UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES INSTITUTO DE HUMANIDADES CENTRO DE ESTUDOS AFRO-ASIÁTICOS Pós graduação Lato Sensu em HISTÓRIA DA ÁFRICA E DO NEGRO NO BRASIL TRABALHO DE CONCLUSÃO DO CURSO ALUNO: RICARDO DE MENEZES MEIER SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS NA MÚSICA POPULAR AMERICANA E SUAS ORIGENS AFRICANAS: O JAZZ E O SAMBA Rio de Janeiro Março de 2009 Resumo: Um estudo comparativo de como nasceram e se desenvolveram o Jazz e o Samba, a partir de suas influências africanas e considerando os seus espaços geopolíticos e sociais. No exame de suas semelhanças e diferenças, uma tentativa de resgatar identificações, despindo-os de colorações ideológicas e mercadológicas. O Samba como algo mais do que um símbolo de nacionalidade e o Jazz como algo mais do que um produto da indústria cultural norte-americana. Uma indicação de que dá para gostar de Jazz e Samba ao mesmo tempo, sem sombra de dúvida. A construção de uma identidade, não exonera outras e nem afasta o enriquecimento cada vez maior da cultura, como resultado de um processo cujo fim coincidirá apenas com o fim da humanidade. Palavras-Chave : Música, Contexto Social e Identidade. “Influência do Jazz” Letra e Música de Carlos Lyra Pobre samba meu Foi se misturando se modernizando, e se perdeu E o rebolado cadê? não tem mais Cadê o tal gingado que mexe com a gente Coitado do meu samba mudou de repente Influência do jazz Quase que morreu E acaba morrendo, está quase morrendo, não percebeu Que o samba balança de um lado pro outro O jazz é diferente, pra frente pra trás E o samba meio morto ficou meio torto Influência do jazz No afro-cubano, vai complicando Vai pelo cano, vai Vai entortando, vai sem descanso Vai, sai, Pobre samba cai... no balanço! meu Volta lá pro morro e pede socorro onde nasceu Pra não ser um samba com notas demais Não ser um samba torto pra frente pra trás Vai ter que se virar pra poder se livrar Da influência do jazz x-x-x-x-x- APRESENTAÇÃO E INTRODUÇÃO A origem deste trabalho tem um quê de história subjetiva, fundamental para seu entendimento e sua significação. Sou egresso de uma família de pessoas ligadas à música, adquiri um amplo gosto musical que englobava os mais variados estilos e formas, desde a música dita erudita, até o popular quase que folclórico, passando pelos muitos gêneros industrializados, tais como o Rock, o Jazz, o Samba, o Bolero, o Samba Canção, a Bossa Nova, e por aí vai.... O que nunca coube muito em meu gosto é a música feita com objetivos predominantemente comerciais, mas o resto era perfeitamente apreciável. Neste sentido adquiri uma certa predileção por ritmos da música popular brasileira e norte-americana, que tinham nítida influência africana. O que sempre chamou a atenção, entretanto, é que ritmos com influências no mínimo similares apresentavam tamanha distância, inclusive do ponto de vista ideológico, na medida em que o samba principalmente vestiu ao longo da história a camisa de música nacional e se transformou em instrumento de luta. Sempre foi muito difícil encontrar alguém que goste simultaneamente dos dois tipos de música, Samba e Jazz. Inegável entender é claro, que tanto o Jazz como o Rock, produtos de uma fortíssima indústria cultural norte-americana, também se transformaram em símbolo de um monstruoso instrumento de dominação, pelo menos para os defensores da nacionalidade brasileira. Ao assumir a camisa de “pesquisador”, acabei por me debruçar em tentar entender as diferenças e semelhanças entre estas músicas de forte influência africana, nas Américas, como elas se constituíram (eis que não são africanas), e neste processo de constituição, o que se manteve de influência e o que se perdeu. Esta pesquisa, da qual o presente trabalho é um pequeno recorte, permeou todo um curso de bacharelado em História da Arte na UERJ e agora a especialização em História da África e do Negro no Brasil pela Universidade Candido Mendes. Em seu decorrer, tivemos a grata surpresa de encontrar um bom número de trabalhos de pesquisa, principalmente sobre o samba e a música popular brasileira, e também constatamos que os estilos de música que elegemos como paradigmas para a comparação presente, que são o Samba e o Jazz, sofreram forte influência do “lócus” em que foram gerados, indicando a total identidade entre a música e o espaço social na qual é gerada. Com efeito, o Samba é totalmente devedor do Rio de Janeiro, assim como o Jazz é de Nova Órleans e as características destas cidades são fundamentais para o entendimento de como estes gêneros musicais puderam se desenvolver. Aqui, abrimos um pequeno parênteses, para explicar que o nosso objetivo inicial, mais amplo, englobaria também um estudo sobre ritmos do caribe, como por exemplo, a Rumba em Havana. Há forte e total identidade. Também se trata de um estilo musical com forte influência africana em sua constituição, também apresenta uma denominação preconceituosa, e como o Samba e o Jazz sofreu um tortuoso processo de rejeição e assimilação pelas camadas médias da sociedade, com as especificidades de Havana, que diferem um pouco do Rio e de Nova Orleans. Porém, a pouca quantidade de material disponível para pesquisa e a necessidade de delimitar um pouco a equação entre trabalho e resultado nos fez afastar por enquanto desta ampliação. Todo este processo de escolha do tema para este trabalho final de conclusão do curso de pós-graduação em História da África e do Negro no Brasil, fornecido pela Universidade Candido Mendes, sofreu forte incremento a partir da leitura do texto intitulado “Encontros e desencontros de duas tradições religiosas: o Vodu e o Candomblé” dos professores José Flávio Pessoa de Barros, Arno Vogel e Marco Antonio da Silva Mello, doutores em Antropologia, na aula que foi ministrada pelo primeiro, sobre religiões afro-brasileiras no curso acima referido. O texto em questão trata do importante acontecimento que foi o festival afroamericano de Marin na Martinica em 1991, no qual, entre inúmeras atrações se dá destaque a dois eventos dos quais foram protagonistas as delegações do Brasil e do Haiti, ou seja, a primeira apresentou o ritual do “Olubajé”, retirado do Candomblé e a segunda o ritual do “Bule Zen” que faz parte do conjunto de práticas do Vodu. O texto explora com rigor científico e perspicácia as convergências e divergências entre as duas manifestações religiosas, contextualizando-as no processo histórico em que se constituíram e tendo como principal foco a questão do segredo. Este texto teve o condão de trazer de volta à tona, a minha preocupação primordial em investigar as semelhanças e diferenças no processo de constituição das manifestações musicais de origem africana nas Américas. Menos pelo seu rico conteúdo, e mais pela forma como contextualiza estas semelhanças e diferenças no que se refere aos ritos religiosos, o texto acima referido, abriu mais a idéia e a estrutura sobre a qual pretendo construir um pouco a síntese do que até agora pude acumular nesta investigação-viagem acadêmico-musical. Interessa-nos sobretudo, como salientado pelos autores do texto acima usado como referencia, verificar que: “.... pode variar também, de uma tradição a outra (a despeito de sua origem comum) em função de suas circunstâncias históricas e sociológicas que presidiram ao nascimento e ao desenvolvimento de cada uma delas...”1 Acreditamos com o presente trabalho, resgatar um pouco, a partir do exame das semelhanças e diferenças, a identidade dos dois estilos com suas influências comuns, despindo-os de características ideológicas que os afastam. Neste sentido, acrescentamos como segmento final do trabalho, após a contextualização de cada gênero musical, sua constituição e seus desdobramentos, uma pequena reflexão sobre a construção de uma identidade, e de como a busca por estas influências africanas em nada prejudicam o estabelecimento de novas relações. Um episódio emblemático para significar o nosso trabalho é a “passagem” de Pixinguinha da flauta para o saxofone. Narrado pelos pesquisadores Marília Barboza e Arthur de Oliveira Filho, foi na França em 1922, durante temporada naquele país do conjunto “Os batutas” (ou os “oito Batutas”) que englobava Pixinguinha, seu irmão China no violão e o Donga, entre outros. O “mecenas” Arnaldo Guinle encomendou um sax para o grande flautista, o que levou-o a se aproximar do Jazz e se afastar um pouco (mas não tanto assim) do que alguns convencionam se tratar de música brasileira autentica. José Ramos Tinhorão é um dos que lamentam o mesmo episódio, e expõe que o conjunto, influenciado pelas Jazz Bands, eleva o número de integrantes e incorpora um naipe de sopros.2 1 2 Ver Bibliografia, p.265 Ver Bibliografia “ O samba agora vai” p.33 A pesquisa sobre a origem do Samba e do Jazz, gêneros característicos da chamada música popular das Américas e ambas com fortes componentes de origem africana em suas “raízes” nos leva a analisar uma série de informações de fontes orais que devem ser interpretadas sempre como aproximações, no qual o atributo da certeza substitui-se sem prejuízo algum pela probabilidade. Há muito que a ciência se despiu do pretensioso e autoritário véu da essência. Sem querer forçar grandes digressões metafísicas, o filósofo inglês David Hume, já advertia séculos atrás sobre os perigosos rumos das probabilidades que se disfarçavam em verdades absolutas Não há como negar, que ambos os “tipos musicais” que pretendemos enfocar nascem como fenômenos urbanos e dentro de um processo de forte miscigenação, no qual o processo de identificação da cultura africana se afirma sem causar qualquer prejuízo ao resultado integrativo. É preciso destacar entretanto que muitos autores e pesquisadores colocam em questão esta “integração”, que sempre parece remeter a uma conjugação de esforços no mesmo sentido. Kabengele Munanga, por exemplo, prefere considerar o panorama cultural como uma integração de diversidades ou pluralidades culturais.3 Faremos esta discussão nas considerações finais de nosso trabalho. No que se refere ao Samba, há uma grande discussão sobre suas origens, e mesmo, uma polêmica sobre a sua paternidade entre o Rio e a Bahia, não por acaso, dois fenômenos geo-sociais com forte presença do elemento negro de origem africana em sua composição. Não há dúvida alguma, de que o primeiro samba gravado com esta denominação e registrado para fins de direitos autorais foi “Pelo Telefone” em 1917 por Donga (Ernesto dos Santos, violonista e compositor, foi integrante do conjunto “oito batutas” no Rio de Janeiro e era filho da “baiana” Tia Amélia, uma das “baianas” que funcionavam como difusoras da cultura negra no Rio de Janeiro). Não há dúvida alguma também, que existiam espalhadas pelo Brasil diversas danças e músicas de origem africana chamados genericamente de batuques, e alguns das quais eram conhecidos por “Samba”. Havia, por exemplo,devidamente catalogado por nossos folcloristas, o samba do recôncavo baiano e um tipo de samba rural no interior de São Paulo. José Ramos Tinhorão recolheu em diversos romances literários de índole romântica do final do século XIX, inclusive em José de Alencar, capítulos destinados a descrever a modalidade de folguedo negro intitulada de “samba”.4 3 4 Ver na Bibliografika, Munanga, Kabengele- “Rediscutindo a mestiçagem no Brasil”, fls. 102 Ver na bibliografia, Tinhorão, José Ramos-“ Os sons dos negros no Brasil”, parte II capítulo 3 Não há nenhuma dúvida também, de que o fato de ter sido gravado e registrado nos órgãos de direitos autorais, já demonstra que estamos fora do âmbito tradicional da chamada arte popular de dimensão folclórica, ou seja, aquela que é considerada como expressão de uma pureza étnica ou cultural. Sem querer aprofundar uma polêmica que se apresenta pouco interessante, indicamos que o surgimento da música popular Samba, é fruto de um momento sócioeconômico em que o elemento negro, desfruta de um relativo espaço de poder urbano, capaz de ter alguma significação econômica, ainda que para efeito da nascente indústria cultural. Este relativo espaço, conquistado com muita luta, só foi possível, por características que descreveremos a seguir, no Rio de Janeiro. Também o Jazz, fenômeno urbano nascido em Nova Órleans, deve sua criação a características sociais da composição desta cidade, que provavelmente não seriam observadas em outras regiões. Como por exemplo, o grau de liberdade que os negros dispunham na cidade, uma sensível força econômica, e já antecipando uma janela comum, uma significativa indústria cultural voltada para as diversões, o que tem a ver com a dimensão portuária de ambas as urbes aqui destacadas. A mitológica “Congo Square” que era um espaço público no qual se permitia o exercício livre da cultura negra no centro de Nova Orleans (hoje faz parte do Louis Armstrong Park) parece ser uma forte representação desta liberdade, posteriormente perdida em Nova Orleans, similar ao espaço mitológico das casas das “tias baianas” como a “tia Ciata”. A presença destas “baianas” merece ser objeto de maior explicação. O Rio de Janeiro, capital da colônia no século XVIII, naturalmente atraia grande contingente populacional, ainda mais e nada por acaso, com o deslocamento do eixo econômico para as minas e posteriormente para o café. Acrescentemos a estes fatores, o caráter comercial e portuário, que caracterizou sempre maior liberdade e por assim dizer maior conexão com as esferas externas, supostamente mais letradas e “desenvolvidas”. O Rio de Janeiro, sempre foi descrito pelos viajantes e narradores como uma cidade onde os negros dispunham não apenas de quantitativo numérico considerável, mas também de um razoável grau de liberdade que muito incômodo causou. Em 1821, contando apenas as paróquias urbanas, o Rio de Janeiro tinha 86.323 habitantes, dos quais 40.376 eram escravos. Em 1849 haviam 10.732 escravos libertos. (dados extraídos do Dossiê sobre as raízes do Samba, visando a sua instituição como patrimônio imaterial) Na segunda metade do século XIX a proibição do tráfico de escravos, as expedições militares contra o Paraguai e Canudos, resultaram em um aumento maciço desta migração interna, e colônias de negros e migrantes das mais diversas regiões do país se estabeleceram de forma significativa no Rio de janeiro, ao redor do cais do porto e na região da Praça Onze e cercanias, para onde as camadas populares foram expulsas pela política de modernização do centro do Rio de Janeiro, empenhado em se transformar na cidade da “Belle Epoque Tropical”. As chamadas “tias baianas” eram autênticas matriarcas, em cujas residências se difundia a cultura negra, através da culinária, da religiosidade e da música, sendo ponto de encontro não apenas para os elementos da comunidade, mas para intelectuais, jornalistas e membros das camadas médias da sociedade. A festejada Tia Ciata (ou Anunciata ou Asseata), Hilária Batista de Almeida ( 1854-1924) em cuja casa teria sido recolhido ou criado o primeiro samba gravado era autoridade religiosa no templo de João Alabá na rua Barão de São Felix, próximo à Central do Brasil. Enquanto o centro do Rio pretendia se tornar uma “civilização” nos moldes à Francesa, a região da periferia se contentava em ser o que o pesquisador Roberto Moura definia como “ Pequena África”. Voltando, porém, a um dos papas do folclore e da cultura popular, temos que Luis da Câmara Cascudo define “Samba” como modalidade de baile popular urbano e rural e que se constitui em uma dança de roda, derivada dos batuques com umbigada como a semba, observada em Loanda, Angola. Estes batuques com umbigada foram observados, como já apontamos, em diversas regiões do país com diversos nomes, sendo que alguns deles com características totalmente diversas. O Jongo, por exemplo, que o próprio Câmara Cascudo define como espécie de samba, tinha um caráter mais próximo da religiosidade, sem o caráter lascivo da umbigada, recheado de simbologias místicas de origem africana como comunicações com espíritos antepassados, sendo recorrente a informação verbal que eram proibidos a crianças e traziam mensagens cifradas. No Brasil, a libertação dos escravos em 1888, e a adoção de uma política de imigração calcada na ideologia do branqueamento, gerou para o elemento negro, uma ausência de espaço social e econômico na virada do século. Verifica-se um forte incremento do movimento migratório para as grandes cidades, em especial para o Rio de Janeiro. Um primeiro momento deste movimento migratório parece estar diretamente relacionado ainda com a guerra do Paraguai e a campanha de aniquilamento de Canudos, e em um segundo momento, já mais para o decorrer do século XX, proveniente das zonas rurais da região sudeste, em especial, devido ao esgotamento da atividade cafeeira5. Nos Estados Unidos, a grande difusão ocorre quando os “creoles” de Nova Orleans, que desfrutavam de relativa liberdade e situação econômica, são segregados ( principalmente a partir de 1880) e difundem indubitavelmente a linguagem das bandas de jazz, que alegravam as festas públicas (e até mesmo enterros) de uma sociedade bastante “carnavalizada”. A estas bandas que traziam forte sotaque folclórico, e estrutura similar a muitas bandas marciais remanescentes da guerra da secessão 6, se adiciona sem dúvida a estrutura musical baseada no “chamado-resposta” característica dos cantos de trabalho das zonas rurais do “Mississipi” e que foi levada a todos os cantos dos Estados Unidos pelas estradas de ferro e pelos trovadores errantes do Blues. Esta sociedade “carnavalizada” a que nos referimos em Nova Orleans, também existia no Rio de Janeiro na virada do século. Embora ainda não existissem as hoje dominantes “escolas de samba”, haviam ainda remanescentes das grandes sociedades carnavalescas e blocos e uma grande quantidade de ranchos, que desfilavam com temas, e para os quais eram compostas marchas7. A grande maioria dos músicos que tocavam nestes ranchos eram advindos das bandas de formação militar, sendo a mais conhecida e respeitada pelos inúmeros prêmios que conquistou, a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, ancorada nas figuras ilustres dos maestros Anacleto de Medeiros e Alberto Carramona. Para se ter uma idéia da importância destas bandas, que poderíamos chamar de bandas de animação e fazer um grande paralelo com as de Nova Orleans e suas marchas, elas foram as grande difusoras dos sambas e maxixes da época. E não apenas destes ritmos, mas do próprio Jazz e do Fox-Trot já na década de 20. Observe-se que além do esforço popular dos ranchos e cordões que traziam as danças e folguedos populares dos migrantes dos diversos estados que aportavam na 5 É interessante notar que a origem de grande parte dos sambistas de morro no Rio de Janeiro são destas cidades da zona rural do próprio estado do Rio de Janeiro, cujas lavouras caíram em desgraça antes de São Paulo e Paraná 6 É onde se explica uma certa proeminência de instrumentos de sopros que não se observam na constituição inicial do samba. 7 Não confundir com as marchas-ranchos, que são fenômenos posteriores, como adverte Jota Efegê (ver bibliografia). então capital da república, como o baiano Hilário Jovino que passou a história de alguns como fundador do primeiro rancho, também para a intelectualidade modernista, despontava uma verdadeira valorização do regional, inclusive da música caipira (ver por exemplo, a participação de Noel Rosa no bando dos Tangarás, além é claro de João Pernambuco e Catulo da Paixão) além do folclore como um todo e o próprio apego do romantismo ao elemento popular. Tinhorão apresenta um interessante trabalho de pesquisa sobre a chamada música dos barbeiros no Rio de Janeiro (normalmente mulatos livres) que se dedicavam à música urbana de entretenimento e ao processo de constituição das bandas, a partir de 1840, que gerou sementes que muito contribuíram para o aspecto “amaxixado” do samba urbano carioca.8 Um dos primeiros músicos (cornetista) de jazz, Buddy Bolden também era barbeiro e o grande flautista Patápio Silva, também aprendeu na barbearia do pai, os rudimentos do instrumento, em Cataguases- Minas Gerais.9 Muitos pesquisadores observam, que a escravidão sob o regime de “plantation”, quer nos Estados Unidos, quer no Brasil, trazem traços fortes na constituição destes estilos musicais. Enquanto nos Estados Unidos, a forte repressão aos instrumentos de percussão gerou um incremento maior à vocalização (que se reflete posteriormente na absorção religiosa do pentecostalismo sulista negro), no Brasil, por motivos de maior frouxidão na intenção moral de salvar as almas dos escravos, correspondente a uma diferenciação entre o catolicismo e o protestantismo anglo-saxão, houve maior liberdade na utilização de instrumentos de percussão, desde que estes fossem usados para folguedos e não como eventos religiosos ligados ao candomblé. Também é reportado que a utilização de tambores para comunicação foi fortemente reprimida no período mais conturbado das revoltas escravas no nordeste brasileiro, mas é fato excepcional ao contrário dos Estados Unidos em que se constituía em uma política permanente. Em ambos os casos, porém, a necessidade de burlar a repressão do colonizador fez com que algumas estruturas (letras, principalmente) carregassem duplo Ver na Bibliografia- Tinhorão, José Ramos- “História Social da Música Popular Brasileira” parte III capítulos 2 e 3 9 Ver na Bibliografia- “Patápio-Musico erudito ou popular” pag. 25. 8 sentido e hermetismo capaz de se constituir como característica de ambos os estilos, e até hoje, marca de destaque na música popular de ambos os países10. Voltando ao Jazz, os historiados apontam várias contribuições ao nascimento do estilo. Sem dúvida alguma além, do Blues, os chamados “Spirituals” característicos desta tradição protestante segregada no sul a partir da década de 60 do século XIX e também o “Ragtime” são dignos de um estudo mais aprofundado. RAGTIME Surgido como um estilo de tocar piano, que está profundamente ligado ao ramo do entretenimento musical, O Ragtime tem fortes ligações com raízes populares de música de fundo para comédias de costumes e até apresentações de cinema (sem nenhum acaso, algo semelhante ao que executava por aqui Ernesto Nazareth) tais como tangos e habaneras. O Ragtime, mais um estilo de tocar do que um estilo de música, incorpora um forte elemento de origem africana na música, que foi objeto de inúmeros estudos, entre eles, talvez os mais profundos, de Mário de Andrade, sobre a natureza da síncope, que é por assim dizer uma “ quebra” na estrutura mecânica do ritmo musical. Não por acaso talvez, seus grandes intérpretes são negros. É preciso, entretanto, ter certo cuidado com esta polêmica questão da síncope, pois enquanto Mário de Andrade, a meu ver, utiliza a noção de síncope como algo mais do que simples notação ou elemento rítmico musical, Carlos Sandroni procura destacar que não se observa na música africana tal elemento rítmico. O Musicólogo destaca que a síncope é uma notação musical ocidental, e que enquanto a música ocidental tem sua estrutura rítmica baseada em simetria e divisão, a música africana apresenta uma estrutura rítmica assimétrica, e que a dificuldade em transpor para a música ocidental a sua notação esta assimetria é que fez com se utilizasse a síncope. Destacamos o seguinte trecho de Sandroni, que a nosso ver, se aproxima de uma posição mais real: 10 Na impossibilidade de se falar sobre o patrão falava-se no diabo ou na mulher, e muitos feitores simplesmente não entendiam os sons e os motivos de cantos dos escravos que propositadamente tinham temas mais herméticos. Assim, mesmo se a noção de síncope inexiste na rítmica africana, é por síncopes, que no Brasil, elementos desta última vieram a se manifestar na música escrita; ou se preferirmos, é por síncopes que a música escrita fez alusões ao que há de africano em nossa música de tradição oral. É neste sentido, e só nesse, que tinham razão os que afirmavam que a origem da síncope brasileira estava na África.11 Mas o interessante debate prossegue, por exemplo, com Muniz Sodré, do qual destacamos o seguinte trecho, que é fundamental para os objetivos do nosso trabalho: De fato, tanto no Jazz, quanto no samba, atua de modo especial a sincopa, incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio com a marcação corporal- palmas, meneios, balanços, dança.12 O grande pesquisador da comunicação pretende ver no incidente rítmico, um elemento com raízes metafísicas, presente na cultura africana, e representativo de um espaço de ligação com o sagrado, que a cultura ocidental capitalista afasta. Fundamental a sua percepção de que a síncope esteja presente tanto no samba como no jazz, o que o se faz fundamental para os objetivos de nossa pesquisa, que caminha no mesmo sentido, ou seja, talvez esta seja uma das semelhanças fundamentais entre os dois estilos e que resistiu a todo o processo de miscigenação. Destacamos o seguinte trecho de Mário de Andrade: “O africano também tomou parte vasta na formação do canto popular brasileiro. Foi certamente ao contacto dele que a nossa Rítmica alcançou a variedade que tem, uma de nossas riquezas musicais”.13 É interessante observar como Eric Hobsbawn faz, que estes fenômenos musicais surgem da necessidade do entretenimento cultural dos trabalhadores pobres, e remonta a meados do século XIX como estágio específico do processo de industrialização. Cabarés, Vaudevilles, Teatro de Comédias, são os espaços por excelência onde se desenvolveram estes estilos musicais. Sem prejuízo, é claro dos folguedos de rua, que os áulicos do desenvolvimento e da civilização na virada do século, pretendiam controlar. 11 Ver bibliografia-Feitiço decente- p.26 Ver bibliografia-Samba o dono do corpo-p.11 13 Ver bibliografia-Compendio de História da Música- p.171 12 Igual esforço de pesquisa e resultado traz Tinhorão, quando acentua neste entretenimento cultural dos trabalhadores pobres, o surgimento de uma profissionalização cultural que no Rio de Janeiro irá gerar um ramo de comédia de costumes, e posteriormente o teatro de revista e os cabarés que tanto simbolizaram a chamada “Belle Epóque Tropical”. BLUES O “Blues”, como tantos outros ritmos oriundos da cultura popular, tem sua origem envolta em algum mistério e muitos relatos orais. Não há muita dúvida, entretanto quanto a sua origem rural, com certa paternidade irresponsável das “works songs” (cantigas de trabalho) e dos “spirituals” (cantigas religiosas), sem respaldo em instrumentos de percussão e na flauta (que eram proibidos) e com uma estrutura versada com repetição de estrofes e estrutura de “chamado e resposta”. Esta “estrutura” musical de “chamado-e-resposta”, assim como a própria roda e o acompanhamento com palmas, não podem ser considerados como elementos característicos das sociedades africanas ou dos negros, mas sem dúvida, é algo observado em todos os grupos sociais com economia nômade ou seminômade, quer seja na África, onde predominavam, quer seja, por exemplo, na Palestina, nos campos russos ou entre os ciganos. De qualquer forma, trata-se de uma influência adquirida através dos negros escravos e que também se apresenta no samba (especialmente preservado nos chamados “partidos-altos”. Este estilo de tocar foi disseminado por músicos errantes, que vagavam pelo Mississipi na virada do século e acabaram influenciando a música de espetáculo dos cabarés e vaudevilles das cidades sulistas. Seus temas eram em geral vicissitudes, ausências, partidas e desilusões e do ponto de vista musical utilizavam exaustivamente as chamadas “blue notes”, que são intervalos melódicos dissonantes, com mudança de modo maior para menor e que depois foram e são largamente utilizados no Jazz e no Rock. Embora existam muitas pesquisas a respeito, ainda não se encontrou o elo destas notas como sendo característicos das estruturas melódicas de origem africana, parecendo já ser um fruto da diáspora. Muitos dizem que o surgimento das “blue notes” se deve a uma certa “discrepância” entre os intervalos musicais de quarta que eram usados na África e a tonalidade européia, outros preferem falar de uma recusa ao cromatismo ocidental, mas o certo é que se trata de uma solução fruto de um “engendramento”. Estes menestréis errantes utilizavam basicamente a guitarra (violão) e o banjo (este sim um instrumento de origem africana) e desenvolveram um estilo de tocar altamente percussivo, com o ritmo marcado no tanger das cordas. Pesquisadores acadêmicos gravaram no começo do século, em um esforço similar ao desenvolvido aqui no Brasil, por exemplo, por Mário de Andrade, diversos exemplares destas manifestações populares de blues, que influenciaram de maneira decisiva a música de consumo pop das grandes cidades na segunda metade do século XX. Há uma grande quantidade de pesquisas que indicam um grande fluxo migratório do sul para as cidades do norte, envolvendo o contingente negro, que abandona o segregacionismo mais exacerbado e vai procurar espaço nos núcleos urbanos industriais, como Chicago e Detroit, por exemplo. Acredita-se que a população negra de Chicago e de Nova Iorque praticamente dobrou entre 1910 e 1925. Fenômeno similar ocorreu no Rio de Janeiro. Esta migração atingiu praticamente todos os grandes músicos, como, por exemplo, Louis Armstrong (bastante característico do estilo de Jazz de Nova Orleans) e Muddy Waters (“bluesman” originário das fazendas de algodão do sul). Ao contrário do Brasil, a política oficial de imigração nos Estados Unidos não logrou êxito em alijar o elemento negro do mercado industrial nascente, e foram criados, especialmente nas grandes cidades, bolsões (ainda que com estrutura de gueto) de descendentes de africanos com relativo poder de consumo, e que gerou um razoável mercado. Curiosamente, esta indústria cultural alternativa, que acompanhava certa dimensão econômica do elemento negro nas grandes cidades, foi duramente atingida pela grande depressão que se seguiu ao final dos anos 20 e praticamente desapareceu enquanto negócio norte-americano, ressurgindo após a guerra como refluxo de um movimento de absorção pela cultura branca européia. MAXIXE E LUNDÚ “Foi por algum tempo, expoente de nossa dança urbana, tendo cedido seu lugar ao samba, devido talvez à sua coreografia complicada, difícil e exagerada. resultou da fusão da habanera pela rítmica e da polca pelo andadura, com adaptação da sincopa africana”. 14 14 - Ver Dicionário Brasileiro do Folclore- Luis da Camara Cascudo O Maxixe é sem dúvida, um dos pais do Samba tão quanto o Blues é um dos pais do Jazz.. Originalmente uma dança, o maxixe aos poucos se tornou uma forma de tocar, cujos antecedentes são sem dúvida alguma, a “polca”, a “mazurca” e o “scotish”, por um lado e a “habanera” e o “tango” por outro. Em relação aos três primeiros antecedentes, se tratam de apropriações populares européias de marchas e danças do tipo de quadrilhas, com ritmos vivazes, que segundo Tinhorão, acompanhavam o ritmo da revolução industrial e se afastavam da distância corporal ainda refletida no gosto da burguesia pela imitação das danças da nobreza. De fato, estas danças são observadas no Brasil a partir do final da primeira metade do século XIX, e logo caem no gosto do público, na medida em que abandonam os salões e os pianos e passam a ser executadas pelos conjuntos de chorões nas ruas do Rio de Janeiro e pelas bandas militares, com elementos que tomam emprestados dos batuques e lundus. O trabalho de pesquisa de Tinhorão demonstra como esta forma de dançar foi aos poucos, via teatro de revista e sociedades carnavalescas, ganhando o gosto da classe média do Rio de Janeiro. Observa ainda como a designação Maxixe, fruto rasteiro presente nas chácaras, foi sendo pouco a pouco afastada e substituída por denominações mais nobres, como “tango-polca”, ou “tango-habanera”, sendo inafastável que Ernesto Nazareth, como queria Mario de Andrade, é o grande compositor brasileiro deste estilo musical, “fixador do caráter carioca do maxixe brasileiro”. Interessante observar, como aponta Tinhorão, que mesmo gravadoras internacionais, na virada do século, já se preocupavam e fazer gravações de ritmos populares com bandas militares e indica uma gravação de uma banda alemã de um “tango brasileiro” em 1901.15 Esta grande popularidade dos maxixes nas execuções das bandas militares, cujos músicos obviamente as executavam nos bailes carnavalescos e outras casas de espetáculos, levou o então ministro da guerra, Marechal Hermes da Fonseca, a baixar uma portaria proibindo sua execução em exercícios militares em 1907. Parece sem sombra de dúvida, que a dança maxixe foi se estilizando e se tornando algo de difícil execução, Tinhorão e Jota Efegê narram as desventuras do 15 - Ver Tinhorão- Pequena História da Música Popular- p.77 bailarino Duque, que levou para a Europa esta modalidade de “tango brasileiro” e fez enorme sucesso. Aponta-se ainda o processo de decadência contínuo do maxixe, que foi sendo substituído pelo Charlestone e pelo Fox-Trot no gosto da dança do público de classe média brasileira, cada vez mais subjugada em termos de gosto pela crescente indústria cultural norte-americana e pelo samba, para que voltemos ao nosso tema. Mario de Andrade em seu compendio da História da Música, de 1936, ainda coloca Donga e Sinhô, como compositores de maxixe.16 E não são poucos os que destacam o caráter “amaxixado” do primeiro samba gravado. Talvez uma pesquisa mais profunda sobre o que seria este “caráter amaxixado” poderia nos indicar sem sobra de dúvida o que alguns pesquisadores desejam estabelecer, ou seja, o verdadeiro mistério do samba e aquilo em que podemos identificar como sendo o que o samba e o jazz trazem de mais comum. Ainda sobre o Maxixe, oportuno observar que ao contrário do Lundu e do Samba, o bailado é de par e foge às características dos batuques, que eram sempre atividades de roda, em que a participação do acompanhamento com palmas é uma das características. Aqui se pode fazer um grande e interessante paralelo, pois este acompanhamento com palmas também é uma das características do chamado Gospel, música de raiz negra também característica do sul dos Estados Unidos. Segundo o mestre Câmara Cascudo em seu dicionário do folclore brasileiro, Lundu, ou Lundum, ou Londu, é uma dança e um canto de origem africana, banto, ao qual a chula, o tango brasileiro e o fado muito devem. Divergem os autores quanto à origem do nome, sendo a versão mais difundida, inclusive por Tinhorão, de que o mesmo deriva de Calundu, que seria uma dança ritual africana. Carlos Sandroni adverte que a palavra “lundu” designa na música brasileira coisas diferentes que são em geral consideradas interligadas, evoluindo de uma dança popular para uma canção. A origem africana não é questionada e também aparece em todos os pesquisadores a importância do Lundu não apenas no Brasil, mas também em Portugal. No Brasil, aparece em escritos de Tomás Antonio Gonzaga no final do século XVIII e segundo vários pesquisadores, o padre mulato brasileiro Domingos Caldas 16 - Ver Bibliografia- Compendio de história da música- p. 176 Barbosa teria sido o grande divulgador do Lundu (e também das modinhas, segundo Tinhorão) em Portugal, antes do século XIX. Tentando fugir da complicada e polêmica investigação sobre as relações entre a dança e a canção que são duplamente conhecidas como Lundu, verifica-se quase que sem oposição que a dança, tem um componente malicioso, em que a diferenciava do Fandango e demais danças ibéricas. Tratava-se da incorporação do requebrado e dos meneios da umbigada ao movimento das mãos, estalar dos dedos e mesmo das palmas. No que se refere à canção, também não se foge aos temas amorosos e considerados de baixo nível pela sociedade burguesa, e ainda que Nei Lopes e outros reconheçam no Lundu um caráter também cômico, parece que a luxúria era seu grande significado. A primeira música gravada no Brasil foi um Lundu, de Xisto Bahia, em 1902, chamado “Isto é bom” Ninguém diverge porém, do grande papel que o Lundu , o Maxixe e a Polca tiveram na constituição do Samba. Aqui se pode fazer uma pausa para destacar algo sobre a história da dança e sua importância, pelo menos em termos de apropriação e fortalecimento dos ritmos musicais de origem africana e como eles se diferenciaram. O pesquisador Felipe Ferreira, narra a passagem da “contradança” ou “country dance” e sua retomada no período napoleônico pela burguesia interessada em apropriar-se dos costumes do nobres para a paulatina adoção das chamadas danças indecentes, a partir do século XIX, inclusive expondo a espetacular” galope final”, atribuída ao maestro Phillipe Musard em 1839, em que a música se acelerava e os pares dançavam furiosamente até a exaustão.17 Eric Hobsbawn também procura rastrear os primórdios do que chama “modismo de dança” e chega até as “maratonas de dança” que eram organizadas no começo do século XX. Segundo o pesquisador, esta “moda” está relacionada com a liberação de convenções vitorianas e com a emancipação feminina. Acreditamos até que esta busca por novidades em termos de dança está relacionada com uma certa rejeição aos padrões da burguesia do século XIX, e não é a toa que a valsa é afastada deste movimento. A virada do século é um pouco a era das experimentações e da quebra de muitas estruturas simétricas e estáveis, inclusive da repressão ao corpo (o que não deixa de ser vitoriano). Seja por que razão for, não há dúvida, como quer Hobsbawn, a voga 17 -Ver bibliografia- O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro – ps.107/109 da dança trouxe automaticamente uma infiltração de linguagens afro-americanas para a música pop, ainda que estas danças como maxixe, fossem consideradas indecentes, luxuriantes e coisas de negro. Segundo a pesquisadora Porto-Riquenha Mareia Quintero-Rivera, traduzindo Jonh Baxendale: “uma das funções essenciais da dança na cultura ocidental - em qualquer meio - sempre foi o de construir um espaço social e cultural para a interação entre os sexos... Enquanto as danças antigas demandavam uma postura bastante rígida, com limitado contato corporal- até na valsa que outrora provocara escândalos- as novas danças pareciam se basear em movimentos bruscos e até indecentes de braços, pernas e troncos, e freqüentemente permitiam o abraço demorado com o parceiro”,18 Exame do Aspecto da Integração e Considerações Finais Parece não haver dúvida de que todo o processo de integração da cultura negra e a chamada miscigenação encontram-se contaminado pelo fato de que o seu nascedouro é um violento procedimento de espoliação calcado na escravidão. Não obstante o passar de gerações, a história não tem o condão de apagar tal processo ou mascarar as relações nas quais ele se funda. Ainda que na época do nascimento do samba e do jazz como manifestações culturais urbanas, tal processo já não mais existia, ainda assim não há que se esconder que o elemento de origem africana não se encontrava em iguais ou sequer similares condições de integração com os elementos de origem européia ou os demais nacionais já afastados de sua origem. É fácil observar que o próprio produto desta “integração”, na medida em que vai sendo absorvida pela indústria, sofre uma tentativa de “embranquecimento” e em muitos sentidos busca-se apagar a contribuição africana ou minimizá-la como se limitássemos a influências rítmicas meio que inconscientes, que acabam por sofrer um processo civilizatório. Não é difícil observar tal ideologia disfarçada, até em muitos textos acadêmicos. Voltamos a transcrever as palavras de Mareia Quintero-Rivera: “A leitura de tais debates sobre a imoralidade da música e da dança leva a hipótese de que por trás dos mesmos há uma aversão à idéia de mistura racial. O fato de perceber uma marcada presença de elementos africanos nesses gêneros musicais fazia evidente uma história de 18 - Ver Bibliografia – A cor e o som da nação – p.123. mestiçagem biológica que resultava desconcertante dentro de uma perspectiva evolucionista da cultura para a qual a mestiçagem apontava como processe degenerativo”. 19 Acredito que podemos enriquecer este processo, analisando a “síncope” rítmica ou qualquer paradigma, sob um aspecto mais amplo, que engloba talvez uma perspectiva metafísica como quer Moniz Sodré, mas talvez seja apenas uma simples postura anti-cartesiana. O “mistério do samba” seria uma dose de irracionalismo, de ritmo pulsante, que afeta a métrica e a expectativa ocidental. Algo similar a um solo de Jonh Coltrane, Gene Krupa, Charlie Bird ou uma melodia de Charles Mingus. Algo descrito por Mário de Andrade, através de sua personagem Siomara Ponga, em o Banquete, como “A sincopa é anti-moral, apaixonante, um desvio. E o gozo físico excessivo, tanto pela sua violência anormal como pela sua conseqüência lógica de exaustão e esgotamento, nos seciona da vida que é movimento e regularidade, aproximando a gente da morte.” 20 Observamos que tanto o Samba como Jazz possuem diversas similaridades: são produtos urbanos, já industrializados, advindos de múltiplas contribuições culturais folclóricas de natureza rural, como o Blues e os Batuques, onde elementos da cultura africana despontam, tais como a estrutura de “chamado-e-resposta”, o improviso, a estrutura rítmica que foge à tradição ocidental, incorporando uma diferença de intensidade e duração assimétricas (a síncope). A composição social em ambas as cidades, com espaços de maior liberdade para o elemento negro, que dispunha nelas de significado econômico diverso da totalidade dos demais espaços geo-sociais nos dois países, também é um denominador comum considerável, sendo o elemento festivo, do folguedo, da “carnavalização” uma espécie de amálgama. Mas não são apenas similitudes, pois o caráter amaxixado do samba, que o aproximava dos chorões e do jazz, foi perdendo algum espaço para outras formas de samba onde o elemento melódico se afastou do instrumental e desenvolveu mais o seu lado rítmico, pautado na percussão. O Jazz por seu lado se afirmou como produto de uma forte indústria cultural e desenvolveu também outros sub-estilos em que ora se aproximava do samba, ora se 19 20 -Ver Bibliografia- “A cor e o som da nação” p.126/127. Ver Bibliografia, “O Banquete “ p.134. afastava, construindo intrincados caminhos rítmicos, harmônicos e melódicos. Em um momento, adotou intrincados arranjos orquestrais (Swing), em outro, enfatizou a riqueza melódica (Cool) e em outros momentos a experimentação e o Hibridismo (Bebop). O Samba igualmente deu origem a inúmeros sub-estilos, desde produtos mais voltados para suas raízes, até diálogos com o próprio Jazz como, por exemplo, a Bossa Nova. Samba de Partido-Alto, Samba de Terreiro, Samba-Canção, e por aí vai... Outro aspecto, portanto, que encontramos no Samba e no Jazz é esta tensão permanente entre a busca pelas raízes (e não é toa que tanto lá como cá, sempre se coloca esta questão da autenticidade) e a experimentação e os diálogos. Estão aí o JazzRock, o Sambalanço, o Jazz-Afro-Cubano e até mesmo (porque não ?) Marcelo D2 e sua procura pela batida perfeita? Destaco novamente, por ser a questão central deste trabalho – a busca pelas raízes, a construção de uma identidade, em nada prejudica o enriquecimento cultural do objeto. Não é apenas mais uma versão, porém, uma versão fundamental, pois na busca pelas raízes, orienta o resultado. O Samba foi transformado em símbolo de uma nacionalidade que se procurava construir e por força disto, algumas vezes foi contraposto ao Jazz e sua influência sobre a nossa música, sendo que não raras vezes tal simbologia trazia consigo inserta a possibilidade de uma civilização homogênea, configurada em uma miscigenação reflexa de predisposições naturais e culturais. Longe de nós pretendermos esgotar neste pequeno trabalho ricas construções sociais e artísticas como o Samba e o Jazz, ou estabelecer verdades. O exame de suas constituições e deste processo de integração, não favorece a versão de que são identidades dadas a serem descobertas. Investigar as afro-ascendências do Samba e do Jazz, nos faz caminhar no sentido de fortalecer cada vez mais estes estilos, como aliás, de certa maneira, adverte Edison Carneiro, o genial folclorista baiano, em sua introdução na Carta do Samba escrita em dezembro de 1962: “Toda evolução dos folguedos populares é normal e necessária, pois nesses folguedos encontramos a expressão das alegrias e das tristezas populares. O papel do pesquisador é tentar encontrar meios e maneiras para neutralizar aqueles perigos e criar condições para que sua evolução se processe com naturalidade, como reflexo real da nossa vida e dos nossos costumes. Nisto não há qualquer nota saudosista, mas tão-somente o interesse de assegurar ao samba, como aos demais folguedos populares, o direito de continuar como expressão legítima dos sentimentos de nossa gente” 21 Encerro este trabalho com a seguinte citação do crítico e jornalista Zuza Homem de Mello no encarte do CD- “Samba e Jazz” de Wagner Tiso: “No mesmo ano de 1917 foram gravados sem o menor sinal de algum vínculo entre si, o primeiro disco de samba e o primeiro de jazz. A medida em que se passaram os anos a conexão entre as duas formas foi sendo posta à prova e se fortalecendo qual um laço musical. Agora ela é tão lógica que a coincidência parece ter sido resultado de um bem montado plano de marketing. Nada mais enganoso. Quem consegue camuflar os pontos de contato entre as Big Bands do Swing e nossas orquestras de gafieira ? Ou entre o Bebop e a Bossa Nova ?” 21 A Carta do Samba foi o documento redigido como resultado do I Congresso Nacional do Samba, realizado em 1962, organizado pela Confederação Brasileira das Escolas de Samba, pela Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, Ordem dos Músicos, e participaram entre outros, Ary Barroso, Almirante,Jota Efeg~e, Paulo Lamarão, Maestro José Siqueira e o citado Edison Carneiro, seu presidente. Bibliografia Almeida, Tereza Virgínia- (2006) “No Balanço maliciosa do Lundu”, in Revista de História da Biblioteca Nacional, ano I n° 08, p.16/21. Andrade, Mário – “Compendio de História da Música”- São Paulo-SP- L.G. 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