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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Escola de Comunicação
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Luciana Xavier de Oliveira
5
6
Luciana Xavier de Oliveira
DRE: 099203051
O SWING DO SAMBA:
O SAMBA-ROCK, E OUTROS RITMOS, NA CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE NEGRA CONTEMPORÂNEA
NA MÍDIA BRASILEIRA
Monografia de conclusão de curso
apresentada à professora Rachel Paiva
Habilitação: Comunicação Social - Jornalismo
Prof. Orientador: Fernando Mansur
Banca:
Prof. Aluízio Trinta
Prof ª Liv Sovik
Segundo semestre de 2004
6
7
RESUMO
A história da criação do gênero musical, hoje conhecido como “samba-rock”, e sua evolução até
os dias atuais, seus principais artistas representantes, e suas influências nas transformações
sociais e nos movimentos de afirmação da identidade negra no Brasil. Este é o tema principal da
monografia apresentada, tendo a mídia como ponto de partida. Como o jornalismo cultural, e, em
especial, a crítica musical, encarou estas novas expressões musicais, baseadas em um processo de
hibridização da música popular brasileira, influenciada diretamente pela cultura negra norteamericana? Este trabalho tenta interpretar também o ressurgimento no cenário do mercado
musical brasileiro do samba-rock, que, mais do que um gênero musical, é um símbolo das
possibilidades de construção e afirmação da identidade negra contemporânea, diante do processo
global de emergência de novas subjetividades na pós-modernidade.
7
8
ABSTRACT
The history of the creation of the musical sort, today known as "samba-rock", and its evolution
until the current days, its main representative artists, and its influences in the social
transformations and in the movements of black identity affirmation in Brazil. This is the main
subject of the presented monograph, having the media as starting point. How the cultural
journalism, and, in special, the musical critique, faced these new musical expressions, based in a
process of hybridism of Brazilian popular music, influenced directly by North American black
culture? This work tries to interpret also the revival of the samba-rock in the brazilian musical
market scene, that can be considered, more than one musical genre, it is the symbol of the
possibilities for constructing and affirmating the black contemporary identity, in accordance to
the global process of new subjectivities emergency in the post-modernity.
8
9
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO , 5
2. É O SAMBA-ROCK, MEU IRMÃO! , 6
2.1. A DANÇA DO SAMBA-ROCK: UMA RESISTÊNCIA PAULISTA , 12
3. A ÁRVORE GENEALÓGICA DO SAMBA-ROCK , 18
a. OS AVÓS , 18
b. OS TIOS , 19
c. OS PAIS , 20
d. OS IRMÃOS , 22
e. OS CUNHADOS , 24
f. OS PRIMOS , 25
g. OS AMIGOS , 25
h. OS FILHOS , 26
i. OS NETOS , 27
4. RECONEXÃO SAMBA-ROCK , 30
5. BLACK POWER MADE IN BRAZIL , 32
4.1. OS BAILES DA PESADA , 33
6. OS REIS DA VOZ: UMA IDENTIDADE NEGRA EM CONSTRUÇÃO
, 38
a. OS BIG KINGS , 39
b. O REI DO MOCOTÓ , 42
c. O REI DA PILANTRAGEM , 43
d. O REI CHEGOU, VIVA O REI , 45
7. A IDENTIDADE DO SAMBA-ROCK E A CRÍTICA: UMA
AUTENTICIDADE QUESTIONADA , 52
8. CONCLUSÃO , 63
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS , 50
9
10
1.INTRODUÇÃO
Tarefa difícil, mas não impossível, traçar os caminhos e descaminhos do samba-rock.
Suas origens, influências, ramificações. Um ritmo híbrido, mas não menos autêntico, acabou por
se desmembrar, crescer, alongar seus braços para englobar os mais variados artistas, e tendências
musicais. Samba-rock, samba-jazz, samba-soul, samba-funk, sambalanço, tecnosamba. Muitos
nomes, mas a essência é uma só: a mistura brasileira do pandeiro com a guitarra, que rende bons
frutos e muita ginga até hoje. E mais do que música tocada, acabou virando forma de dançar. A
escolha do samba-rock como tema foi uma estratégia para analisar o panorama da música negra
brasileira de influências norte-americanas, feita no período dos anos 60 até os dias atuais. E
também, a pesquisa sobre a vida de alguns dos seus maiores ícones permitiu uma amostra de
como as construções da identidade negra foram sendo transformadas a partir daquele tempo.
A possibilidade de tentar mostrar um panorama do ritmo, que acabou por desembocar
em movimento, é a estratégia escolhida, combinando o estudo de matérias de jornal, discografias,
discografias e biografias de todos aqueles que, de forma efetiva, ou apenas perifericamente,
pintaram as cores do samba-rock. A Internet foi fundamental nesta pesquisa, visto que não há
bibliografia especializada sobre o assunto. Depoimentos de músicos, DJs, produtores, jornalistas
e freqüentadores dos bailes da época também foram fonte riquíssima de informação. É a eles que
se deve à vitalidade do ritmo, que, ouso dizer, transformou a face do samba e do negro brasileiro.
10
11
2. É O SAMBA-ROCK, MEU IRMÃO!
“Eu só boto bebop no meu samba
Quando o Tio Sam tocar num tamborim
Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba
Quando ele aprender que o samba não é rumba
Aí eu vou misturar Miami com Copacabana
Chiclete eu misturo com banana
E o meu samba vai ficar assim”
(“Chiclete com banana”, de Gordurinha e Almira Castilho)
Jackson do Pandeiro já antevia, em 1959, na música “Chiclete com Banana”, de
Gordurinha e Almira Castilha, a confusão que iria se armar na hora de descobrir, afinal, o que era
esse tal de samba-rock. Para definir o ritmo do “boogie-woogie de pandeiro e violão” foi preciso
muitas idas e vindas na história, para tentar entender este gênero singular, que se desmembra em
vários estilos e nomes, como um caleidoscópio de sons. Basicamente, samba-rock é a
denominação dada ao samba interpretado à base de guitarra, no estilo popularizado por vários
artistas, cujo ícone foi Jorge Ben Jor (outro controverso a respeito de nomes, visto que
inicialmente se chamava Jorge Ben, para depois virar Jorge Benjor, até a grafia atual).
No entanto, o mestre Benjor nunca endossou o termo samba-rock. O que ele fazia era
“um samba que é misto de maracatu”, conceito que já antecipava logo em sua primeira música
de sucesso, “Mas que nada”, do disco "Samba esquema novo" (63). Em um depoimento, o cantor
tenta explicar as origens do ritmo: "Quando eu inventei essa batida, chamava de ‘sacundin
sacunden’, depois, na época da jovem guarda, virou jovem samba, e, mais tarde,
sambalanço."1 Em outra fonte, o cantor declara "Não existe uma batida de samba-rock (...) Em
um dos meus primeiros shows aqui em São Paulo, no Chic Show, o pessoal dançava a minha
música, o samba, com passo de rock. Não fui eu que inventei (a batida); foi o pessoal daqui
que começou a dançar no estilo. Alguém já inventou, já tocava".2
1
D’ANDREA “40 anos de Suingue e Simpatia”, 2002, Site Rádio Ben.
SIQUEIRA,
BARBOUR. “Disseram que ele não vinha, olha ele aí”, Site Clube do Balanço.
11
12
Não faltam discussões em torno do samba-rock e da origem de sua terminologia. Muitos
defendem que o primeiro a empregar o termo samba-rock foi mesmo Jackson do Pandeiro, na
letra da música “Chiclete com Banana”, de 59, que fazia alusão à invasão estrangeira na música
brasileira. Contudo, pode-se dizer que o extraordinário violonista Bola Sete (Djalma de Andrade,
nascido em 1923, que faleceu em 87) partiu na frente. Segundo o dicionário Cravo Albin da
Música Popular Brasileira, seu disco "E Aqui Está o Bola Sete”, de 57, lançado pela gravadora
Odeon,
já
trazia
na
ficha
técnica
da
faixa “Bacará” (ou “Baccara”, provavelmente em homenagem a uma famosa boate
carioca) a menção “samba-rock". De fato, partindo de um riff clássico de rock’n roll, a música
incorpora a levada de samba, transformando-se em algo raro para aquele momento. Bola Sete já
vinha experimentando diversas fusões musicais, havendo gravado, desde o final dos anos 40,
vários choros com violão elétrico, além de fox-trotes e baiões, entre outros gêneros. Em 58
gravou outro samba-rock, "Mister Jimmy", e, um ano depois, decidiu mudar-se para os Estados
Unidos, onde fez muito sucesso e gravou cerca de dez discos. E, sem querer tirar o mérito da
paternidade do grande Jackson do Pandeiro, no selo do disco de 78 rpm, na informação da faixa
“Chiclete com Banana”, está lá: "samba-coco".
Enquanto isso, negros da periferia de São Paulo, desenvolviam uma nova forma de
dançar nos bailes, que em muito se assemelha ao rockabilly americano da década de 50, e que é
praticada até hoje. A ela, convencionou-se chamar de samba-rock, (apesar dos passos poderem
ser dançados também ao som de outros gêneros musicais), nome provavelmente dado por DJs e
produtores de festas da época.. Mas em cada região, artistas que desenvolviam, paralelamente,
músicas dentro do conceito de mistura do samba com rock e soul utilizavam nomenclaturas
diversas. Em Porto Alegre, chamava-se suingue, samba-rock em São Paulo, enquanto que no Rio
de Janeiro, era o sambalanço ou samba-soul. Claro que existem sotaques musicais diferentes, por
exemplo, entre os sons feitos por Jorge Ben, carioca, o paulistano Trio Mocotó, ou por Luis
Vagner, do Rio Grande do Sul. Fato é que estas categorias foram tão fortemente assimiladas em
cada estado que se a algum carioca for perguntado o que é samba-rock, é bem provável que ele
não saiba responder.
Localismos à parte, com as diferenças regionais respeitadas, o samba-rock é uma fusão
do samba com ritmos americanos, como o bebop, o jazz e o soul, o blues, o rock e o funk, em
variações e combinações infinitas. Tecnicamente falando, é um deslocamento da acentuação
12
13
rítmica, cujo compasso binário do samba (2/4) é adaptado ao compasso quaternário (4/4) do rock
e da soul music. Instrumentos como a cuíca, o pandeiro e a timba eram tocados na levada do
samba, mas com um acento “rockeiro”, inicialmente pelo violão e baixo, para depois serem
utilizados os instrumentos elétricos como a guitarra e o baixo elétrico, apropriados das bandas da
jovem guarda para tocar o velho balanço em novo estilo.
Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira, podemos encontrar o verbete
“sambalanço” como um dos vários sub-gêneros do samba. Ele foi introduzido na metade da
década de 1950 por profissionais ligados à música de dança produzida por orquestras e conjuntos
de boates cariocas e paulistas, influenciados pelos gêneros musicais norte-americanos da época,
sobretudo o jazz. O também chamado samba de balanço foi originado a partir de uma associação
do ritmo à coreografia dos pares nos salões (mesmo que os do então chamados “inferninhos”).
Nas raízes precursoras deste ritmo, pode-se ir ao samba-espetáculo da era de exaltação do Estado
Novo, onde autores como Ary Barroso (“Aquarela do Brasil", “Isso aqui o que é”, “Rio de
Janeiro”, “Na Baixa do Sapateiro”, esta décadas depois reciclada pela Banda Black Rio), Alcyr
Pires Vermelho (“Onde o céu é mais azul”, “Sandália de Prata”), Vicente Paiva (“Bahia de Todos
os santos”, “Olhos verdes”) e, mais adiante, Luís Bandeira (“O apito do samba”, “Na cadência do
samba”) remodelaram o estilo no sentido dos passos largos da dança, abrindo espaço para
repiques e interseções de percussão e metais em brasa. Alguns desses autores, como Ary, tinham
larga experiência no teatro de revista, aonde a música vinha colada à coreografia.
A nova etapa do balanço foi adensada – embora sem formar um movimento organizado
– pelo crescimento vertical da população urbana e a multiplicação de casas noturnas freqüentadas
por uma platéia que misturava das classes média em diante aos turistas. Em contraponto aos
minúsculos palcos da bossa nova do Beco das Garrafas, em Copacabana, onde a música era para
ser ouvida e mal havia espaço para as coreografias de Lennie Dale (dançarino norte-americano,
que chegou a se apresentar em shows com o Sambalanço Trio) ou Marly Tavares (professora de
dança famosa nos anos 60), surgiam grandes templos dançantes como o Drink e o Arpége. Neles
reinavam os solovox (prenunciadores da febre de teclados eletrônicos dos anos seguintes)
tripulados por Djalma Ferreira e Waldir Calmon, pianista e tecladista, o titular da milionária série
de discos “Feito para Dançar”.
13
14
Aliás, Waldir Calmon, junto com o conjunto Bolão e Seus Roquetes3, segundo a
jornalista Cláudia Assef, seriam os verdadeiros precursores do samba-rock, de acordo com o
depoimento de vários DJs paulistas. Nas orquestras invisíveis de São Paulo, discos clássicos
como “Chá Dançante - Volume 3” (59), de Waldir Calmon e as gravações de Bolão e Seus
Roquetes faziam sucesso nas pistas. Vale notar que, nos anos 60, nos bailes das orquestras
invisíveis e nos primeiros bailes black, não se usava o termo samba-rock, e sim “rock”.
“Com o desaparecimento das orquestras invisíveis, os discotecários dos bailes black dos anos
60 apostaram forte no ‘rock’, gênero que foi rebatizado na década de 80 como samba-rock.
O nome vem da fusão dos dois ritmos através da dança. “O sujeito falava: “É bom esse rock,
hein? Você sabe dançar esse rock?”, quando na verdade o que estava tocando era alguma
música brasileira ou até mesmo jazz americano.”4
A influência do jazz e do som de orquestras americanas influenciava fortemente os
músicos brasileiros. O órgão suingadíssimo de Ed Lincoln (que começou na catedral da prébossa, a boate Plaza), o rei dos bailes, o violão sincopado de Durval Ferreira, o embalo do Trio
Surdina e a penca de chaves do cantor Orlan Divo (ele era chamado o “sambista da chave”, por
acompanhar-se batucando em um chaveiro) formavam a constelação do sambalanço carioca.
Acompanhados pelas vozes doces de Dóris Monteiro e Claudette Soares, e pela divisão criativa
do fraseado do cantor Miltino, estava formado o local ideal para a construção de um novo ritmo.
Outro grande instrumentista, J.T. Meirelles, considerado o criador do samba-jazz (que
também desembocaria na bossa nova), fez os arranjos e tocou nos primeiros discos de Jorge Ben.
Zé Maria, organista, que tocava no Beco das Garrafas, reduto da bossa nova no começo da
década de 60, foi o responsável pelo lançamento da primeira gravação de Jorge Ben em LP,
incluindo “Mas que nada” em seu disco “Tudo Azul” de 63. Luís Carlos Vinhas e Luís Eça
também participaram de várias gravações, dando uma roupagem mais bossa novística a algumas
faixas dessa fase inicial, sem nunca abandonar o suingue. Encontros que desenvolveram um
processo de geração espontânea e multifacetada do ritmo.
3
Bolão, cujo nome é Isidoro Longano, trabalhou como clarinetista, flautista e saxofonista em várias orquestras a
partir dos anos 40. No livro “Todo Dj Já Sambou”, na página 20, a autora Cláudia Assef afirma que a data do disco
“Bolão e Seus Roquetes” é de 1958. No entanto, segundo dados encontrados no site da Enciclopédia da Música
Brasileira, o conjunto Bolão e Seus Roquetes foi fundado apenas em 1960.
4
ASSEF, 2003 : 26
14
15
Jorge Ben, na época, ainda contribuiu mais para a confusão, pois flertava ora com a
bossa nova, ora com a Jovem Guarda, e também com os tropicalistas, sofrendo, inclusive muito
preconceito por parte das “patrulhas ideológicas” defensoras da MPB.
“Recebo gelo, piadinhas, indiretas e críticas dos subversivos do samba, a turma do samba
social. Não tenho nada contra eles, mas deixem que eu cante minhas composições para o
público que eu quiser, junto com os cantores que eu quiser, e acompanhado pelo
instrumento que me for mais conveniente.(...) A minha música é de cantores como Roberto e
Erasmo, por sinal, também podados pelos subversivos do samba. É simples, acessível, fácil
de guardar. Por isso, sem o pernóstico do jazz importado e de letras sociais, ela é cantada por
todo mundo, por crianças que mal sambem falar, por jovens e adultos. O que quer dizer: é
sucesso, mesmo sofrendo esnobação dos subversivos.”5
Jorge Ben, assim, assumia sua parcela rock. Ele, que já havia trocado o violão
amplificado pela guitarra elétrica, e que cujo apelido era “Babulina”, porque adorava o rock
“Bop-A-Lena”, do cantor americano Ronnie Self, foi apoiado por Erasmo Carlos. Junto com Pery
Ribeiro, Wilson Simonal, Carlos Imperial e o grupo Bossa Três, resolveram dar contornos ao
novo ritmo, em resposta às críticas de que não valorizavam a cultura brasileira. Assim surgiu o
chamado “samba jovem”, que misturava rock’n roll e bossa nova com a “tal” batida diferente.
Eram canções de letras aparentemente ingênuas, abarcando as mesmas tendências poéticas da
bossa nova e da Jovem Guarda, nas quais o que mais valia não era tanto o que se dizia, e sim a
embalagem musical que abrigavam.
“Usando na bateria a batida do samba, e utilizando guitarras com marcação do iê iê iê, o
novo ritmo é dinâmico, moderno e acessível. As letras, por sua vez, não conterão mensagens;
abordarão temas ao alcance até mesmo do público infantil. Coisa leve, gostosa, muito
ritmada. Não sei o que os críticos vão dizer do samba jovem, mas é um esforço nosso para
divulgar o samba. Acho que podemos, vale a pena tentar.”6
Foi um esboço inicial de um movimento organizado por alguns artistas, mas que acabou
por nunca tomar forma definitiva. Músicos do Rio de Janeiro, São Paulo e do Rio Grande do Sul,
contemporâneos de uma época em que a indústria cultural e a cultura de massa se afirmavam no
Brasil, recebiam as influências de uma cultura estrangeira, notadamente americana, e adequandoa a sons locais, como o samba, criavam novas formas de expressão artística. Não existiu um
5
6
BENJOR, Jorge apud FRÓES, 2003: 77
CARLOS, Erasmo apud FRÓES, 2003: 90
15
16
movimento do samba-rock com músicas e lançamento de discos, baseado em fundamentos prédefinidos. Era uma falange de jovens músicos, em sua maioria negros, que fazia uma MPB de um
outro jeito.
“A gente se conhecia pelo convívio. Eu já convivia com Jorge, que havia tocado comigo.
Tanto é que depois ele fez a música "Luis Vagner Guitarreiro" em minha homenagem.
Bebeto, Luis Carlos de Paula, Marquinho, Branca di Neve, Marku [Ribas], que eu conhecia
desde 66 também. Então, são pessoas com as quais sempre convivi. Tínhamos uma afinidade,
ou seja, o modo como absorvíamos a música internacional, planetária, mundial, e como
expressávamos suas raízes dentro daquilo.(...) Era um Brasil pop, entendeu?”7
Em fins dos 60 surge também Ed Lincoln, um organista talentoso misturando samba,
rock e pitadas latinas, em pérolas como "O Ganso" ou "Palladium". O samba-rock foi se
fortalecendo na camada social mais baixa, dos negros das periferias e subúrbios. Vários outros
artistas passaram a adaptar o samba aos ritmos americanos, e, posteriormente, também ao reggae
da Jamaica. Assim evoluiu o samba-rock, que atingiu sua maior força com os compositores
Bebeto, Bedeu e Luís Vagner, que já utilizavam metais mais pesados, mais “funkeados”, até
chegar a Tim Maia, o grande “soul man” brasileiro, mas que nunca abandonou suas raízes
sambistas.
Cruzando – nos dois sentidos – a linha divisória entre samba e rock, a evolução de uma
sonoridade surpreendente, nascida do encontro da malandragem do samba com o balanço do rock
americano, pode ser considerada como uma fase de transição e renovação do samba.
Independente de nomes, ou de qualquer outra categoria, diante do contexto da globalização e do
aumento do fluxo de informação que se apresentava, o samba-rock foi uma nova forma de se
criar música autenticamente brasileira.
“Ao meu ver, o samba-rock é mais um conceito definido pelos DJs e freqüentadores dos
grandes bailes black do que propriamente pelos artistas blacks da época. O samba-rock é
uma dança peculiar aqui de Sampa, onde o pessoal dançava nos bailes e o DJ podia colocar
tanto um Ray Charles como um Jorge Ben... O importante é que desse pra dançar! (...)
Quando o Bebeto ou o Luís Vagner fizeram os trabalhos deles, que incluem vários clássicos
do gênero, eles nunca pensaram em fazer samba-rock. Era um disco brasileiro.”8
7
8
VAGNER, Luis. 2003, site Gafieiras
MATTOLI, Marco. 2001, site ObaOba
16
17
2.1. O DANÇA DO SAMBA-ROCK: UMA RESISTÊNCIA PAULISTA
“quando eu era criança
me perdia na lambança
e na quebrada dessa dança
eu só queria ver,
quem não balançava a pança”
Saudade de Jackson (Bedeu/Luis Vagner)
Nas periferias de São Paulo a expressão samba-rock ganhou outro sentido. Foi lá que
ritmo se desenvolveu como uma dança peculiar. O gênero logo ganhou fama, e transformou-se
em parte da cultura paulista, através da figura dos primeiros DJs e dos bailes.
“O sujeito ficava sentadinho, de terno e gravata. Na frente dele, uma pick-up de
madeirinha e um abajur. Não tinha fone, mixer, nada. O cara não podia tremer a mão,
senão errava a faixa e ‘comia’ a entrada da música. As cortinas do palco ficavam
fechadas, e o discotecário, coitado, não aparecia nunca. Ele era um mero tocador de
discos.” 9
Tony começou tocando em bailes, se considera discotecário, mas já um iniciante do que
hoje chamamos DJ (termo que só seria usado no final dos anos 80). Essas festas foram as
primeiras a funcionar regularmente com música mecânica, e com DJ’s, no final dos anos 50.
Nelas, se tocavam clássicos do samba-rock, que embalavam a coreografia harmônica e acelerada.
O ritmo, que no início se chamava apenas “rock” – isso bem antes de Jorge Ben se tornar seu
maior ícone –, é dançado do mesmo jeito há mais de quarenta anos em São Paulo. Em dupla,
braços cruzados sobre a cabeça do outro, em movimentos curtinhos que seguem a batida
cadenciada. Sempre o homem conduzindo a mulher. É uma espécie de rockabilly, com os
parceiros mais próximos, e as mãos sempre unidas.
Mas tudo começou com as orquestras invisíveis. Na década de 50, São Paulo tinha bons
salões de baile, espalhados pelo centro e zona sul. As festas nesses salões eram grandes
acontecimentos semanais, muito pomposos, animados por orquestras competentes, com músicos
em traje de gala. Ao contrário de países como os Estados Unidos, não havia no Brasil um código
social que vetasse a entrada de negros nesses bailes. O fator excludente era mesmo o alto preço
dos ingressos, acessíveis apenas à elite.
9
HITS, Tony apud ASSEF 2003: 19.
17
18
Em 59, a história mudou. No livro “Todo Dj Já Sambou”, a jornalista Cláudia Assef
conta a trajetória de Osvaldo Pereira (hoje com 68 anos), considerado o primeiro DJ do Brasil.
Osvaldo era técnico eletrônico e vendedor de discos em uma pequena loja de São Paulo. Fã de
música, construiu um sistema de som com pouco mais de cem watts de potência, um assombro
para a época. Começou a fazer som em aniversários e casamentos em bairros da periferia.
Frustrado, como tantos outros, por não poder freqüentar os bailes nos grandes salões, acabou
decidindo organizar e sustentar um baile em um salão chique da cidade. Mas sem uma orquestra.
E, junto com seu “potente” toca-discos, criou a Orquestra Invisível Let’s Dance.
O baile, mais barato que o habitual, por não ter o custo dos músicos, fez sucesso, e
outros discotecários se animaram e fundaram várias orquestras invisíveis. O discotecário montava
o toca-discos em um palco, atrás de uma cortina fechada. O som começava com sons de ritmos
mais calmos, orquestrados. Depois passava para o suingue, o shuffle e, mais tarde, para o fox trot
(gênero anterior ao rock’n roll), que se dançava com passinhos ligeiros em torno do salão. O som
era tão contagiante que, quando o discotecário demorava um pouco mais na troca de músicas, os
dançarinos batiam palmas, como se aplaudissem uma orquestra de verdade, ao final de uma
execução impecável.
Até meados dos anos 60, o que as orquestras invisíveis tocavam era um som bem fiel ao
das orquestras de carne e osso, como Glenn Miller, Stan Getz, Ray Charles, Frank Sinatra, Ray
Coniff. E, entre os nacionais, os preferidos eram Bolão e Valdir Calmon, Golden Boys, Elza
Soares, Ed Lincoln, Claudete Soares, Trio Ternura. Samba-rock era apenas mais um dos estilos
que fazia parte da lista de música dos “baileiros”. Segundo Tony Hits, dono de uma loja de discos
em São Paulo, e também produtor de festas: “Um baile tinha que ter de tudo, da música lenta
ao partido alto e o samba-rock era um dos momentos do baile black. Tocava Jorge Ben, mas
também tocava Johnny Rivers e Al Green”.
Nos bailes, os dançarinos iam bem vestidos, de terno e gravata, já que o traje fino fazia
era exigido para entrar. Eram festas familiares, os convites vinham redigidos em estilo pomposo,
demonstrando que o ambiente era de “classe”, para aqueles antes preteridos nos bailes
aristocráticos.
Outros discotecários se animaram, surgiram várias orquestras invisíveis em São Paulo.
Além de Osvaldo, havia Daniel, outra lenda nos bailes da virada dos anos 50 para os 60. Os
bailes aconteciam em salões chiques da cidade, como o Clube 220 e o Ambassador, ambos na
18
19
avenida Rio Branco, geralmente aos domingos (aos sábados, eram destinados às festas da elite).
Só que fizeram tanto sucesso que, ainda em 59, Osvaldo passou a comandar os sábados, além das
domingueiras. No entanto, a febre do samba-rock começou mesmo nos anos 60, com as primeiras
equipes de som paulistas, primeiros embriões do que seriam as grandes equipes dos bailes black
dos anos 70, como a lendária Chic Show, por exemplo. Com o desaparecimento das orquestras
invisíveis, os discotecários dos bailes black dos anos 60 apostaram fortemente no “rock”, gênero
que foi rebatizado de samba-rock algum tempo depois.
Foi nessa época que o DJ de black music começou a dar mais destaque a artistas negros
em seus sets. Jorge Ben e James Brown começaram a ganhar força nos bailes, era o início da
valorização da cultura black nas grandes cidades brasileiras, e muitos sustentam que esse sucesso
se deve, em grande parte, aos discotecários. Muitos defendem a seguinte definição: samba-rock é
um estilo de se dançar. Foi na periferia de São Paulo que esta nova forma de dança se
desenvolveu e se afirmou. Nesses bailes, várias músicas animavam as noites, não
necessariamente podendo ser consideradas sambas-rock. Eram canções de características bem
diferentes, dançando-se praticamente da mesma forma músicas da fase Tim Maia “racional”
como os partidos do Grupo Favela ou Aniceto do Império, ou então hits de Rita Pavone, ou então
um suingue da orquestra de Perez Prado. Samba-rock era apenas mais um dos estilos que fazia
parte da lista de música dos “baileiros”. Segundo Tony Hits, dono de uma loja de discos em São
Paulo, e também produtor de festas: “Um baile tinha que ter de tudo, da música lenta ao partido
alto, e o samba-rock era um dos momentos do baile black. Tocava Jorge Ben, mas também tocava
Johnny Rivers e Al Green”.
“A verdade é o seguinte: o samba-rock é um nome dado pelas pessoas da periferia de São
Paulo, que vem da música "Samba-rock, meu irmão" [“Chiclete com Banana”], do
Gordurinha, e que o Jackson do Pandeiro gravou. Essa é a real. Agora, o tipo de ritmo que
pegou foram as batidas do Jorge Ben, do sambalanço, do Luis Vagner, do Rio Grande do
Sul, que são batidas e sotaques diferentes. Eu tocava guitarra, o Jorge tocava mais violão, e
esse trabalho da gente vem desde lá. Como começamos a fazer esse disco, o Tim Maia gravou
"Gostava tanto de você", que tem um balanço samba-rock, que é de um pianista gaúcho, o
Cidinho. (...) Então, esses dois pontos foram muito bem assimilados pelo pessoal de São
Paulo.”10
10
VAGNER, 2003: Gafieiras.
19
20
A dança teve influência do suingue do rockabilly americano dos anos 50 e 60 só que
com movimentos mais suaves, sem passos aéreos. Ela podia ser dançada em quatro tempos, cujas
variações, combinadas com giros, tantos do homem como da mulher, evoluiu para um maior
dinamismo, hoje podendo ser dançada em infinitas variações. O gingado dos braços lembra o
velho jeito rock’n’roll de sacolejar. Enquanto os rodopios se assemelham ao suingue, que marcou
a geração dos anos 40. As pernas, no entanto, pouco têm a ver com os ritmos americanizados,
porque para acompanhar o ritmo é preciso muito samba no pé. A agilidade é mostrada nas
coreografias, dançadas a dois, a três, misturando ou não pessoas do mesmo sexo, sem nenhum
problema. Hoje em dia, um novo estilo vêm se desenvolvendo nas pistas, mais rápido, com os
comandos muito bruscos, chamado de “samba-rock estrela”.
No final dos anos 50, os suntuosos bailes e festas promovidos pela elite, com grandes
orquestras e trajes de gala eram inacessíveis aos negros. Nesta época, já existiam os
equipamentos de som Hi-Fi. O preço dos discos também se tornava um pouco mais acessível, e
algumas pessoas, especificamente da periferia de São Paulo, passaram a promover bailes
destinados a esse público menos favorecido. Eram os bailes de "orquestra invisível". Nestes
bailes democráticos o toca-disco fazia o papel da orquestra, e a figura do discotecário tornou-se
fundamental, (cuja denominação, aos poucos, foi substituída pelo “disk-jockey” – “jóquei de
discos”, hoje, comumente chamado de “DJ”).
Na transição dos 60 para os 70 são gravadas as músicas que iriam se tornar os grandes
clássicos dos bailes: "Pena verde" e "Luisa manequim", de Abilio Manuel, "Zamba-bem", de
Marku Ribas, "Para sempre sem Bronquear", pelos Golden Boys, "Guitarreiro", de Luis Vagner.
Os anos 70 trazem a fase áurea dos Originais do Samba, com sambas suingados como "Falador
Passa Mal" e "Do Lado Direito da Rua Direita". Em fins dos anos 70, o disco "Baiano e os Novos
Caetanos", traz a célebre "Vô Batê pra Tú", de Arnaud Rodrigues e Orlandivo. Nomes como
Erlon Chaves, Bebeto, Di Mello, Orlandivo, Elizabeth Viana, Dóris Monteiro também faziam
sucesso nestas festas da periferia. O célebre hit “Coqueiro Verde”, composto por Erasmo Carlos,
contribuiu para o estilo, marcando presença com também com o clássico "Mané João". A nossa
bossa nova, relida e misturada com o blues e com o jazz pelos “gringos” é outra fonte de hits dos
bailes, a exemplo de "Soul Bossa Nova", com a orquestra de Quincy Jones. Já no começo dos
anos 80, o grande Branca di Neve grava dois discos antológicos, com sucessos como "Kid
Brilhantina" e "Nego Dito". Ah, e claro, muito Jorge Benjor.
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Cada vez fazendo mais sucesso e atingindo mais público, estas festas foram se
profissionalizando cada vez mais. Surgem, em meados dos anos 70, as grandes equipes de som
como a Verde e Amarelo, Os Carlos, Tropicália, Chic Show , Black Mad , Zimbabwe, Sideral e
outros nomes, que traziam novas músicas e até mesmo organizavam grandes shows com artistas
famosos da época, que chegavam a reunir 80 mil pessoas por fim de semana. Era a representação
de toda uma cultura paralela da música negra, de sons que não chegavam à grande mídia. Estas
festas chegavam a reunir duas mil pessoas. E continuam reunindo multidões até hoje, há mais de
25 anos consecutivos, não só na periferia, como também nas áreas nobres da cidade, empolgando
jovens de classe média. Marginalizado quando surgiu por ser o ritmo dos bailes freqüentados por
negros, hoje o samba-rock sai do gueto para ocupar um lugar de destaque. Mais do que uma
simples dança, ou um ritmo da moda, o samba-rock é a preservação de uma cultura.
Nos anos 90, um revival do samba-rock tomou de assalto as “baladas” de São Paulo. DJs
como Don KB e MZK sopraram a brasa adormecida dos bailes de samba-rock, no final dos anos
90. O gênero voltou a empolgar, só que dessa vez o alvo era um público mais restrito e elitizado.
Jovens de classe média, com muita informação, acabaram revitalizando uma cultura importante,
mas que nunca morreu, continuando viva nas periferias paulistanas. Na Vila Mariana, área nobre
da grande São Paulo, os irmãos Márcio e Alex Cecci criaram a festa Jive, que tomou proporções
inimagináveis. Foi um retorno do samba-rock, mas totalmente pensado no formato DJ, do
colecionador, que tocava raridades e incentivava a procura por músicas e artistas já esquecidos. E
isso chegou a influenciar o mercado fonográfico brasileiro. Vários artistas retornaram aos
estúdios, compilações foram lançadas e vinis remasterizados em formato de cd (vide as várias
coleções de relançamentos de clássicos do samba-soul, organizadas por Charles Gavin, entre
outros). Isso, claro, somado ao interesse crescente de um público estrangeiro pelo gênero, além
de gravadoras estrangeiras interessadas no trabalho de gente como Trio Mocotó, Dom Salvador, e
vários outros artistas.
“O Samba-Rock ficou fora da mídia, mas sempre houve todo fim de semana festas de
2000 e 3000 pessoas na periferia. Estes bailes ainda são os eventos que movimentam maior
número de pessoas. Então de certa forma o samba-rock nunca descansou. Ele esteve sim,
fora da pauta da rádio, do jornal, da TV. Recentemente o público de outras praias
redescobriu o som e cada vez mais espaços abrem noites de samba-rock. Isso é natural, pois
o universo samba-rock envolve músicas que conseguem reunir qualidade de elaboração com
groove dançante e de fácil empatia por parte do público. Não tem quem não goste de uma
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balada samba-rock. Creio também que o revival dos anos 70 na moda e design em geral
contribuiu muito para a redescoberta do samba-rock pelo público "descolado",
universitário, etc. (...) Sinto que são retomadas que estão se dando de uma forma menos
pasteurizada, menos imposta. Está partindo mesmo da galera e não de esquemas de
marketing do showbizz. 11
11
CASTILHA, 2001: Site Oba Oba
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3. A ÁRVORE GENEALÓGICA DO SAMBA-ROCK
“Guitarreiro
toca guitarra como fosse
um pandeiro
toca assim
faz de conta que é um tamborim
esta guitarra tem suingue
samba, rock, soul
tem balanço
tem a força de uma nação”
( Trilha Guitarreira - Marco Mattoli / Luiz Vagner)
Nos anos 50 ainda não existia exame de DNA. Torna-se um pouco complicado traçar
uma genealogia (e cronologia) do samba-rock. Dá para se ter uma idéia de que ele nasceu por
volta da segunda metade da década de 50. Nessa época, com a entrada no mercado brasileiro de
músicas americanas, e com o aparecimento de novos instrumentos musicais, eletrificados,
profissionais ligados à música de dança produzida por orquestras e conjuntos de boates cariocas e
paulistas, influenciados por gêneros musicais norte-americanos, sobretudo o jazz, começaram a
desenvolver diversas experimentações musicais. Já na década de 60, evoluiu para uma mistura
com o rock, o blues, o soul e o funk, dando origem ao samba-rock mais recente.
3.1. OS AVÓS
O pai verdadeiro mesmo, ninguém sabe. Dentre os pioneiros do sambalanço, podem ser
destacados Bola Sete (Djalma de Andrade), que lançou três discos no Brasil antes de se mudar
para os Estados Unidos em 59, onde se tornou um reconhecido violonista. Waldir Calmon e
Bolão (do grupo Bolão e seus Roquetes) foram também precursores do gênero. Outro nome
importante, que também é considerado o criador do samba-jazz, foi J.T. Meirelles, arranjador e
instrumentista, que, com seu grupo Copa 5 (que contava com Manuel Gusmão no baixo, Luiz
Carlos Vinhas no piano, Dom Um Romão na bateria e Pedro Paulo no baixo), participou dos
primeiros discos de Jorge Ben, nos quais também figurou o pianista e compositor Luiz Eça. O
maestro Zé Maria, em cujo disco estreou Jorge Ben, também fazia muito sucesso no Beco das
Garrafas, onde conviviam todos esses artistas cariocas. Mas em São Paulo surgiram também
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grandes nomes como o Sambalanço Trio, conjunto instrumental formado em 1962 e integrado
por César Camargo Mariano no piano, Humberto Claiber no baixo e Airto Moreira na bateria. O
trio estreou no Juão Sebastião Bar, ponto de reunião do mundo intelectual e artístico de São Paulo
na década de 1960. Com a dissolução do trio, César formaria depois o grupo Som Três.
De volta ao Rio, outro praticante do sambalanço foi Durval Ferreira, violonista, criador
do cultuado grupo Os Gatos, que, com Orlan Divo, compôs canções sambalançantes. Orlandivo,
autor de “Bolinha de sabão” e “Tamanco no samba”, músicas sincopadas com muito groove,
trabalhou como crooner da banda de Ed Lincoln, papa do sambalanço e organista, (que também
formou um trio com Luiz Eça) para depois comandar um conjunto com o qual gravou uma série
de discos arrasa quarteirão. Jogando algumas pitadas latinas no seu sambalanço, compôs pérolas
como "O Ganso" ou "Palladium". Pela orquestra de Ed Lincoln passaram grandes nomes da
música brasileira como o grande baterista Wilson das Neves.
3.2. OS TIOS
Dentre os cantores, também se destacava Miltinho, crooner egresso da era dos
conjuntos vocais (cantou na orquestra Tabajara), também pandeirista, tinha uma voz metálica e
única, sabendo driblar as tônicas e dividir o fraseado de uma forma diferente (ao estilo do
concorrente João Gilberto), ocupou todas as paradas do início dos anos 60 com uma fileira de
sucessos do sambalanço. Dóris Monteiro, de voz suave, logo a credenciou como prébossanovista, mas também tinha um bom manjeto dos sambas de balanço como no sincopado
“Mocinho Bonito”, de Billy Blanco e “Sambou, sambou”, de João Donato. Dóris também se
apresentou muitas vezes ao lado de Sílvio César, cantor e compositor (são de sua autoria “Pra
você” e “Beco sem saída”, foi também crooner da orquestra de Ed Lincoln) também ligado ao
núcleo do balanço. Claudete Soares também embarcou na onda do sambalanço, cantou no
conjunto de Luiz Eça e apareceu num disco ao lado de outros iniciantes como Eumir Deodato,
“Nova geração do ritmo de samba”. Um conjunto memorável, do qual pouco se fala hoje em dia
foi o Trio Surdina, formado no começo dos anos 50 pelos virtuoses e revolucionários Garoto
(violão), Fafá Lemos (violino) e Chiquinho do Acordeon, cuja maior característica era o
intimismo e o coloquialismo da bossa nova, sem dispensar o suingue e o bom humor, como no
tema de Garoto, “O reloginho da vovó” e “Felicidade” (composto em parceria com outro pioneiro
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do sambalanço, o radialista e jornalista Haroldo Barbosa, autor também de “De conversa em
conversa”, com Lúcio Alves, de 47, canção reaproveitada pela bossa nova).
3.3. OS PAIS
Quando estouraram nas paradas de sucesso Jorge Ben e Wilson Simonal, os ícones
maiores do samba-rock, outros artistas, paralelamente, trilhavam o mesmo caminho. Sérgio
Mendes, cujo pontapé inicial de sua carreira internacional foi dado ao gravar “Mas que nada”,
levou o nome de Jorge Ben para o exterior. O compositor, apresentador e produtor Carlos
Imperial foi autor de vários sucessos da Jovem Guarda, e também do clássico gravado por
Simonal, “Mamãe passou açúcar em mim”. Mas sua grande invenção foi a criação do estilo
“Pilantragem”, adotado por Simonal e também pelo maestro e pianista Erlon Chaves. No quinto
Festival Internacional da Canção (FIC), realizado pela TV Globo em 1970, Erlon ficou conhecido
ao reger sua Banda Veneno, um coro de 40 vozes fez sucesso ao cantar a música "Eu também
quero mocotó" (de Jorge Ben). Outro compositor que também transitava entre os vários gêneros
musicais brasileiros foi Tito Madi, que compôs, com “Balanço Zona Sul”, em 63, grande sucesso
de Simonal, que cinco anos mais tarde, retornou às paradas de sucesso com “Sá Marina”
(Antônio Adolfo e Tibério Gaspar), que misturava a harmonia do sambalanço com a estrutura da
toada brasileira tradicional., mas de ritmo bem marcado que se aproximava do iê-iê-iê.
O sul também contribuiu para o universo do samba-rock. Nascido em Bagé, Luis
Vagner (autor de “Guitarreiro” e “Segura a Nega”), começou sua carreira cantando rock no
conjunto Os Brasas, nos moldes dos grupos da Jovem Guarda. Depois seguiu carreira solo, com
composições baseadas na fusão do samba com o rock, seguindo os sons de sua origem, que
também incluem ritmos locais gaúchos e o reggae. Outros dois grandes gaúchos foram os
cantores e compositores Bedeu e Leleco Teles (os dois fundaram o grupo Pau Brasil), autores da
pérola “Menina Carolina”, gravada pelo cantor Bebeto, o rei dos bailes dos subúrbios cariocas e
da Baixada Fluminense. Paulista, foi para o Rio de Janeiro em 1978. Sua música suingada é
derivada da batida de Jorge Ben Jor, cujo balanço do seu violão de nylon é realçado por naipes de
metais. Em seu repertório dançante inclui, além de sucessos de sua autoria, como "A Beleza É
Você, Menina" e "Minha Preta", lançando mais de vinte discos.
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Bebeto nasceu no bairro do Brás, e na boate Jogral, reduto de artistas e intelectuais
paulistas na época da ditadura, nasceu o Trio Mocotó, em 68. O trio formado por Fritz “Escovão”
(cuíca), Nereu “Gargalo” (pandeiro) e João Parahyba (timba e bateria) tocou com vários artistas
da época. Mas só foi batizado mesmo em 69, quando a mini-saia descobriu as pernas das moças
brasileiras. “Diante das pernas de Verinha, freqüentadora assídua da primeira fila da boate
Jogral, em São Paulo, Jorge, o Ben, virava para Nereu, o Marrom Provocante: "Olha que
tremendo mocotó!".”12 E foi a partir do “carinhoso” apelido que veio o nome do Trio
(homenageado na canção do mestre Ben Jor, “Eu quero mocotó”). Na Jogral (que foi o “Beco das
Garrafas” do samba-rock) o trio acompanhava diariamente Clementina de Jesus, Nelson
Cavaquinho, Cartola, Paulo Vanzolini, além de vários visitantes ilustres como Duke Ellington e
Oscar Peterson. Mas a parceria mais duradoura e de sucesso foi com Jorge Ben Jor, que precisava
de um grupo para tocar "Charles Anjo 45" na final do Festival Internacional da Canção, em 1969.
Nesse mesmo ano lançaram seu primeiro compacto solo com a composição “Coqueiro Verde”
(de Erasmo Carlos, que andava suingando e sambando também), um grande sucesso. Intercalando
gravações nos LP’s “Jorge Ben” (69), “Força Bruta” (70), e “A Tábua de Esmeraldas”(74) com
discos solo, o Trio sempre inovava. No LP de 73, gravaram a primeira música do compositor
Carlinhos Vergueiro, com arranjo para orquestra do maestro tropicalista Rogério Duprat, além do
disco trazer, executado por Joãozinho, um dos primeiros solos de sintetizador moog do país.
O mineiro Marku Ribas, compositor de “Zamba Ben”, foi um dos inovadores, ao
experimentar mesclar outras sonoridades negras com o samba-rock, como o reggae, ritmos
regionais de sua terra e sons exóticos. Outro a fazer uso de experimentos com percussão africana
ao homenagear a umbanda e os orixás em seu único disco foi Noriel Vilela, autor de "Só o Ôme"
(que reproduz um diálogo entre um pai de santo e seu filho). No disco de melodias e letras
simples, mas com grandes arranjos orquestrados, a rara voz de Noriel Vilela deixou registrado o
clássico do samba-rock, “16 toneladas”, uma versão divertida da norte-americana “Sixteen
Tons”, composta na década de 40.
12
Site Revista Trip – texto de Endrigo Chiri Braz
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3.4. OS IRMÃOS
Os “brothers” do soul agitavam os anos 70, na onda do black power. Logo em 1970, a
soul music brasileira explodiria no V Festival Internacional da Canção, com a vitória, na fase
nacional, de “BR-3”, canção de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, defendida por Toni Tornado,
que seguiria como intérprete, em discos sempre sob a bandeira da black music. Jorge Ben
também entrou no barco, compondo “Negro é lindo”, com disco homônimo, de traços
diretamente ligados ao balanço e ao discurso negro americano. No entanto, foi um dos
companheiros de Ben Jor na turma roqueira da Rua do Matoso, na Tijuca (onde também
apareceram Roberto e Erasmo Carlos) quem iria iniciar a saga do soul brasileiro: Sebastião
Rodrigues Maia, o Tim Maia. Aos 17 anos de idade, em 1959, Tim embarcou para os Estados
Unidos, onde se enfronhou na black music, chegando a participar do grupo The Ideals. Já aqui,
começou a compor no estilo da soul music que havia ouvido na América. Logo sua fama
começou a correr e, em 1969, Elis Regina gravou em dueto “These Are The Songs” (uma das
várias canções que Tim tinha escrito em inglês), que saiu no disco “Em Pleno Verão”. Em 1970,
ele gravou seu primeiro disco, Tim Maia, um dos maiores sucessos do ano, amparado em músicas
suas como “Azul da Cor do Mar”. Sua voz potente popularizaria o samba-soul ou o samba-funk,
emplacando dois sucessos nesse estilo: “Réu Confesso” e “Gostava Tanto de Você”, faixa da
qual participou o maior pianista do samba-rock, Cidinho. Tim, que, em 75, tornou-se adepto da
seita Universo em Desencanto, gravou os dois volumes do disco antológico “Tim Maia
Racional”. Apesar da qualidade (o estilo das faixas era ao estilo deep funk), o disco passou
despercebido do grande público, e após Tim se afastar da seita, renegou o trabalho, que havia
sido lançado pela sua própria gravadora, Seroma. Ele gravou também um baião com balanço soul
(“Coroné Antônio Bento”, de Luís Wanderley e João do Vale) e “Primavera”, composição de
outro futuro gigante da soul music brasileira: Genival Cassiano. Paraibano, ele começou tocando
violão no Bossa Trio, que deu origem ao grupo vocal Os Diagonais, que se empenhava na
mistura de soul e samba na virada dos 60 para os 70. Sua carreira solo começou em 1971, e fez
muito sucesso com as baladas “A Lua e Eu”, “ Coleção” e “Primavera”, que ajudou Tim Maia a
começar sua carreira. Ao longo dos anos, continuou sua trajetória com sucessos, uns mais
dançantes (“Descobridor dos Sete Mares”, “Do Leme ao Pontal”, “Vale Tudo”), e outras baladas
(“Me Dê Motivo”, “Chocolate”).
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Em São Paulo, os bailes de samba-rock na periferia ferviam, mas foi nos subúrbios
cariocas que a movimentação ganhou contornos mais nítidos. Dando nome também ao
movimento instaurado no Rio de Janeiro, é criada a Banda Black Rio em 76, coroando o
fenômeno dos bailes black nos subúrbios cariocas, inspirados no movimento de afirmação da
negritude do black power americano via James Brown. Liderada pelo e flautista Oberdan
Magalhães, ex-membro do grupo Abolição, a Banda Black Rio se tornaria uma das mais
revolucionária bandas da história da música popular brasileira. Com repertório baseado na música
funk misturada com samba e jazz, com forte acento dançante, a Banda Black Rio gravou três
discos ("Maria Fumaça", "Saci Pererê" e "Gafieira Universal") que fizeram sucesso nas pistas de
dança. Além de composições próprias, a banda gravou suas versões para músicas como "Na
Baixa do Sapateiro" (Ary Barroso) e "Casa Forte" (Edu Lobo) e foi pioneira ao desenvolver uma
soul music instrumental brasileira.
E quase toda ela baseada no Rio, a turma do soul “brazuca” dos 70, já tingida pelas
cores mais fortes do funk e do movimento black power floresceu e revelou nomes como o do
pernambucano Paulo Diniz (“I Want To Go Back To Bahia”). Gerson King Combo foi exdançarino, e foi cantor das bandas de Wilson Simonal e Erlon Chaves. Irmão do grande
compositor da Jovem Guarda, Getúlio Côrtes, e espécie de James Brown nacional, compôs as
músicas “Mandamentos Black” e “O Rei Morreu”. Suas falas improvisadas sobre a base funk o
fizeram precursor do rap nacional. Em 77, Gerson se impressionou com um grupo de músicos
que tocava samba na Pavuna e os levou para o universo do funk, fundando o grupo União Black.
Sucesso nos bailes, o único disco do grupo contou com a produção e a direção artística da mesma
dupla responsável pelos dois petardos solo de Gerson King Combo: Ronaldo Corrêa, dos Golden
Boys, e Pedrinho da Luz, dos Fevers. Parte do repertório era assinada por Gerson King Combo,
um dos vários vocalistas da banda, e os arranjos das faixas eram de grande qualidade,
incorporando elementos do jazz (seguindo os passos da Banda Black Rio). As letras seguiam a
linha “orgulho black”, embora houvesse espaço para o afro/funk “Quando alguém está
dormindo” e até para o sotaque rítmico da Martinica na exótica canção em francês “Voulezvous”. Segundo Gerson, a União Black acabou antes de chegar ao segundo disco porque o
sucesso subiu à cabeça de seus integrantes. “Ficou difícil de administrar”
13.
Outro grupo que
surgiu, seguindo a linha da Black Rio, mas que também teve vida curta foi o Copa 7 (cujo nome
13
JANOT, No.com
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foi inspirado no Copa 5 de J.T. Meirelles). Dom Salvador, pianista de primeira (começou tocando
samba-jazz), formou os grupos Rio 65 Trio e o Salvador Trio, para depois criar o grupo Dom
Salvador e Abolição (com ex-componentes dos grupos Cry Babies e Impacto 8). Outros surgiram,
como Dom Mita e Carlos Dafé, sambista inicialmente, mas que incorporou a soul music e gravou
seu disco "Venha Matar Saudades", de 1978, em que canta acompanhado pela Banda Black Rio.
Zeca do Trombone, Abílio Manoel, Robson Jorge, Di-Melo, Hélio Matheus, Eduardo Araújo,
Tony Bizarro Miguel de Deus (do disco “Black Soul Brothers”) e o baiano Hyldon, ex-integrante
de outra formação relevante da área na época, o Diagonais (de Cassiano), que, com sua voz em
falsete teve êxito comercial com sua balada “Na chuva, na rua, na fazenda” e “As dores do
mundo”.
3.5. OS CUNHADOS
Nos anos 70, a soul music tomou de assalto a MPB e foi, definitivamente, a década em
que o pop brasileiro tentou virar black. Nesse complexo emaranhado de músicos, praticantes
declarados ou não do samba-rock, outros artistas de diversas vertentes beberam na fonte do
samba suingado, O balanço contagiou roqueiros, tropicalistas, sambistas, bossa novistas e os
“emepebitas”. Erasmo Carlos e Jorge Ben Jor foram vizinhos de Gerson King Combo, irmão de
Getúlio Cortes, compositor da jovem guarda e autor de 'Negro Gato'. Em linha direta com a bossa
nova de Ipanema, Marcos e Paulo Sérgio Valle lançaram a balada-soul “Black is Beatiful”
(interpretada por Elis Regina). Nelson Motta fez duas músicas com Carlos Dafé. Ivan Lins
começou sua carreira em 1970 com uma canção de inconfundível acento soul, em músicas como
“O Amor É Meu País”, que também gravou com o Trio Mocotó “Você, mulher, você”. O sambarock também que forneceu repertório para bandas de rock, como os Mutantes (em A Minha
Menina, no seu disco de estréia), os Incríveis (em “Vendedor de Bananas”) e o Som Nosso,
banda de rock psicodélico que gravou apenas um disco, em 77 (no qual, segundo alguns
entendidos, foi utilizada pela primeira vez a expressão “Black Rio”). Gilberto Gil e Caetano
Veloso, seguindo à risca a cartilha tropicalismo de “antropofagizar” tudo o que fosse interessante,
também embarcaram na onda. Gil gravou com Jorge Ben, que mantinha relações estreitas com os
tropicalistas. Caetano lançou o show e gravou um disco ao vivo com a Banda Black Rio (“Bicho
29
30
Baile Show”, em 1980). Por outro lado, a MPB também absorveu as influências do funk-soul, em
trabalhos como “Black Is Beautiful” e “Mentira”, gravados pelo bossanovista Marcos Valle.
3. 6. OS PRIMOS
Enquanto isso, na matriz, a virulência do funk começava a ser substituída por uma
versão diluída da black music, importada dos Estados Unidos, feita para as pistas dos clubs e para
o consumo de massa, sem sombra de pregação racial. Começa a febre da discoteca, de Donna
Summer, Chic e Earth Wind & Fire, que teve sua melhor tradução no Brasil com as Frenéticas,
atrizes-cantoras arregimentadas pelo produtor e compositor Nelson Motta para trabalharem como
garçonetes da sua casa Dancin' Days. A casa deu título a uma novela, cuja música-tema, cantada
pelo grupo, detonou a onda disco no Brasil. Outra diva disco made in Brazil foi Lady Zu
(Zuleide), paulistana que estourou com a música “A Noite Vai Chegar”, e que gravou alguns
sambas funkeados em seus discos, como “Boneca de Piche”, de Ary Barroso.. Na mesma onda,
embarcou o produtor e tecladista Lincoln Olivetti (mentor do som funk-pop de “Realce” e de
tantos outros discos da MPB), que gravou com Robson Jorge a música “Aleluia”, grande sucesso
nas rádios.
3.7. OS AMIGOS
Nos anos 80, a movimentação em torno do soul brasileiro e do samba-rock arrefeceu um
pouco. Ele continuava sendo ouvido nos bailes das periferias, e o grupo de Originais do Samba,
sucesso ao longo de três décadas, foi responsável por manter o suingue sempre vivo. Nos anos
60, já haviam gravado as “benjorianas” “Cadê Teresa”, e "Tá chegando fevereiro”. Participaram
de festivais e ganharam vários discos de ouro pela vendas de suas gravações, combinando o canto
uníssono, a percussão expansiva e boa dose de humor. Um dos integrantes do grupo, Mussum,
sairia para formar Os Trapalhões ao lado de Renato Aragão e Dedé Santana e Zacarias. Foi o
primeiro conjunto de samba a se apresentar no Teatro Olympia, em Paris. Outros sucessos dos
Originais como “O lado direito da Rua Direita" (de Luis Carlos e Chiquinho) e “A Dona do
Primeiro Andar” são considerados grandes samba-rocks. Dos Originais também saiu Branca di
Neve, sambista e suingueiro, grande parceiro de Luis Vagner, falecido precocemente em 89 aos
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38 anos, que compôs com Itamar Assumpção (músico egresso dos shows da Lira Paulistana)
“Nego Dito”.
Restrito aos bailes, o samba-rock pouco avançou em termos de reconhecimento nos
anos 80, exceto pela reconexão de samba e rock ensaiada pelo roqueiro Lobão em sua parceria
com o sambista Ivo Meirelles (que, mais tarde, daria origem ao projeto Funk'n'Lata de Ivo) e pela
homenagem feita por Lulu Santos no disco “Popsambalanço e Outras Levadas”, de 1989. Em 94,
Lulu repetiria a dose com “Assim Caminha a Humanidade”. Outra emergente do cenário do poprock 80, a ex-Blitz Fernanda Abreu acabou desenvolvendo um trabalho que a tornou uma espécie
de musa “samba-funk-disco” contemporânea. É dela e de Rodrigo Maranhão (líder do
Bangalafumenga), a música “Hey, Mister DJ”, uma ode aos históricos bailes cariocas.
No fim dos anos 80, o circuito paulistano do samba se encarregaria de recauchutar a
idéia sambalanço em um formato mais pop. Instrumentos eletrônicos de um lado, os velhos
cavaquinhos, surdo, pandeiro e tantan de outro, surgiam nomes de grande sucesso como Raça
Negra, Eliana de Lima e Só Pra Contrariar. Inicialmente voltados para uma diluição das raízes do
samba em música pop comercial, esses artistas acabaram por dar origem a um termo, encarado
por muitos, como pejorativo: o pagode paulistano (que Bebeto, indiretamente, ajudou a criar com
seu samba-rock mais comercial). Alguns deles, porém, chegaram a retomar as referências diretas
do samba-rock, como é o caso do Negritude Júnior (“Cohab City”, “Descendo a ladeira”), Art
Popular (na música “Agamamou”) e do grupo Molejo ( “Samba Rock do Molejão”). Na periferia
de São Paulo, ao longo dos anos 90, os bailes continuavam tocando as velhas músicas, que
apareciam aqui e ali em coletâneas piratas vendidas em lojas do centro da cidade.
3.8. OS FILHOS
Mas nem tudo estava mesmo perdido. O Festival MPB-80 da TV Globo, revelou a
rainha do soul brasileiro: a carioca Sandra de Sá. Ela começou como vocalista da Banda Black
Rio, mas só ganhou projeção nacional com a música “Demônio Colorido”, e seguiu ao longo dos
80 gravando sucessos como “Olhos Coloridos”, “Vale Tudo” (antológico dueto com Tim Maia),
o samba com acento soul “Enredo do Meu Samba” (Dona Ivone Lara e Jorge Aragão) e “Joga
Fora” (de Michael Sullivan e Paulo Massadas). Embora inicialmente englobado no movimento
roqueiro, a banda Brylho (de “A Noite do Prazer”) foi outra revelação do soul brasileiro do
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32
começo dos 80. Seus integrantes eram um parceiro (Paulo Zdanowski) e um discípulo (o
guitarrista e vocalista Claudio Zoli) de Cassiano. Em 1986, Zoli iniciaria uma carreira solo, que o
tornou um dos grandes batalhadores da soul music nacional, que também comporia “Flor do
Futuro”. Dentro do movimento Rock Brasil dos anos 80, apareceram bandas que ainda buscavam
uma base black, como Os Opalas e o conjunto Skowa e a Máfia.
Efetivamente, a MPB funkeada só retornou às paradas de sucesso através dos vocalises
do cantor Ed Motta. Tendo nos genes a herança soul do tio Tim Maia, Ed montou a banda
Expresso Realengo, prontamente rebatizada de Conexão Japeri. Quando ainda tinha 16 anos de
idade, gravou o disco “Ed Motta & Conexão Japeri”, que deu para as rádios balanços certeiros
como “Manoel” e “Vamos Dançar”. Ed Motta ficou um tempo fora da mídia brasileira, indo
morar nos Estados Unidos, de onde retornou dando sinais de uma melhor assimilação da música
brasileira ao compor a canção “Falso Milagre do Amor”, tema de abertura do filme “Pequeno
Dicionário Amoroso” (1997), de Sandra Werneck. No mesmo ano, Ed Motta lançou o disco
“Manual Prático Para Bailes, Festas e Afins Vol. 1”, no qual ele conseguiu enfim aliar a
elaboração musical à música brasileira e ao apelo popular, em composições como “Fora da Lei”
e “Daqui Pro Méier”. A Conexão Japeri ainda gravou dois discos sem Ed Motta. Bukassa
Kabengele,
vocalista
do
Scowa
&
Máfia
também se tornou um genuíno representante do soul e, em 1995, montou o Grêmio Recreativo
dos Amigos do Samba Rock, Funk e Soul.
3.9. OS NETOS
O samba-soul-funk carioca tornou-se quase um subgênero nos anos 90, servindo de base
para trabalhos de artistas do final dos anos 90. Ivo Meirelles, originalmente sambista advindo da
Mangueira, e seu grupo Funk’n’Lata, tentou uma retomada do samba-rock, misturando,
basicamente, funk com muita percussão. João Marcelo Bôscoli e Pedro Camargo Mariano (filhos
de Elis Regina) começaram suas carreiras por este caminho. João Marcelo abandonou a vida de
músico e atualmente se dedica à direção artística da gravadora Trama, cujo casting é formado,
além do irmão (que agora assina apenas Pedro Mariano), por Jair de Oliveira (filho de Jair
Rodrigues e irmão de Luciana Mello, que enveredou por um viés mais pop, e assinou contrato
com a Sony) e também Wilson Simoninha e Max de Castro, pilares da nova geração do samba32
33
rock. O irmão mais velho, Simoninha, cujo timbre vocal se assemelha muito ao do pai Simonal,
faz um trabalho mais tradicional, prestando reverências ao samba, agregado ao soul, ao sambajazz, funk, programações eletrônicas e rock anos 80. Em 2000, Max lançou o conceitual Samba
Raro, e seguiu com arranjos experimentais em seu segundo disco, "Orchestra Klaxon", em
referência à revista literária "Klaxon", que veiculava o discurso modernista em 1922. Designando
seu trabalho como "jovem vanguarda", ele foi saudado como a grande revelação musical
brasileira no exterior, e incensado pela crítica nacional. Suas músicas de mensagens críticas e
construções narrativas e melódicas contemporâneas, dão a ele o posto de fundador da modalidade
samba-drum'n'bass. A herança musical também se renova na nova banda Black Rio, ressuscitada
por William, filho de Oberdan Magalhães, que lançou em 2001 o cd “Movimento”. Com nova
formação, a iniciativa não acabou por não emplacar muito bem, fazendo poucos shows, ao dar
uma conotação mais pop para o trabalho. Outra que também faz a mescla com o drum’n’bass é
Fernanda Porto, grande promessa do meio musical, e Patrícia Marx, repaginada, agora também
integrando o elenco da Trama. A banda Zuco 103, ainda desconhecida do grande público
experimenta mesclas musicais com roupagem eletrônica. Formada por uma brasileira (Lilian
Vieira, a vocalista) e músicos de várias nacionalidades, a Zuco 103 faz um som contemporâneo,
ligado à vertente do tecnosamba. É assim que o trombonista e compositor Bocato (que já tocou
com Elis Regina) rotula o estilo musical de seu último CD, “We Want Samba”, lançado em 2000
também na Europa, onde é crescente o circuito do acid samba.
No entanto, a sonoridade original do samba-rock voltou a ser admirada nos circuitos
"descolados" universitários, entrando em trilha de programa da MTV, e voltando voltar às festas
"modernas" e à midia em geral. No sul, podem ser destacadas as bandas Casa da Sogra e
Ultramen, com uma levada pop. Em Minas Gerais surgiu o Movimento Balanço e, em Curitiba, o
grupo Samba Rock Sport Club, e vários outros conjuntos de samba-rock “pipocam” pelo Brasil
de maneira independente. Mas foi em São Paulo que o samba-rock tradicional retornou
triunfante. Contagiados por um instinto de coletividade, esses jovens músicos artistas vêm
trabalhando obstinadamente pela restauração do samba-rock. Funk como Le Gusta (que lançou a
cantora Paula Lima) e Clube do Balanço foram grupos oriundos de festas de samba-rock.
Sambasonics e Farufyno vieram logo depois, tocando em casas noturnas paulistas de classe
média. Todos estes grupos têm em comum o pesquisa e o resgate de músicas e compositores
antigos. Os baús dos preciosos sebos, espalhados em galerias da cidade, forneceram vinis raros,
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tesouros antigos que ajudam a compor o repertório dessas bandas. Para respeitar os arranjos e
melodias originais, utilizam também instrumentos da época, buscando a mesma sonoridade nos
timbres das cordas de nylon dos violões, baixos Fender e guitarras, no piano Rhodes e no órgão
Hammond ou teclados Rhodes. Misturando, claro, a cozinha brasileira do surdo-pandeirotamborim-agogô a poderosos naipes de metais.
Na geração do século XXI, jovens cariocas e paulistas fazem um interessante trabalho
de resgate e pesquisa das raízes do samba-rock, associado a uma renovação do ritmo.
Atualmente, fazendo grande sucesso no exterior, brilha o ex-Farofa Carioca, Seu Jorge, um dos
mais indomáveis e espontâneos dos jovens artistas brasileiros. Zé Ricardo começou sua carreira
independente, tocando nas noites do Rio, e ficou conhecido com o bem sucedido projeto Música
Preta Brasileira, no qual, junto a Sandra de Sá e Toni Garrido (do grupo de reggae Cidade
Negra), ressuscitaram discos anteriormente esquecidos como os da fase Racional de Tim Maia e a
Tábua de Esmeraldas, de Benjor, com shows em várias casas noturnas. E a noite carioca também
cedeu espaço para outros novos samba-rockistas como Rogê, grupos como Bangalafumenga e
Monobloco (este, de Pedro Luís, da Parede), ambos criados a partir de blocos carnavalescos
cariocas, Mané Sagaz, ainda independente, que faz um samba-rock-hardcore, e Léo Maia, filho
de Tim, que vem ensaiando várias tentativas de emplacar sua carreira. Seguindo uma outra linha,
rappers criam fusões do samba-rock com os ritmos do hip hop. O Thaíde e DJ Hum e os
Racionais MC’s que utilizam samplers de sambas-rocks como base para suas letras, como bem
fez Marcelo D2 , que sampleou “Kabalurê”, da dupla Antônio Carlos e Jocafi em seu grande
sucesso “Qual é”. A banda Eletrosamba surge como revelação da música brasileira, praticando
reconstrução do samba-rock, conjugando-o a outros estilos como funk, rap, reggae, rock, ska e
drum’n bass, numa grande celebração musical.
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4. RECONEXÃO SAMBA-ROCK
Este samba é meu groove da vez
Com guitarra e drum’n’bass
Só pra ver como é que fica
Eletrônico o couro da cuíca.
Fernanda Porto em “Sambassim” (letra de Alba Carvalho)
O samba-rock passa por um momento de ressurgimento, que vai além do garimpo em
sebos de vinis por parte de jovens brasileiros interessados em resgatar essas antigas sonoridades.
Entre 2000 e 2001 chegaram ao Brasil notícias de que alguns dos discos iniciais de Orlandivo
viraram moda em discotecas londrinas (as noites batizadas de “Bat Macumba” são o maior
sucesso). DJs europeus começaram a usar Ed Lincoln como base para batidas techno. O grupo de
"big beat", The Wiseguys, sampleou trechos de "Drive-In", de Erlon Chaves, para seu disco de
1998, “The Antidote”. Graças ao sample de "Tu Veux Ou Tu Veux Pas", de Brigite Bardot
(versão de “Não vem que não tem”), feita pelo grupo belga Lords of Acid, na música "Am I
Sexy?", a pilantragem foi parar até em Hollywood. O hit entrou na trilha do filme “Austin Powers
– The Spy Who Shagged Me”, de 1999.
Nesses 30 anos em que o samba-rock ficou sem espaço na mídia nacional, ele conseguiu
se manter principalmente na Europa e no Japão graças ao interesse de estrangeiros em sua
qualidade musical. A revalorização da estética setentista nas artes, no design e na moda também
pode ser um dos prováveis fatores deste revival. A procura por vinis para abastecer este mercado
é grande: discos raros como os de Dom Salvador e da Banda Black Rio são comprados a peso de
ouro por colecionadores.
O selo Ziriguiboom, que tem distribuição da gravadora belga Crammed Disc, além de
Bebel Gilberto e Zuco 103, contratou o Trio Mocotó. Depois de 25 anos sem tocar juntos, o Trio
retornou em 2000, impulsionados pelo revival do gênero, com “Samba Rock” (2000). O mais
novo trabalho, “Beleza Beleza Beleza” (2003) trouxe Skowa assumindo o lugar de Fritz,
acompanhado por João Parayba e Nereu. O selo inglês especializado em música brasileira
Whatmusic (que conta com a assessoria do músico Durval Ferreira) pôs ou repôs em circulação
trabalhos dos Copa 7 ("O som do Copa 7 – Volume 2"), Orlann Divo ("A chave do sucesso" ) e
Dom Mita ("O som do Black Rio"). Relançou também “Pilantrocracia”, projeto dos anos 60 do
saxofonista Paulo Moura e do tecladista Wagner Tiso. A Internet também ajudou muito no
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trânsito de informações, e com a procura cada vez maior de estrangeiros por esses discos, além da
circulação, no exterior e aqui, de cópias piratas, a tendência foi que se relançasse algumas dessas
obras, há tanto esquecidas, também no Brasil.
Em paralelo, notadamente em de São Paulo, jovens universitários vasculhavam sebos
em um movimento de garimpagem musical. Não se sabe o desejo desse público, além do
interesse estrangeiro, incentivou as gravadoras, ou se foram elas que, percebendo também uma
saturação do mercado musical brasileiro, resolveram mexer em seus arquivos empoeirados e
devolver às prateleiras clássicos da MPB. Em 2002, o baterista dos Titãs, Charles Gavin, se
armou de um espanador, e organizou a coleção da Universal, “Samba & soul”. Além da estrela
disco music brazuca, Lady Zu, de “A noite vai chegar” (1977) e “Fêmea brasileira” (1979), na
mesma coleção vieram quatro discos de um Jorge Ben ainda sem o Jor (“Samba esquema novo”,
1963, “Sacundin Ben samba”, “Ben é samba bom”, ambos de 1964, e “África Brasil”, de 1976),
dois de Gerson King Combo (o de estréia, em 1977 e o volume dois, em 1978), títulos clássicos
de Cassiano (“Cuban soul”, 1976) e Hyldon (“Na rua, na chuva, na fazenda”, de 1975) e o disco
solitário da banda União Black, de 1977. Gavin organizou também a coleção “Odeon 100 anos”,
pela EMI, relançando uma série que inclui Wilson Simonal, Banda Black Rio, Gerson King
Combo,
Miguel
de
Deus,
Tony Bizarro, Carlos Dafé e Branca di Neve. A EMI, a partir do antigo acervo da Odeon editou
em CDs discos de dois luminares da categoria: Nonato Buzar (“Nonato Buzar” e “País Tropical
Via Paris”, de 1975) e o grupo Som 3 (Tobogã, de 1970).
Os rappers também vinham utilizando clássicos da black music e do samba-rock em
suas bases (vide “Ela Partiu”, de Tim Maia, utilizada como base para o rap “Homem da Estrada”,
dos Racionais MC's). Algumas gravadoras, percebendo a possibilidade de lucro, gostaram da
idéia. Artistas voltaram, cantando antigos e novos sucessos, como Bebeto, Gerson King Combo,
Lady Zu, Luis Vagner e a nova versão da Banda Black Rio, cujo cd foi lançado pela Regata
Música. Criada em 2000, por Bernardo Vilhena, a gravadora lançou os cds solo de Paula Lima,
Seu Jorge, Ivo Meirelles, além do Clube do Balanço. A gravadora acabou, mas seu casting já
estava encaminhado.
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5. O BLACK POWER MADE IN BRASIL
“Você teria por Ele esse mesmo amor
Se Jesus fosse um homem de cor?
Glória, Glória, Aleluia, o meu Cristo não tem cor.”
(Tony Tornado em “Se Jesus Fosse um Homem de Cor”, letra de Cláudio Fontana)
A apropriação da soul music americana, além dos acordes, trouxe também o discurso do
“black power” (“poder negro”). Devidamente traduzido para um Brasil setentão “recémdestropicalizado”, em que o leque de possibilidades de mesclas musicais brasileiras e estrangeiras
era a embalagem ideal para a ideologia que pregava a valorização do negro, o discurso do “black
is beautiful” (“o negro é lindo”) caiu como uma luva para uma realidade de intensa segregação
racial, mas não tão assumida quanto o racismo norte-americano.
Não apenas os músicos que tocavam samba-rock, como também grandes vertentes da
MPB, adotaram e apoiaram o soul. Menos a crítica musical, que, segundo Nelson Motta, em seu
livro “Noites Tropicais”, o considerava um gênero menor. O fato de o samba-rock ter origem na
black music foi determinante para a pouca expressividade do movimento na mídia, já que era
restrito, inicialmente, às periferias, e também visto como uma cópia massificada do que se fazia
nos Estados Unidos. Nesse processo de internacionalização da “cultura negra” de origem anglosaxã, o Brasil se integrava ao que era produzido musicalmente e esteticamente pelas populações
negras do eixo Los Angeles, Nova Iorque, Kingston e, em menor grau, Londres. Comunidades
musicais que divulgavam pelo mundo a imagem do que é ser “negro” e “moderno”.
Esteticamente, o básico era seguir os artistas negros famosos, que, ao invés de raspar ou alisar os
cabelos crespos, manifestavam orgulho de sua raça ostentando vastas cabeleiras, penteadas ao
estilo “african look”. Uma tentativa de consolidar o ideário black power (termo cunhado pelo
Pantera Negra Stokely Carmichael), também vinculado à expressão "Black is Beautiful".
No Brasil setentista, a ausência de referências, líderes, ícones negros brasileiros que
tivesse algum apelo aos jovens negros, a alternativa mais fácil foi adotar referências como Shaft,
o "007 dos negros" e as influência teóricas de Malcom X e da organização política Panteras
Negras, que pregavam a necessidade da organização grupal dos negros, da dedicação aos estudos
e do conhecimento das leis jurídicas. No âmbito das artes, o documentário “Wattstax”, de Mel
Stuart (com Richard Pryor, Isaac Hayes, Jesse Jackson), vira moda entre os blacks. Também foi
muito vendito o livro “Uma Alma no Exílio”, de Eldridge Cleaver. Majoritariamente, a luta dos
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negros se deu no plano sociocultural, transformando sua cultura em instrumento de resistência.
Através do fortalecimento de sua identidade étnica – a música e a linguagem musical foram os
principais veículos – os negros americanos tentavam lutar contra opressão.
O gospel surgiu como reação à opressão da escravidão, enquanto o blues expressava
uma resposta ao racismo institucional, de tal forma que ambos refletiam o sofrimento produzido
pela opressão e pela resistência a ela. O ragtime e o jazz baseavam-se nas experiências dos negros
americanos em busca de uma linguagem musical que articulasse sofrimento e alegria, angústia
coletiva e expressão individual, dominação e resistência. À medida que os negros foram
migrando do sul para as cidades industrializadas do norte, criaram novas formas musicais para
expressar suas experiências, produzindo, entre outras coisas, o rhythm and blues, que deu origem
ao rock’n roll. Naquele tempo, o termo soul era usado para sugerir a essência de ser um afroamericano nos EUA e afirmar uma identidade coletiva. A soul music - estilo musical decorrente
da união entre o blues e o gospel - refletia a busca militante por uma identidade e muitos viram
nela uma forma de reafirmar a dignidade afro-americana em face da contínua discriminação. O
soul tinha tudo a ver com a questão do orgulho negro e foi a trilha sonora da luta pelos direitos
civis, originando logo depois a funk music.
5.1. OS BAILES DA PESADA
“Chame Ademir, Big Boy, Messiê Lima
É o Baile da Pesada que chegou pra arrebentar
Hey, mister DJ, Quero nitroglicerina
Quero Maria Fumaça, Black Rio, adrenalina
Hey, mister DJ, quero ouvir o batidão
Quero ouvir a Furacão”
(“Baile da Pesada”, de Fernanda Abreu e Rodrigo Maranhão)
Para além dos festivais, os palcos dos bailes black paulistas e cariocas foram os locais
ideais para a afirmação das estrelas da música negra brasileira daquela época. A imprensa,
percebendo o efervescente movimento que mobilizava milhares de jovens pobres e negros,
batizou o fenômeno de Black Rio. As festas no subúrbio foram responsáveis pelo enorme índice
de venda de discos black, superando, inclusive, o rock dos Rolling Stones ou do Led Zeppelin.
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Tamanha repercussão animou as gravadoras. A WEA - Warner Music do Brasil
encomendou a Oberdan Magalhães, a pedido da matriz norte-americana, uma banda que
mesclasse a soul music com a música negra brasileira mais conhecida no exterior: o samba.
Oberdan convidou Luiz Carlos Batera (que tocou com ele na banda de Dom Salvador), Cristóvão
Bastos (piano e teclados), José Carlos Barroso (trompete), Lúcio Silva (trombone), Jamil Joanes
(baixo) e Cláudio Stevenson (guitarra), que formavam a banda Impacto 8, para montar uma
banda. Em 1977, o grupo lançou, com o nome de Banda Black Rio, seu primeiro disco chamado
“Maria Fumaça”. Nesse mesmo disco, a banda fez uma versão de “Na Baixa do Sapateiro”, de
Ary Barroso, que se tornou emblemática da proposta sonora da banda. O sucesso foi grande, mas
a gravadora, na tentativa de popularizar mais ainda o trabalho da banda, que era instrumental.
Impôs então ao grupo a inserção de vocais, e outras mudanças, para um som mais comercial, que
não foram bem-vistas por alguns integrantes, que deixaram a banda. Em 1978, o grupo gravou
seu segundo álbum ‘Gafieira Universal’. O terceiro disco, ‘Saci Pererê’, saiu em 1980, já no
declínio do movimento Black Rio. O grupo continou fazendo shows até a morte de Oberdan, num
acidente de carro em 1984.
Os bailes black foram os responsáveis pela aplicação direta dos ideais do black power
na vida cotidiana de milhares de jovens negros das cidades brasileiras. Grupos de discotecários
organizavam bailes onde se tocava basicamente o soul norte-americano. Estas festas tiveram
início em clubes de bairros da periferia da cidade, mais precisamente em 1971, no dia 10 de
novembro, quando Mr. Funk Santos (Oséas Moura dos Santos) fez o primeiro baile em que só
tocou soul music, no clube Astória, no bairro do Catumbi, até hoje onde se concentra a nata do
funk carioca. Antes, o carioca Big Boy, locutor de rádio, já tocava soul em festas, mas o rock
ainda predominava. Big Boy, que também ficou famoso em programas de TV, foi o responsável
pela realização do Baile da Pesada, que fazia no Canecão, casa de shows do Rio de Janeiro. Junto
com o DJ Ademir, também viajaram por várias cidades do país, realizando a primeira turnê
nacional só de DJs. Junto a Mr. Funk, foram os precursores do movimento Black Rio. O DJ
maranhense Monsieur Lima também era uma estrela desta fase carioca pré-funk. Mas eram nos
bailes do subúrbio fluminense que o fenômeno se alastrava. Em pouco tempo, dezenas de equipes
de som apareceriam em Irajá, Rocha Miranda e Colégio.
Outro DJ famoso foi Asfilófio de Oliveira Filho, o Dom Filó, que começou a realizar
bailes soul no clube Renascença, uma associação criada no Andaraí, durante a década de 50 por
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negros em ascensão social, cujo ingresso em clubes tradicionais era dificultado pelo preconceito
racial. A proposta do clube era propiciar uma opção de lazer para essa elite negra. Sua política era
a formulação de uma “nova” imagem do negro, sem os estereótipos negativos da malangragem
ou marginalidade. Em 1972, Filó convence a diretoria do Renascença a ceder o clube para a
realização de eventos culturais que atuassem como formadores de uma consciência social junto à
comunidade negra local. A primeira atividade foi a montagem do espetáculo musical “Orfeu da
Conceição”, de Vinícius de Moraes. No entanto, a peça não atraiu o público que o grupo de Filó
desejava. A decepção veio em forma de uma outra idéia: organizar festas semelhantes aos Bailes
da Pesada e, através delas, passar mensagens afirmativas para os freqüentadores.
A partir de então o movimento começou a se configurar da forma como foi descrito pela
mídia, composto por grupos de jovens negros da periferia, altamente influenciados pela cultura
negra dos Estados Unidos, em busca de diversão, sobretudo, mas com interesse na construção de
uma consciência racial. Esses bailes não articulavam políticas de ação quanto à questão do
racismo, contudo não se silenciavam em relação à busca de um referencial negro que se
diferenciasse não somente do branco, como também da imagem “subserviente” que o samba
assumia ao passar por um processo de “embranquecimento”, iniciado com a sua apropriação pela
bossa nova. Embora essa visão mereça maiores discussões, a realidade é que, para aqueles
jovens, o samba não representava mais uma identidade nem de raça nem de classe. A presença
cada vez mais constante de brancos de classe média nas quadras das escolas de samba, a
apropriação do ritmo como símbolo nacional pelo Estado e a ênfase turística dada aos desfiles
carnavalescos tornou o samba uma opção de lazer seletiva, que não mais exercia apelo ao jovem
da periferia.
“As festas eram 100% soul music. O movimento Black Rio nasceu ali, no Astória, no
Catumbi. Antes da black music, o que havia para o povão era futebol, samba e jovem guarda. Só
som burro, refrão cheio de laia-laiá. Foi com a soul music que o negro passou a se valorizar, cuidar
do visual.”14
Os bailes soul, por sua vez, eram uma opção de lazer barata e acessível, e seus
produtores se esmeravam em torná-los sempre atraentes. Os DJs disputavam quem conseguia
mais lançamentos, ou seja, músicas novas. Como era difícil trazer discos do exterior, os vinis
eram artigos caríssimos. Quando um DJ conseguia algo, era capaz mesmo de retirar o rótulo para
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MR. FUNK apud ASSEF, 2003: 47
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que os concorrentes não tomassem conhecimento dos nomes dos artistas e das músicas, tornandoas exclusivas. Depois dos bailes no Catumbi e no Andaraí, as festas passaram a ser organizadas
por grandes equipes de somo como a Soul Grand Prix (de Dom Filó e Nirto), Uma Mente numa
Boa, Black Power, Cash Box, Hollywood, Furacão 2000. Nos salões lendários do CespRidivuária, Mackenzie, Disco Voador, Portelão, Cine Show Madureira, Vera cruz, Bola Preta,
Cassino Bangu, as festas podiam juntar de cinco a dez mil pessoas.
No Rio, as equipes som (ou “de baile”, como se chamava em São Paulo) como a Soul
Grand Prix e a Cash Box, e em São Paulo, a lendária Chic Show e seus discotecários, que
merecem destaque. É mérito deles que a cultura black tenha conseguido se infiltrar no público
consumidor brasileiro, ajudando também a construir mitos como Jorge Ben e Tim Maia. As
equipes investiam pesado em sonorização e na divulgação. Para o baile do Renascença,
conhecido como “Noite do Shaft”, em referência ao personagem do seriado americano
homônimo, eram realizadas projeções de slides de artistas e filmes que abordavam as questões
dos jovens negros. Não é necessário dizer que eram todos filmes americanos, mas que auxiliaram
os jovens brasileiros na construção de um estilo próprio. O lema “I Am Somebody” (“Eu sou
alguém”) era brandido nos populares bailes, que, à medida que foram crescendo, começaram a
despertar o interesse das gravadoras brasileiras. Os freqüentadores dos bailes eram vistos como
um enorme mercado em potencial. Inicialmente foram lançadas coletâneas com os principais
sucessos dos bailes. Muitas delas eram assinadas pelas equipes de som e pelos DJs de maior
prestígio. A gravadora repassava uma parte das vendagens para as equipes que se tornaram cada
vez maiores e mais rentáveis. Artistas nacionais começaram a despontar e a gravar discos nesse
momento. Nessa época que os artistas brasileiros que cantavam soul encontraram um grande
espaço nas gravadoras. O mercado de roupas e, principalmente, de sapatos também encontrou no
público black um nicho de mercado, em lojas de bairros comerciais populares, como Madureira.
Sofrendo inúmeras críticas, o movimento foi arrefecendo. Em meio à ditadura
brasileira, com seu projeto de integração nacional, o discurso oficial não podia conceber a idéia
de um negro brasileiro com identidade cultural e, muito menos, questões sociais próprias. A
repressão implementada pelo regime militar vigente no país, que via nos grandes bailes de negros
da periferia uma possibilidade de subversão, e o boom da moda discoteca enterraram o
movimento black brasileiro no começo dos anos 80.
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Os bailes voltaram a acontecer somente na periferia. Os inúmeros artistas foram
deixando de gravar discos, depois que seus álbuns não tiveram o sucesso de vendas esperado. A
discoteca chegou ao Brasil e foi ocupando o espaço do soul e do samba-rock. Nos subúrbios
cariocas, durante a década de 80, DJs mais novos, influenciados pelo moderno r’n’b americano,
como Corello e Fernandinho DJ, começaram a fazer bailes com discos desprezados pelos dj’s dos
bailes soul. Basicamente, as músicas eram todas americanas, funks melódicos, mais lentos e
arrastados, de grande apelo comercial. Os freqüentadores, sempre bem vestidos nos bailes,
inspiraram o termo “charme” para designar o novo movimento. Os bailes charme rivalizavam
com o funk, que retornou à mídia no final dos anos 80, com equipes que haviam se tornado
verdadeiras corporações. A Furacão 2000, que, nas mãos de Rômulo Costa, se desmembrou em
gravadora, programa de TV e de rádio, organizava bailes que chegam a reunir 30 mil funkeiros
(inclusive muitos de classe média), no Rio e em outros estados. A música, que em nada lembra o
seu funk “setentista”, é herdeira do ritmo Miami bass, criado na Flórida, original do cruzamento
da música eletrônica com o rap. Mas, como nos bailes charme, a questão racial não é o chamariz
principal, e sim a batida forte e dançante.
Um discurso musical mais politizado encontrou eco nas periferias paulistas. Era outro
gênero também advindo dos Estados Unidos é que toma conta da cabeça dos jovens: o rap. O hip
hop paulistano começou a se desenvolver logo no final dos anos 70, através de ícones do
movimento como Nino Brown, Nelsão Triunfo e a equipe Funk & Cia. A Chic Show e a
Zimbawe rivalizavam como as maiores equipes. A Zimbawe, inclusive, viraria o selo que lançou
os Racionais MCs. Ao longo dos anos 80, a Chic Show continuou atuante e foi responsável pela
vinda ao Brasil de pesos pesados da black music americana, como Gloria Gaynor, Earth, Wind &
Fire e Cheryl Lynn. Lançaram várias compilações em LP, e estreou um programa na rádio. Em
seus megaeventos, enquanto os DJs se revezavam nos toca-discos, os primeiros videoclipes de
hip hop eram exibidos nos telões. Foi ali que muita gente viu, pela primeira vez, como se dançava
o break. Mesmo assim, nos bailes nostalgia, o samba-rock ainda imperava entre os dançarinos.
Mais que alternativas de entretenimento, os bailes serviram como bases de coesão e estruturação
social, possibilitando a construção de múltiplas identidades para uma população negra cada vez
mais ativa dentro de um contexto globalizante.
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5. OS REIS DA VOZ: A IDENTIDADE NEGRA EM
CONSTRUÇÃO
“Você ri da minha roupa
Você ri do meu cabelo
Você ri da minha pele
Você ri do meu sorriso
A verdade é que você,
Tem sangue crioulo
Tem cabelo duro
Sarará crioulo”
(Olhos Coloridos, de Sandra de Sá, composição de Macau)
Independente da nacionalidade do discurso racial, os anos 60 e 70 foram testemunhas do
aparecimento de grandes figuras, que contribuíram fundamentalmente para uma transformação do
estereótipo do negro na mídia. Como estudo de caso, selecionamos a figura de cantores negros
populares surgidos nas décadas de 60 e 70, influenciados pelas sonoridades da música afroamericana. A justificativa para a seleção destes artistas remete-se ao fato de que a música popular
brasileira sempre foi um forte instrumento de construções identitárias sociais e culturais. Se
inicialmente, o negro tinha uma imagem ligada à subserviência, ao exotismo e sensualidade, ou à
“malandragem”, os anos seguintes demonstram que estas construções midiáticas anacrônicas
seriam substituídas no imaginário coletivo por outras possibilidades de representação social e
subjetiva. Estes cantores, oriundos de uma cultura massificada, romperam as barreiras da
diferença de classes e cor para criarem, a partir de discursos próprios ou não, novas
possibilidades de construção da identidade negra nos meios urbanos. A bandeira da valorização
da cultura negra emerge, assim, como um movimento pós-moderno, dentro do qual se articulam
diferentes estratégias de diferenciação, discurso e poder.
Gerson King Como, Toni Tornado, Erlon Chaves, Wilson Simonal e Jorge Benjor. O
que motivou a escolha destes personagens foi o fato de terem vivido em uma época
especificamente conflitante, o período da ditadura militar, marcada pela repressão, pelas
patrulhas ideológicas e a militância da esquerda, pelo arrivismo da imprensa e do
conservadorismo da sociedade, e também pelos movimentos de igualdade racial e social. Dos
programas de TV às páginas dos jornais, dos palcos dos festivais aos bailes das periferias, a
compreensão das diferentes imagens assumidas por estas figuras emblemáticas foi um caminho
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fundamental para a compreensão das estratégias sociais engendradas na construção de novas
subjetividades, e na afirmação do negro enquanto ator social, frente a um contexto de
globalização.
5.1. THE BIG KINGS
Considerado o rei dos bailes, Gerson Cortes, (em homenagem à banda de soul e jazz
King Curtis Combo) assumiu o nome artístico de Gerson King Combo foi a tradução da cultura
negra norte-americana no Brasil. Depois de ajudar a fundar a Banda Black Rio e também o
conjunto União Black, Gerson decidiu seguir carreira solo. Correndo numa faixa paralela ao grãomestre do soul brasileiro, Tim Maia, Gerson Gerson King Combo encarnou uma versão
“cabocla” de James Brown, incorporando sua forma de cantar e dançar. Em seu hino “Funk
brother sou”, ele adapta o bordão primal do baião, ''eu vou lhe mostrar/ como se dança o funk,
brother''. Compôs outros funks de conteúdo social, como “Mandamentos black”, no qual também
dizia: “A cor branca é a cor da bandeira da paz e da pureza”, demonstrando que seu discurso
jamais foi racista, e sempre conciliatório. Enquanto o “Soul Brother” James Brown cantava “Say
it loud, I’m black and proud” (“Diga alto, sou negro e orgulhoso”), Gerson também gritava
“Minha mãe é negra, graças a Deus, o meu pai é um black também, graças a Deus” (da música
“Hereditariedade”). No encarte do cd remasterizado, “Gerson King Combo”, de 77, ele conta
como surgiu o interesse pela música soul e relata com detalhes a inacreditável história do
encontro com o ídolo James Brown. Ele invadiu o palco durante um show das Supremes na
Jamaica para mostrar “como o brasileiro dançava”, quando impressionou o empresário de James
Brown, que promoveu o encontro dos dois numa suíte de hotel em Nova York. Na contracapa
vem impresso o telegrama que recebeu assinado pelo empresário J. Village e também por James
Brown. Este que viria a ser o modelo de outro astro negro brasileiro, legítimo representante da
filosofia do Black Power no Brasil.
O ano era 1970. Na noite do dia 17 de outubro, a mais aguardada atração do 5º Festival
Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, era a décima terceira música concorrente.
Desde os ensaios que se comentava sobre Toni Tornado, o intérprete da a dupla Antônio Adolfo e
Tibério Gaspar havia descoberto para transmitir o que tinham imaginado para “BR-3”, uma valsa
soul. Com a participação do Trio Ternura, Toni, um negro de quase dois metros de altura, que
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portava um imponente cabelão black power, seria o defensor da música. O impacto da sua
presença e a performance espetacular, recheada de improvisos musicais, cantando e dançando ao
estilo de James Brown, deu a todos a impressão de ser a melhor música de todas.
Aquele foi o ano em que a “onda” black invadiu a cena da MPB. Os festivais eram
espelhos do que estava sendo feito em matéria de música popular de massa naquela época. No
palco do FIC, músicos negros fizeram grande sucesso. Os cantores Maria e Luis Antônio vieram
à frente de seis músicos, todos negros vestindo batas africanas coloridas, liderados pelo pianista
Dom Salvador ao órgão, para interpretar o spiritual: “Abolição 1860-1980”, dele e Arnoldo
Medeiros. “Não, não se pode falar em Black Power ou coisa assim”, declarou a cantora quando
indagada se a música tinha caráter político no tocante ao racismo. “Tem grande vinculação com
a raça, raízes negras... mas sem intenções racistas, só musicais”.15 A apresentação foi bastante
aplaudida, dando a dica de que a tônica das produções cênicas e musicais seria alimentada pela
soul music.
E assim foi. O festival daquele ano teve, dentre suas apresentações, Cauby Peixoto e
Fábio defenderam a balada soul “Encouraçado” (Sueli Costa e Tite Lemos). Outro artista, tão
aplaudido quanto a dupla citada foi Ivan Lins, que estreou com outra canção também de
influência soul, “O Amor é Meu País”. Paulo Diniz também se apresentou com o sucesso do
momento, “Quero Voltar pra Bahia” (“I wanna go back to Bahia”). Wanderléia apresentou o
xaxado-soul dela e do compositor Dom (Eustáquio Gomes de Farias) “A Charanga”.
“Eu Também Quero Mocotó”, com Erlon Chaves e a Banda Veneno também se
destacara, mas não deu outra: “BR-3” foi a melhor. A performance de Toni também teve mérito
na vitória. Entrando no palco usando botas pretas até o joelho, camisa cáqui desabotoada com o
peito à mostra, onde um sol colorido pintado contrastava com a pele escura, Toni contou com o
Trio Ternura no backing vocal, cujas roupas, batas longas de mangas compridas e mantos de
cores vivas, lembravam um coro gospel americano. Após a calma introdução do piano, em que o
trio repetia a estrofe inicial entoada tranqüilamente por Toni - “A gente corre/e a gente corre/ na
BR-3/ na BR-3/ e a gente morre/e a gente morre/ na BR-3/ na BR-3” – que emendava em um
solo, com a mesma melodia e outra letra: “há um foguete/ rasgando o céu, cruzando o espaço/ e
um Jesus Cristo feito em aço/ crucificado outra vez”, que induziam a platéia a balançar o corpo, à
medida em que aumentavam as inflexões soul. Nesse ponto, uma chamada de metais para a
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MELLO, 2003: 373
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segunda parte, formada por riffs, no estilo funk, aumentava o andamento, com Toni soltando
frases e exclamações improvisadas, dançando e rodopiando em passos que nunca tinham sido
vistos no Brasil. “Toni Tornado acabou em baile”16.
Antônio Viana Gomes, nascido em1931 no oeste de São Paulo, veio para o Rio ainda
criança, e sempre gostou de dublar cantores americanos, imitando Chubby Checker. Foi assim
que, na juventude, começou a participar de programas de televisão. Na TV Rio, conheceu Carlos
Imperial, que o contratou como segurança. Conviveu assim com Roberto Carlos, Erasmo e
Simonal, e começou a trabalhar no show Coisas do Brasil, especializado em levar a música
brasileira para o exterior. Depois de uma temporada na Europa, Toni foi para os Estados Unidos,
onde viveu vários meses na clandestinidade como lavador de carros. Voltou para o Brasil falando
inglês com sotaque do Harlem e foi contratado como atração “internacional” de araque por uma
boate de reputação duvidosa na Praça Mauá. Além de cantar, dançava no estilo de James Brown,
e acabou sendo chamado, junto com a mulher Edna, para ir trabalhar em outro inferninho, o New
Holliday, em Copacabana. Foi lá que Tibério Gaspar o conheceu e o chamou para defender no
FIC sua canção “BR-3”. Toni também fora crooner do conjunto de Ed Lincoln, era o intérprete
ideal para aquela “ópera soul”, que fazia uma crítica subliminar à ditadura. A música foi rejeitada
por Simonal, que não se enquadrava na linha alegre que seguia, e também por Tim Maia, que não
podia se expor por ordem da gravadora Philips, pois estava aguardando um lançamento
bombástico. Afinal, por sugestão de Orlandivo, Tibério optou por Toni Tornado (o sobrenome foi
sugerido pelo produtor Mariozinho Rocha, da Odeon), engajado no esquema Black Power, o
vendo como um possível líder negro. Óbvio que este “poder” imaginário foi mal visto pelos
militares, que deram mostras de temer que acontecesse no Brasil algo como os violentos
militantes Panteras Negras. Do outro lado, a imagem black de Toni Tornado mexeu com as
estruturas das moças brancas do público.
Dias após o encontro dos artistas ligados ao FIC com Médici – cujo fato do presidente
haver cumprimentado Toni Tornado pela vitória foi comentado em todos os jornais – o colunista
Ibrahim Sued, concorrente desclassificado do festival, articulou um embuste, sugerindo que “BR3” não era somente a sigla da via Rio-Belo Horizonte mas, segundo o código dos viciados, uma
veia do braço onde se injetava cocaína. Por detrás da invenção havia um lobby para um livro
escreito pelo seu amigo general Jaime Graça, chamado “Tóxico”. Na sua capa vermelha, o título
16
Era dos festivais, pág 379
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lembrava uma carreira de cocaía e nas primeira spáginas, sugeria que a música “BR-3” era um
hino ao toxiômano, com a substituição dos versos do incício da música por outros: “Há uma
seringa/ que vem do céu, cruzando o braço/ e uma agulha feita em aço/ pra espetar outra vez”.
Como se não bastasse, Toni Tornado, já separado há algum tempo de Edna, teve uma
violenta discussão com a ex-mulher, que redundou numa acusação fabricada de “agressão”. Ele,
que tinha começado um romance com a atraente atriz loura Arlete Sales, fez tremer as bases das
famílias conservadoras, “ameaçando” a segurança das mulheres brancas. Enquanto Tibério foi
chamado para depor no SNI, Arlete começou a ter problemas na emissora por causa do
escândalo, e Toni mal podia sair à rua, sendo alvo de insultos. A produtora de Tibério e Antônio
Adolfo desfez os contratos que tinha com o Trio Ternura e Toni Tornado, pois ela estava
sofrendo assédio dos militares querendo tirar partido para fazer propaganda do governo.
5.2. O REI DO MOCOTÓ
No mesmo festival que havia revelado Toni Tornado, outro cantor negro também se
destacou: Erlon Chaves, e sua banda Veneno, que apresentaram “Eu também quero mocotó”, de
Jorge Ben. No palco, fizeram um grande “happening” musical. A Banda Veneno (um coro de 40
vozes), estava vestida em cores vibrantes, acompanhando o Erlon, que usava roupas brilhantes
(cantando sob a brisa de grandes leques de plumas abanados por um par de “escravos” também
negros). O regente Rogério Duprat vestia um macacão laranja de mecânico, não regia coisa
nenhuma, virando as páginas de qualquer jeito e ainda incitando o coro a jogar as partituras para
o ar. Ninguém parecia levar a sério a competição, estavam ali para fazer o povo se divertir.
“... Pois eu cheguei, to chegando/ to com fome/ sou pobre coitado/ me ajudem por
favor/ bote mocotó no meu prato”. O mocotó tomou conta de todo o Maracanãzinho. Ao decidir
defender “Eu Também Quero Mocotó”, Erlon deu um passo decisivo em sua carreira, depois de
anos atuando como arranjador, para tornar-se, enfim, cantor bem sucedido, já tendo assinado um
contrato na Simonal Produções, de seu grande amigo.
Erlon Chaves nasceu em São Paulo, mas foi no Rio que se consagrou como exímio
arranjador. Começou a estudar música muito cedo, aos sete anos de idade. Já na década de 1950,
ingressou na carreira musical como pianista de casas noturnas, onde conheceu diversos músicos e
desenvolveu sua veia "jazzística". Em 1965, após ter trabalhado na TV Excelsior de São Paulo,
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Erlon mudou-se para o Rio de Janeiro onde foi trabalhar na TV Tupi e, mais tarde, na TV Rio.
Nesta última, passa a exercer a função de diretor musical, sendo uma das "cabeças" por trás do I
Festival Internacional da Canção em 1966.
No dia seguinte ao estardalhaço promovido no festival, desfilavam pelos salões e
piscina do hotel Glória os dois heróis da noite anterior. Toni e Erlon, cercados por repórteres,
recebiam dos louros do sucesso. Erlon havia sido convidado para ocupar a presidência do júri e
reapresentar “Mocotó” no show de encerramento da fase internacional final do FIC. Mas a
direção do festival não poderia imaginar o rebuliço que Erlon organizaria. Ao subir ao palco para
cantar, ele foi cercado e beijado por duas belas loiras em trajes sumários (que estavam
substituindo os “escravos” com abanadores). Nos lares, algumas esposas brancas ficaram
ofendidíssimas, ao lado dos maridos. O “número infeliz” acrescentado por Erlon à revelia da TV
Globo, segundo comunicado posterior, era uma afronta aos padrões conservadores dos anos 70.
Erlon Chaves saiu do palco e foi imediatamente levado preso a uma delegacia, acusado de
atentado à moral. Com ele, Boni, diretor da TV Globo, também foi preso. Choveram reclamações
e comentários desfavoráveis à cena, a imprensa se manifestava, taxando o episódio de obsceno,
cafajeste, desrespeitoso. Depois de alguns dias, Erlon foi solto, mas por causa de uma portaria da
Censura Federal, ficaria proibido de exercer suas atividades profissionais em todo o território
nacional por 30 dias. Sua carreira como cantor foi destruída, e ele se retirou da vida pública.
Erlon Chaves, depois do escândalo, caiu no ostracismo, como aconteceria, anos mais tarde, com
Wilson Simonal. Companheiros na “pilantragem”, os dois tiveram desfechos parecidos.
5.3. O REI DA PILANTRAGEM
É impressionante a trajetória do carioca Wilson Simonal. Nascido em 38, venceu as
barreiras da pobreza e transformou-se num dos artistas mais populares e bem pagos do Brasil. No
final da década de 60, em plena ditadura militar, época de fortes manifestações políticas e
culturais e com o país tomado por um maniqueísmo desenfreado, ele era como um rei, acima de
qualquer luta entre o bem e o mal. Dotado de grande voz, Wilson tinha um senso de divisão igual
ao dos melhores cantores americano, passeando sem medo por diversos ritmos, sem se afastar da
melodia ou sem apelar para os scats fáceis. Fazia uma música pop, de boa penetração em todas as
camadas sociais, leve, alegre e de grande qualidade.
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Simonal sempre soube muito bem o que queria fazer e tinha um tino artístico e
profissional muito forte. Participou do primeiro Festival Nacional da Música Popular Brasileira,
da TV Excelsior, em 65 (“Cada Vez Mais Rio”, de Vinhas e Bôscoli, ficou entre as finalistas),
mesmo ano em que foi convidado para apresentar, junto com Elza Soares, o programa BO65 (os
primeiros apresentadores negros da TV brasileira). Em 66, ganhou seu próprio programa na TV
Record, o “Show em Si...Monal”. A convivência diária de Simonal, Carlos Imperial, Erlon
Chaves e César Camargo Mariano (que fazia parte do Som 3, trio que sempre acompanhava
Simonal) fez surgir um estilo popular, mas novo e diferente. Adaptando a MPB aos compassos de
ritmos dançantes como o soul e o pop latino de artistas como Trini Lopez e Chriz Montez, mais
artíficios feito marcação de palmas e lá-lá-lás nos vocais, a Pilantragem conseguiu rivalizar com a
jovem guarda em termos de popularidade. "Carango", "Mamãe Passou Açúcar em Mim", "Sá
Marina", "Vesti Azul", "Nem Vem Que Não Tem", entre tantos hits, freqüentaram os mais altos
postos das paradas nacionais entre os anos de 66 e 69. Não por acaso, esse período coincide com
a fase mais popular de Wilson Simonal e sua série de LPs chamada Alegria, Alegria. “Era o
estado maior da Pilantragem”.17 Segundo o músico e compositor maranhense Nonato Buzar, a
pilantragem foi um capítulo importante da MPB, "Foi uma idéia conjunta, mas o grande sacador
foi o Simonal. Fui fundamentalmente contra o nome porque achava pejorativo, mas foi o nome
que ficou"18. A idéia de uma nova tendência sonora surgiu a partir de uma despretensiosa
composição de Nonato, "Carango. Imperial fez uma versão próxima ao formato de "Deixa Isso
Prá Lá", cantada pelo Jair Rodrigues. Sucesso em 1966 com Erasmo Carlos e Simonal, a canção
serviu de modelo para outras composições no estilo. Até bossas, toadas e canções folclóricas
como "Meu Limão, Meu Limão" (descaradamente assinada por Imperial) entraram no esquema
irreverente de palminhas e lá-lá-lás. A pilantragem se expandiu ao ponto de virar um tipo de
fórmula sonora para a música pop feita no período (até a francesa Brigitte Bardot gravou um
cover de "Nem Vem Que Não Tem" intitulada "Tu Veux Ou Tu Veux Pas", em 1970).
Em 1967, Wilson Simonal lança em compacto simples a canção que fez, em parceria
com Ronaldo Bôscoli, para o filho Wilson Simoninha: “Tributo a Martin Luther King”, talvez a
obra mais consciente do cantor. Com forte influência da música gospel /soul norte-americana, a
música contextualizava a luta do pastor Martin Luther King pela igualdade dos direitos entre
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MELLO, 2003: 381
BRABO, site do Clube do Balanço
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brancos e negros. A canção foi executada pela primeira vez em seu programa na Record. Na
introdução, Simonal explica quem é Luther King. "É um negro americano que luta pelos direitos
dos negros. E ele tem um sonho: o sonho de que brancos e negros sejam iguais. Eu fiz esta
música para o meu filho porque eu espero que ele não passe pelas mesmas dificuldades que eu
passei, mesmo me chamando Wilson Simonal de Castro". “Tributo a Martin Luther King” é um
hino de resistência racial. “Sim sou um negro de cor/ Meu irmão de minha cor/ O que te peço é
luta sim/ Luta mais/ Que a luta está no fim/ Cada negro que for/ Mais um negro virá/ Para
lutar com sangue ou não/ Com uma canção também se luta irmão/ Ouve minha voz/ Luta por
nós/ Luta negra demais/ É lutar pela paz/ Luta negra demais/ Para sermos iguais”
Nessa época, seu cachê era o maior do showbusiness brasileiro devido à legião de fãs, e
sua imagem atingia milhares de pessoas. Em 1969, contratado para fechar a parte inicial do show
de Sérgio Mendes no Maracanãzinho, para uma platéia de 30 mil pessoas, Simonal acabou sendo
a atração principal. Simonal continuava comandando milhares de pessoas todas as noites no
Canecão e em qualquer casa que se apresentasse. No mesmo ano, assinou com a Shell um
milionário contrato publicitário. Logo em seguida, o cantor foi escolhido para acompanhar a
seleção brasileira de futebol à Copa do Mundo de 70. Em 1972, na faixa-título do LP “Se
Dependesse de Mim”, onde mesclava baladas de gosto duvidoso a Noel Rosa e Gilberto Gil, ele
canta um sintomático "quero o tombo/ e não a rasteira". Simonal faria outros trabalhos, de ainda
menor qualidade, apesar de ainda emplacar “Na Galha do Cajueiro”, mas a esta altura das
mudanças de mercado, com os hit parades do rock e da funk music invadindo o cenário musical, o
cantor iniciaria sua fase de declínio, e, após um episódio nebuloso, sua carreira, enfim,
desmoronou.
5.5. O REI CHEGOU, VIVA O REI
Em 1963, aos 21 anos, o jovem Jorge Duílio Lima de Menezes não sabia bem o que
queria fazer da vida. Nascido no bairro do Rio Comprido, subúrbio do Rio de Janeiro, já havia
servido ao Exército e sonhava em ser jogador de futebol. Filho de Augusto Menezes, pandeirista
do bloco Cometa do Bispo, cantor e compositor de músicas de carnaval, e da etíope Sílvia Saint
Ben Lima, foi da mãe que ganhou o primeiro violão de presente. Autodidata, não conseguia
imitar a técnica refinada da turma da bossa-nova, e acabou desenvolvendo um estilo original de
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tocar violão com uma batida inusitada, como quem toca guitarra, influenciada pelos ídolos João
Gilberto e o roqueiro Ronnie Cord.
Das primeiras noites como crooner no Beco das Garrafas ao primeiro disco “Samba
Esquema Novo”, de 63, foi um pulo. Com mais de 100 mil cópias vendidas logo do primeiro LP,
Ben se viu enrascado com os “ossos do ofício” do sucesso. Saindo do encalço da bossa nova, que
norteava seus primeiros trabalhos, era criticado por não se fixar a nenhum dos movimentos
musicais da MPB da época. Chegou a participar de programas de tv antagônicos como "O fino da
bossa", "Jovem guarda" e “Divino Maravilhoso”, convidado por Caetano e Gil (com quem
gravou um disco, posteriormente).
Assim como a entrada de Jorge Ben na bossa nova, mais pelo Beco das Garrafas e pelo
Copa 5 do que propriamente por afinidade, e o seu ingresso na Jovem Guarda, a aventura
tropicalista de Jorge era antes resultado de novas tentativas experimentais do que qualquer
identificação que possa ter havido. Prova disso é que Ben topava participar do Divino,
Maravilhoso, mas do jeito dele: enquanto todos se apresentavam espalhafatosos no vestir e
ousados em suas atitudes, ele no programa só tocava e cantava as suas próprias músicas, sentado
num banquinho, vestido normalmente. Apesar de estar sempre cercado de grandes compositores,
o músico teve poucos parceiros na sua carreira, conseqüência de um estilo próprio, único.
Sem se engajar a nenhum movimento musical, Jorge seguiu adiante com sua batida
diferente tipicamente pós-moderna. Maracatu com rock’n roll, soul na bossa nova, a mistura fez
sucesso também no exterior. No meio de tantos gêneros e movimentos musicais, Jorge nunca se
tornou adepto de nenhum deles, mas soube aproveitar o que deles considerou melhor.
Apropriando-se, sem pedir licença, de idéias e sons, novas linguagens e experimentações, todos
foram contribuintes preciosos de uma nova estética. Uma verdadeira postura antropofágica, que
até hoje embaralha a cabeça de quem tenta categorizá-la.
A fase do namoro tropicalista está bem visível em seu disco Jorge Ben (1969), onde ele
rompe de vez com o acompanhamento bossa novístico dos discos anteriores e abre espaço para as
viagens eruditas do maestro e arranjador tropicalista Rogério Duprat em “Descobri que Sou um
Anjo” e “Barbarella”. Ele também abandona o dedilhado nas cordas, típico da bossa nova, e o
substitui por um toque aberto, rápido e simples, mais próximo do folk americano. As temáticas de
algumas músicas, como “Que Pena” e “País Tropical”, foram criadas quase que sob encomenda
para o programa Divino, Maravilhoso.
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Posteriormente, Jorge se reaproxima do balanço, identificado por ele como "batida de
escola de samba depois do desfile", ao começar a trabalhar com dois grupos recém-formados: Os
Originais do Samba e o Trio Mocotó. Em 'Charles Jr.', acompanhado pelo Trio Mocotó, fez uma
estranha mistura de partido alto e o tal samba-rock, cordas e metais, e muita percussão. Chegam
então os anos do violão já samba-funk (começa em 'Negro é Lindo', 71, passa por 'Ben', 72) e da
cabeça iluminada pela 'luz polarizada' ('Solta o Pavão', 75). Na homenagem de Jorge à sua “raça
de todos as cores”, o desfile da nega “Zula”' e a elegância do campeão “soul brother” “Cassius
Marcelo Clay”' são sintomas da ascensão e resistência negra.
1974. O ano é emblemático, e data a chegada dos alquimistas. Realmente, o som
percusivo do Trio Mocotó, inigualável, simples, mas pertinentes de suas cordas não deixam
dúvidas. Ben chegou, em “A tábua de esmeraldas”, ao ápice. Em África Brasil, de 76, Jorge Ben
trocou o violão pela guitarra elétrica, para conceber o disco mais pesado da sua carreira. Com a
banda Admiral V formada por músicos do quilate de José Roberto Bertrami, Wilson das Neves,
Oberdan Magalhâes (no ano em que surgiria a Banda Black Rio), Dadi, Djalma Correa e Marcio
Montarroyos montou um painel exuberante de acordes desde "Umbabarauma - o Ponta de Lança
Africano" até os últimos gritos da nervosa versão de "Zumbi", dando contornos de um samba
"africanizado", poderoso, e universal.
Após o vigoroso “África Brasil”, Jorge troca de gravadora e realiza um antigo sonho:
montar uma banda que misturasse instrumentos de funk e samba, numa fusão que muitos
julgavam impossível. Para isso, formou a Banda do Zé Pretinho, grupo que ainda hoje o
acompanha nas gravações e turnês. Os melhores discos desta fase são A Banda do Zé
Pretinho(1978) e Bem-Vinda Amizade (1981), provas verdadeiras da carreira em nova mutação.
Poeta urbano e sub-urbano , como se auto-define, Jorge busca no dia-a-dia, nas pessoas
que conhece e nas notícias que lê, a inspiração para suas músicas. A ligação de Jorge Ben Jor
com a música e cultura negras vem de berço, já que sua mãe nascera na Etiópia. As palavras do
idioma Nagô ouvidas correntemente em casa durante a infância e adolescência, como os santos
Sacundim e Sacundem e guerreiros Dombim e Dombém, foram parar nas letras das primeiras
músicas, apimentando ainda mais seu caldeirão de influências. Várias são suas referências à raça
negra a beleza da mulher é exaltada em Que Nega é Essa, Menina Mulher da Pele Preta e
Crioula, enquanto as relações senhor-escravo aparecem em Jeitão de Preto Velho, gravada em
1964. O sofrimento e resistência do povo negro não foram esquecidos: em 1974, destaca-se
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Zumbi, um verdadeiro hino ao senhor das guerras e das demandas. Influenciado pela bandeira
internacional Black is Beautiful , em 1971 lança o disco Negro é Lindo, que contém, além da
faixa-título, as músicas Zula e Cassius Marcelo Clay, uma homenagem ao pugilista. Ao disco
gravado com o cúmplice de cor Gilberto Gil, deu o subtítulo de Ogum Xangô, orixás opostos
representados por dois búzios na capa do álbum. Já o nome dado em 1976 à banda que ainda hoje
o acompanha é um dos sinais de seu sincretismo religioso. Segundo o artista, Zé Pretinho é uma
entidade benfeitora que um dia apareceu numa festa, assobiando e dizendo: "Toca sempre para
mim, gosto de batuque".19
Os anos 80 e 90 testemunham uma desaceleração na carreira de Jorge Ben Jor, que
havia passado a um uso crescente de teclados e sintetizadores nas gravações. Apesar de continuar
lotando shows, ficou alguns anos sem gravadora. “Samba heavy” é como Ben Jor passou a definir
o som que o fez voltar às paradas na década de 90. Na ressaca de W/Brasil, 23 (1993) consolida
este novo perfil que o diga a música Engenho de Dentro, feita com sobras do hit anterior.
Acostumado a escrever sobre temas específicos, as letras agora não têm mais o compromisso de
narrar: o non sense é levado a extremo, misturando anjos e crianças com antena parabólica e
cartão de crédito (vide “Homosapiens”, de 95). Jorge é o único a ter músicas regravadas por
artistas de várias correntes. Elis Regina, Os Mutantes, Ney Matogrosso, Ella Fitzgerald, Dizzie
Gilespie, Julio Iglesias, Al Jarreau, Trini Lopez, José Feliciano, Paralamas do Sucesso, Marisa
Monte, Fernanda Abreu, Kid Abelha, Mundo Livre S/A, entre outros. Em 2002 gravou o álbum
“Acústico MTV”, reunindo novamente as bandas Admirável Jorge V e a Banda do Zé Pretinho.
2004 assistiu ao retorno do alquimista Benjor com "Reactivus Amor Est (Turba Philosophorum)",
lançado pela Universal, o primeiro cd de músicas inéditas em nove anos.
Na era do cd e da música eletrônica, os ecos da era dos festivais dos anos 60 e 70 soam
distantes e apagados. Mas não há como negar que esses eventos contribuíram para a formação da
maior parte do conjunto de compositores e intérpretes que ainda se ouve até hoje. No entanto, era
evidente ligação entre a realização dos mais de dez Festivais da Canção e o momento político em
que os mesmos tomaram corpo. No meio do fogo cruzado político em que o Brasil viveu entre a
renúncia de Jânio e o fim do regime militar, os festivais foram grandes válvulas das ebulições que
ferviam a sociedade brasileira daquela época.
19
matéria raça
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Os casos estudados são utilizados como metonímias de um movimento maior,
correspondente à construção de outros perfis identitários que o negro assumiria em um contexto
pós-moderno. Gerson King Combo, Toni Tornado, Erlon Chaves, Wilson Simonal e Jorge Benjor
corresponderiam, então, a estas novas possibilidades de exercício de individualidades, frente a
um contexto globalizante em expansão.
Gerson King Combo, apesar da perda de popularidade com a diminuição do fenômeno
dos bailes black, ainda faria mais alguns insipientes trabalhos, seguindo a onda da disco music.
Logo após, abriria mão da carreira artística, para arrumar um emprego público em um projeto
com crianças carentes. Seria “ressuscitado” através do revival do samba-rock e da soul music
brasileira, em meados do ano 2000.
Toni Tornado, que ainda exercia uma atividade de pregação social em favor dos negros
nos bailes da periferia, foi preso pela repressão e “convidado” para sair do país em 72. Foi para o
Uruguai, Angola, Egito e Europa, interrompendo sua carreira de cantor. Passado o tempo, tornouse conhecido como ator de televisão, sendo um dos poucos atores negros contratados pela Rede
Globo.
Se Erlon Chaves fosse branco, talvez tivesse sido diferente. Deprimido após os
sucessivos escândalos, ficou com medo de se apresentar novamente em um palco. Voltou a
trabalhar como arranjador e maestro. Acabou falecendo, precocemente, de enfarte, aos 40 anos,
provavelmente por conta do segundo golpe que levara por conta das acusações que viriam a
destruir seu amigo Simonal.
O estigma de delator que perseguiu Wilson Simonal durante o resto de sua vida, por
conta de acusações infundadas, se deu em 1972. Quando foi acusado de ser o mandante de uma
surra dada por dois policiais no contador de sua firma, que o teria roubado, Simonal foi
denunciado e condenado – e durante o inquérito, um agente do Dops ainda revelou que o cantor
tinha sido informante do órgão. Até hoje duas coisas não foram esclarecidas: o envolvimento ou
não de Wilson Simonal com a polícia política da época, e o tratamento que a imprensa deu a ele
nos anos seguintes. Se até 1971 só se viam elogios a ele nos jornais, a partir daí as notícias
passaram a ser cada mais raras e negativas. Era como se o apelido de “dedo-duro” que o jornal O
Pasquim publicou estivesse gravado para sempre nas páginas dos jornais. Tomaram como
verdade absoluta seu suposto envolvimento com o Serviço Nacional de Informação, e nem
mesmo após a anistia concedida a presos políticos e torturadores, a imprensa voltou a tratá-lo
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como o talentoso showman que era. O terror repreendido imposto pelo regime militar pode, como
muitos alegam, ter levado os jornalistas do período a tomar Simonal como “bode expiatório”. A
condenação sem provas foi o motivo da sua sistemática exclusão da mídia, dos palcos e da
memória do público.
Conjecturas de um complô criado contra o cantor eram tão incomprovadas quanto as
denúncias que sofreu. A questão é que, em uma sociedade como a brasileira, em que o
preconceito racial está enraizado na mentalidade da sociedade, para algumas pessoas poderia
causar mais transtorno do que admiração ver um negro, nascido em morro, freqüentar os mais
finos restaurantes, desfilar em carros conversíveis com belas loiras, e ser um dos mais famosos
artistas da época.
Em 2003, três anos após a morte de Wilson Simonal, a Ordem dos Advogados do Brasil
considerou que o cantor não teve culpa nas acusações de delação que lhe imputaram na década de
70. A Comissão de Direitos Humanos da OAB examinou documentos do SNI e da Polícia
Federal, registrados na época do regime militar, depoimentos de pessoas que conviveram com
Simonal e material jornalístico do começo dos anos 70 para afirmar que não procedia a pecha de
“dedo-duro” que foi imputada ao cantor.
Em contrapartida, Jorge Benjor soube muito bem driblar, como “Fio Maravilha”, as
relações problemáticas com a ditadura e com a mídia brasileira. Participante assíduo dos festivais
da canção, em 69 concorreu com “Charles Anjo 45”, que narrava a odisséia de um “robin hood”
dos morros. No Festival Internacional da Canção de 1971, defendeu “Porque É Proibido Pisar na
Grama”, e, em 72, venceu o último FIC com “Fio Maravilha” (cujo nome foi mudado para “Filho
Maravilha” após disputa judicial com o jogador Fio), interpretado pela esfuziante Maria Alcina,
impressionando a platéia. Criticado por não se filiar a nenhum movimento, era também chamado
de alienado por parte da esquerda brasileira. Em 1970, o cantor escreveu o samba “Brasil, eu
Fico”, lançada em um compacto, cantada por Wilson Simonal.20 A letra ufanista criticava
aqueles que se exilavam, por não concordarem com o regime. "Este é o meu Brasil, cheio de
riquezas mil/ futuro e progresso do ano 2000/ quem não gostar e for do contra que vá para...".
Antes, Jorge já tinha feito também “País Tropical” (69). No site oficial do cantor, não existe
20
MARTINS, 2002.
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nenhuma menção a “Brasil, eu Fico”. No entanto, mesmo julgado por sua suposta alienação, fez a
música “Sem essa nº 5”, sua resposta ao AI-5. Mas desta vez, não conseguiu driblar a censura, e a
canção nunca foi lançada.
Neste contexto televisivo, de grande alcance nacional, estes artistas negros surgiram
como grandes transformadores do estereótipo negro na mídia. Toni Tornado e Gerson King
Combo, ícones do movimento Black Power, que encarnariam uma postura radical diante das
questões de raça. Um outro discurso foi construído por Wilson Simonal e Erlon Chaves.
Inserindo-se dentro dos círculos da alta sociedade, e também dentro da grande mídia, que reduzia
a estereótipos fechados as possibilidades de identidade negra, representaram uma outra
possibilidade de ascensão social, conquistando fama e dinheiro (e ainda podendo ter mais
possibilidades de um relacionamento amoroso intra-racial, em que questões de ascensão social
também entravam em jogo). Entre o radicalismo e a adesão, situa-se Jorge Benjor, mostrando
uma outra possibilidade de construção identitária. Dentro de um Brasil pós-moderno, a
possibilidade se deslocar entre diferentes identidades, de acordo com as referências e o contexto,
fizeram de Jorge Benjor um artista singular (e, por isso mesmo, universal). Ora bossanovista, ora
tropicalista ou rockeiro, desenvolveu um estilo musical híbrido, de diversas referências culturais,
resultado do conflito de várias identidades contraditórias, fragmentadas, inacabadas,
característica do sujeito moderno.
56
57
7. A IDENTIDADE DO SAMBA-ROCK E A CRÍTICA: UMA
AUTENTICIDADE QUESTIONADA
“Tamborim, do samba de lá
fez my brother se lembrar
do meu tamborim
Vai daqui - pra você Um samba legal
um suingueue gringo lindo
no seu tamborim
Pelo som, a gente se entende
sente mais razão
pra sempre se cantar
quando a paz
foge do mundo
a gente se chega mais
e curte o mesmo som”
(Tamborim - Robson Jorge / Ronaldo)
O samba-rock, que, desde sua criação, no final dos anos 50, nunca recebeu atenção
suficiente, nem mesmo uma categorização, por parte da mídia e da crítica especializada. Mais
preocupados com a música executada por uma elite e uma classe média branca urbana, que
originou movimentos como a bossa nova e a tropicália, a imprensa ignorava sistematicamente o
trabalho de músicos, notadamente negros, advindos, em sua maioria, da periferia dos centros
urbanos, que criavam uma nova sonoridade. Exceto Jorge Ben, que circulava entre estes
movimentos (de cunho mais político), como também se apresentava junto a cantores da Jovem
Guarda, e, portanto, não dava margem a rótulos. Também Wilson Simonal, mas que pouco tempo
após a instauração da ditadura, foi relegado ao ostracismo artístico. Muitos músicos migraram
para o exterior, onde relativamente, faziam sucesso e conseguiam viver de sua música, como
Bola Sete, Dom Salvador, Raul de Souza. Enquanto isso, a música negra urbana brasileira
influenciada pelo soul e funk americanos continuava sendo feita, mas restrita aos guetos das
periferias de algumas cidades, como Rio, São Paulo e Porto Alegre, passando ao largo da grande
mídia.
Apesar da resistência, José Ramos Tinhorão, entre outros críticos, percebiam a
originalidade na música de Jorge Ben: “O trabalho atual de Jorge Ben é o que de bem mais
original e criativo já apareceu na música de consumo, desde que o surto baiano estabeleceu que,
para ser atual, no Brasil era preciso aderir ao pop, ao rock, ao soul etc.”. Assim o severo
historiador e crítico José Ramos Tinhorão definiu A Tábua de Esmeraldas, em 1974, na sua
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coluna publicada no Jornal do Brasil logo após o lançamento do disco. Ana Maria Bahiana
escreve em seu livro “Anos 70: música popular”:
“Com a soul music – e de modo mais abrangente, com os modos negros e americanos de
fazer música (...) surgiu, num primeiro momento, uma leva de compositores, cantores e
grupos votados à cópia dos cânones exatos da soul music americana – alguns, como Tim
Maia e Cassiano, vindos de uma reverência mais antiga ao gênero, já nos anos 60. E, com
exceção quase única destes dois, este bloco de artistas foi rapidamente esquecido – tanto
pelo público aficionado de soul, que continuou preferindo a música original, quanto por
outras platéias em potencial.”
Retornando a Tinhorão, em crítica publicada no Caderno B do Jornal do Brasil em
14/07/1979, no texto intitulado “Cinco Discos Contam a História Breve da Dominação Cultural”,
ele resume em poucas linhas sua opinião sobre o trabalho do trombonista Raul de Souza:
“Outro é o do trombonista Raul de Souza, que, tendo gravado nos EUA, onde mora há
anos, o LP Til Tomorrow Comes, ao lado de músicos de seu país de adoção, tem o prazer
de ver sua obra lançada no Brasil como disco nacional pela mesma EMI-Odeon, que
recebeu passando de graça pela alfândega até os fotolitos com as ilustrações da capa e
contracapa.”
E também fala, brevemente, sobre o terceiro disco do “compositor e violonista
brasileiro Luis Wagner, gravado no Rio de Janeiro para o selo Polygram, da Philips” (Luís
Wagner – Fusão das Raças), como algo que “nada mais representa do que uma variante sonora
das músicas que aparecem no disco norte-americano de Raul de Souza”.
Tinhorão fazia a seu modo uma crítica do avanço da mercantilização, que
descaracterizaria o popular e o “nacional”. Contrapunha a essa tendência "inautêntica", da qual
tomou obsessivamente a bossa nova e depois o tropicalismo e derivados como emblema, uma
música popular isenta de comercialismo e influência estrangeiras, essa sim autêntica, a seu ver,
pela pureza das suas raízes populares. Formulou desde então um autêntico fundamentalismo
sócio-cultural em defesa de uma identidade supostamente natural e exclusiva das classes
populares contraposta à invasão da cultura estrangeira. Como pretender negar legitimidade a essa
manifestação cultural que reinterpretou as condições de sua existência material concreta tomando
para si o gênero pertinente, transformando-o sem nenhuma submissão? Serão obrigatoriamente os
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negros norte-americanos 'criadores' e os negros brasileiros 'imitadores'? (é preciso, no mínimo,
não confundir a estrutura do gênero com cópia).
Ana Maria Bahiana comenta no artigo “Enlatando a Black Rio”, do livro “Nada será
como antes”, a importação em larga escala da música negra americana e a importância dos bailes
black tanto para a configuração do consumo quanto para a visibilidade desse grupo social. No
entanto, este movimento não teve grandes significações como forma de intervenção ou de
contestação da ordem social. Inclusive sua própria configuração como “movimento” organizado
foi, inicialmente, uma construção da mídia e das gravadoras. Não é de conhecimento geral que a
banda Black Rio foi criada pela WEA, que convocou Oberdan Magalhães para formar um grupo
que misturasse samba e funk, pagando-os semanalmente para que ensaiassem e criassem um novo
som, para, após dois meses, serem lançados em um grande baile. No artigo supracitado, Ana
Maria Bahiana repercute a matéria, de 1976, publicada, no Jornal do Brasil, com o sugestivo
título de “Black Rio - O Orgulho (Importado) De Ser Negro No Brasil”. Era o auge do
movimento, quando os bailes se preparavam para invadir a Zona Sul. A autora Lena Frias,
“desvenda” para uma incrédula classe média o que ela chama de “uma cidade de cultura própria”,
que a sociedade “prefere ignorar ou minimizar”. Na reportagem, a jornalista faz uma detalhada
radiografia dos bailes, entrevista DJs, organizadores, freqüentadores e diretores de gravadoras,
que tentavam ganhar em cima do movimento.
“O seu texto, com um clamor de espanto, cai como uma bomba no movimento.
Impactante, o texto é lembrado até hoje pelos envolvidos como algo que trouxe uma
repercussão negativa para o movimento. E, junto com ela, a repressão vinda de todos os
lados: da ditadura, dos sambistas, da academia, do movimento negro, de setores
conservadores e até mesmo de esquerda. Organizadores de bailes chegaram a parar no
DOPS, alguns acusados de militantes comunistas”. 21
No mundo do samba, a repercussão não foi diferente. Sambistas tradicionais
hostilizavam os blacks em artigos e entrevistas. Os jovens eram chamados de alienados e eram
acusados de negar o patrimônio cultural brasileiro. Alguns destes críticos, como o ator e produtor
musical Jorge Coutinho e o compositor Candeia enxergam o movimento com preocupação
peculiar. Ambos criticavam a ‘comercialização’ do samba que, segundo eles, teria afastado os
21
MAXWELL, “Rio Black Rio”
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jovens de sua cultura nativa. Para os sambistas, o soul representava uma afronta às contribuições
negras à cultura brasileira, muito embora as quadras lotadas durante os bailes black rendessem às
escolas de samba um faturamento extra nos domingos. O autor de ‘Preciso Me Encontrar’ via no
movimento algo de positivo que era a aglutinação da juventude negra em torno de algo que seria
uma consciência racial que, em seu raciocínio, parecia ser um embrião de resgate do que seriam
os valores culturais afro-brasileiros.
Intelectuais como Gilberto Freyre, autor do célebre Casa Grande & Senzala e da Teoria
da Democracia Racial, esbravejaram nos jornais contra esse movimento que, segundo eles, atenta
contra um Brasil que ‘cresce plena e fraternalmente moreno’. Freyre escreveu diversos artigos
para jornais e revistas de São Paulo e Pernambuco condenando o movimento que, no seu olhar,
representava uma espécie de imperialismo norte-americano. O mesmo discurso que era proferido
por grupos da esquerda. Para estes, somente o fato de ser originário dos Estados Unidos tornava o
soul uma espécie de inimigo da soberania nacional. Isso sem contar com aqueles que não
enxergavam a sociedade sem os óculos da luta de classes, que os impediam de se posicionar em
relação às questões raciais. Para estes, se o Brasil continha em si a discriminação racial, esta
deixaria de existir no momento em que o socialismo fosse instaurado no país. Assim, não havia
que se discutir uma questão negra sem se vincular à questão de classe.
Dividido, o movimento negro estava entre aqueles que viam no Black Rio algo um
aliado na conscientização racial das massas negras do Brasil; outros, contrários aos blacks,
incorporavam-se ao discurso que identificava em suas atitudes uma mera imitação do modelo
americano que não serviria para o Brasil e alegavam que os negros brasileiros deviam se espelhar
numa mítica cultura africana.
Podemos considerar a música – em especial, a música popular – como um fator de
diferenciação etnocultural. Diferenciação esta baseada em uma multiplicidade que tem a ver,
principalmente, com possibilidades e não com identidades. A diferença não é um ponto de
partida, mas de chegada – ponto de partida são as possibilidades concretas de diferenciação.
Dizer identidade humana é designar um complexo relacional que liga o sujeito a um
quadro contínuo de referências, constituído pela interseção de sua história individual com a do
grupo onde vive. Cada sujeito singular é parte de uma continuidade histórico-social, afetado pela
integração num contexto global de carências (naturais, psicossociais) e de relações com outros
indivíduos, vivos e mortos. A identidade de alguém é sempre dada pelo reconhecimento do
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“outro”, ou seja, a representação que o classifica socialmente, base de formação da identidade
individual e também de qualquer estrutura e ação sociais.
Não há, portanto, uma ordem estável e substancial de constituição do sujeito, uma
espécie de atribuição colada a um destino específico, mas uma dinâmica de interiorização de
comportamentos, atitudes e costumes, a partir de padrões significativos no ambiente familiar e
social. A identificação é fator dinâmico de integração do indivíduo no grupo e de mobilização de
suas pulsões, afetos, escolhas. Ela aparece como uma dinâmica da socialização, isto é, a
permeação do ser singular pela cultura. Cultura não é apenas puro mecanismo identificatório, não
sendo apenas uma orientação prática determinada e precisa. Cultura é processo e elaboração,
mais do que mero paradigma e unidade. Dentro das mutações culturais da contemporaneidade, “a
identidade pessoal aparece não mais como uma subjetividade homogênea, mas dá lugar a
identidades movediças (grupais, afetivas, mediáticas), suscetíveis de pôr em crise figuras das
doutrinas identitárias tradicionais, como classe, função e gênero”.22
Na realidade, cada ente é único, singular, incomparável, mas relacionável por
semelhanças (traços físicos, lingüísticos, simbólicos, etc.). A identidade é, portanto, ilusória (ou
imaginária), porque diz respeito apenas às representações e aos objetos aos quais se podem fazer
projeções intelectuais. Não só os bailes, mas todo o processo de criação musical afro-brasileira
em cima de uma matriz americana representou, no âmbito cultural, um fator importante aos
jovens que encontraram nesta manifestação uma forma simbólica de resistência, combate e
fortalecimento da identidade étnica através das vestimentas, do vocabulário, da dança.
O aumento da mobilidade local dos indivíduos, e o desenvolvimento dos meios de
comunicação (uma mobilidade informacional) denotam um tipo mais complexo de organização
humana em escala global. Novas oportunidades de individualização e internalização de
referências alteram padrões de comportamento e também o raio de alcance do processo de
identificação. Essa “integração em nível global” afeta de maneiras distintas a cultura. A força
integradora choca-se hoje com as pressões antagônicas das singularidades locais, que podem não
ser mais as dos Estados nacionais, e sim de comunidades religiosas, culturais, etc. Tudo isto
coincide com os impulsos no sentido de uma cultura transnacional por efeito da globalização
financeira e comercial, que redistribui a capacidade de produção e substitui a concepção de
22
SODRÉ, 1999: 41
61
62
“território nacional” pela de mercado. Com a troca do enraizamento espacial pela aceleração
temporal (transportes, telecomunicações), a estabilidade identitária perde força.
Essas “identificações adquiridas”23 são via de acesso a valores, normas, ideais, modelos,
heróis, nos quais a pessoa, a comunidade se reconhecem, constituindo em parte a identidade de
alguém. A identidade explicita a particularidade, aquilo que distingue formações culturais de
outras, na singularização de um grupo.
Os meios de comunicação eletrônica, que pareciam destinados a substituir a arte popular
e o folclore, agora o difundem maciçamente, e colaboram em sua reelaboração. Assim como a
oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo não estão onde
estamos habituados a encontrá-los. É necessário demolir esta divisão em três pavimentos, essa
concepção em camadas do mundo da cultura, e averiguar sua hibridação, que se dá através de
cruzamentos socioculturais em que o tradicional e o moderno se misturam. Negar a autenticidade
de determinados movimentos culturais populares, invalidados por seus processos híbridos de
formatação, diante do contexto globalizante, é invalidar a capacidade criativa e independente de
decisão dos caminhos culturais que a determinada comunidade pode tomar.
As culturas híbridas foram geradas ou promovidas pelas novas tecnologias
comunicacionais, pela reorganização do público e do privado no espaço urbano e pela
desterritorialização dos processos simbólicos. Essa transnacionalização da cultura, responsável
pela recomposição das culturas urbanas, enfraquece as fronteiras nacionais e redefine os
conceitos de nação, povo e identidade.
Às vezes, mesmo com etnias aparentemente iguais, a falta de mitos identitários comuns
acarreta problemas psicossociais. Os habitantes urbanos, em especial as novas gerações,
passaram a manifestar dificuldades de aceitação aos ícones nacionais mais tradicionais. A eles
não mais mobilizavam profundamente aqueles artistas do samba, do choro, os compositores
negros das favelas e morros, seja por uma falta de informação em relação à própria cultura, seja
pelo simples fato de que já pertenciam a um momento anterior da cultura urbana, não mais
satisfazendo a suas necessidades de identificação cultural. Nessa dificuldade de autoreconhecimento, passaram a sentir a necessidade de encontrar novas identificações, sem
necessariamente abandonar por completo a herança musical destes mesmos artistas antigos, mas,
de certa forma, englobando em seus processos criativos as influências de novos gêneros musicais
23
MUNIZ, 1999:44
62
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que invadiam rádios, tv’s e lares, dentro de um contexto ainda inicial de uma globalização que
dava seus primeiros passos. Para alguns, uma influência maléfica, responsável pelo fim de uma
música autenticamente brasileira, popular, na tradução de um desejo de autenticidade e de uma
saudade de uma suposta pureza originária. Para outros, uma troca benéfica, contrariando a visão
frankfurtiana de “massa”, público passivo e vitimizado diante do controle midiático. Eram
artistas populares, conectados com o que se produzia lá fora, em especial, EUA, que participavam
de um processo de troca produtiva, apropriando-se e transformando sua própria musicalidade.
Tanto tradicionalistas quanto modernizadores quiseram construir objetos puros. Os
primeiros imaginaram culturas nacionais e populares “autênticas”; procurando preservá-las da
industrialização, da massificação urbana e das influências estrangeiras. Já os modernizadores
tentaram conceber uma arte pela arte, sem fronteiras territoriais, e confiaram às experimentações
e inovações autônomas suas fantasias de progresso, rejeitando qualquer manifestação cultural que
pudesse remeter a um tradicionalismo ou provincianismo popular. Ambas formas de imposição
de tipos e padrões do dever ser.
Hoje existe uma visão mais complexa sobre as relações entre tradição e modernidade. O
culto tradicional não é apagado pela industrialização dos bens simbólicos. A modernização
diminui o papel do culto e do popular tradicionais no conjunto do mercado simbólico, mas não os
suprime. Redimensiona a arte e o folclore, o saber acadêmico e a cultura industrializada, sob
condições relativamente semelhantes. O popular, aqui, não se define por uma essência original,
mas pelas estratégias instáveis, diversas, com que os próprios setores subalternos constroem suas
posições. Do lado popular, é necessário preocupar-se menos com o que se extingue do que com o
que se transforma.
A pós-modernidade surge aí como uma etapa ou tendência que substituiria o mundo
moderno, mas como uma maneira de problematizar os vínculos equívocos que ele armou com as
tradições que quis excluir ou superar para constituir-se. A separação entre o culto, o popular e o
massivo foi anulada, a fim de elaborar-se um pensamento mais aberto para abarcar as interações e
integrações entre níveis, gêneros e formas de sensibilidade coletiva. Em meio a essas tensões se
constituem as relações complexas, nada esquemáticas, entre o hegemônico e o subalterno, o
incluído e o excluído.
Na noção de cultura, há algo de simultaneamente estético e político. Estético no sentido
de que a percepção de um objeto – aqui, no caso, a música – passa pela apreensão de sua unidade,
63
64
concentradora da multiplicidade de seus elementos. Político porque a identidade obtida pela
cultura permite a idealização das relações sociais que instituem a cidadania. Nesse processo de
afirmação da própria alteridade os criadores deste gênero híbrido, que conjugava o samba à
gêneros musicais americanos negros, não apenas “rendiam-se” a uma colonização musical, não
apenas mostravam-se passivos diante dos tentáculos impostos pela indústria cultural. Ao colocar
“bebop no samba”, estes artistas, a quem o samba já não mais a eles pertencia (visto que havia
sido apropriado, primeiramente pelo Estado, e depois pela classe média branca bossanovista),
reconstruíam sua música, re-delineavam sua identidade, e afirmavam-se como atores sociais,
donos de seu próprio discurso e de sua própria cultura.
O artístico se define não segundo valores estéticos a priori, mas identificando grupos de
pessoas que cooperam na produção de bens que por eles pode ser chamado arte. As práticas
artísticas estão situadas nos processos de produção e reprodução social, de legitimação e
distinção, fazendo parte da luta simbólica entre as classes e entre diferentes grupos dentro das
classes. Na modernidade, os mundos da arte são múltiplos, não se separam taxativamente entre si,
nem do restante da vida social; cada um compartilha com outros campos o fornecimento de
pessoal, recursos econômicos e intelectuais, mecanismos de distribuição dos bens e os públicos.
Cada campo cultural é essencialmente um espaço de luta pela apropriação do capital simbólico,
generalizando experiências e transformando-as em fenômenos coletivos. O discurso “black
power” americano, em um contexto de intensa transformação social, durante os anos 60 e 70, da
qual a grande massa de negros era sistematicamente excluída, encontrou ecos ideais para se
firmar aqui. Para os movimentos de esquerda somente o fato de este discurso ser originário dos
Estados Unidos o tornava uma espécie de inimigo da soberania nacional, sem contar que
desconsideravam as questões raciais frente à luta de classes. Para estes, se o Brasil continha em si
a discriminação racial, esta deixaria de existir no momento em que o socialismo fosse instaurado
no país.
O desejo em se anular a identidade negra é o pano de fundo para o mito da democracia
racial. O comentário de Oliveira Vianna dá uma noção de como a maioria dos intelectuais
brasileiros via o movimento negro: “Não há perigo de que o problema negro venha a surgir no
Brasil. Antes que pudesse surgir seria logo resolvido pelo amor. A miscigenação roubou o
elemento negro de sua importância numérica, diluindo-o na população branca”.24 As novas
24
ARAÚJO 2000 : 99
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65
identidades que emergiram nos anos 60 e 70, agrupadas ao redor do significante black, fornecem
repertório para um novo foco de identificação, tanto para as comunidades afro-americanas quanto
afro-brasileiras, ou de outras nacionalidades que vivam um contexto de desigualdade.
“O que essas comunidades têm em comum, o que elas representam através da
apreensão da identidade black, não é que elas sejam, cultural e étnica, lingüística ou
mesmo fisicamente, a mesma coisa, mas que elas são vistas e tratadas como “a mesma
coisa” (isto é, não-brancas, como o “outro”) pela cultura dominante. (...) Entretanto,
apesar do fato de que esforços são feitos para dar a essa identidade black um conteúdo
único ou unificado, ela continua a existir como uma identidade ao longo de uma larga
gama de outras diferenças.”25
O black é, assim, um exemplo não apenas do caráter político das novas identidades, mas
também do modo como a identidade e a diferença estão articuladas ou entrelaçadas também em
identidades diferentes, uma nunca anulando completamente a outra. Pode-se ser sambista,
rockeiro, black power e bossa nova, ao mesmo tempo. Brasileiro, sempre, pois, indo além do
conceito de nação, esta “brasilidade” se refere a uma cultura muito mais ampla. A identidade é
algo que se inventa, e se reinventa. E sua vivência é alimentada pelos jogos existenciais e
narrativos de uma comunidade. Esses processos híbridos musicais não são menos legítimos do
que a música folclórica do congado, ou do que o próprio gênero do qual ele se originou: o samba.
Existência e realidade social revelam-se em conjunto num estilo de vida, numa atmosfera,
suscetível de apreensão sensível. Há que se relevar o contexto em que cada um foi criado e
conduzido. A influência dos meios de comunicação é fato, e apropriar-se destas influências de
forma ativa e, junto com elas, possibilitar re-criações é seu maior valor.
“(...) apesar de tudo, há vida cultural como fenômeno vivo (me desculpem o
pleonasmo), em que se dão trocas, diálogos, expressão de contradições, de experiências
singulares, de talentos e de espontaneidades, e que, efetivamente, se constituíram
criadores e ouvintes que não são nativos de nichos culturais fechados, mas desse mundo
poroso que vigora, num equilíbrio muito instável ou precário, fora e dentro da indústria
do entretenimento. Nesse caso, mesmo em movimentos de cunho marcadamente
popular, como quero exemplificar adiante, acontecem apropriações e intercâmbios pelos
meios de reprodução técnicos, em vez da pureza dos nichos étnico-sociais de expressão
regional estrita. Mais a autenticidade dos usos que das origens ou dos fins.”26
25
26
HALL, 1999: 86
WISNICK, 2001
65
66
A autonomia do campo artístico, baseada em critérios estéticos fixados por artistas e
críticos, é diminuída pelas novas determinações que a arte sofre de um mercado em rápida
expansão, onde são decisivas as forças extraculturais e seu poder de coesão social. A música,
como forma social, atravessa mutações de caráter não apenas estético, como também histórico. O
samba-rock pode não ser um novo gênero, mas um sub-gênero que incorporou novos elementos e
deu ao samba uma nova expressividade. Nela, há o princípio real, responsável pela permanência
de um padrão, capaz de abranger relações sociais e de comunicação. Mesmo depois da
transformação histórica dos conteúdos melódicos, harmônicos e temáticos, o substrato do samba
tornou-se uma constante na vida cultural e social, e, sem uma pluralidade multiforme, abriga
dentro de si instabilidade, mudança, fluidez, contingência. Ele permanece intemporal, uma forma
social que é canal permanente de formas entre a origem e o presente, relativizando o peso da
sucessão de transformações.
A esse motivo deve-se toda a vitalidade do samba, em cuja consciência está guardado o
próprio passado. Os próprios compositores de samba-rock mantêm-se em constante resgate do
que fizeram seus sucessores, de seus conteúdos artísticos e simbólicos originais. Englobam
também o futuro, através de experimentações de sonoridades, introdução de novos instrumentos.
É também uma característica presente em toda a música popular brasileira, motivo de sua
existência enquanto organismo capaz de crescer e de se reproduzir constantemente.
Por que o samba-rock foi mais que um fenômeno social de uma determinada época,
ultrapassou o tempo, e é retomado agora? Não só por uma intenção comercial de uma indústria
fonográfica saturada. Nem apenas por um desejo de resgate histórico. A História é uma espécie
de diálogo entre gerações, em que cada palavra numa mensagem implica uma resposta a um
apelo já feito. E a resposta é sempre uma transformação da pergunta. Na transformação, a
unidade do processo está na continuidade com que uma transformação surge da outra. Ou seja, a
identidade não é nada substancial, mas uma continuidade lembrada – por mensagens, apelos,
respostas – e reinterpretada. O samba está aí, ele continua latente, como um fio condutor
atemporal destas transformações das matrizes para as operações de identificações sociais: a
cultura e a música.
Nem o “paradigma” da imitação, nem o da originalidade, nem a “teoria” que atribui
tudo à dependência conseguem dar conta de nossas culturas híbridas. Para se conceber a
modernização latino-americana, é preciso saber que ela, mais do que uma força alheia e
66
67
dominadora, que operaria por substituição do tradicional e do típico, ela promoveria uma maior
movimentação dos circuitos híbridos, promovendo uma grande heterogeneidade cultural. E são
justamente estas culturas híbridas que constituem a modernidade, e lhe dão o perfil específico na
América Latina, e no Brasil, de tantos sambas e de tantos rocks.
“(....) porque quando peguei esse violão, eu já toquei um samba-rock, mesmo. Não foi a
cópia do rock and roll, como você vê nos grupos. Cópia da idéia, cópia dos timbres, cópia de tudo,
entendeu? Sempre procurei fazer uma música acoplando a informação planetária - que é necessária
- com a minha naturalidade, a minha autenticidade como músico, como artista, a minha letra
vivida. Foi daí, do meu próprio sentimento, que fui extraindo essas coisas que penso que sejam
comuns a todos, ao mesmo tempo, em que posso oferecer uma visão dessas experiências.”27
27
VAGNER, 2003: Gafieiras.
67
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8. CONCLUSÃO
Ao tentar não cair em sectarismos e categorizações infrutíferos, tentei, com este
trabalho, mapear os desmembramentos de um gênero musical tão rico quanto o samba-rock. E, a
partir dele, traçar um painel sobre a música popular brasileira que era feita durante as décadas de
60 e 70, especificamente aquela desenvolvida a partir de influências da música afro-americana.
Discutindo a respeito de um segmento musical popular brasileiro até então pouco valorizado pelo
jornalismo cultural, e, que aos poucos, começa a ser reconhecido pelo público e pela mídia como
um produto artístico e cultural genuíno, tentei abordar a questão da construção identitária do
negro diante da globalização. Tenho como planos dar continuidade ao trabalho como projeto de
mestrado, a fim de tentar entender mais até mesmo sobre minha própria individualidade,
enquanto negra e brasileira, abordando academicamente um estilo musical singular, através do
qual é possível averiguar o que é ser negro em um país tão híbrido como o Brasil.
68
69
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ObaOba: São Paulo, 2001. Seção Comportamento. Disponível em: <
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