapping, acaba por subverter a maneira tradicional de execução do instrumento. Ao invés de uma ação coordenada, entre mão direita e esquerda, apenas uma das mãos executa a nota. Para isso, é necessário que o dedo bata diretamente nas notas da escala do instrumento. Na linguagem violonística de Egberto Gismonti, o uso do tapping se dá principalmente na mão esquerda. A recorrência dessa técnica espelha um aspecto interessante do seu estilo interpretativo, que é a independência das mãos. Podemos lançar a hipótese de que essa autonomia provém da sua habilidade como pianista, tese que Egberto confirma: Existem violões, e eu estou fazendo isso, que você tem duas funções simultâneas. Uma de piano, batendo em cordas, pra isso eu tive que chegar em um braço desenhado com uma altura de traste que é meio quadrada, arredondada... é uma confusão danada, pra não ficar [demonstra o barulho de ruído]. E uma mão direita que está pinçando ao mesmo tempo (GISMONTI, 2016). Nas as obras em que ele utiliza o tapping, frequentemente há a simultaneidade de outros recursos como nota pedal, arpejos ou harmônicos. Desse modo, a autonomia das mãos é acentuada, exigindo do intérprete a necessidade de desenvolver a independência motora com mais afinco. Sobre este aspecto, Gismonti 113 Password: K dictionaries: English dictionary for speakers of portuguese. 3º ed – São Paulo: Martins Fontes, 2005. relata 115 ter criado diversos estudos de polirritmias e, até mesmo de politemporalidades114. Além do estudo, a própria composição musical é pensada sob o ponto de vista da simultaneidade de eventos: Profissionalmente, para outros, eu comecei a escrever umas peças... para quem eu conheço pessoalmente e sei que tem seriedade suficiente para estudar até morrer, antes de dar a coisa como pronta, como é o Odair Assad. (...) E escrevi pra ele duas coisas ou três. Memória e Fado, tem dois violões tocando e é uma pessoa só tocando. Aquilo não é melhor nem pior, aquilo são dois violões em um. (...) Então, o piano me leva a pensar os outros instrumentos com essa característica. (...) Aquilo ali são dois pontos de vista, que é polifonia. É orquestra pura! (GISMONTI, 2016) Embora o piano seja gerador de determinados raciocínios musicais, seria equivocado dizer que ele é a fonte primária. Acima de tudo está a música: a ideia musical é que determina e conduz a composição de Egberto Gismonti, seja para piano, seja para violão. Nesse sentido, a simultaneidade de eventos musicais partiria de um princípio musical elementar, que é o contraponto: O fato do violão, dentro do meu conceito de polifonia e polirritmia, não disponibilizar mais de duas vozes compostas. Voz composta é aquela que bifurca as vezes [solfeja]. No meu conceito não tem mais de duas vozes compostas, é por isso que eu fui mudando a maneira de tocar piano, diminuindo o número de notas, acordes e etc... e comecei a dissolver harmonias e acabei na coisa mais precária, historicamente falando, que é o contraponto. Eu trabalho com duas vozes em piano e trabalho com duas vozes no violão. Isso me dá uma dimensão musical que não é pianística e que não é violonística. Claro que qualquer música pode ser executada em qualquer instrumento (GISMONTI, 2016). Percebe-se que a condução a duas vozes é o princípio que determina o uso do tapping concomitantemente com outros eventos musicais. Esclarecido esse aspecto, partimos aos exemplos musicais. Na música Em Família, selecionamos dois momentos distintos: no primeiro o tapping aparece acompanhado por nota pedal, e no segundo por harmônicos. 114 Em entrevistas a Silva, Egberto afirma ter inventado exercícios de estudos pianísticos nos quais cada uma das mãos estaria acompanhando um metrônomo diferente. Para aprofundar esse assunto, ver Silva (2008). 116 Ex. 29 – Em Família (Todas as gravações); 152 BPM; 10 cordas. Ex. 30 – Em Família (Performance V); Minutagem: 4’19’’; Andamento: 123 BPM; 10 cordas. No ex. 29, temos o mesmo trecho musical demonstrado anteriormente no ex. 13, porém com o acréscimo do tapping. Percebemos a força percussiva dessa passagem musical, com a exploração do padrão rítmico da alfaia 115, no gênero folclórico maracatu. Um detalhe de digitação importante é que Gismonti utiliza o dedo médio da mão esquerda para produzir o tapping. É quase consenso entre os violonistas que o dedo médio possui mais peso do que os outros. Ao contrário da tradução literal da palavra tap (bater de leve), para se produzir uma nota utilizando essa técnica no violão, é necessário que o dedo martele a corda com bastante força. 115 Ver página 9. 117 No ex. 30, o tapping é acompanhado por harmônicos de duas oitavas e terças e quintas em duas oitavas. Novamente, a rítmica do maracatu se apresenta e podemos identificar, nos harmônicos, o padrão rítmico do gonguê116. No primeiro compasso, é fundamental a atuação dos dedos indicador e médio para a realização das quatro semicolcheias. Consequentemente, ambos incidem sobre a mesma casa. Também observamos que, novamente, o dedo médio é responsável pelas notas acentuadas. O dedo indicador funciona apenas como uma espécie de repique e a sua atuação é mais sutil, não chegando a definir a altura da nota, produzindo um som mais próximo de um ruído (por isso assinalamos com um x na partitura). Já no segundo sistema, o dedo indicador executa uma altura definida. Em Dança das Cabeças, Selva Amazônica e De Repente, também temos outros exemplos da atuação do tapping, combinada com harmônicos e nota pedal. Ex. 31 – Dança das Cabeças (Performance I); Minutagem: 2’12’’; Andamento: 101 BPM; 10 cordas. O ex. 31 é relativo ao trecho de Dança das Cabeças demonstrado anteriormente no ex. 8. Após executar a melodia, articulando as notas de maneira tradicional, Egberto transpõe o mesmo material temático uma oitava abaixo, porém dessa vez articula as notas com o tapping. No compasso 99, Egberto efetua 116 Ver página 9. 118 harmônicos de quinta e terça com a mão direita e simultaneamente realiza um padrão ritmico nas notas graves, com o tapping de mão esquerda. Além dessa independencia das mãos, esse trecho traz um outro detalhe do estilo interpretativo de Egberto, que são os bends. Esse recurso é amplamente realizado por Egberto para enriquecer a sonoridade e articulação da melodia117. Ex. 32 – Selva Amazônica (Solo); Minutagem: 7’17’’; Andamento: 87 BPM; 12 cordas. No ex. 32, o harmônico aparece na própria nota pedal118. Aqui, ele é usado de forma não temperada, produzindo coloridos tímbricos diversificados. A precisão e regularidade na execução dos harmônicos, não é algo interessante artisticamente, podendo tornar a interpretação monótona e artificial. A variação e a irregularidade dão justamente o caráter de imprevisibilidade que caracterizam a performance violonística de Gismonti. No exemplo que acabamos de demonstrar, vimos o uso de uma nota pedal em harmônicos concomitantemente à uma melodia em tapping. Já no trecho que iremos destacar a seguir, temos a simultaneidade de três elementos distintos, articulados com completa autonomia: na mão direita, os dedos indicador e médio executam notas em harmônicos; o polegar realiza um pedal em corda solta; e a mão esquerda executa uma melodia em quartas paralelas, usando o tapping. 117 Optamos por não anotar os bends pois é um recurso utilizado de maneira sutil e improvisada. 118 Nos exemplos 10 e 13, demonstramos esse tema sendo arquitetado de outras formas. 119 Ex. 33 – De Repente (Sanfona); Minutagem: 3’52’’; Andamento: 134 BPM, 12 cordas. Nesse exemplo, temos uma amostra do uso do tapping nas cordas primas no violão. É importante destacar nesse fragmento, a melodia em intervalos de 4º justa. Dentro da linguagem violonística de Gismonti, constatamos que é vasta a recorrência desse intervalo. Ele busca explorar as possibilidades quartais inerentes ao violão, abusando de acordes paralelos em plaquê119 e arpejos em cordas soltas. A obra Dança dos Escravos, traz um exemplo da combinação do tapping com esses arpejos em intervalos de quarta justa: 119 O plaquê é uma forma de tocar um acorde, na qual todas as notas são executadas simultaneamente. 120 Ex. 34 – Dança dos Escravos (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’56’’; Andamento: 137 BPM; 14 cordas120. Aqui, temos o material temático em tapping121 simultaneamente com um ostinato em arpejo quartal nas cordas soltas. Um detalhe sobre a interpretação é que Egberto acentua o Dó e o Sol do primeiro compasso. Esses acentos são cruciais para dar um interesse rítmico aos arpejos, além de demarcar o fim de um ciclo do ostinato 122 . O fragmento musical também evidencia o aspecto da liberdade improvisatória na performance de Gismonti. Em nossa transcrição, procuramos um trecho no qual os padrões de arpejos estão bastante claros, porém Egberto faz pequenas variações ao longo da interpretação, “brincando” com as possibilidades de combinações que esses arpejos oferecem. Na obra De Repente, também há o uso concomitante entre tapping e arpejos e Egberto também realiza diversas variações progressivas nos arpejos. Nesse tópico investigamos um aspecto fundamental no estilo interpretativo de Egberto Gismonti: a independência das mãos. A partir de uma ideia musical, de contraponto a duas vozes, surge a necessidade de ampliar as 120 Lembrando que nessa transcrição a escrita está transposta. O violão de 14 cordas soa meio tom acima das notas representadas no pentagrama. 121 No segundo compasso a melodia passa do pentagrama inferior para o superior. Seguindo o nosso critério de notação, no pentagrama inferior escrevemos somente as notas digitadas nas cordas sete, oito, nove e dez do violão de 10 cordas e onze, doze, treze e quatorze, do violão de 14 (Ver ex. 1). Esse critério notacional facilitou visualmente o arco melódico ascendente. Nessa obra, chegamos à digitação de Egberto através de vídeos. 122 O padrão desse ostinato é 5 + 5 +4 + 2. 121 possibilidades de execução no violão. Constatamos que as habilidades inerentes ao intérprete pianista contribuíram para a consolidação de tal linguagem violonística. Observamos diversas combinações do uso do tapping: com arpejos, com nota pedal e com harmônicos. Outros elementos, como a liberdade improvisatória, o interesse rítmico e o uso dos intervalos de 4º justa surgiram no debate. 4.3.7 Percussões No tópico anterior, investigamos a recorrência da técnica do tapping na obra violonística de Gismonti. Como a terminologia sugere, esse recurso opera de maneira análoga à percussão, porém identificamos alturas bem definidas na sua produção. Agora abordaremos três formas estritas de percussão no violão: na lateral do corpo do instrumento, nas cordas soltas e nas cordas anteriores à pestana. Assim como no tópico anterior, o uso das percussões torna imperativo ao intérprete o desenvolvimento de habilidades motoras de independência das mãos. Frequentemente, os efeitos percussivos são combinados com outras técnicas. Em Dança dos Escravos, temos a simultaneidade de uma melodia – executada em tapping – e percussões na lateral do corpo do violão: Ex. 35 – Dança dos Escravos (Performance VI); Minutagem: 0’26’’; Andamento: 147 BPM; 10 cordas. Aqui, a mão esquerda executa o tapping enquanto a mão direita faz a percussão na lateral do corpo do violão. Novamente identificamos a liberdade 122 improvisatória do estilo de Gismonti: a execução dos ritmos percussivos são livres e, embora tenhamos transcrito esse fragmento literalmente – em acordo com o que foi executado na gravação –, poderíamos apenas colocar na partitura a seguinte indicação: batucar ritmo de samba. A obra Dança dos Escravos faz uma menção à esse gênero musical, fato que podemos constatar no encarte do disco Infância (1991). Nele, o título dessa obra aparece antecedido pela frase “ensaio de escola de samba”. Outro detalhe de interpretação nesse exemplo é a sonoridade: Egberto sempre busca fazer variações tímbricas na percussão. Para isso, ele procura intercalar regiões diferentes da lateral do corpo do violão e alternar o tipo de ataque da mão direita, usando a unha ou com as falanges dos dedos. Na composição Cego Aderaldo, identificamos uma técnica percussiva semelhante ao slap123 desenvolvido pelos contrabaixistas. Egberto percute as cordas do violão alternando o polegar da mão direita com os quatro dedos da mão esquerda. Na figura a seguir temos o posicionamento das mãos para executar esse procedimento. Figura 2 – Posição das mãos para realizar a percussão nas cordas Na realidade, é a lateral do polegar que percute a corda do violão, da mesma forma como realiza os contrabaixistas na técnica do slap. No ex. 36, temos o trecho musical no qual identificamos essa técnica: 123 O slap, ou slapping, é uma técnica utilizada por contrabaixistas que consiste em bater a lateral do dedo polegar nas cordas. Frequentemente os dedos indicador, médio ou anelar atuam puxando outra corda. 123 Ex. 36 – Cego Aderaldo (Circense); Minutagem: 1’49’’; Andamento: 100 BPM; 12 cordas. Esse exemplo também espelha o virtuosismo da performance violonística de Gismonti, averiguado no andamento rápido da interpretação. Outra recorrência percussiva, na linguagem violonística de Gismonti, é a utilização das cordas na região anterior à pestana. Esse recurso é amplamente utilizado no âmbito da música contemporânea de concerto. O próprio Egberto Gismonti fez uso desse mecanismo em uma de suas obras de perfil atonal, a Central Guitar, escrita para violão de 6 cordas. Essa composição é um dos exemplos do seleto conjunto de obras que Gismonti escreveu, mas não executa. O fato é que esse recurso percussivo também é rotineiro nas obras solistas de Gismonti, sendo executado geralmente com a mão esquerda. Nas composições Em família e Dançando, identificamos a presença desse efeito executado simultaneamente ao uso da nota pedal: Ex. 37 – Em Família (Sanfona e Em Família); Minutagem: 0’; Andamento: 152 BPM; 10 cordas. 124 Ex. 38 – Dançando (Duas Vozes); Minutagem: 3’24’’; Andamento: 111 BPM; 10 cordas. O ex. 37 mostra um trecho já analisado no tópico do tapping. Egberto varia, em suas performances, o recurso utilizado para projetar o ritmo do maracatu. No ex. 29, ele optou pelo tapping e, no ex. 37, pela percussão nas cordas anteriores à pestana. Nos dois últimos fragmentos musicais (ex. 37 e 38), observamos a presença dos dois tipos de nota pedal analisadas anteriormente. Na música Em Família, o pedal é rítmico e precisa ser acentuado; já em Dançando o pedal serve como uma “cama de ressonância”, exigindo leveza na atuação do polegar. Na obra Dança dos Escravos, também temos outro fragmento já analisado anteriormente, porém com o recurso percussivo nas cordas anteriores à pestana: Ex. 39 – Dança dos Escravos (Dança dos Escravos); Minutagem: 8’19’’; Andamento: 146 BPM; 14 cordas. Nesse trecho temos o mesmo padrão de arpejos visto no ex. 34, portanto as mesmas questões a respeito do estilo improvisatório se aplicam. O fragmento musical reproduzido a seguir, talvez seja um dos exemplos mais expressivos da simultaneidade de técnicas, pautadas pela independência das 125 mãos, na performance violonística de Egberto Gismonti. Nesse trecho, Egberto utiliza as cordas anteriores à pestana de uma maneira singular, dividindo elas em três regiões: grave, médio e agudo. Na realidade, essas regiões acabam tendo alturas de notas definidas. Por este motivo, em nossa transcrição, procuramos passar para a pauta a altura dessas notas musicais.124Concomitantemente a esse recurso percussivo, Egberto realiza harmônicos de terças e quintas, com um padrão rítmico que remete novamente ao gonguê do maracatu. Após alguns compassos, um terceiro elemento surge, expondo um tema melódico que é beneficiado pelas cordas soltas da afinação reentrante. 124 Presumivelmente essas notas não possuem afinação temperada, pois a arquitetura do violão não foi pensada para o intérprete criar melodias nas cordas anteriores à pestana. Na realidade, ao investigarmos a altura dessas notas descobrimos algo interessante: um violão de 10 cordas tradicional jamais chegaria em tais alturas. Por mais que tentássemos fazer diversas experiências, arrastando as cordas anteriores à pestana pra cima e para baixo, para tentar atingir as notas que Egberto usa, não obteríamos um resultado satisfatório. O motivo é que, nessa performance, Gismonti está usando um violão de 12 cordas cujo cavalete e pestana foi adaptado para receber 10 cordas apenas. Desse modo, o violão continua tendo 12 tarraxas, sendo possível amarrar as cordas em distancias diferenciadas. Essa eventualidade, trouxe a possibilidade das cordas anteriores à pestana serem afinadas em alturas particularmente únicas para um violão de 10 cordas. 126 Ex. 40 – Em Família (Performance V); Minutagem: 5’04’’; Andamento: 117 BPM; 10 cordas. Nesse exemplo, a mão esquerda percute as cordas anteriores à pestana; os dedos indicador e médio da mão direita realizam os harmônicos e o polegar executa a melodia em cordas soltas 125 . Nesse fragmento, observa-se o enorme potencial percussivo do estilo interpretativo de Egberto Gismonti. Novamente, nossa transcrição apenas demonstra uma extrato de uma performance e tem mera finalidade didática. Na prática, o intérprete está constantemente improvisando, tanto no sentido rítmico e melódico, quanto tímbrico, pois a variação da sonoridade nos harmônicos também é uma constante nesse trecho musical. No tópico anterior, levantamos a hipótese de que a característica de independência das mãos, na performance gismontiana, provém em parte de seus 125 Esse mesmo procedimento, de melodias em cordas soltas com o uso do polegar, aproveitando a afinação reentrante, é observado em um fragmento de Lundu que será analisado mais adiante. 127 estudos pianísticos. Nesse momento, poderíamos supor que o caráter percussivo do seu estilo interpretativo violonístico tem também a sua gênese no piano. O violão é um instrumento de cordas dedilhadas. Já o piano é um instrumento de cordas percutidas, pois os dedos batem nas teclas que impulsionam os martelos nas cordas. Nesse sentido, podemos concluir que o piano moldou o estilo interpretativo de Egberto Gismonti de uma maneira geral. Esse estilo, ao se manifestar no violão, suscitou a criação de recursos percussivos que – beneficiados pela independência das mãos – gerou uma linguagem violonística particular. Ao questionar o compositor Egberto Gismonti sobre este aspecto, obtivemos uma resposta reveladora: Não, o instrumento de percussão é tudo o que bate, que pinça e etc. O violão também seria um. Eu como não tenho uma experiência profunda com outros instrumentos, apenas de tocar um pouco de flauta, clarinete e etc. Mas eu não tenho... não sou um solista, a ponto de entrar e ficar uma hora tocando e me dá como satisfeito. A coisa de ser percussivo é o princípio da construção do instrumento. Não existe violão que não pince. (GISMONTI, 2016) Observamos que Gismonti compreende tanto o violão quanto o piano como instrumentos de cordas percutidas. Para ele, pinçar é percutir. O princípio da percussão está tão enraizado na sua musicalidade a ponto de não haver uma distinção do modus operandi de um instrumento para o outro. Ambos são parte de um todo que sustenta o seu raciocínio musical. Há, contudo, um dado inegável: o piano foi o primeiro instrumento de Gismonti. Com 15 anos, Egberto já havia completado 9 anos de estudos pianísticos no Conservatório Brasileiro de Música. Já com o violão, não houve estudo formal. Nesse sentido, é razoável acreditarmos que os maneirismos pianísticos aos poucos foram moldando a forma como Egberto enxergava o violão126. Portanto, concluímos que o caráter percussivo, inerente ao piano, passou a se manifestar na sua linguagem violonística a ponto de ser algo encarado como inato. 126 Em entrevista, Egberto relata que, na falta de método, transpunha os estudos tradicionais de piano para o violão. 128 4.3.8 Acordes paralelos O violão é cheio de códigos, né? Você faz assim, faz assado... é tudo código. (...) O que você toca aqui, você toca aqui... apenas o sentimento, sonoridade etc, é diferente mas... você tem códigos bem definidos (GISMONTI, 2016). Nos últimos dois tópicos constatamos um pouco da influência do estilo interpretativo pianístico na música para violão de Egberto Gismonti. Porém, há muitos aspectos da sua linguagem que são eminentemente violonísticos. As possibilidades de paralelismos, que o violão oferece, são uma das mais extraordinárias idiossincrasias desse instrumento. Praticamente todos os compositores de violão se valem da possibilidade de ter uma fôrma (ou “código”) na mão esquerda, que “caminha” pelo braço do instrumento. Na obra para violão de Gismonti, identificamos diversas passagens com o uso de acordes paralelos, notadamente tríades maiores, tríades menores, tétrades da dominante e power chords127. No ex. 41, transcrevemos um fragmento de uma seção da música Selva Amazônica, na qual uma fôrma do acorde maior desliza pelo braço do violão, sempre acompanhada pela nota pedal Ré em corda solta. A medida que a mão se desloca, a permanência da nota pedal vai gerando dissonâncias, como nos acordes de C# e Eb, nos quais uma tensão de 2º menor é criada. Por outro lado, em determinados momentos, a nota pedal fica em uma posição de total consonância (em uníssono), como no D e no Bb. Um detalhe de interpretação importante a ser ressaltado é que Gismonti toca os acordes utilizando apenas o polegar, consequentemente, a articulação fica quebrada128, ao invés de plaquê. 127 É um acorde composto somente por oitava e quinta. É muito comum na linguagem do rock. 128 Na partitura as notas do acorde são sobrepostas verticalmente, porém, na prática são executadas de forma arpejada. Existe aqui, uma liberdade para o músico arpejar da forma que quiser. É possível fazer uma indicação de articulação na partitura para se “quebrar o acorde”. 129 Ex. 41 – Selva Amazônica (Solo); Minutagem: 7’34’’; Andamento: 91 BPM; 12 cordas. O recurso de acordes paralelos, acompanhado por uma nota pedal em corda solta, foi explorado por muitos compositores para violão, dos quais destacaremos Heitor Villa-Lobos. Na segunda parte do seu Prelúdio Nº 2, encontramos o mesmo procedimento utilizado por Egberto no ex. 41, porém os acordes maiores são articulados em uma textura efetivamente arpejada. 130 Ex. 42 – Prelúdio Nº 2 (Villa-Lobos) No Prelúdio Nº2, o pedal, nas cordas soltas (Mi e Si), também criam dissonâncias de 2º menor, como nos acordes de Bb e C#, e consonâncias em uníssono, como nos acordes de G e C. Esse elemento da linguagem violonística de Villa-Lobos está presente na obra para violão de Egberto Gismonti desde suas gravações mais remotas. A sua interpretação de Berimbau/Consolação está carregada desse idiomatísmo. 131 Ex. 43 – Consolação/Berimbau (Orfeo Novo); Minutagem: 1’37’’; Andamento: 137 BPM; 6 cordas. No ex. 43, destacamos um trecho com a mesma fôrma de acordes maiores. Na gravação dessa obra, no disco Orfeo Novo (1971), Gismonti opta por executar os acordes em plaquê. Dessa maneira, torna-se impossível realizar as notas pedal, pois todos os dedos da mão direita precisam atuar simultaneamente, focando apenas nesses acordes. Porém, em uma performance ao vivo dessa mesma obra, disponível no youtube129, Egberto articula esses acordes maiores de uma maneira similar ao ex. 41 e ao Prelúdio Nº 2, deixando a primeira e segunda corda do violão como notas de pedal. Também observamos a recorrência de paralelismo de acordes maiores na canção Jardim de Prazeres. Porém, dessa vez, a fôrma do acorde maior está nas cordas agudas do violão e as notas do pedal nos bordões. Ex. 44 – Jardim de Prazeres (Academia de Danças); Minutagem: 0’29’’; Andamento: 160 BPM; 6 cordas. No segundo movimento da obra camerística Três Retratos para Flauta e Violão, também identificamos o paralelismo de acordes com uma nota pedal. Porém, o acorde em questão é uma tétrade da dominante. 129 Sítio eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=NSXgs5fIT54 132 Ex. 45 – 2º mov. de Três Retratos para Flauta e Violão (Orfeo Novo); Minutagem: 0’55’’; Andamento: 100 BPM; 6 cordas. No ex. 45, é possível realizar o acorde com a articulação plaquê e a nota pedal, pois a quinta do acorde está omitida, fazendo com que sobre um dedo da mão direita para executar a nota Mi. Em Cego Aderaldo temos um exemplo de paralelismo de acordes menores, acompanhado de baixo pedal: Ex. 46 – Cego Aderaldo (Circense); Minutagem: 2’; Andamento: 100 BPM; 12 cordas. O que temos constatado é que, independentemente da qualidade do acorde, o uso de fôrmas fixas que “caminham” pelo braço do violão é uma constante na linguagem violonística de Gismonti. Na obra Encontro no Bar, temos um exemplo de paralelismo no qual não há a definição se o acorde é maior ou menor, pois a terça não está presente. Ex. 47 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 0’9’’; Andamento: 121 BPM; 6 cordas. 133 Aqui, a mesma fôrma é transferida das cordas soltas para uma pestana na casa 1 e depois para uma pestana na casa 4130. Também observamos novamente a recorrência rítmica do baião nos baixos. Essa fôrmas, que as vezes não chegam a deixar evidente a qualidade do acorde, também podem estar acompanhadas de uma nota pedal. Na gravação da música Salvador, do disco Orfeo Novo (1971), Egberto insere uma Coda à música, que não existia na gravação original de 1969131: Ex. 48 – Salvador (Orfeo Novo); Minutagem: 4’21’’; Andamento: 158 BPM; 6 cordas. Nese exemplo, a fôrma é composta pelos dedos 1, 3 e 4 e a terceira corda solta (G) é sustentada como nota pedal. Observamos novamente que, com a mudança de posição, a nota pedal pode gerar contrastes que vão de dissonâncias de 2º menor a consonância em uníssonos. Nesse fragmento, um detalhe interessante é que a nota pedal está no meio do acorde, diferentemente dos outros exemplos. Este uso também 130 Nesse trecho, Egberto utiliza pestana de dedo 4. 131 Como discutido no capítulo 2, esse processo de acréscimos de material temático ao longo dos anos é muito recorrente em Gismonti. O material exposto no ex. 48 passou a fazer parte do corpus da composição até os dias atuais. 134 encontra paralelo na obra para violão de Villa-Lobos. Na seção Grandioso do seu Estudo Nº4, identificamos a nota pedal sendo sustentada no meio do acorde, que se desloca em fôrmas paralelas. Ex. 49 – Estudo Nº 4 (Villa-Lobos) No Estudo Nº 4, percebemos que a nota Ré, da quarta corda solta, é sustentada durante todo o trecho musical, gerando tanto dissonâncias de 2º menor, quanto consonâncias em uníssono. Nesse exemplo, também a nota Si (da segunda corda solta), embora apareça apenas em alguns momentos, passa pelo mesmo processo de tensão e relaxamento. Essa ligação com a obra para violão de Villa-Lobos é confirmada pelo compositor. Por influencia de Turíbio Santos, Egberto afirma que chegou a “tocar tudo do Villa”. Retornando à Salvador, percebemos que Gismonti utiliza, no final do fragmento exposto no ex. 48, os chamados power chords. Com a scordatura da 6º corda em Ré, a digitação desse acorde fica facilitada. Embora o power chord não seja uma tríade, podemos classifica-lo como um acorde latu senso, visto a importância dessa estrutura na música popular contemporânea. Esse acorde é responsável por compor a estrutura harmônica de uma ampla parcela de obras alocadas em gêneros populares, como o rock, o heavy metal e outros. O power chord do ex. 48, expõe uma técnica violonística que Gismonti utiliza com frequência: o escovado. Essa técnica consiste na execução de um acorde de maneira que cada dedo da mão direita esbarre em mais de uma corda. É uma espécie de rasgueado, porém os dedos não tocam as cordas em um movimento de ida e volta: as tangem apenas em um único sentido. Outra diferença é que o escovado está relacionado, exclusivamente, aos dedos indicador, médio e anelar. No compasso 70, 135 percebemos que são usados os dedos indicador e médio para executar os power chords. Cada dedo é responsável por tanger, individualmente, todas as notas de um acorde. Outro detalhe é a articulação de ligados a cada 4 semicolcheias e de notas em cordas soltas, a partir do compasso 73. Essas notas nas cordas soltas, que são “escapadas”, ampliam o potencial rítmico desse fragmento musical. Na gravação de Salvador, do disco Dança dos Escravos, Egberto se apropria da afinação reentrante para reforçar a pulsação, nesse mesmo fragmento musical. Ex. 50 – Salvador (Dança dos Escravos); Minutagem: 3’13’’; Andamento: 152 BPM; 10 cordas. Essa combinação de power chords, articulação com ligados e a técnica do escovado, também é encontrada na obra De Repente. Ex. 51 – De Repente (Sanfona); Minutagem: 7’09’’; Andamento: 93 BPM; 12 cordas. 136 Percebemos que, no ex. 51, Egberto utiliza exatamente o mesmo recurso demonstrado em Salvador, com a diferença que a métrica é composta e os ligados ocorrem a cada três semicolcheias. Ainda verificamos a presença de paralelismo, com o uso de power chord, na canção Encontro no Bar. Ex. 52 – Encontro no Bar (Árvore); Minutagem: 2’09’’; Andamento: 121 BPM; 6 cordas. Aqui, observamos uma amostra das facilidades que a scordatura pode trazer para a digitação: Egberto executa todos os power chords utilizando apenas os dedos 1 e 2 da mão esquerda. Nesse tópico, investigamos a recorrência de acordes paralelos dentro da linguagem violonística de Egberto Gismonti. Constatamos a similaridade desses processos com a linguagem da obra para violão de Heitor Villa-Lobos, especialmente no que tange o uso de notas pedal com acordes paralelos. No que interessa ao estilo interpretativo, destacamos a técnica do escovado como um mecanismo indispensável na articulação dos acordes, sobretudo nos power chords. 4.3.9 Ostinato melódico com ligados e nota pedal Este recurso consiste numa melodia executada sobre uma mesma corda cuja nota correspondente à corda solta é sistematicamente reiterada. A intercalação entre corda presa e corda solta se dá através de ligados. Essa técnica é muito comum em instrumentos de cordas como cavaquinho, viola caipira, violino, violão e outros132. Na obra Lundu, temos um exemplo notório: 132 Para Schroeder (2010) este recurso é uma das aplicações da intitulada notas rebatidas. Porém, não utilizamos esta terminologia pela falta de consenso entre os autores. Nóbrega (2000) e Marinho (2010), 137 Ex. 53 – Lundu (Música de Sobrevivência); Minutagem: 0’; Andamento: 82 BPM; 10 cordas. Devido à scordatura dessa obra, a nota Fá pode ser executada em corda solta. Nesse exemplo, observamos três articulações distintas: na primeira, a articulação liga a nota diretamente à corda solta; na segunda, a articulação faz um movimento ascendente antes de ligar à nota da corda solta; já na terceira, não há ligados, mas a nota pedal se mantém e podemos observar que o polegar começa a executar um padrão melódico nas cordas soltas mais graves. Em seguida os ligados na mão esquerda retornam, mas a melodia na região médio grave persiste até o final da seção. Esse fragmento musical evidencia o aspecto virtuosístico da interpretação violonística de Gismonti, que chega a executar 8 semicolcheias com a unidade de tempo relativa à 82 batidas por minuto. por exemplo, aplicam o termo notas rebatidas a um padrão fraseológico que não envolve nenhuma nota pedal. 138 O emprego de ostinatos melódicos com ligados e nota pedal, encontra paralelo na obra para violão de Heitor Villa-Lobos. A seção Un peu animé, do seu Estudo Nº 10, é construída sobre o suporte dessa técnica. Ex. 54 – Estudo Nº 10 (Villa-Lobos). Observamos no Estudo Nº 10 de Villa-Lobos que a articulação das notas é feita com um ligado que ascende, descende e depois descendente para a corda solta133. Embora o padrão rítmico-melódico e a articulação dos ligados não sejam semelhantes em Lundu, observamos uma similaridade em relação à existência de dois planos sonoros: uma melodia executada no polegar, em uma região médio grave, com um ostinato melódico com ligados e nota pedal no agudo. Na canção Jardim de Prazeres, composta enquanto Gismonti ainda utilizava apenas o violão de 6 cordas, também verificamos melodias com nota pedal articuladas com ligados: Ex. 55 – Jardim de Prazeres (Academia de Danças); Minutagem: 0’10’’; Andamento: 160 BPM; 6 cordas. 133 É importante destacar que, embora essa seja a proposta original de Villa-Lobos, a partir da interpretação de Turíbio Santos a maioria dos violonista passaram a não ligar a quarta semicolcheia. Sobre esse aspecto, Amorim (2009) confirma: “a tensão e as cordas sintéticas do violão do século XXI não permitem, para a maioria dos violonistas, que o trecho seja executado tal qual escrito. A solução mais recorrente – verdadeira convenção estabelecida na interpretação villalobiana – é a de tocar as três primeiras notas ligadas, enquanto a última, em corda solta, é levemente articulada” (AMORIM, p. 141, 2009). 139 No ex. 55, o virtuosismo do estilo interpretativo de Egberto Gismonti também se evidencia pelo andamento vivo. Na gravação de Dança dos Escravos, no disco Infância (1991), o arranjo é composto por dois violões, contrabaixo e violoncelo. O acompanhamento do segundo violão, executado por Nando Carneiro, é um ostinato composto por ligados e pedais, porém não temos nenhuma nota ligada diretamente à uma corda solta como nos exemplos anteriores. Também acontece um paralelismo, pois o mesmo padrão de digitação é repetido em várias regiões do braço do instrumento. Ex. 56 – Dança dos Escravos (Acompanhamento do segundo violão). Os três compassos desse exemplo compõem basicamente todo o acompanhamento do segundo violão na obra. Eles são repetidos inúmeras vezes, em um ostinato que revela a estrutura quartal e minimalista da harmonia da composição. Nesse tópico investigamos a recorrência de ostinatos melódicos com ligados e nota pedal na linguagem violonística de Egberto Gismonti. Identificamos diversas maneiras como esse recurso pode ser explorado e, novamente, salientamos as semelhanças da obra de Gismonti com a linguagem violonística de Villa-Lobos. 4.3.10 Melodias nas cordas reentrantes e as fôrmas de mão esquerda Até o momento, nessa pesquisa, a nota pedal apareceu como um dos recursos mais beneficiados pela afinação reentrante. Porém, essa estrutura de afinação também pode proporcionar construções melódicas únicas. A obra Lundu talvez contenha o melhor exemplo do aproveitamento das cordas reentrantes como matéria prima para o desenvolvimento de um material temático. No ex. 57, temos a 140 apresentação do tema de Lundu no início da gravação dessa música, no disco Dança dos Escravos: Ex. 57 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’; Andamento: 78 BPM; 10 cordas. No tópico relacionado aos acordes paralelos, verificamos que, na linguagem violonística, de uma forma geral, é recorrente o uso de fôrmas que “caminham” pelo braço do instrumento. Vimos que os acordes paralelos se deslocam horizontalmente na topografia do instrumento. Na obra Lundu, temos um exemplo de fôrmas que se deslocam verticalmente e atuam de maneira melódica, ao invés de harmônica. No ex. 57, a fôrma da mão esquerda, composta pelos dedos 1, 2 e 4, se desloca verticalmente na primeira casa do violão e depois repete o mesmo comportamento na casa VI. Na figura a seguir, temos o modelo de fôrma de mão esquerda: Figura 3 – Fôrma da mão esquerda na posição aberta 141 No compasso 2, observamos que essa fôrma, ao passar pelas cordas reentrantes, gera uma melodia em graus conjuntos. Para projetar o material melódico da composição, as acentuações são indispensáveis. O resultado dos acentos expõe o tema de Lundu, que extraímos no ex. 58. Ex. 58 – material temático de Lundu extraído. As notas da melodia são entrecortadas por notas que tem função de acompanhamento. Devido a esse corte, o tema soa pontilhado, salientando uma articulação staccato que colabora para evidenciar o caráter rítmico da composição.134 Sobre a ideia de trazer o ritmo do lundu para o violão, Egberto comenta: No caso de coisas minhas (...). Lundu eu queria que tivesse como centro emocional os atabaques tocados em lundu. Eu tenho músicas com nome do gênero musical. Maracatu, por exemplo, eu passei semanas rabiscando, indo ao piano, rabiscando... até que o piano transformou-se na caixa do maracatu. É só isso.(...) Enquanto o piano não tocasse esse ritmo eu dizia: ‘não serve pra ser maracatu’. E no caso de Lundu, (...) eu queria o som dos atabaques que não são feitos com madeiras de grandes qualidades e as amarrações são feitas com cordas, produzindo um som mouco. Som mouco é aquele que não tem ressonância, que cai no pé. (...) Pra (sic) conseguir som mouco no violão eu tenho que usar a técnica pianística e não violonística, que vem a ser o que? (...) Pra conseguir que o som seja curto eu tenho que fazer [solfeja] (GISMONTI, 2016). O som mouco dos atabaques de lundu é projetado justamente pela técnica de staccato de mão esquerda. Egberto tem razão ao dizer que essa técnica assemelhase à maneira como os dedos são articulados no staccato do piano. Porém, ela é bastante corrente na linguagem violonística, de uma forma geral. Como Gismonti não 134 O lundu, como gênero musical, é considerado uma das primeiras manifestações da música brasileira, proveniente de sincretismos com os ritmos africanos. 142 teve uma formação tradicional no violão, é comum percebermos analogias com o piano quando ele pretende descrever algo relacionado à técnica violonística: Você sabe como se processa o Lundu quando eu toco aquilo? Você talvez nunca tenha pensado que a mão esquerda tem que pensar piano. Piano é instrumento de força numa alavanca. Pra alavanca levantar o martelo e bater. (...) Você tem que treinar a mão esquerda sem instrumento. Se você não treinar (...) o [dedo] mínimo, por exemplo, você nunca vai ter força pra sustentar o som mouco. (...) O mínimo vai fazer abrir a nota e você não vai saber tocá-lo junto com a mão direita e tirar ao mesmo tempo. Isso não é o hábito violonístico (GISMONTI, 2016). Outro detalhe, que observamos no ex. 57, é a razão pela escolha da scordatura nas duas primeiras cordas. Para facilitar a digitação e manter a mesma proporção entre a fôrma dos dedos 1, 2 e 4, Egberto afina a primeira corda em Fá e a segunda em Dó. Dessa forma, a relação de 4º justa entre uma corda e outra se mantém, o que consequentemente preserva a digitação simétrica dos dedos da mão esquerda. Sobre esse aspecto, Gismonti comenta: Para que eu tenha uma posição indo e vindo a vontade aqui, essas cordas vão ter que facilitar uma certa posição. Qual é uma certa posição que são afinados os atabaques? A maioria dos atabaques de lundu são afinados em terças e quintas. (...) Então eu vou querer a minha afinação em quartas, porque isso me possibilita fazer as quintas abrindo dois espaços, dois trastes em cada corda. Porque isso vai me dar quinta e quinta, quinta e quinta (GISMONTI, 2016). Esse mecanismo, de estabelecer uma fôrma na mão esquerda que “caminha” pelo braço, é a matéria prima da obra Lundu. No exemplo a seguir, temos outro fragmento da composição, com outra fôrma de mão esquerda: Ex. 59 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 1’33’’; Andamento: 78 BPM, 10 cordas. 143 Além da digitação com os dedos 1, 3 e 4, destacamos em vermelho uma fôrma que, embora também seja composta pelos dedos 1, 2 e 4, diferencia-se da primeira. Nela, não há nenhuma casa entre os dedos 1 e 2, como demonstra a figura a seguir: Figura 4 – Fôrma da mão esquerda na posição fechada No compasso 51, também identificamos o mesmo procedimento de construção melódica sobre as cordas reentrantes. Poderíamos afirmar que essas três posições de mão esquerda – dedos 1, 2 e 4 com a mão aberta e fechada e dedos 1, 3 e 4 – compõem 80% da digitação da obra Lundu. Além disso, temos apenas a seção de ostinatos melódicos com ligados e nota pedal, demonstrada no ex. 53135. Também temos a seção que prepara o trecho com o ostinato melódico com ligados. Ela traz uma fôrma assemelhada àquela dos dedos 1, 3 e 4. Porém, os dedos 3 e 4 atuam na mesma corda. 135 Na gravação de Lundu, no disco Dança dos Escravos, também há uma seção de improvisação que articula melodias de uma forma tradicional. Porém, por ser uma seção de improvisação livre, acreditamos que o material apresentado não compõe o corpus essencial dessa obra. 144 Ex. 60 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 0’51’’; Andamento: 78 BPM; 10 cordas. No ex. 60, também percebemos o deslocamento vertical dessa fôrma de mão esquerda. Nos compassos 29 e 30 ela atua na casa XIII e, a partir do compasso 31, ela executa exatamente a mesma coisa, porém na casa V. Esses paralelismos estão presentes na obra inteira. O mesmo procedimento realizado no compasso 1 e 2 da composição é repetido, posteriormente, na casa VI e na casa VIII. Da mesma maneira, o procedimento trabalhado no ex. 59 é reproduzido subsequentemente nas casas IX e II. Ex. 61 – Lundu (Dança dos Escravos); Minutagem: 2’01’’; Andamento: 78 BPM; 10 cordas. 145 Até esse momento, demonstramos que dentro da linguagem violonística da obra Lundu, existe a recorrência de 4 fôrmas de mão esquerda, que se deslocam verticalmente sobre o braço do violão e que, nas cordas reentrantes, produzem o material temático da composição. Além disso, essas fôrmas realizam diversos paralelismos, sendo reproduzidas em diferentes regiões do violão. Verificada essa característica pragmática da obra Lundu, poderíamos supor que a gênese da composição foi um gesto no instrumento. Seria improvável pensarmos que tal estrutura poderia partir de uma ideia musical concebida sem a atuação do corpo do instrumentista no violão. Porém, em entrevista, Egberto afirma que a música sempre parte de uma reflexão concebida sem o instrumento. Para ele, o violão seria um objeto limitador e não um propulsor de ideias. Eu não acho que o violão seja um propulsor de ideias para a composição. Eu não acho que seja necessário ter o instrumento ao lado. Memória e Fado e Choro, que o Odair já toca (...), se eu sentasse no violão eu estaria lascado. Porque eu jamais admitiria que aquilo ali pudesse ser tocado. Então eu parto sempre do escrever. Claro que eu tenho um parâmetro de violão e de outros instrumentos, então... eu não vou inventar o que é impossível. O violão depois serviu muito pra definir o que que eu tinha que retirar da ideia ou acrescentar na ideia. No caso Memória e Fado. foi isso, (...) eu não pude olhar instrumento. Se eu pego o violão pra pensar, o raciocínio vai onde eu já sei e eu não quero isso. Eu começo a escrever a música, como ela tem que ser. (...) Depois eu abro dois pentagramas grandes, as vezes até três, e vou escrevendo tudo o que precisa ter. Posteriormente eu achato três em dois, olho a partitura e digo “será que isso aqui é possível de ser executado?” (GISMONTI, 2016). Para Egberto, o ato de pegar o instrumento iria limitar a composição, pois a sua música ficaria condicionada ao que ele já sabe tocar. Quando eu escrevo para orquestra, eu nunca sento no piano. Porque se sentasse, ou até pra escrever para piano, eu iria condicionar o que eu sei tocar, e eu não quero. Ninguém pode pensar que sentando no piano e tocando, está tocando uma orquestra porque não está “tocando uma orquestra” (GISMONTI, 2016). Nesse sentido, Egberto afirma que a sua música sempre parte de uma determinação ou vontade de representar alguma coisa. A música não é feita só com a vontade de fazer. A música é feita com a vontade de representar alguma coisa. Isso é um dado também que foge um pouco, digamos, ao tradicional. Apesar de eu escrever muito pra orquestra 146 ou muito pra o que seja, a música nasce a partir de uma obrigação ou determinação (GISMONTI, 2016). No caso de Lundu, Gismonti queria representar os atabaques com o som mouco. A partir dessa ideia pré estabelecia, ele chegou a conclusão de que precisaria criar determinadas fôrmas no instrumento. Quando cheguei a essa conclusão, para que o violão não ficasse desequilibrado (no corpo), eu tive que procurar posições que fossem quase idênticas e que percorressem as 10 cordas para cima e para baixo. Porque se eu tiver que trocar de posição, não vai dar certo. Isso tudo antes de compor. Porque tem um mecanismo para fazer o violão virar um atabaque. Se eu parto da música eu não vou chegar ao atabaque. Então o meu ponto de vista, mais ou menos concordo com você, porque eu mais ou menos sou um compositor tradicional. Você, talvez jamais... se te dessem vinte possibilidades, você jamais imaginaria que o Lundu nasce da ideia de que o violão tem que virar um atabaque com um som mouco. É para ser um atabaque de madeira ruim, amarrado com corda (GISMONTI, 2016). Porém, no decorrer da entrevista, Egberto admite que o instrumento também pode ser utilizado durante a composição de uma música. Embora esse mecanismo não seja a regra, muito menos uma fonte primária para o desenvolvimento da obra musical, a interação entre instrumentista e compositor é fundamental durante a criação. Nesse sentido, voltamos às proposições levantadas no capítulo 2. Ao tratarmos da obra de Egberto Gismonti, não podemos analisar separadamente a composição e a interpretação. São partes indissociáveis de um mesmo processo, no qual os sintomas de um, induz as ações do outro. É por essa razão que em nossa pesquisa buscamos discutir as questões relativas à linguagem violonística em conjunto com o estilo de performance inerente ao intérprete Gismonti. Dito isso, podemos salientar um aspecto fundamental – no estilo interpretativo de Gismonti – que a obra Lundu evidencia: a liberdade formal. A interpretação gismontiana tem um forte vínculo com a improvisação. Isso se reflete em todos os âmbitos da composição, incluindo a forma da música. Durante a audição de diversas gravações de Lundu, percebemos como a liberdade formal é beneficiada pela característica pragmática da linguagem violonística dessa obra. Como vimos, existem basicamente 4 fôrmas que se deslocam pelo braço do violão. Esse vem e vai é repetido diversas vezes. As inúmeras repetições são um “prato cheio” para a liberdade formal, pois, em uma performance 147 ao vivo, Egberto pode optar por fazer ou não determinados ritornelos. O intérprete pode optar por subir e descer as fôrmas – verticalmente pelo braço do instrumento – quantas vezes quiser. Observamos que, em gravações solo, as estruturas de repetições podem ser mais irregulares, enquanto que nas gravações em conjunto136 são mais regulares. Essa liberdade formal pode interferir radicalmente na estrutura da composição. Os compassos 59 e 60, do ex. 61, demonstram uma fôrma na casa II que já havia sido realizada nas casas V e IX. Ao analisarmos outras gravações de Lundu, percebemos que a região da casa II deixou de ser explorada. Egberto simplesmente retirou da obra esses compassos137. Por outro lado, da mesma maneira que Gismonti remove partes da composição, ele também acrescenta materiais que não estavam presentes na primeira gravação da obra. O fragmento a seguir foi retirado do disco Música de Sobrevivência. Ex. 62 – Lundu (Música da Sobrevivência); Minutagem: 2’25”; Andamento: 80 BPM; 10 cordas. Os compassos do ex. 62 foram acrescentados à composição exatamente onde está o compasso 35 da transcrição de Lundu, do disco Dança dos Escravos138. 136 Egberto gravou a obra Lundu em distintos formatos: duo de violões; trio formado por 2 violões e contrabaixo; quarteto formado por 2 violões, contrabaixo e violoncelo; e violão e orquestra sinfônica. 137 Outro exemplo de mudança estrutural pode ser encontrada nas gravações de Lundu do disco Música de Sobrevivência e do disco Saudações, nas quais o início da música passou a ser o ostinato melódico com ligados e nota pedal. 138 No anexo C, ver a transcrição completa. 148 Na obra Salvador, também vimos alguns materiais que foram sendo acrescentados ao longo da discografia de Gismonti. Acreditamos que esse assunto renderia uma pesquisa paralela. Por essa razão, não iremos nos aprofundar nessa direção. No momento, nos interessa apenas constatar que a liberdade formal constitui um elemento importante do estilo interpretativo de Egberto Gismonti e essa liberdade, na obra Lundu, é diretamente beneficiada pelo pragmatismo que as estruturas de fôrmas de mão esquerda trouxeram para a composição. Voltando à questão da melodia nas cordas reentrantes, são raras as obras cujo material melódico é explorado aproveitando essa estrutura de afinação. O tema da música Ciranda é um exemplo no qual a melodia incide plenamente sobre a 7º corda reentrante. Ex. 63 – Ciranda/Cego Aderaldo (Performance III); Minutagem: 5’11”; Andamento: 81 BPM; 12 cordas. 149 Apesar da tessitura da maioria das notas no ex. 63 serem compatíveis com o violão de 6 cordas, seria inviável executar esse arranjo – nessa tonalidade – em um violão tradicional, pois o acompanhamento deve soar harmônico139, com o uso de campanela. Outro aspecto interessante é que essa transcrição foi retirada de uma performance ao vivo da música Cego Aderaldo. Ao pesquisarmos diversas gravações dessa música, foi constatado que o tema de Ciranda é frequentemente executado em algum momento na interpretação de Cego Aderaldo. Essa observação retifica a importância das intertextualidades e ritornelos investigados no capítulo 2. Nesse tópico, examinamos duas maneiras de exploração de melodias com o auxílio da afinação reentrante. Investigamos as particularidades do uso das fôrmas de mão esquerda na composição musical e discutimos o ato de compor com o instrumento. Salientamos a liberdade formal como uma identidade no estilo interpretativo de Egberto Gismonti e, por fim, demonstramos que sua obra é um processo em constante transformação, no qual podem haver reiterações de materiais temáticos e aperfeiçoamentos da composição musical. 4.3.11 Irregularidade métrica Elegemos a estrutura métrica como um elemento do ritmo mais oportuno a ser discutido dentro da performance de Gismonti. Uma análise aprofundada sobre o estatuto do ritmo em sua obra, de uma forma geral, merece uma pesquisa direcionada exclusivamente para este campo. No momento, nosso interesse está na liberdade da interpretação gismontiana, que, por vezes, gera uma flexibilização da regularidade da métrica. Este procedimento está ligado ao estilo interpretativo de Gismonti, que acaba por influenciar a linguagem da obra musical como um todo. Dentro da discografia violonística de Gismonti, o melhor exemplo desse mecanismo talvez seja a gravação da obra Salvador do disco Solo, executada no violão de 8 cordas. Esta gravação tem uma abordagem diferenciada em relação às outras, pois Egberto reformula toda a forma e o caráter da música. Nela, o tema B e C são extintos 139 Aqui nos restringimos a um sentido literal da palavra harmônico, ou seja, as notas devem estar ressoando simultaneamente. Embora no ex. 63 elas sejam arpejadas, uma nota continua soando mesmo após a outra ser tocada. Não há interrupções devido a scordatura escolhida. 150 e o andamento – diferente das outras versões, que são aceleradas – transcorre lento e contemplativo. Há, portanto, uma mudança no caráter e na proposta poética desta versão140. Embora o registro do disco Solo tenha um caráter apolínio, comparado com a proposta original da composição, que é um afro-samba, observamos que o ritmo, na gravação de 1979, traz aspectos mais reveladores que em outros registros. O clima etéreo e a agógica rubato desta gravação propiciam a realização de operações rítmicas complexas, embora soem naturais e fluentes. Fluência e precisão são dois aspectos imprescindíveis a qualquer performance e as execuções de Egberto Gismonti as revelam com particular maestria. Os termos fluência e precisão, em certo sentido significam conceitos opostos. A fluência é bastante difícil de ser descrita, porém qualquer músico entende o seu significado. A precisão no sentido mais restrito corresponde a execução de cada ritmo em seu devido lugar, podendo chegar ao extremo de tornar uma performance artificial. A decisão do performer de fazer um balanceamento entre precisão e fluência é parte fundamental na consolidação de uma interpretação musical (WEISBERG, 1993, p. 55). Ao ouvirmos a gravação de Salvador, do disco Solo, não nos damos conta de que operações rítmicas que quebram a regularidade da pulsação no nível da unidade de tempo141 estão sendo realizadas. Numa fruição despreocupada, na escuta dessa obra, não se percebe a complexidade rítmica ali presente, devido ao balanceamento entre fluência e precisão na interpretação de Gismonti. Somente quando tentamos forçar nossa atenção para identificar sua estrutura métrica é que esbarramos em algumas dificuldades. Verificamos, durante a transcrição de Salvador, que um dos principais elementos que auxiliam o intérprete na realização de uma performance precisa – e ao mesmo tempo fluente – é a presença constante do pulso mínimo, que estabelece uma regularidade rítmica em um nível específico, que não é aquele relativo à unidade de tempo. Como define Alenn Winold (1975), pulsos são curtos estímulos recorrentes que percebemos como pontos no tempo e que podem ser ouvidos em diferentes níveis, ou seja, são ouvidos em diferentes proporções de velocidade, sendo cada subdivisão rítmica um nível de pulsação. Na obra Salvador, o pulso mínimo é 140 Ver capítulo 2. 141 Podemos compreender a pulsação em diferentes níveis: pulso mínimo, unidade de tempo, unidade de compasso. 151 regular e explícito, podendo ser representado pela figura da semicolcheia142; já a pulsação relativa ao nível da unidade de tempo, ou seja, à semínima, possui agrupamentos irregulares de pulsos. Esta irregularidade na pulsação é uma das principais razões para que a identificação da estrutura métrica seja dificultada. Seguindo com as definições de Winold, a percepção da estrutura métrica se dá pela repetição literal ou variada de eventos musicais que tendem a estabelecer agrupamentos. Este conceito é aplicado tanto para o ritmo quanto para a harmonia, a textura, a direção melódica, a dinâmica ou o timbre. Durante a transcrição de Salvador, utilizamos a noção de agrupamentos proposto por Winold para identificar esta irregularidade nos agrupamentos de pulsos, no nível da unidade de tempo. A partir dessa noção de agrupamentos, selecionamos o contorno melódico e o ritmo harmônico como dois elementos musicais que contribuíram para o reconhecimento dos grupos de pulsos e, consequentemente, da estrutura métrica. É importante ressaltar que esses dois elementos se complementam. No âmbito do contorno melódico, temos um exemplo que ocorre no próprio tema da peça Salvador. Identificamos procedimentos rítmicos semelhantes ao que o compositor Oliver Messiaen define como ritmos acrescentados (1956). Após uma introdução de 31 compassos, o tema da peça surge; nele observamos uma irregularidade rítmica pelo acréscimo de uma semicolcheia no compasso 37. Essencialmente, este compasso representa um binário no qual um evento rítmico foi acrescido à segunda unidade de tempo, sendo que cada um desses eventos são equivalentes na velocidade. Ex. 64 – Salvador (Solo); Minutagem: 0’50’’; Andamento: 76 BPM; 8 cordas. 142 Optei por representa-lo pela semicolcheia em minha transcrição. 152 Nesse exemplo, observamos que a nota pedal da afinação reentrante participa desse ritmo acrescentado. Podemos supor que, devido a constante reiteração dessa nota, é possível que algumas delas “escapem”. Nesse sentido, a agógica rubato da interpretação é fundamental para criar uma fluência e não gerar um estranhamento na audição. É aceitável que formulemos a hipótese de que a afinação reentrante, nesse caso, foi determinante no estabelecimento de uma operação rítmica complexa. Outro elemento da interpretação que é determinante para o “sucesso” desse procedimento, é a leveza com que o polegar tange a corda reentrante. A função do pedal, nessa obra, é de acompanhamento. Como fora discutido anteriormente, esse tipo de recurso serve como uma “cama de ressonância” reiterativa. Para que a interpretação não fique enfadonha e soe repetitiva, é crucial que o polegar atue com delicadeza. Notamos a irregularidade métrica em outras ocasiões, como demonstra o ex. 65. Ex. 65 – Salvador (Solo); Minutagem: 0’14’’; Andamento: 76 BPM; 8 cordas. No compasso 12, temos a mesma situação na qual uma nota foi acrescentada. Já no compasso 14, a irregularidade da métrica não necessariamente se relaciona com uma nota executada “ao acaso”. Isto comprova que a flexibilização da regularidade métrica não é ocasional na linguagem musical de Egberto Gismonti: é algo consciente e determinado. No ex. 66, observa-se que a irregularidade gera uma quebra clara no ritmo harmônico: 153 Ex. 66 – Salvador (Solo); Minutagem: 0’32’’; Andamento: 76 BPM; 8 cordas. Antes do compasso 16, havia uma regularidade no ritmo harmônico correspondente a um acorde por compasso. No compasso 16, o acorde de ré menor com sétima maior “invade” o compasso ocupado pelo lá menor com nona. No ex. 67, demonstramos uma possibilidade de reescrevermos a métrica deste trecho, levando em consideração o agrupamento harmônico. Ex. 67 Quebra do ritmo harmônico com escrita multimétrica. Nota-se que há uma compensação no ritmo harmônico, visto que o acorde de lá menor tem a sua duração reduzida para que ocorra uma volta à regularidade proposta anteriormente. Já no ex. 68, em outro trecho da obra, não há esta compensação. 154 Ex. 68 – Salvador (Solo); Minutagem: 1’16’’; Andamento: 76 BPM; 8 cordas. Seguindo a lógica de Messiaen, podemos interpretar o compasso 50 como um binário onde foram suprimidos dois eventos ritmos. Neste exemplo, diferentemente do ex. 67, a escrita multimétrica143 é inevitável. Nesse último tópico, vimos que a irregularidade métrica é recorrente na linguagem musical de Gismonti. Nesse sentido, muitas dessas assimetrias podem ter sido ocasionais, fruto de uma interpretação na qual há muita liberdade temporal; e outras podem ter sido intencionais, visto a recorrência desse procedimento na obra como um todo. O estilo interpretativo de Egberto Gismonti, na gravação de Salvador de 1979, é marcado por uma agógica precisa que, consequentemente, tornam as irregularidades fluidas. Lançamos a hipótese de que o uso de uma nota pedal, na afinação reentrante, em um determinado momento foi responsável pela irregularidade da métrica. Por fim, novamente verificamos como a atuação do polegar é fundamental para a expressividade da linguagem violonística de Gismonti. 143 A multimetria é formada por compassos sucessivos, distintos na fórmula, que podem ser executados através de um denominador comum, ou pulso mínimo. Winold define a multimetria como agrupamentos de pulsos com regularidade variada: regular por ter um denominador comum e variado por conter agrupamentos irregulares. 155 CONCLUSÃO A pesquisa se propôs essencialmente a estudar a obra para violão de Egberto Gismonti. Ao traçarmos esse objetivo, vimos que seria inviável realizar tal proposta sem colocarmos a figura do intérprete Egberto como peça primordial no entendimento da dialética de sua obra. Isso se deve ao fato de que, na ausência de partituras, impõe-se à pesquisa a obrigação de fazer uma reflexão sobre o estatuto da interpretação e da composição na obra musical desse autor. Partindo de algumas reflexões, como a ideia de que o ato de interpretar é também um exercício de compor, sugerimos um caminho para que o músico interessado nesse repertório possa criar a sua interpretação sem ter em mãos uma partitura musical. Para isso, é recomendável a tomada de consciência dos processos inerentes à obra interpretada, como as intertextualidades, os ritornelos, o provisório e o “aperfeiçoamento” de materiais temáticos. A incorporação dessas questões essenciais, particulares à esse texto musical, demanda do músico, sobretudo, a habilidade com transcrições de gravações. Seguindo por esse raciocínio, através da transcrição de gravações de diferentes obras e épocas, a pesquisa realizou um levantamento aprofundado dos elementos que compõem a linguagem violonística de Egberto Gismonti e o estilo interpretativo inerente à ela. Salientamos diversos parâmetros que não se configuram apenas como questões teóricas e reflexivas, mas que trazem subsídios, do ponto de vista prático, para aqueles que desejam compreender e interpretar a música para violão de Gismonti. Destacamos a posição de Egberto como um violonista experimental. Vimos que sua linguagem violonística foi favorecida por uma conjuntura pessoal composta pela rígida formação pianística e o autodidatismo no violão. Na busca por extensões que aproximassem o violão do piano, Egberto desenvolveu violões de 8, 10, 12 e 14 cordas com distintas scordaturas, que agregam o uso de determinadas afinações reentrantes. Na falta de uma formação tradicional no violão, Gismonti transportou muitos raciocínios musicais pianísticos para a sua linguagem violonística e estilo interpretativo, dos quais destacamos a independência das mãos, o tapping, as percussões e o “pedal de sustentação”. Por outro lado, vimos como a experiência de acrescentar cordas, sobretudo com a afinação reentrante, acabou aprofundando a sua música em uma linguagem essencialmente própria do violão. Egberto utiliza recursos 156 violonísticos sui generis, como a nota pedal em corda solta, que realiza tanto a função de “cama” de acompanhamento quanto melodias rítmicas144. A afinação reentrante também possibilitou o desenvolvimento de particularidades que o violão tradicional de 6 cordas não poderia executar. Dentre elas, vimos a construção de materiais temáticos com o auxílio de fôrmas de mão esquerda e o desenvolvimento de levadas rítmicas acrescidas de uma espécie de “baixo”145 tangido pelo polegar. Embora todos os aspectos da linguagem da obra para violão de Gismonti tenham sido beneficiados pelas afinações reentrantes e os acréscimos de cordas graves, nem todos os elementos idiomáticos de sua composição para violão partem desses recursos ou mesmo da linguagem pianística. Os acordes paralelos e os ostinatos melódicos com nota pedal em corda solta são elementos eminentemente violonísticos, presentes na sua linguagem e que, possivelmente, foram acrescentados a seu “repertório de gestos guitarrísticos” a partir do contato com a obra para violão de Heitor Villa-Lobos. Outro elemento que não possui vínculo direto com a afinação reentrante, embora seu uso tenha sido expandido por ela, é o harmônico. Verificamos como Egberto criou uma linguagem singular ao articular esse recurso. Além de explorar toda a gama de extensão da série harmônica nas cordas, Gismonti desenvolveu uma maneira não temperada de raciocinar o violão. Sobre o estilo interpretativo derivado da obra violonística de Gismonti, a pesquisa apresentou diversas observações que podem auxiliar intérpretes que pretendem executar esse repertório. Analisar particularidades específicas da performance de Gismonti, como o virtuosismo, não traz grandes utilidades. Porém, aspectos como a sonoridade, a independência das mãos, a articulação, as acentuações, a agógica e a técnica trouxeram questões de grande valia para a compreensão desse repertório, dentre as quais destacaríamos a articulação e acentuação do dedo polegar nas cordas reentrantes; a busca por novas sonoridades com o uso dos harmônicos, sobretudo nos superagudos; a técnica do escovado sobre os power chords; a digitação de mão esquerda na execução de paralelismos, tanto melódicos, quanto harmônicos; e a independência das mãos em ações coordenadas entre percussões, tappings, arpejos, harmônicos e pedais. 144 Estas constatações confirmam a primeira hipótese levantada pela pesquisa. 145 Estes procedimentos confirmam a segunda hipótese levantada pela pesquisa. 157 Somando-se a essas questões, vimos que a improvisação apresenta-se como um elemento determinante no estilo interpretativo de Gismonti, que influi diretamente na estrutura da composição. Destacamos a liberdade formal e a liberdade rítmica como manifestações da improvisação nas obras analisadas. Na primeira, vimos como Gismonti apropria-se da condição de intérprete-compositor para mudar o “rumo da prosa” da composição durante a performance. A ordem das seções são cambiáveis e dentro delas próprias também há pequenas mudanças, como a não realização de determinados ritornelos ou até mesmo a supressão de eventos musicais. Na segunda, vimos como o ritmo realizado em arpejos e percussões são utilizados de maneira improvisada e verificamos como a liberdade rítmica pode afetar a regularidade da estrutura métrica da composição. Nesse último ponto, destacamos a contribuição do uso polegar nas cordas reentrantes, gerando os ditos ritmos acrescentados. Apesar da improvisação ser um elemento recorrente no estilo interpretativo de Gismonti, ela não é uma determinação para o intérprete que deseja executar sua obra. A análise em torno dos aspectos improvisatórios serve para termos uma dimensão da linguagem interpretativa de Gismonti, na qual a música deve ser compreendida como um processo em constante movimento, portanto, um produto transitório. Nesse sentido, a constatação da improvisação serve como um convite para que o intérprete tenha um olhar mais dinâmico e flexível sobre a obra que deseja interpretar, podendo intervir em qualquer esfera do arranjo. Um dos objetivos da pesquisa foi compreender a trajetória da linguagem violonística de Gismonti e do seu estilo interpretativo ao longo de sua discografia. Ao final, observamos que não houve grandes mudanças em seus maneirismos instrumentais. Elementos estruturais em sua música, como os pedais, os harmônicos, os ostinatos com cordas soltas e ligados, as scordaturas e os acordes paralelos, já estavam presentes em gravações remotas com o violão tradicional de 6 cordas. Com o acréscimo de mais cordas e o uso de afinações reentrantes, esses elementos foram apenas redimensionados em sua linguagem. Nesse sentido, ao ouvirmos as gravações mais remotas, é inevitável constatarmos o óbvio: trata-se do mesmo intérprete e compositor dos dias atuais!146 146 Esta conclusão confirma a terceira hipótese levantada pela pesquisa. 158 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVARENGA, Oneyda (org). Melodias Registradas por Meios Não-Mecânicos. São Paulo: PMSP/ Departamento de Cultura, 1946. AMORIM, Humberto. Heitor Villa-Lobos e o Violão. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, 2009. ANDRADE, Mario. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962. __________, Mario. Dicionário musical brasileiro. Coordenação Oneyda Alvarenga, 1982-84, Flávia Camargo Toni 1984-89. Belo Horizonte: Itatiaia/Brasília, DF: Ministério da Cultura/São Paulo: IEB-USP, 1989. BORGES, Cândida Luiza. A interpretação e o pianismo de Egberto Gismonti em sua obra “Sonhos de Recife”. 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Corações Futuristas. Brasil: EMI – Odeon, 1976. LP GISMONTI, Egberto; HORN, Paul. EUA: CBS/Black Sun, 1976. LP GISMONTI, Egberto; VASCONCELOS, Naná. Dança das Cabeças. Noruega: ECM Records, 1977. LP GISMONTI, Egberto. Carmo. Brasil: EMI – Odeon, 1977. LP ___________. Sol do Meio Dia. Noruega: ECM Records, 1978. LP ___________. Nó Caipira. Brasil: EMI – Odeon/Carmo Produções Artísticas, 1978. CD ___________. Solo. Noruega: ECM Records, 1979. LP ___________. Sanfona. . Noruega: ECM Records, 1981. LP ___________. Circense. Brasil: EMI – Odeon, 1980. LP GISMONTI, Egberto; GARBAREK, Jan; HADEN, Charlie. Mágico. Noruega: ECM Records, 1980. LP GISMONTI, Egberto. Em Família. Brasil: EMI – Odeon, 1981. LP GISMONTI, Egberto; GARBAREK, Jan; HADEN, Charlie. Folk Songs. Noruega: ECM Records, 1985. LP GISMONTI, Egberto. Fantasia. Brasil: EMI – Odeon, 1982. LP ___________. Cidade Coração. Brasil: EMI – Odeon, 1983. LP ___________. Bandeira do Brasil. Brasil: EMI – Odeon, 1984. LP 163 GISMONTI, Egberto; VASCONCELOS, Naná. Duas Vozes. Noruega: ECM Records, 1985. LP GISMONTI, Egberto. Trem Capira. Brasil: EMI – Odeon, 1985. LP ___________. Alma. Brasil: EMI – Odeon, 1986. LP ___________. Feixe de Luz. Brasil: EMI – Odeon, 1988. LP ___________. Dança dos Escravos. Noruega: ECM Records, 1989. LP ___________. Infância. Noruega: ECM Records, 1991. CD ___________. Amazônia. Brasil: EMI – Odeon, 1991. LP ___________. Casa das Andorinhas. Brasil: EMI – Odeon, 1992. CD ___________. El Viaje. Argentina: Milan Sur, 1992. CD ___________. Música de Sobrevivência. Noruega: ECM Records, 1993. CD ___________. Zig Zag. Noruega: ECM Records, 1996. CD ___________. Meeting Point. Noruega: ECM Records, 1997. CD GISMONTI, Egberto; HADEN, Charlie. Egberto Gismonti & Charlie Haden at Montreal Festival. Noruega: ECM Records, 2001. CD GISMONTI, Egberto; GISMONTI, Alexandre. Saudações – CD 2: Dueto de Violões. Noruega: ECM Records/Carmo Produções Artísticas, 2009. CD GISMONTI, Egberto; GARBAREK, Jan; HADEN, Charlie. Carta de Amor. Noruega: ECM Records, 2012. CD Vídeos GISMONTI, Egberto. Dança das Cabeças. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=RI4uZ9J402U> acessado em 8/6/2016. __________. Dança das Cabeças. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=K1EwZPvdmvw> acessado em 8/6/2016. __________. Cego Aderaldo. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=4TIkp7N0CX8> acessado em 8/6/2016. __________. Selva Amazônica. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ReHB2RGjfrY> acessado em 8/6/2016. __________. Em Família. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=1B7NT1MCD2c> acessado em 8/6/2016. __________. Dança dos Escravos. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=8pKq52OFvuU> acessado em 8/6/2016. __________. Dança dos Escravos. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ZUFMHi7r57Q> acessado em 8/6/2016. __________. Lundu. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Cjhw4V1wPqw> acessado em 8/6/2016 __________. Consolação/Berimbau. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=NSXgs5fIT54> acessado em 8/6/2016. __________. Oncotô entrevista Egberto Gismonti. Disponível em: <http://www.panfletosdanovaera.com.br/detalhe/4310> Acessado em 18/11/2015. TELLES, Lucas. Salvador. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=oUeGu_KGL0Q> Acessado em 18/11/2015 164 165 ANEXO A – ENTREVISTA COM EGBERTO GISMONTI 1. Sobre as modificação no violão Eu tenho um ponto de vista sobre o violão, que eu experimentei varias soluções, uma delas foi expandir o número de cordas. Modificar a posição das cordas, que é muito condicionante ao ponto de vista de criação, de escrita e de vícios. Eu conheço razoavelmente orquestra hoje em dia, porque eu faço isso a vinte anos sem parar. Acho que o violão é o instrumento mais viciado que existe sobre o ponto de vista da execução, do ater, do comportamento e etc. Isso não é uma crítica negativa, é uma crítica que pretende-se ser positiva. Eu comecei a achar que estava faltando extensão. Porque eu venho de piano eu não venho de violão. Então faltava coisa: ‘esse Mi aqui está alto de mais, eu quero uma coisa mais grave, não é possível’. E agudo... tá bom, mas se a escala tivesse mais três, quatro ou cinco trastes ajudaria também o raciocínio musical. Tudo começa quando eu estou em Nova Friburgo, estudando violão de forma autodidata absoluta, porque o que eu podia era transferir os conhecimentos teóricos de piano, os estudos, os Beringers (...). Eu fiz todos eles no violão. Eu não tinha o que fazer porque eu não sabia como que estudava violão. Mas eu tinha uma audição muito boa e um solfejo muito bom, porque eu tive um professor que não foi brincadeira. Dulce Vaz Siqueira e Aurélio Silveira, são os dois professores de piano. (...) E o violão foi evoluindo, até que eu cheguei e esbarrei: ‘mas cadê a nota grave? Cadê não sei o que?’. Isso nos anos sessenta e seis ou sete. Eu tinha seis ou sete anos de violão... caseiro! (...) E ai cheguei as afinações por experimentação. Como não existia outro violão além de 7 cordas, porque eu descobri o choro. Eu sai a caça de um sujeito que chamava não sei o que Romão não sei de quê. Que era um luthier com um violão ruim, precário! (...) Eu disse: ‘eu quero um violão que tenha um traste e uma escala gorda, maior assim.’ (...) ‘Quantas cordas?’, ‘Bota oito’. Eu digo, aumentar duas em seis já é uma imensidão. ‘Então que largura?’, ‘Mais ou menos igual lá o de seis, aí você imagina e pega mais duas e aumenta.’ Um negócio feito assim, uma galega danada, o violão desafinava que é uma beleza! Não tinha demarcação de traste certo. (...) Aí chegou o violão de oito. Aí eu digo: ‘bom eu já toco um pouco do seis cordas, não vou mudar muito essas seis cordas aí porque se não eu vou ficar maluco’. Aí esticava uma corda, aí um outro ‘não uso uma corda de cello’. Aí usava e não dava 166 certo. Tudo isso sozinho porque não tinha a quem recorrer. Um belo dia alguém me dá uma corda de marca maxxima, alemã. Que não cordas feitas sob medida. E eu ponho ela na mais grave e começo a afinar, afinar e por uma decisão sem nenhum critério técnico eu digo ‘essa corda tá com uma tensão proporcional as outras e ela está afinada um quinta abaixo da sexta, era um lá’. E afinava bem de mais, era uma beleza de corda. Aí comecei a tocar, com o espaço vazio da sétima. E alguém disse: ‘ vamos arranjar uma de sete cordas e você bota um Dó e fica Mi, Dó e Lá.’ Digo ‘Ah boa ideia!’ Aí experimentei e digo ‘mas não faz o menor sentido isso, quero outra corda aqui, não quero essa não’. Eu não sabia porque. (...) Um belo dia eu disse ‘eu tenho que tentar alguma coisa aqui, eu não sei o que eu vou fazer’ Aí tinha um corda, besta, de nylon dessas ai. (...) Aí botei e sai afinando (...) eu não sabia direito onde é que eu ia afinar. E era uma corda três, era uma terceira corda. Eu fui afinando... e parei no lá. E digo ‘ah que engraçado, tem duas oitavas de extensão, interessante isso’. E levei um tempo, viu? Eu não tinha certeza, mas levei um tempo . E tudo o que eu fiz no início, usando o violão de 8 cordas com essa afinação normal, deu um resultado profissional excepcional. (...) O primeiro disco que eu gravei com isso, eu não explorava ainda como parte do violão a ser tocável. Eu tocava muito pouco, apesar de ter traste e tudo. Então eu usava muito cordas soltas, soltas soltas. E gravei um disco, que aliás é o único na minha vida que chegou a um número que nenhum carmense, por mais bêbado que estivesse, imaginaria que o disco ia vender 1 milhão de discos, que é o Dança das Cabeças. “Eu gravei isso com o maluco do meu amigo Naná Vasconcelos e não tinha uma partitura pronta. Tinha uma ideia: dois curumins andando numa floresta, pronto! E o troço começou a resultar e eu digo ‘mas essa corda aqui é excepcional, mas isso aqui eu vou ter que mudar, as vezes eu quero uma coisa de Sol também, porque só esse lá tá muito chato. E comecei a achar que estava muito chato. E nesse andanças, aí já estou em meados dos anos 70. Andanças europeias, eu sempre saia para ir em lojas de instrumento e loja de violão era o que mais tinha na época. (...) Um dia eu entro em uma loja em Córdoba e digo ‘eu estou procurando um instrumento de mas cuerdas’. (...) ‘Ah tem um que toca o Narcise Ypes. O Yepes toca em um violão e 10 cordas muito bonito’. (...) ‘Quanto custa?’, ‘Tanto’ e paguei e levei o instrumento, tirei as quatro cordas graves. Então aqui eu tenho um violão e aqui eu tenho espaço suficiente para procurar. E ai foi um processo que não está fundamentado em método nenhum, (....) porque quando você não tem 167 onde se basear. O meu conceito era todo piano, meu negócio era, eu queria um piano com cara de violão. A escolha das cordas é puramente musical. E por que mais cordas? É porque eu ficava muito aborrecido por causa da extensão que não andava. Não andava em relação ao que eu normalmente estudava e tocava. 2. Pelo piano ser definido como um instrumento de percussão, você acredita esse dado tem alguma relação com o fato de você levar muitos elementos percussivos para a sua linguagem violonística? Não, o instrumento de percussão é tudo o que bate, que pinça e etc. O violão também seria um também. Eu como não tenho uma experiência profunda com outros instrumentos, apenas de tocar um pouco de flauta, clarinete e etc. Mas eu não tenho... não sou um solista, a ponto de entrar e ficar uma hora tocando e me dá como satisfeito. A coisa de ser percussivo é o princípio da construção do instrumento. Não existe violão que não pince. Existem violões, e eu tô fazendo isso, que você tem duas funções simultâneas. Uma de piano, batendo em cordas, pra isso eu tive que chegar em um braço desenhado com uma altura de traste que é meio quadrada, arredondada... é uma confusão danada, pra não ficar [demonstra o barulho de ruído]. E uma mão direita que está pinçando ao mesmo tempo. O fato do violão, dentro do meu conceito de polifonia e polirritmia, não disponibilizar mais de duas vozes compostas. Voz composta é aquela que bifurca as vezes [solfeja]. No meu conceito não tem mais de duas vozes compostas, eu fui diminuindo a maneira de tocar piano, diminuindo o número de notas, acordes e etc... e comecei a dissolver harmonias e acabei na coisa mais precária, historicamente falando, que é o contraponto. Eu trabalho com duas vozes em piano e trabalho com duas vozes no violão. Isso me dá uma dimensão musical que não é pianística e que não é violonística. Claro que qualquer música pode ser executada em qualquer instrumento. 168 3. Sobre escrever para outros músicos Profissionalmente, para outros, eu comecei a escrever umas peças; para quem eu conheço pessoalmente e sei que tem seriedade suficiente para estudar até morrer, antes de dar a coisa como pronta, que é o Odair Assad. (...) E escrevi pra ele duas coisas ou três. Memória e Fado, tem dois violões tocando e é uma pessoa só tocando. Aquilo não é melhor nem pior, aquilo são dois violões em um. (...) Então, o piano me leva a pensar os outros instrumentos com essa característica. (...) Aquilo ali são dois pontos de vista, que é polifonia. É orquestra pura! 4. A música como uma história sendo contada. Eu considero que cada composição, tem pequenas aberturas que possibilitam que se saia um pouco para direita ou para esquerda, mas que na realidade são bem estruturadas, no sentido de história que está sendo contada. (...) Não gosto de música pela música. E aprendi isso com uma das maiores musicólogas, ou algumas das maiores. Na Argentina foi Fedora, no Brasil a Ester Scliar e a terceira a Nádia Boulanger. 5. A determinação de algo externo para se compor Essa é uma das músicas que parte de um conceito; depois que eu fiz essa eu fiz outras. Tem uma outra que chama Dança dos Escravos, que aí tem percussão de fato tocando e a mão esquerda tocando outra coisa. Mas aí é pianismo puro porque o piano pode tocar…Ou seja, as músicas de violão, a maioria delas de uns anos pra cá são feitas sempre em função de alguma necessidade por qualquer que seja o nível de obrigação. Eu quero chegar no seguinte: eu componho música e eu faço música para preencher coisas que me são pedidas. Não é a toa que eu fiz trinta filmes, trinta peças de teatro, vinte e cinco ballets… me pedem para fazer uma coisa e eu sou obrigado a fazer o mais convincente para o diretor que está pensando o que ele quer. Por mais que eu tenha descoberto com o passar dos anos que coreógrafos, diretores, são muito mais abstratos do que parecem, quer dizer, no fundo o fato de não saberem o que querem, te falam qualquer coisa e você tem que acreditar ou não. Apesar de eu saber que eles estão me falando o que eles não sabem, eu procuro chegar bem próximo. 169 Então isso me dá um ponto de vista de espectador da música que não é muito normal em compositor. Quer dizer, eu gosto de olhar aquilo que eu descrevi; como é que chegou o lundu, dos compositores que eu conheço que fazem música chamada culta, mais escrita; jamais falariam da estrutura menor, sobretudo quando a música já está pronta, já tá bem sucedida no sentido de bem executada, então, não gostam de falar que a coisa é tão simples como ela é. Ela é muito simples mesmo. Aliás, se você espremer isso, o que vai pingar é o seguinte: tudo que é simples pra você é porque você faz muito bem feito. Não tem outro jeito. Por isso que eu falo para os meus filhos “vão ter um concerto, tão com medo? Não entrem no palco. Desmarquem. Vão pra casa estudar. O problema é de vocês, não é do teatro.” 6. Sobre compor sem o instrumento Isso me deu uma audição de solfejo muito clara e que me serve. Escrever para orquestra eu não sento em piano nunca. Porque se sentasse, ou até pra escrever para piano, eu vou condicionar o que eu sei tocar, e eu não quero. Ninguém pode pensar que sentando no piano e tocando, tá tocando uma orquestra porque não tá tocando orquestra. Eu não acho que o violão seja um propulsor de ideias para a composição. Eu não acho que seja necessário ter o instrumento ao lado. Memória e Fado e Choro, que o Odair já toca os dois, se eu sentasse no violão eu taria (sic) lascado, porque eu jamais admitiria que aquilo ali pudesse ser tocado. Então eu parto sempre do escrever. Claro que eu tenho um parâmetro de violão e de outros instrumentos, então não vai inventar o que é impossível. O violão depois serviu muito pra definir o que que eu tinha que retirar da ideia ou acrescentar na ideia. No caso Memória e Fado foi isso. No caso de coisas minhas (...). Lundu eu queria que tivesse como centro emocional os atabaques tocados em lundu. Eu tenho músicas com nome do gênero musical. Maracatu, por exemplo, eu passei semanas rabiscando, indo ao piano, rabiscando... até que o piano transformou-se no caixa do maracatu, é só isso.(...) Enquanto o piano não tocou isso eu digo ‘não serve pra ser maracatu’. E no caso de Lundu, (...) pra que eu tenha os atabaques que são feitos, não com madeira de grandes qualidades e as amarrações são feitas com cordas, no lundu eles tem som moco. Som moco é aquele que não tem ressonância, que cai no pé. (...) Pra conseguir som moco 170 no violão eu tenho que usar a técnica pianística e não violonística, que vem a ser o que? (...) pra conseguir que o som seja curto eu tenho que fazer [solfeja]. Quando cheguei a essa conclusão, pra que o violão não fique desiquilibrado, no corpo, eu tenho que procurar posições que sejam quase idênticas, que percorram as 10 cordas para cima e para baixo. Porque se eu tiver que trocar de posição, não vai dar certo isso. Isso tudo antes de compor. Porque tem um mecanismo para fazer o violão virar um atabaque. Se eu parto da música eu não vou chegar ao atabaque. Então o meu ponto de vista, mais ou menos concordo com você, porque eu mais ou menos sou compositor tradicional. Você talvez jamais , se te dessem vinte possibilidades, você jamais imaginaria que o Lundu nasce da ideia de que o violão tem que virar um atabaque com um som moco, pra ser o atabaque de madeira ruim amarrado com corda. Depois que eu conclui isso ai eu fui pro violão e disse ‘pra que eu tenha uma posição indo e vindo a vontade aqui, essas cordas vão ter que facilitar uma certa posição’. Qual é um certa posição que são afinados os atabaques? A maioria dos atabaques de lundu são afinados em terças e quintas. (...) Então eu vou querer a minha afinação em quartas, porque que me possibilita fazer as quintas abrindo dois espaços, dois trastes em cada corda, porque isso vai me dar quinta e quinta, quinta e quinta. E eu tenho quase que cromática com as quintas. A música não é feita só com a vontade de fazer. A música é com a vontade de representar alguma coisa. Isso é um dado também que foge ao pouco, digamos, ao tradicional. Apesar de eu escrever muito pra orquestra ou muito pra o que seja, a música nasce a partir de uma obrigação ou determinação. O contrário também acontece, (...) mas Memória e Fado e o Choro, eu não pude olhar instrumento. Se eu pego o violão pra pensar, o raciocínio vai onde eu já sei e eu não quero isso. Eu começo a escrever a música, como ela tem que ser. (...) Aí eu abro dois pentagramas grandes, as vezes até três, e vou escrevendo tudo o que precisa ter. Depois achato três em dois, olho a partitura e digo ‘será que isso aqui é possível?’. 7. Formação musical e trajetória com o violão Eu tinha que tocar em violão alguma coisa que fosse mais “preciosa” do que os discos que meu pai trazia. Dilermando Reis, que tocava valsa, eu achava tudo 171 muito bonito, mas eu digo ‘não é isso que eu queria tocar’. E o meu pai, que vinha ao Rio volte e meia. (...) Ele trazia pra mim discos. (...) E um dia ele trouxe um disco do Baden Powell chamado O Mundo Musical de Baden Powell. Um disco gravado em Paris e tal. E eu fiquei fascinado por aquilo e eu falei: ‘que diabo de violão é esse? Esse é um violão só? Que maravilha! E como que faz essa coisa rítmica?’ Porque aquilo ali virou uma seção de trezentos ritmistas tocando junto. (...) Eu disse, só tem uma maneira de eu saber o que é isso. Eu vou transcrever isso. Punha o disco e transcrevia. Tanto que eu até vir para o Rio de Janeiro, eu achava que violão escrevia em dois pentagramas e a oitava que tava soando. Eu não sabia que era instrumento transpositor. (...) E transcrevi o disco inteiro. E transcrevi o disco do Baden, quando acabei o disco do Baden e ai fiz um outro disco não sei de quem e aí caiu na minha mão um disco de um norte americano (...), um violonista gitano, que tocava uma coisa misteriosíssima, que não era jazz, era outro negócio. E depois apareceu o Garoto (...) e comecei a transcrever todo mundo. E ai o violão passou a ser um instrumento (...). E ai o violão foi nascendo como um instrumento de valia. O violão é parte da estrutura que me sustenta como músico. Violão não é violino, nem cello, nem viola, nem trompete, sem flauta, oboé, fagote na minha vida. Violão é igual piano. E esses dois juntos fazem a música que eu penso. (...) Não dá pra falar de um sem falar do outro. E aí o violão, eu só decidi encordoamento, afinação, porque o meu estudo de violão inicial… Eu morava em Friburgo, cidade serrana aqui perto. Duas, três horas de carro. E naquela época durava mais porque a estrada era pior e tal. E não tinha, como até hoje não tem, orientação, pedagógica séria para violão. Aliás, só tinha pra piano, que eu estudava, não sei se vocês sabem disso; que a única filial do conservatório brasileiro de música estava em Friburgo. Então eu dei a sorte de estar numa cidade que tinha um conservatório brasileiro de música, onde a partir dos anos que eu estudei no conservatório, a gente tinha um período de oito anos, no máximo, podiam ser sete, para completar, se diplomar, etc. E depois mais alguns, quatro, cinco, chamados especialização. E paralelo à esse curso, a gente estudava no modelo do conservatório de Paris, estudava teoria em geral, solfejo em geral, contraponto, fuga, composição, orquestração e análises musicais. E como o conceito era todo francês, se estudava o repertório europeu. Quando eu terminei meus nove anos e completei com o exame que era feito no Theatro Municipal; a banca no palco, tinha dois pianos, porque além de todo repertório que tinha que tocar, tinham 172 três concertos que tinham que ser escolhidos qual que seria na hora e tinha um segundo pianista que lia o segundo piano… Terminei feliz da vida. Ganhei uma bolsa para ir pra Viena como intérprete de piano. Fui, não pra fazer essa bolsa, mas fui para trabalhar com uma cantora francesa, atriz, Marie Laforet, não tinha nada que ver com isso, mas eu não queria ir pra Viena… “O que eu vou fazer em Viena? Não quero mais saber de estudar piano desse jeito, porque é um catatau de material”. Você deve saber disso, né? Você sabe, certamente. Quer dizer, ninguém toca (que estudou piano de fato) ninguém toca dois prelúdios e duas fugas, toca o cravo bem temperado inteiro. Ninguém toca uma sonata ou duas de Beethoven, toca tudo. Num concerto, toca no mínimo uns dez. Não é brincadeira o negócio. Eu digo a coisa tradicional e acadêmica. Então eu tava um pouco cansado disso. Passei por uns professores que me deram abertura pra pensar diferente, como Jacques Klein na especialização, na avenida Graça aranha. Eu sempre toquei de cór tudo, porque se eu tenho que ler, tem mais um despachante no meio. Como eu nunca estudei com o instrumento, só estudo a partitura e depois eu pego o instrumento porque eu não quero o despachante no meio. E aí o violão foi nascendo como um instrumento de valia, porque até… Na minha cidade lá no interior, no Carmo, o violão era usado assim… Nunca ninguém sentou sozinho num bar com amigos para tocar violão. Eram quatro tocando juntos sempre. Violão é meio que um instrumento de integração e quando eles acham que estão tocando uma música, estão tocando três diferente. Ninguém toca a mesma coisa, então… O conceito de música de câmara é mais moderno, é Charles Ives. Cada um toca uma coisa e sabe a letra, né? Bom, o violão foi evoluindo até que eu cheguei e esbarrei e “cadê a nota grave? Cadê não sei o quê?”. Isso nos anos sessenta e seis, sete… Eu tinha seis, sete anos de violão. Caseiro. Caseiro continua, mas enfim… Mais caseiro do que… Eu digo “mas como é que eu vou fazer aqui, não tô entendendo.” 8. Tom Jobim e Baden Powell O Tom um dia apareceu no Geraldo e o Geraldo disse assim: “Tom, você vai ouvir aqui um músico extraordinário”. E o Tom Jobim já era o Tom Jobim. Já tinha feito tudo na vida, o Frank Sinatra e o diabo. E o Tom, benevolente como poucos, sentou e disse “espere, eu vou pegar uma dose de whisky antes de você 173 começar”, e eu comecei a tocar. Violão, piano, piano, violão; toquei umas músicas dele e tal. Terminou, ele disse assim “Geraldo, eu posso levar o menino lá pra casa? Paulinho tem que ouvir ele um pouco.” Passei dois, três dias na casa dele e ele ligou pro Baden e disse “Baden, vem aqui em casa que você vai conhecer um violonista”. Então você imagina, Tom Jobim… Menino, como eu, sentado... ouvir o Tom dizer “vem conhecer um violonista”, eu fiquei morrendo de medo. E quando Baden chegou, eu fiquei muito sem graça e o Baden disse “o Tom disse que você sabe tocar muito bem”, e eu “é, é, mais ou menos”, e ele disse “então toca aí”. E eu não sabia o que tocar. E eu comecei a tocar tudo o que eu tinha transcrito dele no Mundo Musical [de Banden Powell]. Comecei com o Choro para Metrônomo, que aquilo é uma encrenca danada e ha trinta anos atrás, muito mais encrenca ainda. E eu transcrevi tudo. Quando acabou ele disse assim “quem te ensinou a tocar isso?”, eu disse “ué, ninguém me ensinou não, eu tirei do seu disco”, e ele “mas como tirou do disco?” Não era uma época comum na qual as pessoas mexessem com música escrita, né? Ou não falavam sobre isso, todo mundo era muito autodidata. E, resumo da ópera é que essa liberdade de mexer na música do Baden que me levou a mexer nas minhas músicas, me deu um aprendizado que eu trago até hoje. Eu estou falando de Salvador. Tem que falar de um monte de coisa porque as minhas coisas não acontecem assim, são lentas e progressivas. Regravar coisas, refazer coisas me levou a ter hoje uma discoteca, que está dentro dessas gavetas aqui, um monte de coisas em cima do piano… 9. Sobre o raciocínio não temperado no violão E fui descobrindo que tinha dificuldades que eu não tinha noção do que era aquilo como dificuldade, né? Porque piano você tem uma visão global e é um instrumento temperado. (...) Eu quando sento não tenho um raciocínio de nada que não seja temperado. Quando eu pego o violão eu tenho um raciocínio oposto. Apesar de traste, mas aquilo ali só delimita o possível lugar que a nota vai soar direito. Certeza você não tem nenhuma. 174 10. Turíbio Santos e Villa-Lobos Ah bom, tem um dado aí sobre o conservatório brasileiro de música. Quando eu ganhei a bolsa e depois fui pra Paris, não pela bolsa mas fui pra Paris; quando eu sentei com Nadia Boulanger, depois de meia hora de conversa ela disse assim: “estou muito impressionada e desolé, entristecida de vê-lo como um rapaz com muito talento de música que não sabe nada da música brasileira.” Eu tinha estudado no conservatório francês, que a gente chamava de brasileiro de música. Então eu sabia que tinha Villa-Lobos… Villa-Lobos era aquele tipo que pegava uma vassoura no estádio do Vasco... solfejo… canto orfeônico pra reger criança, era coisa política e eu ouvi isso a vida inteira. Não estava relacionando com música. Claro que tinha as Bachianas, que eu já tinha ouvido… Até porque nos últimos anos de piano, a gente ganha senhas, carnê aliás, pra assistir - na época - assistirmos concertos ao meio dia, onze horas, dez horas da manhã, no Municipal, com repertório vasto e sempre tinha um brasileiro no meio. Foi lá, inclusive, que eu conheci Mário Tavares que eu pensei que fosse só um bom regente; Mário Tavares é um grande compositor que nem todo mundo conhece. Lá em conheci Guerra Peixe, lá eu fui conhecer o Radamés Gnattali. Fui conhecer todo mundo e todos muito benevolentes. Custou muito tempo, aí eu tomei um susto danado sobre o negócio do Villa-Lobos. E pouco a pouco, morando em Paris eu descobri alguém que tinha um ponto de vista sobre o Brasil, muito valioso e para violão, que é o senhor Turíbio Santos. Sentamos (...) e o Turíbio disse: ‘ahh eu queria que você escrevesse umas peças para mim. Eu gostaria de fazer um repertório...” (...) E escrevi umas músicas como Central Guitar, por exemplo que é dedicada à ele, depois Variações para Guitarra. E o Turíbio foi de uma franqueza, que na época eu não entendi, com vinte anos não vai entender com facilidade um não né? Não é tão fácil. Mas ele me disse: ‘olhe essa sua música, eu vou fazer de tudo para ela ser bem executada por um monte de gente. Vou querer que ela esteja na minha coleção da Max Eschig e vou querer que você assine um contrato com a Max Eschig como compositor, para ter coisas editadas. Porque eu sinto que a sua música é maravilhosa. Mas eu não tenho preparo para tocar. Não é técnica, eu não tenho a crença de que essa música possa me representar. Isso é de uma beleza!! Pouca gente que não convive com Turíbio sabe que o Turíbio é um sujeito que tem essa dimensão e conhece os próprios limites, que não são poucos e pequenos, são muito largos. Quer dizer, um sujeito que espalha 175 Villa-Lobos nos quatro cantos da França a ponto de invadir a Europa inteira, não é brincadeira. E conheci o Turíbio, no que conheci o Turíbio (...) aí ele começou a me mostrar e no primeiro dia que ele me mostrou alguma coisa ele me mostrou todos os prelúdios e uma coisa atrás da outra. Mas que compositor! Pera, deixa eu conhecer esse compositor aqui. Eu sabia, claro, tinha as Bachianas e tal que eu já tinha ouvido. - Você chegou a tocar alguma coisa pra violão do Villa-Lobos? Toquei tudo. Turíbio me fez a cabeça. (...) Toquei coisa como o diabo, do Villa. 11. Benevolência Essa geração; eu tô falando porque eu tenho dois filhos de trinta e poucos que é mais ou menos a mesma coisa, eles ressentem de uma coisa que eles me ouviram falar a vida inteira que é a benevolência de pessoas. Eu conto pra eles, o Baden, o Tom, o Guerra-Peixe, o Radamés… Eu sei que vinte e nove são responsáveis por eu ter tido coragem de fazer uma música que todo mundo dizia “isso é muito ruim, isso é maluco. Ninguém vai gostar disso”, e eles me deram o apoio. Eu acho que hoje em dia tem muito pouco…, né? Todo mundo apressado. Quer chegar naquela cadeira e corre que não tá percebendo que já passou por ela trinta vezes e não viu, né? 12. Experimentações com scordaturas e afinações reentrantes. Meu conceito era todo piano. Meu negócio é que eu queria um piano com cara de violão, era o que eu queria. E comecei a experimentar e disse assim “tem que ter uma corda melhor do que esse Lá aqui aí procurei a fábrica da maxxima e pus e disse: vocês fariam uma corda que chegasse a oitava abaixo à sexta?”, “não, só fazemos até o fá, sétima abaixo.” Eu pensei “como alemão é muito chato, muito teimoso, essa corda vai ser o meu mi, tá na cara que isso é meu mi”. Comprei uma, fui pro hotel… Quando aquilo fez [solfeja], eu disse “ah, eu não to acreditando nisso.” Eu digo “bom, então aquela lá vai ficar na oitava”. Porque eu queria uma 176 correspondência de alturas. Mal sabendo que entre a sexta e a décima, iriam entrar duas cordas agudas. E aí eu lembrei da terceira corda que uma vez eu montei lá e depois eu digo “eu vou colocar com um semi tom e porque isso vai me criar tríades que o violão não tem. Aí, eu pianista pensando - nesse momento ele cantarola - isso não tem em violão. Eu disse “isso aqui vai me possibilitar coisas…” e fui mexendo, mexendo. E hoje em dia eu uso mais de uma afinação. Mas não são tantas não. Tem uma afinação que expandiu o violão pra outro lado que eu nunca tinha imaginado, que aí possibilitou entrar percussão pra valer. Que é praticamente em quartas, as cordas normais, fá dó sol ré, e algumas, as quatro graves, ao invés de lá lá, fá sustenido ou sol na nona, fá ou mi na décima… É que eu to escrevendo, tô compondo. Quando eu vou pro violão eu digo “ih, mas essa nota repetida aqui, eu preciso dela. Como é que eu vou conseguir isso, hein? Não faz sentido apoiar de alguma forma apoiar aquela corda, aquela nota”. Aí eu não tenho a menor dúvida. Vou lá, afino ela não sei o que e refaço a digitação do resto inteiro. Tem certos pontos culminantes que a nota tem que ter, ela solta, ainda mais no violão. E hoje em dia, eu uso mais de uma afinação, mas não são tantas não. Tem uma afinação que expandiu o violão para um lado que eu nunca tinha imaginado, que ai possibilitou entrar a percussão pra valer, que é praticamente em quartas. (...) E como eu tenho uma audição boa e adquiri mais técnica do violão que eu toco, eu pude me dar ao luxo de desafinar algumas cordas, né? Pensar em uma outra afinação. Desafina e ele passa a ser transpositor não mais do instrumento que se escreve oitava acima e, sim, de notas outras que estão transpostas em relação a posições que eu tenho. 13. Encordoamento E eu fui apertando corda pra direita, corda pra esquerda, “o que eu vou fazer com isso aqui? Jogo fora… E entrou na última fase, isso já tem quinze anos, que eu descobri que eu não precisava usar as cordas de nylon desencapadas, nenhuma das cordas que eu sempre comprava. Uma vez eu tava em Saquarema, onde eu tinha uma casa e meus filhos eram miúdos ainda, a gente estava brincando na praia, eles tinham oito, nove anos… E alguém tava pescando com molinete e quando acabou jogou o molinete no chão. E eu me aproximei daquilo, peguei na corda e disse “isso parece um sol… Posso levar? Ele disse pode, desculpa, joguei o lixo e eu disse: não o lixo tá 177 ótimo.” Então a escolha das cordas é puramente musical e o porquê mais cordas é porque eu ficava muito aborrecido por causa da extensão que não andava. Não andava em relação ao que eu normalmente estudava e tocava. A primeira e a segunda [cordas do violão de 12 estão em uníssono]… Quando eu consigo [encordoamneto] 0.0.8 e que eu to com muito boa disposição eu oitavo a primeira, segunda também. O grande problema é que torna o violão pesado pra diabo e o braço daquilo ali tem duas oitavas inteiras, isso significa que o cavalete é mais dentro do corpo e que as coisas ficam muito mais pesadas… E a mão direita, que a gente habitua… Apesar de eu não ser violonista, eu tenho o hábito de tocar na posição certa. Nesse violão você teria que trazer a mão muito mais pro lado esquerdo e começa a ficar meio fora de posição porque o cavalete é meio adiantado. Pra esse violão aí, eu suspendo o pé. Ponho mais dois, três centímetros que força o violão a ficar mais inclinado senão eu não vou aguentar ficar assim, né? Aí força a mão a ficar numa posição mais paralela às cordas e tal. 14. Influência de Ralph Towner O de doze, originalmente, foi o Ralph Towner que fez pra mim quando a gente fez uma turnê juntos. Terminou e eu fui à São Paulo no Sugiyama e consegui convencê-lo a fazer uma viola de doze cordas para nylon. Ele disse “eu não quero fazer”, mas eu “não, é para um amigo meu, o Ralph Towner, que toca muito bem”, mal sabendo que ele, Ralph Towner tinha mandado fazer um violão de oito cordas de aço com quatro duplas que aí ele estaria me dando o instrumento que é o instrumento que ele toca que é a viola de doze cordas e o de oito cordas que sou eu que toco. Aí eu afinei e fiz um jeito de afinar que coube perfeitamente. E afinado em ré transpositor pra ter essas oitavas todas de extensão pra poder usar a corda 08, porque a corda 09 aqui arrebentaria a mão e o próprio instrumento. 15. Arranjos feito por outros violonistas e a manutenção da tonalidade original O João e o Douglas do Brasil Guitar Duo, que são muito amigos e tal, de vez em quando eles vem. Aí passam o dia aqui, o dia inteiro pra gente corrigir… Porque eles estão montando um disco com coisas minhas e eu dou as partituras de 178 orquestra e eles usam como os Assad usavam sempre, né? Tocavam as orquestras e depois corrigia. Não é o conceito de adaptação mas as vezes faltava, sobrava nota… Mas o João tá fazendo uma coisa que foge da regra também de violonista que eu to adorando: o João sabe que a tonalidade determina a composição. Então se a música é feita em sol bemol, ela é sol bemol. Ele mantém as tonalidades originais todas. Porque quem escreve composição; quem escreve tá ouvindo notas e as notas são as notas que tá ouvindo, não tá ouvindo o intervalo só. E quando muda a tonalidade eu fico: “ó, tá tudo muito bem, mas vocês gravaram doze, treze, quatorze no tom completamente errado”... “Não, mas ninguém nota”... eu disse “eu noto”. 16. Transcrições e arranjo O troço do lundu, do atabaque, do som mouco, tem o mesmo grau de dificuldade ou de complexidade ou de raciocínio ou de responsabilidade, que eu agora to fazendo transcrições… Sabe quem é a Sonia Rubinsky? Pianista; aquela imensa amiga… Em Paris a gente sempre vai pra casa dela, fica tocando… Eu resolvi fazer transcrições de um compositor que eu adoro, já fiz homenagens com música sinfônica que é o Carlos Gesualdo, dos madrigais… Eu tô transcrevendo madrigais do Gesualdo para piano e como não pretendo que a transcrição do piano tenha nenhuma parecênça com a música coral, apesar de piano ter uma adoração, aquela ressonância… mas não é isso. Piano não é isso. Você não pode modificar o instrumento. Ou seja, na minha cabeça não tem isso de jogar um monte de bola de gude, pedaço de ferro e tocar em cima... que deixa de ser piano. Isso eu não quero. Eu sou muito tradicional com negócio de instrumento. Pra fazer os madrigais, eu resolvi que eles estariam sendo cantados no nordeste brasileiro no lugar mais seco que tem, que não vai ter ressonância nenhuma. Pronto. Isso muda o conceito que nasce dentro da inquisição quando aumenta o tamanho das igrejas e o catolicismo determina que as igrejas vão ficar maiores e que ao invés de uma pessoa cantando, tem duas, tem três, até que conclui que o melhor mesmo seria cantar duas coisas diferentes mas que rodasse sempre, não parasse nunca, não tivesse pausa nunca. Aí é o negócio da ressonância que junta com o gótico, desenho, arquitetura. Pronto. Eu tirei isso tudo e a música de Gesualdo que é uma maravilha de música, da pra tocar no piano como Glenn Gould toca Bach, sem pedal, sem nada. Não é cravo. A música dele é tão forte que precisa de piano. Não é cravo. Cravo não presta pra isso porque é muito delicado. Não presta 179 para o lundu. Eu tô te dando parâmetros diferentes mas eu to falando de violão de uma certa forma, mas eu não posso falar de violão só. O violão é parte da estrutura que me sustenta como músico. Violão não é violino, nem cello, nem viola, nem trompete, flauta, oboé, fagote, na minha vida. Violão é igual piano. E esses dois juntos fazem a música que eu penso. Então não dá pra falar de um sem falar do outro. 17. Sobre as fôrmas de mão esquerda O violão é cheio de códigos, né? Você faz assim, faz assado... é tudo código. (...) O Que você toca aqui, você toca aqui.... apenas o sentimento, sonoridade etc, é diferente mas... você tem códigos! Bem definidos. 18. Sobre a interpretação de Lundu Você sabe como se processa o Lundu quando eu toco aquilo? Você talvez nunca tenha pensado que a mão esquerda tem que pensar piano. Piano é instrumento de força numa alavanca. Pra alavanca levantar o martelo e bater. (...) Você tem que treinar a mão esquerda sem instrumento. Se você não treinar (...) o [dedo] mínimo, por exemplo, você não vai nunca ter força pra sustentar o som moco. (...) O mínimo vai fazer abrir a nota e você não vai saber tocá-lo junto com a mão direita e tirar ao mesmo tempo. Isso não é o hábito violonístico. A liberdade que você está se referindo é sobretudo as duas vozes e a acentuação, porque a acentuação que determina a polifonia e polirritmia. Dentro do Lundu eu posso raciocinar em dois, ou em três ou em seis, ou o que seja, mas eu posso colocar os acentos uma semicolcheia sempre pra frente. Aí o Lundu descaracteriza e passa a ser outra coisa. 19. Análise de interpretação através de gravações Te dar um exemplo, tem duas caixinhas ali de discos, uma tem o Toscanini e a outra tem o Vladimir Horowitz. Isso são as primeiras gravações das composições a partir da década de trinta, quarenta. E por que que eu tenho isso? Pra entender como é que a música foi feita. Que a música foi feita; o compositor tá cheio de razão quando faz, acha que foi a melhor coisa do mundo até que a música começa 180 a ser tocada e ela ganha uma vida independente do compositor. O meu entendimento é muito simples de música. É assim: o Vladimir Horowitz... dentro daquela caixinha tem os vinte e dois concertos que ele fez no Carnegie Hall onde se repetem vinte peças no mínimo. E nada melhor do que você ouvi-lo tocando aos vinte anos, aos vinte e três, aos vinte e nove, aos trinta e cinco. Você entende como é que a música modifica totalmente ele. Ravel... eu tenho as primeiras gravações da obra de Ravel. E os andamentos não tem nada que ver com os andamentos que as músicas se transformaram. Pra mim é muito longe. Dentro do Toscanini… que isso aí é toda a obra que ele gravou com a orquestra RCA [aponta para estante]. Ele foi diretor da filarmônica de Berlim, do Scala de Milão e da RCA dos Estados Unidos. E aquilo ali é a coleção de noventa e dois CDs de tudo que ele gravou com a RCA. E eu fui diretamente na nona sinfonia para resolver um problema que eu trazia nas costas ha dez anos. Eu li e originalmente a nona sinfonia foi escrita pra coral e orquestra pra setenta e um músicos. Setenta e uma pessoas, pronto. Entre quatorze instrumentistas. Eu digo “mas não é possível. Aquilo com setenta músicos não é possível. Considerando o coral, virou música de câmara”. Karajan, por exemplo, fazendo só de coral trezentos e quarenta pessoas cantando e tal. Eu ouvi e descobri que a nona sinfonia não tem, originalmente, o espírito heróico que o Karajan deu. Ficou fácil de entender, porque o Karajan era um nazista de mão cheia então foi fácil entender que ele transformou aquilo num hino ao nazismo e etc. Agora, você ouvir o original, demonstra não só a solidez mas a fragilidade do compositor. É isso que me interessa em composição. 20. Sobre as recriações e regravações Eu não fiz 69 discos (e o número 70 vai sair agora) não é a toa. Porque todas as regravações que eu fiz (...), nos primeiros oito ou nove discos tem umas quatro músicas que se repetiram... dois anos depois, repetiram de outra maneira. Como eu nunca fui do ramo da música e muito menos do métier da música, (...) eu refazia para consertar o que eu tinha considerado errado, um, dois, três disco atrás. Não é muito comum. O sujeito grava a música x e dois anos depois regrava a música x diferente, porque declara (e eu sempre declarei isso, não é de hoje não)... eu tô fazendo porque estava errado. ‘Mas como errado?’ É porque eu acertei na época, eu 181 estava feliz na época; eu achei que estava uma beleza... depois eu achei que estava horrível e fui refazendo. Tem até disco meu (...), o mais marcante chama Corações Futuristas, que o disco saiu... seis meses depois saiu a segunda versão do disco.... com capa, de outra cor inclusive, escrito: segunda mixagem. Eu sempre tive tanta liberdade na decisão da música, que eu sempre quis que ela tivesse mais atualizada possível. Não tem nada a ver com modernidade.... é atualizada. Depois eu parei de fazer isso porque a chance que me apareceu pra fazer uma quantidade imensa de discos... não dava pra ficar corrigindo todos os outros discos, se não ia ter uma confusão danada. A fragilidade, a vulnerabilidade… Porque a música que eu faço, ela só é boa ou ela só é ruim porque você ouviu e disse que ela é boa ou ruim. Porque não é vantagem nenhuma eu achar que eu tô uma beleza. Que eu sou um compositor maravilhoso. E eu não termino nada que eu não ache que esteja um espetáculo. As vezes é um desastre absoluto que eu mesmo corrijo. Se tem a oportunidade, eu vou lá e refaço pra fazer direito, em relação ao que eu havia pensado. Então essa coisa de fazer e desfazer foi me dando uma convivência com música que foi muito além de tudo o que eu poderia imaginar. E a prova dos nove dessa história me foi dada de forma concreta, absoluta, a três, quatro meses. Existe uma revista nos Estados Unidos, de música, que não é uma revista como é o livro dos recordes, mas tem uma seção na revista destinada à coisas inusitadas de música. E uma música minha ganhou um setor por uma razão que acho que responde a sua pergunta. Eu tenho uma música chamada Bodas de Prata, que eles listaram e disseram assim: “isto é fora de qualquer regra”. A música foi gravada em setenta e cinco… Eu tava passando nos Estados Unidos; o Airton Moreira me levou à muitos lugares e acabou me levando na casa do Herbie Hancook e lá pelas tantas, ele disse assim: “nós temos hoje à noite um encontro com a Sarah Vaughan, cantora Sarah Vaughan de jazz, uma beleza”. Resumo da ópera, eu fui e ele disse: “toque pra ela aquelas suas canções”, e uma delas era Bodas de Prata. E ela disse “que música louca que troca de acordes a cada três segundos. Por que que tem tanto acorde?” e eu “porque eu não sei ficar parado”. Aquelas brincadeiras. E ela disse “quero gravar isso”. E eu fui no estúdio no dia seguinte e toquei com ela. Isso foi setenta e tal. Passaram-se trinta anos, essa música foi gravada de Sarah Vaughan, passando por três, quatro, cinco cantoras incluindo Keith Wallace, a própria Flora, Jane Duboc… Saxofonistas como Wayne Shorter, como Jan Garbarek,... Que foi virando, virando, até que chegou e foi gravada 182 pelo Yo-Yo Ma também e tocada pela Martha Argerich, porque eu escrevi para dois pianos pro festival dela e fomos tocar juntos. E isso foi publicado dizendo assim: a música pode não ter fronteira nenhuma. E acrescentaram dizendo: e ocasionalmente, noventa por cento das gravações, é o mesmo pianista tocando a mesma música ( Que sou eu). Isso é uma coisa que responde a pergunta de repetir, não repetir, fazer… A música não é feita pra uma pessoa tocar. A música é pra ser tocada por qualquer pessoa, de qualquer forma. É assim que é o meu pensamento. Quando eu faço Memória e Fado pro Odair e um monte de gente… No Japão tem três ou quatro duetos de violão que eu conheci, que vão ao hotel e ficam lá parados quinze horas na porta, que sentaram e tocaram o Memória e Fado do Odair em dois violões. Tava beleza também. O meu negócio é que a música minha ou de qualquer outra pessoa não pare. Esse é que é meu interesse. 21. Leo Brouwer Ele pegou quatro, cinco arranjos que eu já tinha feito, refez os arranjos, acrescentou quatro violões e botou orquestra de cordas e fez dez estudos para piano, que são chamados Diez Bocetos para Piano, dos quais sete são dedicados pra mim, que é uma maneira que eu toco, polirrítmica em piano e chama Gismontiana, a tal peça, e o outro chama Exercício de Piano, que são músicas. Ou seja, a música se modifica tanto que ela passou pela mão de um sujeito que é meu amigo e é um dos ídolos que eu tenho pelo comportamento que ele tem, dignidade que ele tem com música. O Léo, aquilo ali, eu não conheço ninguém tão reto com a música. É a música em primeiro lugar, segundo e terceiro. O resto vem depois. E como a gente é muito amigo, eu sei que ele é assim. Então eu tenho uma admiração danada e a música vai se mudando, porque a música, depois de feita, independe do compositor. E se o compositor é burro o suficiente pra teimar que deveria ser como ele tá pretendendo, a música dele não vai viver nunca. Vide Anton Webern, que eu gosto demais de ler Webern, eu não gosto de escutar Webern. Eu leio tudo dele. Que as soluções técnicas que ele dá são maravilhosas. Vocês sabem da história dele, que ele fez orquestração de uma fuga e apresentou e ninguém reconheceu nada. Maravilhoso. Porque é o timbre que vale. Eu digo, o modernismo está no timbre, sobretudo. No que ele mudou o timbre, Bach deixou de ser Bach. Os caras só perceberam minutos depois. Enfim, isso é mais te respondendo porque que a música se mexe. Porque ela tem vida própria. 183 Música é um negócio espetacular. Quer dizer, isso que você tá fazendo não resolve diretamente nada na sua vida, nada na minha, mas abre uma janela que você vai continuar usando pra outras coisas e eu também, e por consequência que você abriu uma janela pra você, você abriu pra todo mundo que vai te ouvir. É lindo. O processo é esse. 22. Gravação Sabe um negócio de músico que reclama sempre de microfone na hora de gravação? Eu tive gravadora. Montei uma gravadora chamada Carmo que produziu quarenta e tal discos e eu não fiz pra ser bonzinho com ninguém não. Eu fiz porque eu queria entender melhor o comportamento dos músicos. Sobretudo os amigos próximos que eu tinha. E descobri que a maioria dos músicos reclamam muito de microfonação, quando não estão prontos pra tocar. A culpa cai sempre no técnico. A coisa mais comum que tem é o músico falar “ih, fui gravar, ficou uma porcaria, o técnico era horrível, o microfone era horrível, o estúdio era horrível”, é tudo sempre horrível. E eu prefiro partir das coisas muito simples. Eu parto numa gravadora fora chamada ECM Records, que é uma companhia que trabalha com música chamada culta e música improvisada, música folclórica, música de todo tipo, sem discriminação nenhuma. Você vai ter desde Arvo Pärt, vai ter Steve Reich, vai ter todo mundo misturado até com a minha proposta de fazermos berimbau e orquestra. Ele [Manfred Eicher] não sabia o que era berimbau e quando eu falei o que era, ele disse “mas isso é um instrumento?” e eu disse “é, o instrumento na mão dele é como se fosse um Pablo Casals tocando cello, pronto. Comparação não tem. E ele um dia; eu perguntando sobre a qualidade de som, a qualidade da companhia, “qual é a técnica?” e ele disse “tem vários pontos de vista. O que eu prefiro, vou te explicar fazendo uma pergunta”. E isso que ele falou serve pra instrumento, serve pra tudo na minha vida. Ele disse assim “você tem um cassete mono em casa?”, eu digo “tenho”. “Você já gravou alguma vez nesse cassete?”, eu digo “já”. “Gostou?”, eu disse “ah, tem umas coisas ótimas”, e ele “então a melhor gravação é essa. A melhor gravação é a que você toca e fica feliz. Não é a que ficou bem gravada. Se foi bem gravada, melhor. Se você tá feliz e sabe o que você quer…” 184 23. Sobre o palco e o respeito ao público Conheço poucos violonistas que apesar de estarem atrás da cortina antes de um concerto, esperando… A plateia já está lá… Já deu o primeiro sinal, o segundo; e ele tá afinando, tá afinando, tá afinando, tá afinando e quando ele entra no palco, ele demora três quatro minutos para começar. O meu ponto de vista não é do violonista, o meu ponto de vista é de quem sai de casa. Eu tenho uma absoluta devoção ao público. Não é só do ponto de vista comercial não. Eu descobri, rodando o mundo, que tinha que se arranjar alguma fórmula que me compensasse o sacrifício de viajar tanto. Porque isso pode ser muito bom pra mãe, pro pai, pra tia, “rodou o mundo, foi não sei aonde”, mas por conta disso eu acabei descobrindo uma medida que me compensa em relação ao público que é a minha cidade natal, do ponto de vista romântico, eu só tenho lembrança dela com dois mil habitantes, três mil habitantes... o Carmo. Eu sei que tem oito, nove mil hoje, até porque eu frequento. Mas cada lugar que eu chego, eu olho nas salas assim e [penso] “hoje tem um Carmo, hoje tem meio Carmo”. É porque eu sei e tenho consciência de que se eu fiz uma carreira, apesar de cheio de companhias envolvidas, editoras, o diabo a quatro, eu fiz uma carreira fundamentada na sustentação pessoal e financeira que me deram os espectadores no mundo todo. Por conta disso… Aliás, meus filhos aprenderam essa lição muito. Quando tinham 14, 15 anos; tocavam uma música só cada um e eu disse “tá na hora de turnê, vambora.” E eles acabavam nem tocando. Não tocavam nada, mas aprendiam o que era palco. Tem uma linha divisória que a gente não enxerga entre fora do palco e dentro do palco. Entrando e ultrapassando essa linha, o pensamento só pode ser um, que se tiver uma pessoa, quinhentas, mil, quatro mil, dez mil, etc… São pessoas que anotaram numa agenda que “dia tal fulano vai tocar e eu quero ver.” No dia específico tomaram banho a tempo, comeram a tempo, pegaram uma condução qualquer, estacionaram ou não; fila, compraram ingresso; entraram, sentaram e quando você entra no palco, sem exceção, o público está sorrindo para quem vai tocar. Com expectativas grandes, que a tradução eu tenho como seguinte: “Escuta, ô fulano que está no palco, eu tô te dando o que tem de mais precioso na minha vida que é o meu tempo. E por conta disso, eu não aceito certas atitudes como essa de violonistas em geral que entram e aumentam em três, quatro minutos, a expectativa de quem está ouvindo. O violão é um instrumento que foge à realidade dos solistas no mundo. O violão não tem… Existe um vídeo do Julian Bream forçando o Stravinsky a ouvir (todo mundo conhece 185 esse vídeo) antes de uma leitura de uma peça importante. O stravinsky diz “não, peraí, sai pra lá.” Isso é uma coisa muito de violonista. Não é crítico o seu ponto de vista. Seu ponto de vista ‘ser violonista’. Mas como eu tenho o piano e tenho a orquestra como instrumentos principais na minha vida, o violão passou o sê-lo… Mas eu comparo e digo assim “tem coisas em violão que não podem existir. Na minha apresentação, não. Eu chego ao absurdo de carregar um luthier comigo viajando. Pra que o violão… Eu toco dois ou três, eu viajo com dois ou três… Um está comigo. Eu não uso estante pra colocar violão, nada disso. Eu entro com um, que eu acabei de afinar, eu entro e toco. E caso o violão desafine, eu considero que isso é um acaso de destino e acabou. Se eu puder afinar, eu afino. Se eu não puder, eu vou até o fim e depois afino. Isso não muda grande coisa para quem tá ouvindo, mas muda pra sensação de que, “puxa, mas essa gente dedica tanto tempo a se preparar…” Porque as filas são insuportáveis hoje pra tudo. O seu tempo de vida que você dá pra tudo é outra coisa insuportável. Porque é insuportável. Cada um de nós que fica num trânsito preso, numa fila de banco, numa fila de feira… Não interessa que fila; Não gosta. E eu considero que as pessoas que vão nos dar o seu tempo como profissão… Claro que eles recebem de troco alguma coisa e nos dão de troco muito mais que o tempo, mas eu considero isso… Daí eu tento separar do seu ponto de vista sociológico e musical, porque eu não misturo essas duas coisas. Então é o ponto de vista de um pianista e não de um violonista. 24. Música dodecafônica Música contemporânea era toda aquela que eles chamavam de contemporânea. Aí passou, não deu muito certo como linguagem; não deu muito certo do seu ponto de vista atrativo à vida. E eu tô falando baseado nos estudos que eu fiz durante meu período longo na França, que eu fiquei um ano morando lá, além da Nadia Boulanger eu fui estudar com Jean Barraqué, que era discípulo de Anton Webern. E quando vim pro Brasil, fiz a tradução do Introdução à Música dos Doze Sons que é a bíblia dos Doze Sons, do René Leibowitz, e nunca foi editado. A rádio MEC me pediu isso. E o Edino Krieger na época, não sei o quê… Nunca foi editado porque eu fui procurando adaptar a linguagem do livro à história nossa de miscigenação, de ter que ter uma relação, né? A miscigenação é uma inquietação do 186 dodecafonismo dentro da história sociológica do princípio do século passado. E acabou que o livro provava, no fim, que não era possível admitir que essa música existisse, essa música dodecafônica. E é claro que eles riram muito quando eu dei ao Edino [Krieger], na época, ele leu e disse assim “essa sua tradução é fabulosa, ela contradiz tudo. Já conversou com o Koellreutter?”, eu disse “não, deixa o Koellreutter quieto lá na dele. Não quero essa discussão e tal”. 25. Estudo com instrumentos mudos E isso aí serve pra mim pra qualquer coisa. Por exemplo, aqui embaixo, que eu tenho o segundo andar aqui embaixo, eu tenho um piano grande, ali dentro eu tenho um Stanley três quartos, e eu comprei um Baldwin, que é o pior piano que tem porque eu só gosto de estudar… É um piano mudo. Eu tenho um piano mudo aqui, mas como eu gosto de piano mudo mesmo em forma de piano, o Baldwin; eu boto feltro em cima e ele faz [cantarola]... e é ruim demais. Mas tem entre cinquenta e uma a quarenta e oito gramas, o teclado e eu estudo assim. Meus vizinhos todos perguntam “você mudou? Não tá mais morando aqui?”, eu digo “to”. E eles, “estuda?”, eu digo “estudo”, porque não ouve nada, né? Ali, tem um violãozinho aqui dentro de uma caixinha, que o Mario Jorge Passos fez pra mim que é a cópia… Isso é violão mudo… Isso eu carregava nos anos oitenta, noventa; eu carregava na minha bolsa, isso e meu piano mudo que é essa caixinha aqui. O negócio de técnica de piano… Primeiro que eu estudo música sem instrumento. Eu prefiro. Seja pra ler, seja pra tocar piano, eu prefiro sem instrumento. Então o instrumento é usado num momento apropriado que o instrumento deve ser usado. O que eu preciso é que os dedos estejam em forma, preparados pra tocar; e também eu não tenho nenhuma organização de estudar todos os dias. Isso é minha discussão com a Sônia [Rubinsky]. “Mas como você não estuda todo dia durante seis horas?”, eu digo “tá maluca? Se eu fizer isso eu não vou cuidar de editora, eu não vou cuidar de nada, eu não vou viver minha vida. Deixa pra lá.” Quando, por exemplo, eu cheguei dessa turnê da Ásia; foi massacrante. Turnê na Ásia é o cão. Cheguei e tô acabando meu retiro de instrumento, de tudo. Já to no meu quinto, sexto dia que não quero saber de nada disso. 187 ANEXO B – TRANSCRIÇÃO DA OBRA SALVADOR (VIOLÃO DE 8 CORDAS) Afinação: 6º Ré 7º Lá aguda 8º Lá Violão de 8 cordas 8 Salvador Trascrito do disco Solo q = 76 & b 42 & b 42 >>œ œ œ>>œ œ œ œœ œœ >œœ œœ œ œ œœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œœ œ œ œ œ œ > œ 0œ p œ 0 œ œ œ œ œ & b œ nœ œ œ œ bœ œ œ œ œ 0 &b œ 1 4 2 1 4 3 ! 1 0 œœ 2 # œ b & 4 #œ 3 0 4 12 & b 42 &b 16 &b œ œ Egberto Gismonti Trans. Juliano Camara #œ nœ #œ œ œ 0 œ4 œ3 œ œ 9 œ œœ œ œ œ œ œ 16 1 9 16 œ 0 0 œ œ 0 œ 4 0 2 4 œ 42 œ œ 3 2 1 2 3 0 0 4 42 œ œ œ œ œ œ œ4 0 œ 16 6 # œ # œ œ œ 42 # œ # œ œ œ œ œ œ # œ œ œ n œ œ œ 6 16 œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ 188 2 Salvador œ nœ &b œ 19 œ œ œ &b œ & b œ nœ nœ œ 21 &b Am9/E œ & b #œ œ œ &b 27 œ &b œ œ œ &b œ œ œ œ œ œ œ œ Am9/E œ œ œ œ œ œ nœ Am9 œ nœ œ œ #œ œ œ nœ Am9/E œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ Dm (7M)/F œ Dm (7M)/F œ nœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ nœ œ œ œ #œ œ œ nœ œ œ œ nœ œ œ Dm/F #œ œ 30 &b œ Dm (7M)/F œ œ œ œ œ œ œ œ 24 &b œ œ œ #œ #œ œ œ œ œ œ nœ œ Am9/E œ œ œ œ œ œ œ œ œ 189 œ œ œ œ & b # n œœ œœ œ 33 &b œ & b 42 œ 37 œ œ œ œ œœœ bœ œ œ nœ œ œ œ œ œ & b 42 41 & b 42 œ &b &b œ œ œ > œ œ > œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œœ bœ 9 œ 16 b œ œ œ 9 œ 16 bœ œ bœ œ œœœ œ œ 9 b œ œ œ b œ œ 42 16 œ > œ œ œ œ nœ œ œ œ œ œ œ nœ œ œ œ œ #œ œ > œ œ œ p œ œ 42 œ œ > œ œ 2 4 œ œ œ œ 42 9 œ 16 œ œ œ 3 œ œ > œ œ & b œ #œ #œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ 46 &b œ œ œ bœ œ œ œ bœ œ œœ œ œ œ œ œ & b 42 43 Salvador #œ œ œ œ œ œ œ œ œ 190 4 Salvador &b œ œ n œ œ œ œ 49 &b Am 9/E œ &b 52 nœ œ œ œ œ œ œ &b œ œœ œ œ b n œ & #œ œ œ &b œ 6 16 œ œ œ &b œ œ œœ œ œ œ &b œ œ œ œ œ œ œ œœ œ œ œ œ œ œ œ œœ œ œ œ œ #œ œ œ œ œ "........ œ œ œ b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ n œ #œ œ œ œœ n œœ œ œ nœ œ Am 9 œ "........ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ bœ œ 61 œ nœ œ œœ œœ œ 2 4 œ œ œ œ 58 &b F#m (b5) œ œ 55 &b 6 œ #œ œ œ 2 œ œ # œ 16 > # œ > œ 4 œ nœ œ œ œ œ œ œ œ 191 5 Salvador nœ & b # œœ œœ œ 64 &b œ œ œœ &b 67 &b œ œ œœ œ œ & b 42 œ œ œ œ bœ œ b œœ nœ œ 7 16 &b 73 &b œ &b 76 &b œ œ nœ œ œ œ œ œ œ 7 16 œ œ œ œ œ œ nœ œ œ œ œ œ œ œœ œ œ 70 & b 42 œ œ œ œ " œœ œœ œ œ œœ œ œ 9 œ œœ 16 9 œ 16 œ œ œ œ œ 42 œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ 42 œ œ œ œ 42 œ œ 42 œ œœ œœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ b œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œœ 192 6 Salvador &b 79 &b œ œ œ œ b œ œ œ œ œ &b œ œ œ œ œœœ œ œ œ œ bœ œ œ 82 &b œ œ &b 85 &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ &b &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œœ œ œ œ œœ œœœ n œ #œ œ œ œ œ œ bœ bœ œ œ œ œ bœ œ œ "........ œ œ œœ œ œ n œ #œ œ œ œ œ œ œ œ œ œœ œ œ œœ œ œ œ œ œœ œœ bœ œ œ œ œ œ &b œ œ 91 œ œ 88 &b œ œ œ œ œ "........ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œœ œ œ œ œ œ œœ b œœ bœ œ œ œ nœ œ œ œ œ œ 193 7 Salvador œ &b œ 94 &b œ œ œ œ œ œœ œ œ œ œ bœ œ &b œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ &b œ œ œ œ œ 100 &b &b 103 œ #œ œ &b œ &b 106 &b œ œ œ œ œ œ œœ œ œ œ œ œ œ œ œ nœ œ œ b œœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ #œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ! œ œ œ œ œ œ œ 97 &b bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ 194 8 &b 109 Salvador œ &b œ œ &b œ &b 115 &b &b œ œ j #œ œ œ œ œ œ œ œ œ #œ œ œ œ œ œ œ nœ œ &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ 121 &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ #œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ &b œ 118 œ œ œ œ œ œ 112 &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ 195 9 Salvador œ &b œ 124 &b œ œ œ &b œ 127 &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ &b œ œ œ œ œ œ œ &b œœ œœ œœ &b œ œ &b # œœ 136 &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œœ œ n # œœ œ œ #œ œ # œœ œ œ œ œ œ œ œœ œ œ œ œœ n œœ œ œ œ œ # œœ # œœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œœ œ œ œ œ œ œ œœ &b œ 130 133 œ œ œ ˙˙œ œ œ œœ œ œ œœ œ œ œ # œœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ 196 10 &b 139 œ &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œœ &b 7 œ &b œ 145 &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ &b œ œ œ œ œœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ. œ œ œ œ œ "........ œ œ œ œ œ œœ œ œ œ &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ &b &b œ œ œ œ œ œ œ œ 148 151 œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ nœ œ 142 &b #œ Salvador œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ 197 11 Salvador &b œ œ 154 &b œ œ &b &b &b œ nœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ nœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ 166 &b œ œ œ œ œ 163 œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ &b œ œ &b œ œ œ œ 160 &b œ œ. œ. 157 œ œ œ œ œ œ œ œ œ ! œ œ œ œ œ œ œ 198 12 Salvador œ œ œ œ bœ œ &b 169 &b œ œ &b œ œ œ &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ &b ! 175 &b œ œ œ œ œ œ œ œ &b &b &b 181 &b œ œ œ œ œ œ nœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ 178 œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ ! 172 œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ nœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ bœ œ œ œ œ 199 13 Salvador &b œ œ ! 184 &b œ œ œ œ œ œ œ œ &b 187 &b œ œ œ œ 190 œœ &b œ œ œ œ œ œ œ &b 193 &b œ œ œ œ œ œ &b œ œ bœ œ œ œ #œ œ œ œ bœ œ bœ &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ! œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ &b œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ 12 8 196 œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ 12 8 200 14 Salvador x=e 12 &b 8 œ 198 œ œ œ œ œ œ 11 8 œ œ œ œ > œ œ > 12 8 œ 12 11 12 & b 8 œ .œ œ œ .œ œ œ .œ œ œ .œ œ œ .œ œ œ .œ œ œ .œ œ œ .œ œ 8 œ .œ œ Œ .œ œ Œ .œ œ œ œ 8 & b 12 8 œ > e=x œ œ > 2 œ œ œ œ 4 œ œ œ œœ œ œ œ bœ œ œ œ > > > > > > > & b 12 8 œ . œ œ œ . œ œ Œ . œ œ œ . œ œ 42 œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ > > R 201 &b 204 œ œ œ œœ œœ > > œ œ œ &b œ œ œ œ œ œ œ œ > > > > & b 42 œœ œœ > > 207 & b 42 œ œ &b œ > œ œ > 210 &b œ œ œ œ > œ œ œ œ œ > œ œ œ > œ œ œ œ œ œ > œ #œ œ œ #œ œ > > > œ œ œ œ œœ œœ > > œ œ > œ œ œ > œ œ œ œ œ nœ œ nœ œ > > œ œ > œ œ 81 œ œœ œœ > > 81 œ œ œ œ > œ œ > œ œ œ œ œ > 42 œ œ œ œ œ œ œ > œ 42 ! œ œ > œ œ > œ œ 201 Salvador & b œœ > œ œ œ œ > 213 &b œ œ œ œ œœ &b œ œ œœ œ 216 &b œ œ œ & b œœ œœ œ œ œ œ œ œ œ œœ œ œ œ œœ œ œ œ œ œ œ œ nœ œ œ œ œ œœ œ œ œ œ œ œ œ œ œœ œ œ œ œ œ œ œœ œœ œœ œ œ œ œ œ œ œ œ n œœ œ œ œœ œ œœ œœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œœ œ œ œ œ œ œ # œœ œ œ œ & b œœ œœ &b œœ œ œ # # œœ œœ & b œœœ œœœ 225 œœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ 222 &b œœ œ œœ œ œ œ œœ œ 219 &b œ œ > 15 œ œ œ œ œ œ œœ œœ œ œœ œ œ œ 202 203 ANEXO C – TRANSCRIÇÃO DA OBRA LUNDU (VIOLÃO DE 10 CORDAS) Afinação: 1º Fá 2º Dó 6º Ré 7º Lá aguda 8º Lá 9º Sol aguda 10º Fá Violão de 10 cordas Lundu Transcrito do disco Dança dos Escravos Egberto Gismonti Trasc. Juliano Camara q.= 78 I...................................................................................................................................... 6 & 8 .. œ . œ œ >œ b œ œ > œ >œ . œ bœ œ 1 2 4 6 & 8 .. b >œ 1 2 4 1 2 4 1 2 4 œ 1 2 4 .. b œ œ 1 2 4 œ 2 4 1 2 4 œ œ b œ >œ œ b œ > œ œ> bœ ! !! œ œ œ >œ b œ œ > œ >œ œ bœ œ .................................................................................................................... VI................................... œ bœ œ 4 2 b œ 2 1 bœ œ œ bœ œ œ œ b œ b œ1 b œ b œ œ œ œ œ bœ œ œ >b œ >b œ > b œ œ bœ œ bœ bœ bœ bœ œ œ œ9 b œ b œ b œ œ b œ b œ bœ œ œ bœ bœ bœ bœ œ 8 bœ bœ 1 2 4 4 & & b >œ 7 & & bœ 9 &8 œ 1 2 4 œ œ œ b œ >œ œ b œ > bœ > œ œ > > ! ! ! bœ œ œ bœ œ œ œ œ bœ 10 9 bœ &8 13 & & œ bœ œ œ bœ 2 « 1 2 4 4 2 4 1 2 4 9 1 2 4 " 6 œ œ œœ œ œ 8 œ œ œ œ œ bœ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ 6 œ œ œ œ8 œ œ bœ 2 « 1 " œ œ 98 œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ bœ " 204 Lundu 2 16 & bœ bœ œ U œ œ œœ œ œ bœ œ œ œ œ bœ bœ œ œ œ nœ #œ nœ nœ bœ " & bœ œ œœ œ œ œ bœ bœ œ œ œ b œ b œb œ œœ œ œ œ b œb œ b œ b œ œ œ œ b œ b œ b œ œ bœ œ œ & œ œ œb œ b œ œ œb œ b œ œ œ œ œ b œ b œ b œ b œ bœ œ œbœ œ œ bœ œ bœ œ œ bœ œ œ œ b œ " b œ " " b œ & bœ œ œ bœ œ œ 9 19 24 & bœ bœ bœ bœ bœ bœ bœ bœ œ & bœ œ & 68 œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ 26 & 68 œ œ œ œ 98 98 b œ bœ œ œ œ 68 œ bœ œ œ œ œ œ 6 œ œ œ 8 œ œ bœ œ bœ œ bœ bœ œ œ œ 98 œ œ œ œ b œ b œ 68 œ œ bœ œ bœ œ œ 9 œ œ œ œ œ œ8 68 205 Lundu 3 XIII.................................................................................................................. & 68 .. 29 # œ1 # œ 3 œ4 4 3 œ 4 4 œ1 œ # œ1 # œ3 œ œ1 œ3 œ 1 # œ3 œ4 œ œ œ # œ œ œ # œ # œ œ #œ œ œ .. #œ 9 & 68 .. " .. " œ3 b œ4 œ1 œ3 œ4 œ3 b œ4 œ3 œ4 1 3 œ b œ4 œ œ œ œ bœ . 1 1 œ œ œ . œ œ 1 b œ . œ . & œ œ œ œ V.................................................................................................................... 31 & .. " .. 9 " rall... œb œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œUœ œ œ œb œ œ œ œ b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œœ œ œœ 6 .. .. .. 8 œ & .. 33 & .. .. .. " .. 68 " " " œ. œ œ bœ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œœ œœ œœ œœ œ œ œ œ œ 0 œ 0 & ‰ J ‰. œ œ œ œœ œ œ œ0 œ œ œ œ œ ‰ J R 37 & " " " œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ. & œ œ. œ œ œ. œ œ œ œ œ œ œ. œ œ œœ œ 40 & " " " 206 Lundu 4 œ œ œ bœ œœ œœ œ œ œœ œ œ b œ œ œœ œœ œ œ œ œ & œœ œœ œ . œ. œ œ œ œœ œœ œ . 43 " & " œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œœ œœ & œœœ œ . œ œ œ. 46 & " œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ b œœ œœ œ œ œ œœ œœ œ . œœ œœ œ œ œ " œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œœ œœ œœ œœ œœ œœ œœ 68 œ œ œ. œ œ œ. œ œ œ. œ œ œ. œ J 68 " " > > b œ œ b œ œ 6 & 8 .. b œ b œ œ œ œ œ œ œ .. .. b œ b œ œ œ œ œ œ œ .. œ œ œ œ > > 6 .. .. .. & 8 .. V................................................................................................................................................. 1 49 & .. 52 & .. 2 4 1 3 4 .. .. œ & .. œ #œ 4 1 2 4 bœ œ 1 2 4 1 2 4 .. b œ œ >œ œ .. œ > bœ œ> > > œ nœ œ bœ bœ œ b œ œ œ bœ bœ œ b œ œ b œ œ œ œ .. bœ bœ bœ œ bœ #œ œ œ bœ bœ œ œ œ bœ œ œ œ œ > > .. œ œ œœ. . bœ œ œ . . œ . # œ b œ . œ œ . . & œ #œ œ œ . . bœ œ œ œ n œ œ œ œ 55 1 2 1 2 4 1 3 1 2 4 4 " .. .. 1 3 4 " 1 .. .. # œ 2 #œ #œ 4 1 2 4 œ . œ. 1 2 4 1 2 4 œ œ œ œ . " #œ œ œ . 207 Lundu 5 3 1 2 4 1 œ œ œ œ & .. œ # œ # œ œ œ œ .. .. œ œ # œ œ œ œ œ œ .. nœ œ œ œ œ œ .. .. .. " " & .. 4 58 V.............................................. .. 1 .. n œ 2 #œ #œ 4 1 2 4 œ .. 2 4 1 2 4 œ œ" œ œ œ .. œ œ œ 1 IX................................................................................................. œ œ œ .. .. œ œ œ .. œ œœ œ œ œ # œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ bœ bœ œ œ œ œ bœ bœ œ œ .. .. .. b œ " " " & .. & .. 61 U b œ b œ b œœ b œ b œ 64 bœ bœ bœ nœ b œ 68 .. & bœ bœ ....................................................... 67 & & œ œœ œ œ " œ. bœ œ œ œ œ œ œ & œ œ. œ œ œ. " .. .. œ œ œ bœ œ. bœ œ œ œ œ œ œœœ œ œ 70 & 68 .. " & bœ œ œ . . œ .. . " œ œ œœ . œ œ b œ œ œ œ œ œ œ. œ ‰ " 4x bœ œ œ bœ œ œ bœ. ! œ. œ œ bœ œ œ œ œ0 œ œ0 œ0 ‰ " œ. bœ œ œ œ œ œ œ œ œ . œ œ œ. " .. .. 208 Lundu 6 œ. œ œ bœ œ œ œ œ. bœ œ œ & œ œ. œ œœ œ œ œ. 73 " & œ œœ œ " œ œ œœ œ œ. œ œ œ œ bœ œœœ œœœ œœ œ œ œ œœ œœ œ . œœ œœ œ . " œ bœ œ œ œœ œœ œ œ œœ 6 . bœ œ œ œ & œœ œ . œœ œœ œ . œœ 8 . b œ b œ œ œ œ œ œ œ .. .. # œ œ œ œ œ œœ œ œœ 76 " & 6 .. 8 .. .. œ " œ œ bœ œ & .. b œ b œ œ œ œ œ œ œ .. .. œ œ # œ # œ œ œ œ œ .. .. nœ œ œ œ 79 & .. .. .. # œ .. .. #œ bœ œ .. b œ " œ œ œ .. bœ œ œ #œ œ . œ. œ œ œ œ . #œ œ œ . U œ œ œ œ œ œ œ œ œ # œ # œ œ œ œ .. .. œ n œ n œ œ n œ n œ .. œ œ œ œ œ nœ œ bœ œ bœ œ nœ #œ œ nœ bœ .. .. .. " " " & .. & .. 82 & .. 85 & .. b œ œ œ .. œ œ œ œ œ bœ bœ œ œ .. b œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ bœ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ bœ bœ œ œ " 209 Lundu 9 88 & & bœ œ œ & .. 94 & œ œ "bœ œ œ bœ œ œ bœ 91 bœ & .. œ bœ œ bœ b œ bœ " 1. œ œ bœ œ œ œ œ bœ bœ b œ bœ œ bœ 96 6 œ &8 & 68 .. 99 & 68 .. œ # œ3 œ4 1 œ3 œ4 # œ3 œ4 œ3 œ4 # œ œ # œ1 œ1 1 2. .. b œ œ œ 98 bœ bœ bœ œ 6 œ œ œœ œ œ &8 œ œ œ œ œ bœ œ " œ œ œ œ b œ b œ œ œ .. bœ bœ œ 98 b œ & bœ œ œ œ bœ œ b œ bœ œ bœ bœ œ bœ œ 68 œ œ bœ œ œ œ œ œ 6 œ œ œ 8 œ œ bœ œ bœ œ bœ bœ œ œ 9 œ œ œ bœœ bœ 6 8 œ œ œ 8 bœ œ bœ œ œ 9 œ œ œ œ œ œ8 6 8 # œ3 œ4 œ œ œ# œ œ œ # œ# œ œ œ1 œ b œ œ1 œ œ 1 œ3 b œ4 1 œ3 œ4 #œ œ #œ œ .. .. œ œ 3 4 3 4 1 9 " 7 bœ œ b œ b œ œ bœ bœ œ bœ œ œ œ b œ b œ œ œ œ bœ œ bœ œ bœ œ bœ œ bœ " .. .. " 210 Lundu rall... U bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ 102 b œ 4 œ 3 bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œœ œœ .. .. .. & œ1 œ œ œ b œ œ œ .. .. 8 " & a tempo 105 & & bœ 107 & & bœ œ œ 3 &4 110 bœ & Œ bœ œ œ bœ bœ b œ b œ b œ œ b œ b œb œ b œ n œ œ œ œ œ œb œ œ b œ b œ œ bœ œ œ œ œ œ b œ œ œ œb œ . 3 &4 113 .. .. " œ œ œ bœ œ œ œ bœ œ Improviso q = 63 & .. .. 9 œœ œ 4 4 bœ œ 4 Œ 4 " 6 œœ 6 œŒ œœ œ œ œŒ ! 6 œ bœ bUœ 68 .. œ œŒ œœ œ# œ œ œ 6 œŒ ! œ œ 68 .. .. " bœ œ œ œ Lento bœ œ œ œ œ œ œ œ .. 43 . 3 œ .. 4 ! œ œ œ œ œ œb œ œb œ œ œ œ œ œ œ ! 3 " b œ œ œ b œ œ œ œb œ œ œ œ œ œb œ œ b œ œœ 34 œ# œb œ œœ œ œ 44 œ œ ! 43 " " 44 211 Lundu 4 &4 116 4 &4 119 & & 122 & & 125 & & bœ œœ 6 bœ œ œ œ bœ ! #œ ‹œ œ. #œ œ 4 4 " œ œ œ œ œ. 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Reis. 153 Composição de Jan Garbarek. Feliz Ano Novo Acompanhador As Primaveras Acompanhador Cristiana Câmara Palácio de Pinturas Câmara Raga Solista Café Câmara Dança Solitária Nº2 Solista Saudações Acompanhador Nó Caipira Câmara Selva Amazônica Solista Selva Amazônica Solista Salvador Solista Em Família Câmara Dança dos Pés Câmara Eterna Câmara De Repente Solista Cavaquinho Solista 12 de Fevereiro Solista Carta de Amor Solista Karatê Câmara Cego Aderaldo Câmara Mágico Câmara Ciranda Câmara Bailarina152 Câmara Mágico Câmara Spor153 Câmara Em Família Câmara Choro Câmara Auto-Retrato Acompanhador Branquinho/Passarinho Acompanhador 216 11/06/81 (Feito em Acompanhador Casa) Folk Songs Fantasia 1981 1982 Folk Song154 Câmara Cego Aderaldo Câmara Velen155 Câmara Dois Violões Câmara Para John e Paco Câmara Cidade Coração 1983 Carta de Amor Câmara Duas Vozes156 1984 Aquarela do Brasil157 Câmara Rio de Janeiro Câmara Dançando Solista Fogueira Solista Bianca Solista 1984 - - Trem Caipira 1985 - - Alma 1986 - - Feixe de Luz 1988 - - O Pagador de 1988 - - 1989 Valsa de Francisca I Câmara Mutação Solista Dois Violões Câmara Lundu Solista O Trenzinho do Caipira Solista Egberto Gismonti – Bandeira do Brasil158 Promessas159 Kuarup Dança dos Escravos 1989 (de Bachianas Brasileiras Nº2)160 154 Adaptação de Jan Garbarek. 155 Composição de Jan Garbarek. 156 Neste disco Egberto também grava com a Dilruba, instrumento semelhante a Cítara. 157 Obra de Ary Barroso. 158 Neste disco não há a presença do violão, porém Gismonti gravou cítara e dilruba. 159 Trilha sonora da minissérie homônima ao disco apresentada pela Rede Globo. 217 Infância 1991 Alegrinho Solista Dança dos Escravos Solista Salvador Solista Memória e Fado Solista Dança dos Escravos Solista com acompanhamento de violoncelo e contrabaixo Dança Nº1 Solista com acompanhamento de violoncelo e contrabaixo Dança Nº2 Solista com acompanhamento de violoncelo e contrabaixo Amazônia Forró Na Beira Da Mata Câmara Ciranda no Céu Câmara Ao Redor Da Fogueira Câmara 1992 - - El Viaje161 1992 - - Música de 1993 Carmen Câmara Bianca Câmara Lundu #2 Câmara Alegrinho #2 Câmara Zig Zag Câmara Mestiço e Caboclo Câmara Carta de Amor Câmara Orixás Câmara Casa das 1991 Andorinhas Sobrevivência Zig Zag 1996 160 Obra de Heitor Villa-Lobos 161 Este disco contém a trilha sonora do filme argentino homônimo, dirigido por Fernando E. Solanas. O disco também contém obras de A. Piazzolla e do próprio diretor do filme. 218 Meeting Point 1997 - - Egberto Gismonti 2001 Salvador Câmara e Charlie Haden at First Song162 Câmara Montreal festival Em Família Câmara 2009 - - 2009 Lundu Câmara (Dueto de Mestiço e Caboclo Câmara Violões) Dois Violões Câmara Dança dos Escravos Câmara Zig Zag Câmara Carmen Câmara Águas e Dança Câmara Saudações Solista Carta de Amor Câmara La Pasionaria164 Câmara Cego Aderaldo Câmara Folk Song165 Câmara Spor166 Câmara Branquinho Câmara Two Folk Songs167 Câmara Carta de Amor, var. Câmara Saudações – CD 1 (Sertões Veredas – Tributo à Miscigenação) Saudações – CD 2 Mágico – Carta de 2012 Amor163 162 Obra de Charlie Haden. Embora tenha sido lançado em 2012 este disco foi gravado ao vivo em 1981. de Charlie Haden. 165 Adaptação de Jan Garbarek. 166 Composição de Jan Garbarek. 167 Adaptação de Jan Garbarek. 163 164 Obra