os pronomes possessivos: da tradição gramatical ao uso

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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação
Múltiplos Olhares
05, 06 e 07 de junho de 2013
ISSN: 1981-8211
OS PRONOMES POSSESSIVOS: DA TRADIÇÃO GRAMATICAL AO USO
Priscilla Teixeira MAMUS (UEM/UTFPR)1
Introdução
O estudo dos componentes linguísticos pertencentes a diversas classes gramaticais
mostram a diversidade de tratamento que têm nas gramáticas e teorias linguísticas. Apesar
dessa variedade, o ensino da língua materna tem privilegiado as concepções das gramáticas
tradicionais nas escolas, deixando de lado aspectos relevantes apontados pelo uso da língua.
O objetivo deste artigo, portanto, é verificar como os pronomes possessivos são
abordados em um livro didático - utilizado em uma universidade federal que oferta curso de
nível técnico integrado ao ensino médio, em uma gramática descritiva do português atual
em sua forma culta, representando a tradição gramatical e, posteriormente, na gramática
funcional de Castilho (2010) e no texto sobre os possessivos de Neves (2008). Além dessa
análise mostrar melhor o funcionamento dos possessivos no português brasileiro (PB),
poderá servir de apoio para o ensino da classe dos pronomes.
Os exemplos apresentados no livro didático e na gramática tradicional são originais
dessas obras. Nos dois seguintes, as características apontadas pelos autores foram
exemplificadas a partir do corpus composto por elocuções formais e entrevistas orais (cujos
informantes são professores de Maringá, PR), que fazem parte do Grupo de pesquisas
FUNCPAR, com o objetivo de comprovar os dados apresentados a respeito dos pronomes
possessivos a partir da análise da língua em situação real de uso. O presente trabalho
integra um projeto maior que investiga o funcionamento das diferentes classes de palavras
na língua em uso, realizado no âmbito do Grupo de Pesquisas Funcionalistas do
Norte/Noroeste do Paraná, o FUNCPAR.
1
Doutoranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual de Maringá e servidora na Universidade
Tecnológica Federal do Paraná.
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1. Os pronomes possessivos no livro didático Português: contexto, interlocução e
sentido (ABAURRE; ABAURRE & PONTARA, 2008).
O livro é dividido em Literatura, Gramática e Produção de texto. O item Gramática
é subdividido em duas unidades: Classes de Palavras e Sintaxe. Os Pronomes encontram-se
nas Classes de Palavras, onde são assim definidos:
Pronome é a palavra variável que identifica, na língua, os participantes da
interlocução (1ª e 2ª pessoas discursivas) e os seres, eventos ou situações
aos quais o discurso faz referência (3ª pessoa discursiva). Dada a sua
função referencial, os pronomes são importantes elementos para o
estabelecimento da coesão textual. (ABAURRE; ABAURRE &
PONTARA, 2008, p. 344).
Ao tratar da função dos pronomes do enunciado, os pronomes são classificados
como substantivos, quando ocupam o lugar deles, ou adjetivos, quando acompanham os
substantivos, “acompanhando-os ou seguindo-os, de forma a explicar a relação dos seres
referidos pelos substantivos com as pessoas do discurso” (p. 344). Em seguida, o livro trás
o exemplo “O meu foi almoçar”, no qual o pronome possessivo refere-se ao gerente do
personagem da tira, e é classificado como substantivo por estar no lugar de gerente.
A partir daí, inicia-se e explanação dos tipos de pronomes: pessoais, possessivos,
demonstrativos, indefinidos, relativos e interrogativos. Os pronomes de tratamento estão
inseridos como subitem dos pronomes pessoais.
No livro didático, a definição dos pronomes possessivos é a de que são “aqueles que
fazem referência às pessoas do discurso indicando uma relação de posse” (p. 351). São
apresentados no quadro a seguir:
Um possuidor
Vários possuidores
Um objeto
Vários objetos
Um objeto
Vários objetos
Meu
Meus
Nosso
Nossos
Minha
Minhas
Nossa
Nossas
2ª pessoa masc
Teu
Teus
Vosso
Vossos
Fem
Tua
Tuas
Vossa
Vossas
3ª pessoa masc
Seu
Seus
Seu
Seus
Fem
Sua
Suas
Sua
Suas
1ª pessoa masc
Fem
Quadro 1: Formas dos Pronomes Possessivos (p. 352)
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Quanto ao emprego desses pronomes, aparecem antes do substantivo que
determinam, na maioria das ocorrências. Se colocado depois, pode produzir efeito
diferente, como no exemplo trazido no livro didático: ‘Meu filho não anda de moto’ e
‘Filho meu não anda de moto’. No segundo caso, o possessivo colocado posteriormente ao
substantivo mostra que o falante não admite que um filho seu ande de moto, e esse falante
pode ou não ter esse filho. Em construções do tipo ‘Ele beijou-me as mãos muito
respeitosamente’ e ‘Comprei-te o carro’ vê-se pronomes oblíquos com valor de
possessivos. O livro não faz maiores explicações sobre essas construções.
Em seguida são apresentadas as funções sintáticas dos possessivos, primeiramente
com seu valor de pronome adjetivo, quando acompanha o substantivo. Dessa forma, são
analisados, sintaticamente, como adjuntos adnominais. Se ocorrem como núcleo do
sintagma nominal, passam a pronomes substantivos, os quais podem funcionar como
Sujeito (As minhas são estas!), Predicativo do Sujeito (Estas compras são minhas),
Vocativo (Ô meu, vê se não perturba!), Objeto Direto (Por falar em ingressos, Paulo só
conseguir comprar o teu), Objeto Indireto (De todos os quadros que vi, gostei mais do teu),
Complemente Nominal (Quanto ao livro, não tenho mais necessidade do teu), Adjunto
Adverbial (Pinte aquela parede com o seu pincel, que eu pinto esta com o meu) e Agente da
Passiva (Meu cachorrinho foi mordido pelo seu).
Após os apontamentos, são apresentadas as atividades para que os alunos apliquem
o conteúdo aprendido. Todas as atividades que envolvem pronomes apresentam uma tira e
pedem para que o aluno identifique e transcreva o pronome e, em seguida, fazem uma
pergunta interpretativa, de modo que o aluno deve observar como o pronome contribui com
tal interpretação. As perguntas são, portanto, mais interpretativas, e não incitam à reflexão
sobre as funções dos pronomes nas construções. Além disso, o único gênero analisado foi a
tira.
2. Os
pronomes
possessivos
conforme
a
Contemporâneo (CUNHA & CINTRA, 2001).
Nova
Gramática
do
Português
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Conforme a gramática, os pronomes possessivos têm estreita relação com os
pronomes pessoais, pois indicam algo determinado pelas pessoas gramaticais. No caso,
indicam o que lhes cabe ou pertence. Logo os pronomes pessoais (eu, tu, ele, nós, vós, eles)
têm seus correspondentes possessivos (meu, teu, seu, nosso, vosso, seu). Essas formas
podem variar conforme o gênero e o número da “coisa possuída” e da pessoa que possui.
O quadro dos pronomes possessivos apresentado no livro didático é exatamente
igual ao da gramática. Embora o livro não faça a citação no momento em que apresenta o
quadro, a gramática aparece nas referências bibliográficas. Isto é, é bem possível que os
autores do livro tiveram como fonte de pesquisa essa gramática em análise.
Quanto ao emprego desses pronomes, podem funcionar como pronome adjetivo ou
pronome substantivo. No primeiro caso, a gramática diz que equivalem a um adjunto
adnominal antecedido da preposição de (de mim, de nós, de si). Nos dois casos,
“acrescentam à noção de pessoa gramatical uma ideia de posse” (p. 319). O exemplo
trazido é ‘Meu livro é este.’ ‘Este livro é o meu.’ ‘Sempre com suas histórias!’ ‘Fazer das
suas’. Sem maiores explanações, segue-se para a concordância dos possessivos.
Conforme Cunha & Cintra (2001), os possessivos concordam em gênero e número
“com o substantivo que designa o objeto possuído; e, em pessoa, com o possuidor do objeto
em causa” (p. 319). Se houver mais de um substantivo para determinar, concorda com o
mais próximo: ‘E o meu corpo, minh’alma e coração.’
Sobre a posição dos pronomes possessivos, especificamente com função de
pronome adjetivo, os gramáticos afirmam que, na maioria das vezes, eles precedem o
substantivo. Podem, no entanto, vir pospostos quando o substantivo não é acompanhado de
artigo definido (Esperava notícias tuas); quando o substantivo está acompanhado por
artigo indefinido, numeral, pronomes demonstrativo ou indefinido (Note este erro seu);
quando é feita uma interrogação direta (Agora ouve-se menos ou é impressão minha?);
quando há ênfase (Tu és digna filha minha!). Para finalizar a questão da posição dos
pronomes adjetivos possessivos, os gramáticos salientam que o uso alternado na colocação
deles pode causar diferentes efeitos de estilo (És meu único desejo, Ah! Fosse o desejo
teu!). Nota-se o uso de exemplos, em sua maioria, retirados de obras literárias.
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Em seguida, passam a tratar do emprego ambíguo do possessivo de 3ª pessoa. Os
pronomes seu, sua, seus e suas podem ser usados para referirem-se a 3ª pessoa do singular
ou do plural, para masculino o feminino. Além disso, concordam com o substantivo
“denotador do objeto possuído” e, por isso, podem gerar dúvida com relação a quem
possui. Exemplo: ‘Em casual encontro com Júlia, Pedro fez comentários sobre os seus
exames.’ Nesse exemplo trazido pela gramática em análise, há ambiguidade com relação se
os comentários de Pedro foram sobre os exames dele ou de Júlia, ou ainda de ambos. Para
evitar, então, essa ambiguidade, existem as formas dele(s), dela(s), de você(s), do senhor(a)
etc.
Existem também outros recursos para dar ênfase e reforçar o valor possessivo, como
a palavra próprio ou mesmo (Que eu ache vida em tua própria morte) e as formas dele e
dela para 3ª pessoa (Montaigne explica pelo seu modo dele a variedade deste livro).
Os possessivos podem não exprimir “relação de posse ou pertinência, real ou
figurada” (p. 323). Na “língua moderna”, segunda Cunha & Cintra (2001), podem assumir
outros valores, a saber: indefinido (Tenho tido os meus vícios); indicando aproximação
numérica (Tinha eu meus vinte anos / Entrou uma mulherzinha de seus quarentas anos);
designando um hábito (Nos nossos dias, a bailarina chegava logo depois do almoço / Era
lindo o bicho, com sua calma de passarinho manso). São salientados, também, valores
afetivos dos possessivos, assim subdivididos:
1. Acentuam um sentimento: de respeito e polidez (Quer alguma coisa, minha
senhora? / Não é assim, meus respeitáveis senhores?); de intimidade e amizade
(Hoje, meu caro Antonio, temos de festejar / Dispõe de mim, meu velho, estou às
suas ordens); de simpatia, interesse – com referência a personagens, autor, clubes
(Não sei para onde vou mandar o meu herói / Isto feito, meteu-se na cama, rezou
uma ode do seu Horácio e fechou os olhos); de ironia, malícia, sarcasmo (Todos
aqueles santo varões comiam, bebiam o seu vinho do Porto na copa / Na mesa do
major jantei o meu frango, comi a minha boa posta de robalo, trabalho que
afundou em mais de duas horas).
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2. Acentuam afetividade a partir da expressão fazer uma das, ação passível de crítica
(Com aquele gênio esquentado é capaz de fazer uma das dele / Você andou por aí
fazendo das suas).
Os pronomes pessoais nós e vós são empregados, por vezes, como plural de
modéstia e majestade de forma cerimoniosa. Quando assim forem empregados, seus
correlativos possessivos também o são: ‘Este livro nada mais pretende ser do que um
pequeno ensaio. Foi nosso escopo encontrar apoio na história do Brasil.’ ‘Nunca vosso avô,
meu senhor e marido, achou que me não fosse possível compreender o ânimo dum grande
português.’
O uso dos pronomes possessivos acompanhados de formas cerimoniosas de
tratamento (Vossa Excelência, Sua alteza) é explicado na parte que trata dos pronomes
pessoais.
A gramática trás outras características dos possessivos substantivados, que podem
designar o que pertence a uma pessoa, no singular, e os parentes, compatriotas,
companheiros, no plural. Exemplo do primeiro caso: ‘A rapariga não tinha um minuto de
seu’, ‘ Eu não tenho de meu um momento.’ No segundo caso, tem-se: ‘Saudades a todos os
teus’, ‘Peço que transmitas, em nome de todos os meus, sinceros agradecimentos.’
Antes de encerrar a parte dos pronomes possessivos, a gramática trás o seu emprego
pelo pronome oblíquo tônico. Explica que o substantivo pode vir acompanhado de um
complemento nominal formado por preposição e pronome oblíquo tônico (locução
prepositiva) e que esse complemento é, normalmente, substituído por um pronome
possessivo: Em frente de ti = Em tua frente / Por causa de você = Por sua causa.
3.
A concepção dos pronomes possessivos pela Nova Gramática do Português
Brasileiro (CASTILHO, 2010).
Castilho inicia o tópico “Os possessivos” retomando a definição tradicional dada a
esses pronomes: estabelecer relação entre um possuidor e uma coisa possuída. A partir daí,
apresenta sete exemplos nos quais destaca os possessivos e indica os participantes
(possuidores e possuídos). Em seguida, explica as três lições que podem ser depreendidas
do quadro.
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Lição 1: em alguns exemplos, como
(1)
ah:: que bom as famílias agora podem permanecer com seus filhos
o participante/possuído é humano. Assim, não é possível haver uma relação de posse; não é
adequado o traço de posse entre dois participantes humanos, como é visto na tradição
gramatical. Outro fator a ser observado é que o participante/possuído, além de poder ser
coisa ou pessoa, sempre fará parte da 3ª pessoa.
Lição 2: diferente do participante/possuído, o participante/possuidor pode estar em
qualquer uma das pessoas gramaticais. Estudos sobre a reorganização no quadro dos
pronomes pessoais do PB apontam para o desuso das formas da 2ª pessoa (tu e vós) na
maior parte do país. Castilho (2010, p. 502) cita a pesquisa feita por Perini (1985), o qual
observou a omissão de tu e vós na região central do Brasil e a entrada de você(s) na 2ª
pessoa. Dessa forma, o uso dos possessivos também se ajustou: para 1ª pessoa,
meu/nosso(s); para 2ª pessoa, seu/sua(s); para 3ª pessoa, dele/dela(s). Houve, então, o
deslocamento da forma seu/sua(s) para 2ª pessoa e a inclusão da forma dele/dela(s) na 3ª
pessoa. No corpus dessa pesquisa, não foram encontradas ocorrências de tu, e os
possessivos seu e teu foram usados pelos falantes alternadamente, para 2ª e 3ª pessoas.
Lição 3: a forma dele/dela(s), ao contrário do que acontece com as de 1ª e 2ª
pessoas, concorda com o substantivo que designa o referente possuidor
(2)
.. um cientista, .. ele era astrônomo, .. éh:: ... matemático, .. ele tinha várias formações...
combinou-se todos esses .. conhecimentos dele.
Ela favorece à solução da ambiguidade que seu/sua podem causar em construções
como: ‘Ô João, você sabia que seu filho Antonio perdeu seu carro?’ Para que não haja a
dúvida se o carro pertence a João ou a Antonio, a construção fica: ‘Ô João, você sabia que
seu filho Antonio perdeu o carro dele?’
Sobre a substituição de seu por dele, Castilho cita a pesquisa de Oliveira e Silva
(1996), os quais observaram “que o possuidor com o traço /genérico/ constitui-se num fator
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categórico para o uso da forma seu, como em ‘Todos vão para seus lugares’, em contraste
com um possuidor /específico/ que seleciona dele: ‘João vai para o lugar dele.’
Ao finalizar esse subitem , o autor afirma que os possessivos são uma classe, em sua
maioria, dêitica, e que a definição tradicional de que estabelecem relação de posse entre
dois termos (possuidor e possuído) é inadequada, pois só se enquadra em poucas
ocorrências. A relação estabelecida pelos possessivos é entre um referente e as pessoas do
discurso. Castilho trata, em seguida, das propriedades dos pronomes possessivos, que são:
gramaticais, semânticas e discursivas.
A primeira propriedade gramatical apontada pelo autor é a atuação dos possessivos
como constituintes Especificadores do sintagma nominal. Dentro do sintagma, sua posição
pode variar entre antes e após o núcleo, nesta última condição com caráter enfático. A
gramática normativa, como vimos, trata dessa propriedade de acompanhar o sintagma
nominal como pronome adjetivo. Castilho salienta que a variação na colocação do pronome
aparece apenas nas formas da 1ª e 2ª pessoas, pois dele é categoricamente posposto.
Sobre a propriedade semântica, Castilho explica que
Os sintagmas nominais especificados por possessivo se constituem numa
realidade semanticamente complexa, em que o substantivo remete a um
referente, privativamente da P3, ao qual atribui o papel semântico de
/possuído/, enquanto o possessivo remete a qualquer uma das pessoas
gramaticais, atribuindo-lhe o traço de /possuidor/. Isso quer dizer que o
possessivo é um operador dêitico que seleciona dois escopos, sendo uma
textual, referencial, e outro contextual, que são as pessoas do discurso. Os
dois processos semânticos são simultâneos. Atuando como um fórico, os
possessivos contribuem para a coesão do texto, assinalando a
continuidade do tópico conversacional. (CASTILHO, p. 504)
A contribuição que os pronomes possessivos dão à coesão textual diz respeito a sua
propriedade discursiva.
4.
Os Pronomes Possessivos (NEVES, 2008).
Para Neves, existem construções com pronomes possessivos em que não há relação
de posse, necessariamente. No excerto (1), retirado do corpus, o pronome indica que é o
livro que Lamarck escreveu, e não que é um livro que ele possui. Logo, o uso de um
pronome possessivo, por si só, não garante a indicação dessa relação entre um possuidor e a
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coisa possuída. Além disso, “toda relação possessiva se dá entre pessoas do discurso” (p.
564).
(3)
.. tem a foto de Lamarck aí, .. ele publicou em 1809 .. tá pessoal .. o seu livro que dizia a
filosofia zoológica
A natureza fórica dos possessivos faz que os elementos possuidores sejam
recuperados na situação da enunciação, dependendo do contexto e dos participantes do
discurso. Podem ser recuperados por anáforas e catáforas e por elementos fora do texto
(exofóricos). No exemplo (4), o referente do pronome seu é recuperado fora do texto, na
interlocução, já que faz parte de uma entrevista
(4)
.. você acha fácil colocar o seu texto formatar o seu texto dentro desse padrã::o,
.. você teve alguma dificulda::de, .. o que você acha desse padrã::o?
Conforme a autora, a relação possessiva se exprime de diversas formas. Como já foi
dito, tal relação ocorre entre o núcleo de um sintagma nominal e outra pessoa do discurso.
No exemplo trazido por Neves (p. 566), observam-se três possibilidades de “expressão da
referenciação à pessoa de um ‘possuidor’: este ponto de vista foi alcançado através de
reflexões comuns... não apenas minha e dele... mas minha dele dos alunos dos demais
profissionais que conosco trabalham.” O elemento possuído é o substantivo reflexões, e o
possuidor pode ser expressado por preposição + substantivo (dos alunos, dos demais
profissionais), por preposição + pronome pessoal (dele) e por pronome adjetivo possessivo
(minha), situações representadas nos exemplos (5), (6) e (7). Neves salienta que não é em
todo caso que essas diferentes formas de expressar possessividade são intercambiáveis.
(5)
a pergunta assim .. que seria .. a visão .. éh:: teocentrista dos portugueses.
(6)
.. porque o semi-condutor/ .. não tem nenhuma fotinha dele aí não, .. ou tem?
(7)
.. como diz meu irmão, .. eu sou um pioramento genético.
Outra forma de exprimir posse é pela utilização do termo próprio e suas flexões. A
relação de posse expressa por ele pode ocorrer junto de um pronome possessivo
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(8)
.. que que é um organismo autotrófico? ... aque::le que produz o seu próprio alimento.
nesse caso reforçando a indicação de posse. O termo, porém, não indica a pessoa do
possuidor por si só. Se aparecer posposto, como na construção
(9)
.. sabe de uma coisa de legislar em causa própria,
não é possível identificar o possuidor da causa. A colocação do pronome possessivo pode
variar o efeito de sentido na construção.
No corpus da autora, foi identificada maior frequência do pronome seu no registro
culto, apesar de tratar-se de língua falada. Dele apareceu mais em inquéritos mais
conversacionais e menos formais. Foi identificado, também, que quando o possuidor é
+humano, utilizou-se pronome de 3ª pessoa, preferencialmente, a forma dele, já que
explicita mais o gênero e o número do participante/possuidor, se comparada com o
pronome possessivo seu. No corpus deste artigo, teu(a) foi pouco encontrado tanto nas
aulas quanto nas entrevistas, seu(a) teve ocorrência parecida e dele(a) foi mais encontrado
na fala dos professores que dos entrevistados.
O uso de dele, em alguns casos, pode ocorrer sem indicar posse. Em (10), em cima
dele significa sobre ele:
(10)
a minha tese está sendo toda em cima dele.
Também pode ser encontrado em expressões fixas como ‘o sujeito vive na dele;’
‘fica na sua’. Quando o termo possuído é neutro, ou seja, não indica gênero, há preferência
pelo pronome seu:
(11)
.. então deu cem pra cada um, .. então cada um vai ficar com o seu.
Dele e seu, portanto, são formas de expressar relação de posse referente à 3ª pessoa.
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Sobre as formas de expressão possessiva em referência à 2ª pessoa, o corpus da
pesquisa de Neves, como o corpus desse artigo, indicou baixa frenquência de teu=de ti. O
pronome seu foi utilizado em referência a você enquanto 2ª pessoa, concorrendo com de
você e, por vezes, operando referência generalizada:
(12)
.. vai lá na casa da sua ti::a, .. ai que li::nda essa orquídea, .. eu vou levar pra plantar em
casa, .. aí pega um raminho da orquídea, .. vai lá na sua casa, .. e planta a orquídea. .. que que você
fez? ... você não reporduziu?
Em referência à 1ª pessoa, a expressão possessiva é feita por meu, nosso e suas
flexões, e também pela forma da gente:
(13) ... éh a tendên::cia da gente/ .. acho que sobretudo nas ciências humanas é:: é no início
rebelar .. contra toda e qualquer tipo de padronização né,
se
Vale ressaltar que o emprego de nosso ocorre representando não só a pessoa que
fala mais as demais; pode incluir outras pessoas de diferentes formas. No exemplo seguinte,
o professor falava do brasileiro e referiu-se a ele com o pronome nosso, ou seja, como é
brasileiro, bem como seus ouvintes, na hora de fazer a relação de posse incluiu todos:
(14) ... o brasileiro é bo::m DEMAIS.. é bom DEMAIS”... por que todo mundo GOSta ta::nto do
brasileiro? .. admira o brasileiro?.. pelo simples fato, .. olham o nosso salário mínimo... quanto que
é o salário mínimo?
Os possessivos do PB podem co-ocorrer, em um mesmo sintagma, com outros
determinantes:
(15) “peraí ... esse é o nosso público alvo”,
(16) .. QUAL será a nossa referência bibliográfica?
Sobre a colocação do pronome possessivo no sintagma nominal com adjetivo, é
encontrado anteposto e posposto as substantivo. Se anteposto, o adjetivo aparece
imediatamente antes ou depois do substantivo, e há artigo definido apenas antes do
possessivo:
(17) .. a durabilidade da preparação,
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.. e a sua boa aparência .. vão depender .. de uma formulação adequadamente preparada,
Se posposto, o adjetivo aparece adjacente ao substantivo e precedido de artigo
indefinido (um grande amigo meu). Com artigo definido o adjetivo ficou ao lado do
possessivo (era o esporte predileto nosso). No corpus em análise, foi verificado adjetivo
após o substantivo:
(18) .. QUAL será a nossa referência bibliográfica?
Com o indefinidor qualquer, o possessivo ficou entre substantivo e adjetivo
(qualquer negócio seu particular). A posposição do possessivo pode ser condicionada por
um substantivo abstrato:
(19) ... então esse que é a preocupação nossa .. né,
Em alguns casos, há uma preferência na ordem das posições dos elementos que
compõem um sintagma nominal com pronome possessivo. Um dos casos é quando o
pronome possessivo é antecedido por numeral cardinal e por qualquer (Eram três
escritores nossos / Qualquer atividade nossa vai ser relacionada com...).
Diferente do que a gramática tradicional apresenta, é limitado o emprego dos
possessivos com função substantiva. Há ocorrências em que o substantivo ao qual o
pronome faz relação de posse é retomado na própria construção. No exemplo (20), o
pronome sublinhado não tem função substantiva, pois ele não substitui um nome. A
recuperação de cem é feita na própria sentença.
(20) .. então deu cem pra cada um,
.. então cada um vai ficar com o seu.
(21) .. aí eles passam essa visão pra gente que a área deles é um::ito mais difícil que a nossa.
A análise dos sintagmas nominais com possessivos possibilita a verificação de seus
valores semânticos. Como já visto,
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Qualquer relação estabelecida entre os chamados possessivos e os substantivos
com os quais esses elementos constroem um sintagma nominal. A partir daí,
verificou-se que o chamado possuidor não necessariamente possui e que o
chamado possuído não necessariamente representa algo de que alguém tem posse
(NEVES, 2008, p. 607).
As relações semânticas entre possessivos e substantivos são:
1 – Posse:
(223 .. você acha fácil colocar o seu texto formatar o seu texto dentro desse padrã::o,
(22) .. nunca vou chamar você pra ir na minha casa,
Essa é a relação mais recorrente no uso dos possessivos, fato que pode ter determinado a
generalização da relação para todos os casos na tradição.
2 – Pertença: relação mais ampla que a de posse e bipessoal. Conforme Neves, toda
relação de posse indica pertença, mas nem toda pertença é posse.
(24) .. não tô tirando isso da minha cabeça, .. tá aqui (o possessivo remete ao todo).
(25) .. o seu público, .. como foi a recepção do texto, .. da da da::/ do artigo? (o possessivo remete
ao includente classe, grupo ou ambiente).
(26) .. essas características que foram .. desenvolvidas ao longo da vida/do .. tempo das pessoas .. (o
possessivo remete ao includente época ou fase)
(27) .. embora:: .. alguma igreja católica mesmo recentemente colocou no ... seu site que as espécies
evoluem sim... eles acreditam na origem da vida, (o possessivo remete ao includente = da igreja).
(28) .. tem a foto de Lamarck aí, .. ele publicou em 1809 .. tá pessoal .. o seu livro que dizia a
filosofia zoológica (execução, o livro que ele escreveu, relação de pertença).
Para concluir, Neves (p.614) aponta que, por sua relação bipessoal, o funcionamento
dos pronomes possessivos é complexo. Atuam na organização discursivo-textual por meio
de elementos exofóricos de 1ª e 2ª pessoas e pela anáfora com possessivos de 3ª pessoa. A
natureza argumental dos possessivos gera diferentes efeitos semânticos, ocasionando
descrições semânticas mais detalhadas e complexas que as feitas por gramáticas
tradicionais. Assim, “o nome da (sub)classe não pode ser entendido como orientador na
determinação das suas propriedades” (p. 615).
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Considerações finais
Ao dar início às análises do livro didático e da gramática tradicional, constataram-se
equivalências nos conceitos abordados por ambos. Inclusive o quadro dos pronomes
possessivos dos dois é o mesmo. Considerando a ordem de publicação das obras, é possível
que o livro didático tenha se ancorado na gramática de Cunha & Cintra (2001) para compor
sua exposição. Vale ressaltar que essa questão foi observada após o início da análise do
livro e da gramática.
Tal exposição foi feita de forma sintetizada e trouxe a definição dos possessivos
como os elementos que indicam relação de posse entre as pessoas do discurso, sem
considerar outras relações semânticas que eles podem fazer. A gramática tradicional trata
dessa relação como a coisa possuída e quem a possui, ou seja, também fala em posse.
Quanto a outros valores dos possessivos, a gramática afirma que os possessivos podem
assumir valores diferentes de posse e pertinência na “língua moderna”, e apresentam
exemplos sobre os valores de indefinição, aproximação numérica, valores afetivos que
acentuam sentimento, todos exemplos retirados de obras literárias. A propósito, a gramática
só usa exemplos de textos de autores da literatura, sem considerar as diferentes formas que
o uso da língua propicia aos seus constituintes. Já o livro didático usa somente o gênero
tira, e também não problematiza os diferentes usos dos pronomes possessivos.
Apesar da gramática tradicional apontar a ambiguidade do uso do pronome seu/sua,
não tratou do uso frequente desse possessivo tanto para 3ª quanto para 2ª pessoa,
importante variação analisada pelos funcionalistas. Além disso, reduziu a função da forma
dele (e flexões) a resolver o problema da ambiguidade supracitada. Como foi visto, a forma
tu não foi encontrada no corpus dessa pesquisa, e os possessivos seu e teu foram usados
pelos falantes alternadamente, para 2ª e 3ª pessoas.
Tanto o livro didático quanto a gramática tradicional apresentam as funções
sintáticas dos possessivos com seu valor de pronome adjetivo, quando acompanham o
substantivo (adjunto adnominal) e de pronome substantivo, quando ocorrem como núcleo
do sintagma nominal. Os exemplos são apresentados de forma a corroborar com as
explicações breves e sem problematização sobre a função de adjetivo e substantivo do
IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação
Múltiplos Olhares
05, 06 e 07 de junho de 2013
ISSN: 1981-8211
pronome. Diferente do que a gramática tradicional apresenta, Neves (2008) salienta que o
emprego dos pronomes possessivos com função substantiva é limitado, pois foram
comprovadas ocorrências em que o substantivo ao qual o pronome faz relação de posse é
retomado na própria construção.
As análises apresentadas por Castilho e Neves embasam os argumentos de que as
definições apresentadas pelo livro didático e pela gramática tradicional são simplistas e
estagnadas. Primeiramente, sobre a relação de posse propiciada pelos pronomes, Castilho
(2010) salienta que não é possível haver relação desse tipo entre dois substantivos que
representam seres humanos, por ser uma relação incoerente. Neves (2008) aponta que a
relação pode ser de pertença, o que não significa, necessariamente, posse, e ressalta que a
natureza argumental dos possessivos gera diferentes efeitos semânticos, ocasionando
descrições semânticas mais detalhadas e complexas que as feitas por gramáticas
tradicionais. Logo, falar em elementos possuidores e possuídos não é adequado, já que essa
relação só é encontrada em determinadas ocorrências.
A partir desse levantamento dos principais aspectos sobre os pronomes possessivos,
sobretudo aqueles que vão além da gramática tradicional, é possível observar que o ensino
desses pronomes deve considerar as múltiplas funções que eles têm nas situações reais de
uso, levando em conta sua função semântica de posse e pertença, apresentada por Neves, e
sua natureza fórica na organização discursivo-textual.
Referências
ABAURRE, M. L. M.; ABAURRE, M. B. M.; PONTARA, Marcela. Português: contexto,
interlocução e sentido. Ensino Médio, v2. São Paulo: Moderna, 2008.
CASTILHO, A. T. de. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto,
2010.
CUNHA, A. F. da & CINTRA, L. F. L. Nova Gramática do Português Contemporâneo.
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985 e 2001.
MOURA NEVES, M .H. Os pronomes. In: Rodolfo Ilari; Maria Helena de Moura Neves.
(Org.). Gramática do Português Culto Falado no Brasil. 1. ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 2008.
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